bolsonarismo
Rio de Janeiro: Vereadora negra e trans denuncia ataques recorrentes de vereador bolsonarista
Benny Briolly (PSOL) relata ser agredida verbalmente por Douglas Gomes (PTC) em todas as sessões da Câmara de Niterói
Roberta Camargo
Negra e transexual, a vereadora Benny Briolly (PSOL) tomou posse em 2021 e nesses poucos meses de mandato tem sido alvo de várias ameaças de morte, racismo e transfobia. Na Câmara de Niterói, município do Rio de Janeiro, o principal autor das violências contra ela é o vereador bolsonarista Douglas Gomes (PTC).
O parlamentar se descreve em sua conta no Twitter como cristão, patriota e conservador. Nas redes sociais, ele compartilha uma série de publicações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
O ataque mais recente ocorreu na última semana, quando Benny foi insultada e ameaçada pelo vereador bolsonarista. A parlamentar preside a Comissão de Direitos Humanos e Douglas é vice.
Em entrevista à Alma Preta, Benny conta que a ausência de outras mulheres trans torna o ambiente [Câmara de Niterói] vulnerável para que a violência verbal e os episódios de transfobia e racismo aconteçam.
"Se referem a mim sempre no masculino e falam do meu corpo de uma maneira muito objetificada. Isso é revoltante. É triste", relembra a vereadora.
As violências contra Benny foram levadas para as redes sociais, onde a base aliada do vereador bolsonarista reiterou as ofensas. Em outra sessão na Câmara em 25 de março, Douglas tentou diversas vezes interromper Benny, tirar a concentração dela mostrando uma tela de celular próximo do seu rosto e quando teve a palavra fez chacotas, desrespeitou a orientação sexual dela e falou diversos palavrões.
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Segundo a parlamentar, mesmo se tratando de um ambiente que reforça alguns tipos de violência, a Câmara de Niterói também é o espaço onde ela encontra apoio. "Tem chegado muita solidariedade de tudo quanto é canto, o que tem me ajudado muito a enfrentar tudo isso é saber, que não estou sozinha", conta a parlamentar.
Os episódios de violência verbal, racismo e transfobia praticados pelo vereador bolsonarista foram encaminhados para as autoridades através da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI).
"É importante que o vereador responda pelas violências que comete, não é apenas sobre mim, mas sobre uma violência estrutural que faz com que o Brasil seja o país que mais mata travestis e transsexuais", avalia Benny.
A Alma Preta procurou o vereador Douglas Gomes para saber o posicionamento do parlamentar sobre as denúncias feitas por Benny Briolly. Até a publicação desta reportagem, o vereador não se posicionou. Caso ele responda, esse texto será atualizado.
Atuação na Câmara de Niterói
O mandato de Benny Briolly atua de forma muito próxima aos movimentos sociais, mantendo o diálogo com líderes e movimentos da favela, além de trabalhadores ambulantes que trabalham para aplicativos, movimento negro e a comunidade LGBTQIA+. "Escutamos nosso povo atentamente e transformamos as demandas em projetos de lei", descreve a vereadora.
O diálogo com a população negra e periférica já teve como resultado o projeto de lei que pleiteia a inserção de trabalhadoras domésticas nos grupos prioritários no Plano Nacional de Imunização (PNI) contra a Covid-19. O projeto da Câmara de Niterói é similar ao projeto de lei 1011/20, apresentado no dia 7 de abril pela deputada federal Benedita da Silva (PT) na Câmara dos Deputados.
O mandato de Benny também atua na aprovação de projetos para garantir o direito ao nome social para crianças e adolescentes trans e fornecimento de absorventes e itens de higiêne básicos em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e escolas públicas.
"Nossas ações tem uma força ancestral, movem estruturas de poder e nós não vamos recuar", conclui a parlamentar.
Paulo Fábio Dantas Neto: Carolinices sobre solução política de uma não questão militar
Na conjuntura crítica do Brasil atual, uma coluna semanal sobre política já corre o risco de deixar o tempo passar e, como uma Carolina tarda, mal ver a banda tocar. Se deixar de circular uma semana, aí então é que a fila anda e a banda toca longe da sua janela. A política brasileira tornou-se matéria volátil, seu relógio se perde nos minutos, enquanto a força desestruturadora da pandemia parece absorver para si as horas todas, assumindo, em paradoxo com seu andamento trágico, uma regularidade própria de rotinas de uma estrutura. Após duas semanas, eis-me tentando juntar, como num quebra-cabeça, fragmentos de fatos para montar um texto que comente alguma vida passada nessa rotina de morte.
No meio tempo entre a coluna anterior e essa, Jair Bolsonaro, ao lado de oferecer, ao Presidente da Câmara dos Deputados, a secretaria ministerial do seu governo (mais um anel que talvez desejasse manter nos dedos), perfilou - ou ajustou controles sobre - os Ministérios da Justiça e da Defesa, a AGU e a Polícia Federal, além do que já tem sobre os órgãos de informação. Se houvesse conseguido emplacar comandantes amigos nas forças armadas, estaria completo o desenho de um misto de bunker e trincheira para uma luta decisiva que acalenta em seus delírios. Restaria conseguir produzir a centelha de desordem pública que persegue, meses a fio, para justificar uma virtual proposição de estado de sítio, ou algo equivalente, com respaldo de comandos militares. Hoje o Congresso não o concederia. Mas num hipotético cenário de violência miliciana nas ruas, insubordinação nas PMs combinada com caos sanitário, povo amedrontado, pedindo ordem, o Congresso e o STF poderiam ficar emparedados. Assim parecem pensar os que respaldam os movimentos de Bolsonaro, ou os que hesitam em repeli-los.
O plano de Bolsonaro não pode mais ser segredo para ninguém que observe a cena política e social. Pode dar certo, em algum momento? Especialistas em assuntos militares afirmam que não e devem ser escutados com o respeito e a reverência que merecem. Intuo, porém, que não sabemos, apesar da reiteração obsessiva de uma mesma tática comprometer a estratégia bolsonarista, que se torna previsível pelas defesas adversárias, marcação cerrada feita por instituições que ele está obrigado a respeitar, mas ataca e organizações da sociedade que ele tem obrigação de governar, mas desgoverna.
Seu fracasso na área militar é, como sabemos, avaliação praticamente unânime. A grande imprensa, assim como a pequena, respalda a tese de que os militares cumprem seu papel institucional e ponto. Uma pergunta resta sem resposta: quem afinal escolheu (refiro-me a pessoas de carne e osso e não a entidades sobre-humanas que agiriam sozinhas) o novo comandante do Exército? Bolsonaro é que não foi. Interditaram-no numa prerrogativa sua? O desfecho não apenas revela que o capitão foi “contido” pelos generais na ativa, mas o desmoraliza e o leva a ver estrelas, mostrando quem manda nessa seara. Pode-se chamar de autonomia o que parece mais soberania da corporação na designação da sua cúpula? Penso que é complicado interpretar o ocorrido como mero movimento de despolitização e afastamento das FFAA da política. Pedindo vênia aos especialistas, suspeito que possa ser meia verdade persuasiva.
É verdade que a cúpula militar reagiu à politização tentada por Bolsonaro. Mas de onde provém a convicção de que, ciosa da profissão, descarta assumir qualquer atitude política? É obvio – e não precisa entender de militares para admitir - que faltam sintonias materiais e mentais entre, por exemplo, os contextos nacional e mundial de hoje e o do instável período que foi da promulgação da Constituição de 1934 ao autogolpe do Estado Novo, perpetrado por Getúlio Vargas. O contraste de época desaconselha analogia explícita entre a postura atual da cúpula da hierarquia militar e o antigo lema do General Góis Monteiro que, em vez de política “no exército”, preconizava, então, a política “do exército".
Golpe militar não esteve, pois, nem está na pauta das especulações razoáveis. O que causou receio, nessas duas últimas semanas, assim como em outros momentos, durante o atual governo, foi a hipotética chance de um autogolpe com respaldo militar, baseado num cenário de desordem e violência fomentadas. Essa nuvem dissipou-se, no momento. Mas não é irrazoável observar que ganhou potência e visibilidade uma expansiva política corporativa dos militares, alimentada pelo governo Bolsonaro e traduzida em fortes pressões orçamentárias. Conexões entre isso e a aproximação de uma eleição presidencial, no bojo da qual se discutirá prioridades em ambiente de grave crise social não devem ser subestimadas. É nesse contexto que é relevante interpretar a nota do agora ministro da Defesa, Gal. Braga Neto, publicada na véspera da data do golpe de estado de 1964, a título de celebrar seus 57 anos.
Braga briga com a História quando interpreta o período de 1964 a 1979 como de pacificação nacional. Afirma que um movimento de cunho popular depôs um governo ligado a uma ideologia violenta e que em seguida as forças armadas foram chamadas a pacificar e reconstruir o país. Levaram 15 anos fazendo isso até que o pacto da anistia, de 1979, teria dado maioridade democrática ao país. Inegável o caráter pacificador daquela lei e seu papel indutor da transição democrática que se seguiu, por uma década. Mas na historiografia de Braga, o general Figueiredo não foi o último general-presidente num regime autoritário, mas o primeiro presidente dessa democracia em novo patamar. O marco inaugural desse patamar é a ascensão do seu governo, não o colégio eleitoral de 1985, muito menos a Carta de 88.
Está, portanto, claro, que não me refiro à discussão sobre 1964, especificamente. Seria malhar em ferro frio, pois é sabido que os militares, em geral, não admitirão que foi um golpe de estado. Não tenho quanto a isso, preocupação historiográfica, muito menos doutrinária, mas política. Uma coisa é a polêmica sobre 64. Muitos liberais apoiaram e participaram do movimento. Foi um golpe, mas não estava escrito nas estrelas que ia dar em ditadura, como deu. Outra coisa é celebrar a ditadura que ocorreu por opção política, inclusive sua radicalização, depois de 1968. A nota de Braga chama essa noite quase fascista de pacificadora. A nota está se identificando não com as forças armadas, genericamente, mas com a “linha dura”, para a qual 1968 foi continuidade natural e necessária de 1964.
Essa narrativa é politicamente inaceitável por democratas porque não é só erro historiográfico. Prevalecendo, apontaria a uma negação da política que construiu a democracia que temos. Como sabemos e sentimos, com a eleição de Bolsonaro os fantasmas de 1964 voltaram a estar presentes, não importa se são delírios. Quando fantasmas guiam pessoas e as fazem se posicionar contra ou a favor de algo relevante, eles passam a compor uma realidade em aberto, sinalizando que o julgamento da História não está tão fechado assim. A eleição de alguém como Bolsonaro, dizendo abertamente o que disse na campanha, sinaliza, ela mesma, algo diverso de um assunto encerrado.
Penso que mesmo a omissão diante dessa narrativa já é um equívoco. Chamar essa cantilena extremista de moderada é equívoco maior ainda. Há como abordar esse ponto de modo prudente, afirmando que o marco inaugural, jurídico e político, da nossa democracia é a Carta de 88, sem com isso desqualificar a importância da anistia para que essa obra se tornasse concreta. Imprudente é nos acomodar a uma conveniência tática que, nesse caso, levaria a sociedade para longe do seu porto seguro, que é a defesa intransigente da democracia, não deixando sem resposta qualquer tentativa de usar esse termo para se referir ao que, de fato, foi ditadura. A democracia vive de suas instituições, de seus procedimentos e também do grau de crença, de convicção democrática da sociedade. Esse governo - e não apenas Bolsonaro - tem rebaixado esse grau, borrando as fronteiras entre ditadura e democracia. Essa nota foi mais um ato dessa sabotagem, dissimulado por um palavreado educado e por um verniz racional que não deixam de merecer reconhecimento, em meio à barbárie nossa de cada dia. Mas não podem iludir.
É fato que, depois dos fatos da última semana, o rio ficou mais navegável. Então, não vai ter golpe de qualquer espécie. Ficamos combinados assim.
Noves fora conversa de golpe, há um bolo fermentando contra a impolítica do presidente e ainda não dá para saber seu sabor. Dá para ver, porém, que agora a coisa anda em novos trilhos. Em vez de proposições de impeachment e CPIs, feitas por parlamentares ou grupos isolados e não previamente articuladas a contento, há um coro externo crescente pressionando o Congresso para que tome providências, mas ninguém se adianta dizendo quais seriam elas. Isso deixa rédeas sob manejo das suas lideranças, para negociarem e resolverem. Se e quando a "providência" vier à tona, já poderá ser na forma de ação concreta. Em certos momentos de alta na temperatura política, não se pensa tanto em risco de golpe quanto numa contagem regressiva para lançar Bolsonaro ao espaço. Como? Passagem pacífica do bastão ou guerra do fim do mundo? Mal comparando, entre um e outro extremo, vamos ver se Bolsonaro, que fala ao mesmo tempo como proclamador de uma república particular e refundador de uma imaginária ordem passada, vai concluir sua farsa simulando Deodoro ou Conselheiro.
A jornalista Rosângela Bittar especulou sobre uma etapa intermediária antes da “solução final” da farsa. A elite política da democracia representativa conserva-se atenta para preservar regras e limitações de horizonte do jogo político. Traduz para um contexto democrático um saber herdado de outros tempos. O mineiro Rodrigo Pacheco anda ensaiando a performance de um Campos Sales do sufrágio universal.
A recente reinserção de Lula no embate político direto, mergulhado na arena plebiscitária que é a praia que ele disputa com Bolsonaro, adicionou um fermento potente ao bolo. Em terreno análogo, peças publicitárias difundidas em rede têm produzido motes e bordões, batendo na carestia, no desemprego e na tragédia sanitária e tratando com humor e ironia o negacionismo e o nepotismo presidencial. O Congresso, dessa vez, apareceu como propositor e autor do auxílio emergencial. Bolsonaro e seu governo, até aqui, não contabilizaram lucros políticos, apenas responsabilidade pelo valor irrisório. O meio político - partidos e lideranças que vão de Pacheco, FHC e Temer, até Lula, passando pelos governadores e pré-candidatos - está empenhado nas vacinas, tendo esse, felizmente, se tornado um campo de cooperação, embora tensa, com o governo federal. O centrão pressionou e derrubou Pazuello, tentou emplacar uma ministra de fato e deu tom de última chance quando o presidente recusou e escolheu outro. E o Judiciário não perde chance de estreitar o espaço de Bolsonaro.
Tudo isso ocorre e entra aos poucos em catalisação. O conjunto produz efeito, tanto que a rejeição a Bolsonaro e a desaprovação a condutas do seu governo crescem continuamente, consistentemente, embora de modo incremental. Isso é comum em democracias, regimes políticos em que as políticas públicas dependem de percepções contraditórias do conjunto de uma sociedade complexa e não apenas dos seus segmentos mais informados, politizados, organizados e, por isso, mobilizados e influentes.
Por outro lado, como o ensaísta Luiz Sergio Henriques bem frisou em artigo recente, um político como Bolsonaro sempre tem uma fonte inesgotável de recursos retóricos, porque não tem compromisso algum com a realidade e sequer com o que ele próprio disse ontem, quanto mais com o que se possa falar e fazer contra ele, hoje ou amanhã. Seu ativismo é e será um dado da realidade, mesmo se e quando ele estiver a minutos da derrota final. Jamais o veremos se calar ou passar recibo de derrotado. Foi assim com Trump, com ele tende a ser também.
*Cientista político e professor da UFBa
Demétrio Magnoli: Braga Netto, historiador
A ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 foi assinada por Walter Braga Netto, um ministro da Defesa que acabava de ser nomeado em substituição a seu camarada de farda, Fernando Azevedo e Silva, demitido por recusar a subordinação das Forças Armadas aos delírios subversivos de Jair Bolsonaro. No texto, o general vestiu o manto do historiador para, supostamente, inscrever os “eventos ocorridos há 57 anos” no “contexto da época”.
Sabe-se que a ordem do dia estava pronta, assinada por Fernando Azevedo, e foi deliberadamente adotada por seu sucessor para exibir uma imagem de unidade dos comandantes militares. Por isso, deve ser lida como um consenso das cúpulas das Forças Armadas. Seu aspecto mais notável é a tentativa implícita de enterrar o “movimento de 1964” no arquivo do passado.
O general-historiador aprecia o conceito de continuidade e a ideia de harmonia. No texto, o golpe de 31 de março emerge na moldura da Guerra Fria, como derivação longínqua da aliança de guerra contra o nazifascismo, que teve a participação do Brasil. As Forças Armadas não aparecem como agentes principais da derrubada do governo, mas como componente de uma mobilização nacional que abrangeu a “imprensa”, “lideranças políticas”, “igrejas”, o “segmento empresarial” e “setores da sociedade organizada”. Por essa via, a virtude — ou a culpa — fica amplamente distribuída.
Um golpe de Estado constitui, pela sua natureza, uma cisão. Mas a narrativa de Braga Netto exclui a noção de ruptura, tanto para trás quanto para frente. De 1964, o texto salta à Lei de Anistia, de 1979, “um amplo pacto de pacificação”, desviando dos “anos de chumbo” da tortura, que se estenderam até 1976. A acrobacia converte o regime militar em prelúdio necessário das “liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Ditadura produz democracia — a tese paradoxal forma o núcleo do argumento do general.
O exercício historiográfico faz parte da operação política de confrontação dos chefes militares com Bolsonaro. As Forças Armadas declaram-se, hoje, “conscientes de sua missão constitucional” de “defender a Pátria” e “garantir os Poderes constitucionais”. Há, aí, convenientemente oculta, a crítica do golpe de 1964 e, quase explícita, a rejeição dos desvarios golpistas presidenciais. Braga Netto inclina-se à doutrina adotada pelos comandos militares que, desde o processo de abertura, riscaram uma linha no chão separando os quartéis da política.
Na última frase da ordem do dia, tudo que era sólido desmancha no ar. Depois da constatação do óbvio (“o movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil”), surge uma conclamação: “Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”. Nela, a conjunção aditiva liga posturas essencialmente diferentes e expõe a fraude.
O historiador busca compreender o passado, mas nunca o celebra. A celebração do golpe militar é um ato político — e, no caso, um gesto condenável, pois nossa Constituição protege a ordem democrática. Atrás do manto que cai, avulta a figura de um agente político. Os militares que servem a Bolsonaro, inclusive os da reserva, reintroduzem a política nos quartéis — mesmo quando afrontam a vontade presidencial.
Toda instituição tem seus lugares de memória. Duque de Caxias e o Marquês de Tamandaré, patronos do Exército e da Marinha, remetem à Guerra do Paraguai. Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea, remete à Segunda Guerra Mundial. Por que os militares insistem em celebrar o golpe de 1964, mesmo que sob o pretexto de inscrevê-lo no “contexto da época”?
O governo Bolsonaro representa, entre tantas coisas deploráveis, um projeto de revisionismo histórico. O presidente, um capitão excluído do Exército por indisciplina, assim como seu círculo de místicos extremistas, ergue contra a Constituição o espectro da ditadura militar. A geração atual de militares não participou dos desmandos do regime instituído em 1964. Inexiste um motivo legítimo para que seus expoentes manchem suas biografias associando-se ao revisionismo bolsonarista. Não celebrem um parêntesis sem glória.
José Eduardo Faria: Bolsonaro e a banalidade do mal
Não foi só a maneira desabrida e insensata com que o presidente Jair Bolsonaro agiu com o ministro da Defesa e com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que chama a atenção. Se for correto o que a imprensa divulgou, também é digna de nota a orientação que o presidente deu ao novo ministro, obrigando-o a anunciar aos comandantes militares que estavam demitidos, antes que eles pudessem colocar o cargo à disposição.
O objetivo do inquilino do Planalto, como os jornais informaram, era mostrar força, de um lado humilhando os três comandantes e, de outro, reforçando a narrativa de que o presidente é quem manda. Ainda que essa narrativa seja aceita como válida apenas por convertidos, pessoas banais que aceitam absurdos como normalidade, o problema está nas tentativas cada vez mais evidentes do presidente de fazer dos militares rigorosos cumpridores de suas ordens e determinações, mesmo que elas transcendam restrições constitucionais.
Ainda segundo a imprensa, as três demissões teriam sido justificadas pelo Planalto com base no fato de que, por considerarem as Forças Armadas uma instituição de Estado, seus comandantes não as estariam alinhando aos interesses políticos do chefe do Executivo. Reiteradamente alertando que, pela Constituição, o presidente da República é o “comandante em chefe” das Forças Armadas, Bolsonaro passou a chamá-las de “meu Exército”. E, com isso, também começou a insinuar que poderia acioná-lo a qualquer momento e para qualquer coisa — desde impedir os governadores de implementarem políticas de isolamento até afrontar a principal corte do País, acusando-a de restringir prerrogativas presidenciais.
Com o retorno das agressões de Bolsonaro às instituições democráticas, a questão agora é saber como se comportarão os oficiais do “seu” Exército, ou seja, se aceitarão fazer tudo o que lhes for pedido ou se respeitarão não apenas a Constituição mas, igualmente, a corte encarregada de dar a última palavra no controle da constitucionalidade. A questão não é simples, uma vez que, de um lado, ela envolve uma cadeia de comando que começa no Palácio do Planalto e vai descendo os níveis hierárquicos do aparato militar. E, de outro, implica o risco de cumprimento de ordens absurdas, que atendem mais aos objetivos eleiçoeiros de um governante do que ao interesse público e a segurança — na conformidade da ordem legal — do País.
São ordens que, dependendo do modo como forem transmitidas e cumpridas, conforme se viu na demissão dos comandantes das Forças Armadas, podem corroer os próprios valores éticos das corporações militares das Forças Armadas. Como não se espantar, por exemplo, com um general intendente que, aceitando chefiar o Ministério da Saúde sem ter formação especializada na área, cumpriu servilmente ordens agravantes da maior crise de saúde pública já vivida pelo país? “É simples assim: um manda e outro obedece”, afirmou esse general que, de tanto obedecer ordens presidenciais tomadas sem qualquer critério técnico, exacerbou a pandemia, em vez de detê-la, motivo pelo qual hoje está sendo acionado judicialmente.
Essa questão já foi por mim discutida num artigo recente, neste mesmo espaço[1], no qual analisei as explicações dadas por esse mesmo general com o objetivo de eximir o governo Bolsonaro de qualquer responsabilidade sobre a escassez da oferta de oxigênio em Manaus. Em nenhuma de suas explicações ele relacionou as ordens absurdas que recebeu com os milhares de brasileiros mortos por sufocamento. Os argumentos que retomo para analisar os militares com o perfil desse general baseiam-se na análise que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) fez há mais de meio século, no plano ético, de um dos oficiais de média patente que serviram ao regime nazista.[*] Trata-se de Adolf Eichmann, um tenente-coronel que recebeu a missão de administrar a logística das deportações em massa para os campos de concentração localizados nas zonas ocupadas pelas forças alemãs no leste europeu, durante a segunda guerra.
Eichmann estava, assim, situado no meio da cadeia de comando no setor da máquina nazista encarregado da “solução final” da “questão judaica” — o plano de remoção, por assassinato, da população judaica que vivia naquelas zonas. Por um lado, ele cumpria ordens. Por outro lado, as ordens que dava e as medidas que tomava, levando milhões de pessoas a diferentes formas de tortura e à morte, eram por vez balizadas por uma série de outras determinações emanadas de seus superiores.
Com o fim da guerra e a derrota da Alemanha, Eichmann fugiu para a Argentina. Muitos anos depois, foi sequestrado pelo serviço secreto israelita e levado para Jerusalém, onde foi julgado criminoso e condenado a pena de morte por enforcamento, em 1961. Convidada a cobrir o julgamento para a revista New Yorker, Arendt, que era judia, surpreendeu ao escrever cinco artigos na contramão dos que acusavam Eichmann de ser criminoso por ser nazista. Apesar de este ter sido o ponto mais abordado pelos jornalistas que cobriram o julgamento, Arendt concentrou a atenção na análise de pessoas incapazes de pensar por si e que, quando integram um aparato de poder, agem apenas como funcionários diligentes. Ou seja, cumprem ordens, sem discuti-las nem julgá-las, mesmo que sejam para matar inocentes.
Nesse sentido, a banalidade do mal decorreria não de uma premeditação da violência, mas, sim, da mediocridade implícita na incapacidade de reflexão que se instala em espaços institucionais. Eichmann não foi perverso, doentio, enraivecido e antissemita. Pelo contrário, destacava-se por ser educado e um homem comum — “assustadoramente normal”, dizia Arendt. Contudo, era incapaz de distinguir o certo e o errado. De resistir às ordens que recebia e cumpria. De avaliar moralmente o que de fato fazia e as consequências trágicas de seus atos administrativos. Apenas se orgulhava de executar corretamente suas tarefas. No fundo, foi um precursor do “simples assim — um manda, outro obedece”.
Faltava a Eichmann não somente a capacidade de se colocar no lugar do outro, de interagir com a subjetividade de outra pessoa, mas, igualmente, a capacidade de pensar, afirmava Arendt. Seu problema não era a ignorância. Era, isto sim, ter internalizado o senso de que o que fazia era correto e com base na lei — o que, em decorrência, não lhe permitia ver os efeitos brutais de suas decisões, revelando assim o quão desconectado estava do sentido do que é ser humano.
Desse modo, sua dimensão cognitiva e moral foi corroída pela visão limitada e empobrecida de quem cumpre ordens irrestritamente. Quando um burocrata não assume a iniciativa própria de seus atos ou quando uma multidão numa sociedade massificada se revela incapaz de fazer julgamentos morais, aceitando e cumprindo ordens sem questionar, distanciando-se assim de sua essência humana, o mal se torna banal, afirma Arendt. “Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava […] um novo tipo de criminoso, […] que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, concluía.
A ideia de banalidade do mal, desenvolvida por Hannah Arendt e por mim já utilizada para analisar o militarismo brasileiro contemporâneo, ajuda a interpretar o ocorrido com a demissão dos comandantes das Forças Armadas. Evidentemente, são distintos os contextos históricos dos males cometidos pelo nazismo, de um lado, e, de outro, o da profusão de decisões intempestivas, inconsequentes, insensatas e irresponsáveis do chefe do Executivo, um tenente medíocre e inconsequente reformado no posto de capitão por ser um “mau soldado”. Mas em ambos os contextos se visualiza a banalização do mal por impulso político e enviesamento ideológico. Igualmente, em ambos fica evidenciado como essa banalidade retira a humanidade dos indivíduos, tornando-os incapacitados de compaixão pelo próximo.
A exigência de Bolsonaro de que os comandantes das Forças Armadas se alinhem politicamente ao que chama de “meu Exército”, a ponto de afrontar governadores responsáveis que adotaram políticas de isolamento social, evidencia absoluta falta de compaixão com os recordes de mortos pela Covid que têm sido batidos diariamente. Também revela um desprezo pela existência humana e dá a medida da importância e da atualidade de Hannah Arendt. Notadamente quando ela afirma que o mal tem a ver com a liberdade de escolha do indivíduo, não sendo uma característica específica dele.
Pelo que se tem visto desde sua posse, Bolsonaro quer ao seu redor militares com perfis à sua imagem e semelhança — ou seja, reveladoras do ponto a que a barbárie humana pode envolver os indivíduos mais banais. Diante disso e da permanente tentativa de minar o império da lei com base nas mais toscas e torpes justificativas, só resta esperar que a cúpula das Forças Armadas seja capaz de evitar a corrosão do ethos da instituição a um ponto sem retorno, o que levará a democracia arduamente conquistada após a ditadura militar de 64 a ceder espaço para mais uma aventura autocrática. Na última tentativa de Bolsonaro de pressionar e enquadrar as Forças Armadas, a cúpula teve sucesso e o conteve. Até quando conseguirá resistir a novas ofensivas autocráticas?
Referência:
[1] “O ethos das Forças Armadas e a banalidade do mal”, Estado da Arte, 02/02/2021 (https://estadodaarte.estadao.com.br/ethos-ffaa-jef).
[*] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil, Peguin Books, New York, 1963.
(Originalmente publicado em Estado da Arte, em 03/04/2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-banalidade-mal-planalto/ )
O Estado de S. Paulo: Bolsonarismo usa covid-19 para desestabilizar PMs e governos estaduais
Objetivo seria disputa pela Segurança Pública nos Estados; ataques às ações das polícias cresceram em 2021 e são monitorados pelos comandos das corporações
(Marcelo Godoy e Pedro Venceslau)
Quando a Polícia Militar de São Paulo anunciou que a vacinação para seus integrantes ia começar no dia 12 de abril, no mesmo dia todos os posts publicados pela corporação em uma rede social foram atacados por bolsonaristas, que afirmaram: “Vocês são covardes! Estão batendo em trabalhadores, seus capachos do calcinha apertada”. Outro bolsonarista, crítico à vacina Coronavac, do Instituto Butantan, escreveu: “Fico em dúvida se comemoro. Orações para vocês”.
O ataque às polícias nas redes sociais com informações falsas se multiplicaram em 2021, transformando a atuação da extremadireita no principal fator de instabilidade política para as forças de Segurança. “Já faz algum tempo que estamos sofrendo estes ataques. Alguns perfis lançam vídeos de abusos policiais de outros contextos ou mais antigos e fazem parecer que são atuais e contra a população”, disse o coronel Robson Cabanas Duque diretor da Comunicação da PM.
O fenômeno não atinge apenas a polícia paulista e o governador João Doria (PSDB), mas também as polícias de outros Estados, em que os governadores adotaram medidas de restrição à circulação de pessoas para controlar a pandemia de covid-19, como a Bahia e o Rio Grande do Sul. Também são alvo os governadores adversários do presidente Jair Bolsonaro, como os do Piauí e do Maranhão.
“Tem digitais bolsonaristas em questões locais. Eles se aproveitam para uso politiqueiro. A raiva dele (Bolsonaro) é não poder demitir ou prender governadores. Então tenta sabotar”, disse o governador Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. De acordo com o coronel Lindomar Castilho, comandante da PM do Piauí, há pessoas que “tentam desinformar e fazer a cabeça dos policiais” sob seu comando.
Em São Paulo, a PM tenta identificar o centro difusor dos ataques à corporação que buscam minar a disciplina da tropa. Entre as postagens monitoradas pela polícia está uma do ex-deputado Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, e outra do blogueiro Allan dos Santos, ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Somos fiéis à Constituição, à lei, não importam quais sejam as orientações políticas dos governos. Somos uma instituição de 189 anos. Se cumprir a lei desagradará a A ou a B, assim será”, afirmou o coronel Cabanas.
Vacinação
Em carta divulgada dia 29, 16 governadores afirmaram que “os agentes públicos precisam de paz para prosseguir com o seu trabalho, salvando vidas e empregos”. “Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir governadores e adversários políticos, são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”. O documento declarava ainda o apoio dos governados ao desejo das entidades de policiais de vacinação imediata de seus integrantes. A estratégia visava a retratar o bolsonarismo como responsável por opor a população aos PMs.
“A gente procura não entrar na questão política e se manter fiel ao regulamento e à nossa missão, contra esse jogo que pretende envolver as forças estaduais e federais”, afirmou o coronel Castilho. O Piauí, governado por Wellington Dias (PT) deve começar nesta segunda-feira a vacinar seus 6.140 PMs. A covid-19 havia matado 35 policiais militares e contaminado 1.283 no Estado até sexta-feira passada.
A reação dos governadores aconteceu após a ação coordenada do bolsonarismo de insuflar um motim na PM da Bahia em 28 de março. Naquele dia, o soldado Wesley Soares Góes teve um surto e, com um fuzil, foi ao Farol da Barra, em Salvador, onde passou a fazer disparos. Após atirar em direção aos colegas, acabou morto. De imediato, parlamentares bolsonaristas, como a deputada Bia Kicis (PSL-DF), passaram a tratá-lo como mártir por se recusar a cumprir as ordens do governador Rui Costa (PT). Mais tarde, ela removeu a publicação.
A estratégia de provocar um motim na Bahia só não foi para frente porque a ação foi filmada, confirmando que o soldado tentara matar os colegas. “A Bahia é o lugar mais frágil, em razão dos problemas enfrentados pelo governador na Segurança. Por isso foi atacada”, disse Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre os problemas de Costa, estaria a contestação feita por sua gestão no Supremo Tribunal Federal da lei que acabou com as prisões disciplinares dos PMs.
Risco
Se a ação do bolsonarismo incomoda as PMs, ela não seria, no entanto, suficiente para, segundo especialistas em Segurança Pública, provocar uma ruptura da ordem. “Não há possibilidade de se repetir no Brasil a situação da Bolívia (onde uma revolta policial levou à deposição de Evo Morales). Os policiais têm diversas vantagens que não vão colocar em risco por razões ideológicas”, disse Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Além disso, para Piquet, a aprovação do congelamento de salários na PEC Emergencial esvaziou o discurso sindicalista de Bolsonaro, diminuindo sua capacidade de mobilização. O Estadão não conseguiu contato com Santos e Jefferson.
Comandos das PMs pedem cautela a policiais em operações
Os comandos das PMs estaduais estão recomendando o máximo de cautela aos seus homens no cumprimento de medidas de restrição à circulação de pessoas durante a pandemia. Temem que qualquer incidente seja usado politicamente contra as corporações. “Recomendamos aos nossos homens que tenham bom senso em todas as ações”, disse o subsecretário de Segurança Pública, coronel Alvaro Camilo. Para o coronel Lindomar Castilho Melo, comandante da PM do Piauí, “bom senso e conversa não podem faltar. O policial não pode cair em provocações. Tem de colocar como autoridade.”
Para o oficial da PM e deputado federal Paulo Ramos (PDT-RJ), repercutiu mal na categoria a ação de bolsonaristas após o incidente com o soldado Wesley Góes, em Salvador. “Tentaram jogar companheiros contra companheiros, dividir a tropa”, diz Ramos. “Mas não deu certo, a repercussão (das iniciativas dos aliados de Jair Bolsonaro) foi negativa, tanto na Bahia como nos outros Estados.” Segundo ele, a identificação ideológica entre Bolsonaro e muitos PMs permanece.
Mas as expectativas práticas se romperam. “No discurso, o presidente incentiva o confronto (entre policiais e criminosos), mas nunca esteve nessa situação ou correu riscos. Ele só empurra os outros, incentiva os outros a se expor.” Para o coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, o discurso de Bolsonaro está enfraquecido. “O que ele fez pelas polícias ou pelos policiais? É só discurso, e o discurso está enfraquecido.”
Outra aposta para a manutenção da disciplina diante das investidas do bolsonarismo nas corporações contra é sistema de liderança e a efetividade da Justiça Militar. Diretor do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio d e Lima lembra que na semana passada a Justiça Militar paulista condenou a 6 anos e meio de prisão um policial que sacou um arma e ameaçou matar seu sargento no centro de São Paulo, em 2020. “A sentença do juiz Ronaldo João Roth foi dura.”
/ COLABOROU FÁBIO GRELLET
Eliane Cantanhêde: Quanto mais mortes, mais a Nação se une e o bolsonarismo se isola, tosco e incendiário
Ao falar em ‘caos’, ‘ação dura’, ‘esticar a corda’, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais
Montanhas de fake news desvirtuam a internet, vídeos de sujeitos com boinas militares e caras de milicianos ameaçam guerra à bala, o ministro da Justiça usa a Lei de Segurança Nacional contra críticos do presidente Jair Bolsonaro... Essas investidas, que não são inocentes nem isoladas, fazem parte da alma autoritária do bolsonarismo e enfrentam crescente resistência de todos os lados.
Centenas de banqueiros, empresários e economistas criticam o governo e rechaçam o “falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pediu aos EUA para negociarem vacinas excedentes com o Brasil. E 62 dos 81 senadores assinaram uma moção liderada por Kátia Abreu (TO) implorando ajuda à comunidade internacional.
Todos se mexem para cobrir o vácuo do presidente e não dá para acusar de “comunistas”, “esquerdistas” e “petistas” gente como Pacheco e Kátia, Roberto Setúbal, Pedro Moreira Salles, Pedro Malan... Será que são esses os alvos do bolsonarista ignorante, valentão, com pose de militar, mas linguajar de miliciano? Que provoca “esse pessoal da canhota, que quer derrubar o nosso presidente”: “Deixa eu dizer um negocinho pra vocês. Ele não tá sozinho, não, tá? Junta o que vocês tiver de melhor e tenta” (sic sic sic).
Ao falar em “caos”, “ação dura”, “esticar a corda”, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais. Isso, porém, equivale a demonstrar fragilidade e a afastar a direita consciente, cada vez mais indignada com ele e seu governo na pandemia. Se o desespero de Bolsonaro é porque a realidade ameaça seu pescoço e sua reeleição, o do Brasil é por um motivo nada personalista: o pânico por leitos faltando, oxigênio e remédios escasseando, vacinas devagar, quase parando.
O negacionismo de Bolsonaro e da sua turma não resiste às cenas tétricas de famílias destroçadas pela dor e pelo luto, aos doentes sem leitos e assistência, ao número cada vez maior de jovens mortos, aos cadáveres no chão de hospitais, seja no Piauí, seja no DF, a poucos quilômetros dos palácios de Bolsonaro.
A estratégia dele, porém, continua sendo a de falar absurdos e empurrar a culpa para os outros, insistindo em mentiras: não fez nada (e não fez mesmo...) porque Supremo impediu; só atrapalhou tudo (e atrapalhou muitíssimo...) para tentar salvar a economia; gastou dinheiro público com cloroquina (e gastou bastante, sim...) porque só o “tratamento precoce” salva. O céu está cheio de “salvos” pela cloroquina...
A essa estratégia Bolsonaro adicionou uma aposta: fingir que apoia as vacinas desde criancinha e atrair os louros pelas doses que estão vindo. Como se fosse possível esconder que o Brasil só está realmente vacinando por causa da Coronavac (“a vacina chinesa do Doria”) e que seu governo se pendurou num único imunizante – a Oxford-AstraZeneca, que tem atrasado – e desdenhou de Pfizer, Moderna, Janssen, Sputnik V...
Assim como o governo fez comemoração patética para receber 2 milhões de doses da Oxford, quer fazer oba-oba político por acertar com a Pfizer nove meses depois – e passando ridículo no mundo: não bastasse ter o quarto ministro na pandemia, Bolsonaro agora tem dois ao mesmo tempo. Quem tem dois não tem nenhum. E o que dizer do capitão criando um ministério para premiar o general pelos péssimos serviços prestados?
A divisão do País não é entre Bolsonaro e Lula, direita e esquerda, mas sim entre um bolsonarismo tosco e incendiário e todo o resto que, independentemente de ideologia, usa outro tipo de armas: inteligência, competência, defesa da economia e da vida. Cada um escolhe o seu lado. E que depois preste satisfações à história e ao Brasil.
Marcelo Godoy: Bolsonarismo faz Pazuello permanecer ministro e milícia marchar no Rio
Oficiais assistem incomodados à novela do colega; coronéis repudiam uso de boinas e botas da Brigada Paraquedista em manifestação política, o que seria crime militar
Caro leitor,
o 'ex-ministro' Eduardo Pazuello foi receber um lote de 1 milhão de vacinas importadas que chegou ao Brasil no domingo, dia 21. Há sete dias, o Ministério da Saúde tem um ministro demitido à frente da pasta no momento mais dramático da história recente do País. A presença de Pazuello continua a assombrar generais da ativa e da reserva, assim como a maioria da população, que repudia o negacionista e a obediência cega ao capitão do Planalto. O Estadão mostrou as preocupações de governadores e dirigentes da Saúde com a inação do ministro em meio à ameaça da falta de oxigênio e de remédios para UTIs em hospitais de todo o País.
Há três meses, esta coluna revelou que um pequeno grupo de militares da reserva pedia a saída do especialista em logística da pasta, depois do prejuízo ao erário causado pelos testes que foram esquecidos em um depósito até quase vencer a validade de todos. Desde então, o coro só aumentou. E foi com alívio que muitos militares da ativa e da reserva receberam, na semana passada, a notícia de que Bolsonaro, finalmente, resolvera retirar Pazuello, um general da ativa, de seu ministério.
Desde janeiro, o apoio a Pazuello despencava. Naquele mês, um tenente-brigadeiro até recentemente na ativa disse à coluna, diante da crise de oxigênio em Manaus, que tudo seria mais fácil se o governo não tivesse desistido, em 2019, da compra de um Boeing 767, por cerca de US$ 14,47 milhões – fora os gastos com o suporte da aeronave. O avião teria ajudado a salvar vidas, pois podia fazer “viagens com 250 passageiros ou, no caso, tubos de oxigênio para abastecer Manaus”.
Na semana passada, a indústria química cobrou do ministério a falta de planejamento logístico para o País em meio à crise dos remédios do chamado kit intubação. Quer dizer que, passado um ano de pandemia, o governo não tem ainda um plano? O que fizeram os coronéis levados por Pazuello para o ministério, além de lacrar em entrevistas? Um general alertou logo no começo dessa aventura: cada um assume o cargo com seu CPF. O problema é que muitos queriam fazê-lo em nome do Exército, como se o cargo fosse “missão”.
O constrangimento só aumentou. Pazuello não larga o osso – dizem seus colegas – porque pretendem apaziguá-lo com outro cargo, talvez um ministério ou uma secretária com o mesmo status. Como Jason, aquela personagem de filmes de terror que não desencarna, Pazuello foi demitido, mas não deixa de ser ministro. A situação já não espanta os colegas da ativa. Ninguém entende mais nada. Ou pior. Entende. Mas finge não saber o que se passa. Enquanto mais de 2,2 mil pessoas continuam morrendo em média todo dia no País, o governo gasta tempo discutindo a salvação de um único brasileiro: o general Pazuello.
Não deveria ser tratado como letra morta o que escreveu o cientista político Oliveiros S. Ferreira. “Na Força Armada não há essa distinção entre o 'legal' e o 'moral'. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares.” No Planalto, o imbróglio é colocado na conta do civil escolhido para substituir Pazuello: Marcelo Queiroga. O leitor viu aqui que Queiroga é sócio de uma empresa e, por isso, não pode assumir o cargo. Quer dizer que o presidente resolveu nomeá-lo, mas nenhum Heleno nem ninguém do Gabinete de Segurança Institucional verificou se havia algum óbice para que Queiroga assumisse? Alguém pode perguntar: Mas porque seria importante ter um ministro se quem manda na Saúde é o presidente que manda nebulizar cloroquina em pacientes na UTI? E ainda imita pessoas com falta de ar... E assim o pesadelo continua.
Uma das origens dessa baderna no Planalto é a mistura entre a instituição militar e o bolsonarismo, fenômeno patrocinado pelos próceres do movimento liderado por Jair Bolsonaro. Foram eles que nomearam oficiais generais da ativa para cargos civis no governo. Foram eles que entraram em organizações militares e fizeram discursos políticos para cadetes e alunos. Eles deram o exemplo de indisciplina e desprezo pela gravidade da pandemia, comparecendo a lugares sem tomar cuidado algum. E ainda hoje acreditam em tratamento precoce sem comprovação científica. Eles nunca foram visitar os doentes nos hospitais para levar conforto e apoio e constatar o resultado de sua guerra à ciência.
Enquanto hospitais de todo País alertam há dias para o colapso, Bolsonaro desconfia de tudo, como se as pessoas morressem só para impedir sua reeleição. Seus apoiadores chegam a distribuir áudios negando que o senador Major Olímpio foi vítima da covid-19. Ao Estadão, o ex-ministro e general Carlos Alberto Santos Cruz escreveu: “Houve perda de tempo com banalidades e estamos absurdamente atrasados. É inaceitável que a pandemia tenha sido conduzida sem liderança, com falta de considerações técnicas, com constantes tentativas de desmoralização dos procedimentos apropriados, politização completa de todo o processo e até de medicamentos”. Santos Cruz apoiou Bolsonaro em 2018. Outros como ele se afastam do presidente.
E o que faz o bolsonarismo diante desse quadro? Dobra a aposta. Há uma semana grupos de Whatsapp do movimento foram de novo inundados com manifestações golpistas pedindo “intervenção militar”, um movimento planejado, que deseja a decretação de estado de sítio. Um bando em forma de milícia marchou no domingo, no Rio, usando a boina da Brigada Paraquedista – com o símbolo do Exército – e o "bute marrom". Divulgaram vídeos ameaçando “os esquerdas” – todos os brasileiros que se opõem aos arruaceiros. O uso indevido de uniforme, distintivo e insígnia de posto ou graduação é crime tipificado nos artigos 171 e 172 do Código Penal Militar. No primeiro, são punidos os militares transgressores com 6 meses a 1 ano de detenção. No segundo, os civis, cuja pena cai pela metade.
A milícia dos valentões se aglomerou em frente à casa do presidente para lhe render apoio. E assim degradou um dos símbolos da Brigada em uma manifestação político-partidária. Para um coronel engenheiro militar ouvido pela coluna, o Comando do Exército e o Ministério Público Militar devem uma reposta à impostura. Têm de mostrar que os comportamentos em conflito com a lei e com os valores castrenses não ficarão impunes. Mais do que usar o símbolo paraquedista, a milícia queria amedrontar, ameaçar e intranquilizar os brasileiros que discordam do presidente. Sonhava em reduzir as Forças Armadas à mera Guarda Pretoriana de Bolsonaro – o próprio presidente usa o lema da Brigada.
Mas o Exército deve pertencer à Nação e não a Bolsonaro nem a qualquer outro presidente que se ponha fora da Lei e ameace o País pelas armas. Cada vez que renova suas aldrabices, Bolsonaro pretende que o País acredite que os ponteiros do relógio da legalidade se aproximam da hora em que as Forças Armadas terão de enfrentar a prova final. Desconhece o aumento do número de generais que o tratam agora como “o louco da aldeia”, aquele sujeito que grita e gesticula no chafariz, mas ninguém se detém para ouvi-lo. Nem o levam a sério. Outros que há muito o conhecem se resignam. É que as perspectivas de poder de Bolsonaro diminuem a cada dia, a cada morto da pandemia. E ele não percebe que o turfe não é o único lugar em que não se aposta em cavalo perdedor.
*Marcelo Godoy é jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).
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Ricardo Noblat: Engrossa o caldo dos que querem ver Bolsonaro pelas costas
O mau uso que ele faz do apoio militar
Qual o sonho de consumo do brasileiro ameaçado pelo vírus que bate à sua porta? Se for inevitável contraí-lo, quer uma vaga de UTI no melhor hospital que existir, medicamentos em profusão, cilindros de oxigênio à farta e uma equipe de sábios doutores e de experientes enfermeiros que cuidem dele em tempo integral.
A isso a pandemia nos reduziu. A isso que nos reduziu um presidente da República genocida por natureza que parece ter forte compulsão pela morte, sabe-se lá por quê. Freud explica, certamente. Assunto para estimular discussões intermináveis entre psicanalistas das mais diversas escolas.
Seria o caso também de eles se debruçar, junto com sociólogos, antropólogos e historiadores, sobre o comportamento até aqui indiferente ou resignado da maioria dos brasileiros diante do número de mortos pela doença que em breve superará a marca dos 300 mil. Por que procedemos assim? O que nos move?
Bolsonaro, que tantas vezes desafiou a morte como paraquedista do Exército antes de ser afastado de lá, acusado de conduta antiética, é movido pela falta de compaixão e pelo firme propósito de tirar vantagem de tudo, até de um banho nas águas frias do rio Jordão. Ele, acima de tudo! Os filhos, acima de todos!
Só muda quando o desespero toma conta de sua alma. Sempre que se vê acuado, apela às Forças Armadas e finge contar com o seu apoio para governar e, em situação extrema, ir além – se der, via adoção de medidas capazes de instalar no país um regime autoritário. Seu compromisso com a democracia é zero.
Se não a sabota mais do que já faz é porque lhe falta respaldo. Nas eleições de 2018, ele de fato foi o candidato dos militares, preocupados em impedir um eventual retorno da esquerda ao poder. Nas eleições de 2022, tudo indica que continuará sendo. Mas se for derrotado, lhe baterão continência à saída, tchau, e só.
Por formação, militar é de direita, aprecia armas, trata os subordinados aos berros e cobra obediência. Mas muitos nos escalões superiores são estudiosos e bons analistas. Sabem ler o mundo e o país. Sabem que a supressão da democracia faria do Brasil um pária internacional. E isso eles não querem.
Pária já é. A nova cepa brasileira do vírus aterroriza os governos da região. Peru e Colômbia proibiram voos do Brasil. O Uruguai mandou mais doses de vacinas para a fronteira com o Rio Grande do Sul. Quem vai do Brasil para o Chile fica em quarentena. Os argentinos impuseram restrições à entrada de brasileiros.
Insensível ao que se passa ao redor, Bolsonaro usa os militares como espantalho doméstico, e eles se deixam usar, encantados, como estão, com a volta ao poder, desta vez pelo voto. Não ligam quando o presidente fala em seu nome como fez, ontem, outra vez. É coisa de político, desculpam. Bolsonaro proclamou:
“Pode ter certeza, o nosso exército é verde-oliva e vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir.”
E ao concluir uma das peças mais demagógicas do seu pobre repertório, prometeu: “Enquanto for vivo, enquanto for presidente, porque só Deus me tira daqui, eu estarei com vocês”. Estará para quê? Para associar-se ao vírus e dar passagem à morte? Para destruir a Amazônia? Para pôr a educação ao rés-do-chão?
Engrossa o caldo dos que à esquerda e à direita querem ver Bolsonaro pelas costas, se possível antes do fim do mandato. Já foi melhor negócio para o Centrão apoiá-lo em troca de benefícios. A companhia dele começa a tornar-se tóxica. Um deputado federal pernambucano, bolsonarista convicto, disse a este blog:
– Poderemos ir com ele até a porta do cemitério, mas não entraremos.
As muitas pedras no caminho de Lula até a eleição de 2022
Para 57% dos brasileiros, a condenação dele foi justa
Ora, dirão os petistas de quatro costados: é natural que uma pequena maioria dos brasileiros desaprove a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu as condenações de Lula e o tornou elegível – afinal, nos últimos anos, Lula foi alvo de um massacre midiático.
Houve um massacre. Mas é bom esclarecer que Lula não foi inocentado por Fachin. Depois de 4 anos, o ministro finalmente concluiu que a Vara Federal de Curitiba, à época comandada pelo então juiz Sérgio Moro, não era o juízo natural para julgar Lula. Caberá à Vara Federal de Brasília julgá-lo outra vez.
A reclamação dos petistas advém da descoberta feita pelo Datafolha em pesquisa aplicada na semana passada e só revelada hoje: para 57% dos entrevistados, foi justa a condenação de Lula por Moro, que o sentenciou a 9 anos e 6 meses de cadeia, pena reduzida a 8 anos e 10 meses pelo Superior Tribunal de Justiça.
Para 38%, a condenação foi injusta, e 5% não souberam responder. Em abril de 2018, o Datafolha quis saber o que os brasileiros pensavam sobre essa mesma questão. Os resultados foram semelhantes: 54% viram justiça, 40%, injustiça, e 6% disseram não saber. Lula quer enfrentar Bolsonaro na eleição do ano que vem.
Não terá vida fácil se a opinião a seu respeito permanecer a mesma. Será alvo de ataques dos adversários, mas poderá se defender usando os mesmos meios dos quais se queixa. Bolsonaro o chamará de ladrão. Lula o chamará de genocida. Um candidato do centro se apresentará como alternativa ao genocida e ao ladrão.
Ainda faltam 19 meses para as próximas eleições. Só torcedor se arrisca a prever o resultado.
Carlos Pereira: A culpa é do juiz?
O legislador constituinte escolheu juízes e procuradores para controlar o presidente
Tem havido uma crescente insatisfação com uma suposta atuação excessivamente política do sistema de justiça brasileiro, em especial da sua Suprema Corte e do Ministério Público. É como se essas organizações de controle estivessem extrapolando suas funções estabelecidas pela Constituição. O descontentamento é tamanho que já voltam a aparecer movimentos de pedidos de impeachment de ministros do STF ou processos disciplinares contra procuradores da República. Juízes e procuradores nunca estiveram tanto em evidência ou foram tão criticados...
Mas, é imprescindível lembrar que juízes e membros do Ministério Público se tornaram influentes na vida política não por consequência de usurpações unilaterais de poderes.
Esses poderes foram estrategicamente delegados pelo próprio legislador constituinte. A Constituição de 1988 consolidou a visão de que a atuação de juízes e promotores deveria ser autônoma e independente da vontade política.
Legisladores constituintes poderiam ter escrito regras e procedimentos específicos e detalhados com o objetivo de gerenciar os microfundamentos da atuação de juízes e promotores, diminuindo assim a sua autonomia e discricionariedade. Ao invés disso, preferiram escrever regras vagas e princípios gerais, deixando procedimentos sem uma clara especificação, delegando grande autoridade de ação e decisão para esses atores.
Ao transferir ampla discricionariedade a juízes/promotores, os legisladores sabiam que estavam correndo riscos de que esse poder pudesse reverter contra os interesses dos próprios parlamentares. Mas, naquele momento, valia a pena à sociedade, ainda traumatizada pelo recente regime autoritário, pagar esse preço, pois existia um risco muito maior a ser enfrentado: a possibilidade de mau uso, e indiscriminado, de poderes pelo Executivo.
A saída encontrada para esse dilema foi proteger os cidadãos, com o máximo de garantias possíveis, contra um presidente dotado de uma “caixa de ferramentas” de governo capaz de fazer valer suas preferências. Políticos são mais propensos a preferir estatutos de baixa discricionariedade para juízes e promotores quando o ambiente de monitoramento legislativo é suficientemente forte, já que eles preferem confiar em mecanismos ex post menos onerosos. Uma espécie de efeito substitutivo.
Portanto, quando o Executivo se torna constitucionalmente poderoso através de um processo de delegação do próprio Legislativo, é de se esperar o desenvolvimento de sofisticadas redes de instituições de controle com a capacidade de restringir potenciais condutas desviantes do chefe do Executivo.
A última barreira para a ampla dominância do presidente passaram a ser as instituições judiciais, que assim assumiram um papel de protagonismo na política. A Lava Jato, a investigação de familiares do atual presidente, ou mesmo a atuação individual e, em muitos casos, inconsistente de juízes da Suprema Corte representa a parte visível e mais impactante dessa escolha legislativa.
Como tudo na vida, os sistemas políticos são moldados a partir de escolhas. É sempre um cálculo de perdas e ganhos que a sociedade está disposta a pagar e pretende auferir. Não existe solução ótima. O que muda com o tempo é a avaliação dos prós e contras e o entendimento dos riscos.
Os movimentos e tentativas recentes de redução da discricionariedade política de juízes e procuradores podem ter o efeito de não apenas restringir a atuação destes, mas também o de potencialmente colocar a sociedade em situação pior que a atual, definida a partir da escolha do legislador constituinte de 1988. Afinal, com uma coleira fraca o “cachorro grande” pode causar estragos ainda maiores.
*PROFESSOR TITULAR DA, FGV EBAPE (RIO)
Celso Rocha de Barros: Medo de ser preso faz Bolsonaro perseguir seus críticos
Até quando as instituições brasileiras vão jogar na defesa contra o presidente?
O Brasil vive a catástrofe que os epidemiologistas previram no começo do ano passado. Não há mais vagas em UTIs. O equipamento necessário para intubações deve acabar em poucos dias em várias cidades. Já há pacientes sendo intubados com anestésico diluído.Só 7,3% da população brasileira recebeu alguma dose de alguma vacina. Só 2,6% recebeu as duas doses. O número de mortos já beira os 3.000 por dia, e nesta semana cruzaremos a marca de 300 mil mortos. É muito mais do que a Aids matou no Brasil desde que surgiu.
Segundo reportagem da CNN Brasil, o governo Bolsonaro cancelou a compra de "kits intubação" em agosto do ano passado. Em setembro, recusou a oferta de vacinas da Pfizer. Durante esse tempo todo, fez guerra ao isolamento social, o que só torna o isolamento mais necessário e mais economicamente custoso cada vez que precisa ser reimplementado.
Até um sujeito alienado em sua bolha como Jair Bolsonaro sabe que isso tudo é culpa dele. Mesmo Bolsonaro sabe que, se as instituições funcionarem, ele será preso.
Bolsonaro está com medo.
Por isso, enquanto o departamento de camuflagem do Exército tenta desenvolver uma calça marrom que permita ao presidente da República voltar a andar nas ruas, Bolsonaro promove assédio judicial contra quem denuncia seus crimes.
O ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas Pedro Hallal foi formalmente censurado por criticar Bolsonaro. O youtuber Felipe Neto foi investigado por ter chamado Bolsonaro, responsável direto pela morte de dezenas de milhares de brasileiros, de genocida. O ministro da Justiça, André Mendonça, determinou abertura de inquérito contra um professor do Tocantins que gastou R$ 2.000 para confeccionar um outdoor contra Bolsonaro comparando-o desfavoravelmente a um "pequi roído".
Na última sexta-feira (19), o ex-governador Ciro Gomes tornou-se alvo de inquérito da Polícia Federal assinado pelo próprio Bolsonaro; Ciro chamou Bolsonaro, cujo envolvimento nas "rachadinhas" familiares é indiscutível, de "ladrão".
É sempre bom lembrar, foi o aparelhamento da Polícia Federal por Bolsonaro que causou a renúncia do ex-ministro Sergio Moro.
A grande maioria desses inquéritos e processos não vai gerar condenações. São flagrantemente ilegais. Mas o objetivo dos bolsonaristas não é ganhar; é dar trabalho a seus críticos, fazê-los correr atrás de advogado, responder intimação, e assim desestimular que outras pessoas os critiquem. Os bolsonaristas sabem que, se um brasileiro falar sobre eles sem medo e/ou de graça, será para criticá-los.
Como resultado da ofensiva bolsonarista, o Supremo Tribunal Federal deve reunir-se em breve para finalmente decidir o que vale e o que não vale (tecnicamente, o que será ou não será recepcionado na Constituição) na Lei de Segurança Nacional. O Brasil precisa de uma LSN que proteja a democracia contra movimentos autoritários, mas que não interfira no sagrado direito dos brasileiros xingarem seus políticos.
É uma boa iniciativa, mas pergunto: até quando as instituições brasileiras vão jogar na defesa contra Jair Bolsonaro? Vocês acham que, se impedirem seu último crime, ele não vai cometer novos? Deu certo da última vez? Quantas vidas teriam sido salvas se ele tivesse sido punido na primeira?
Fernando Gabeira: Para dizer nunca mais
Tanto falamos numa frente para combater Bolsonaro, centro, centro-direita, centro-esquerda, empurra para lá, empurra um pouco para cá, tentamos encher com nossos desejos e preconceitos o ônibus que nos levaria para longe dessa grotesca versão de governo.
Olhando o cotidiano, observo que essa frente até mais ampla e generosa do que projetamos acabou se formando em torno do tema crucial: a rejeição ao papel de Bolsonaro na pandemia.
Mesmo os presidentes do Senado e da Câmara, eleitos com o apoio de Bolsonaro, tentam se distanciar dele quando o tema é a Covid-19.
De certa maneira, a maioria compreendeu Bolsonaro: 56% dos entrevistados na pesquisa do Datafolha o consideram incapaz para dirigir o país.
Isso pode ser uma boa notícia para as eleições. Mas seria um erro monumental pensar em eleições quando temos diante de nós um caminho complexo e tortuoso como o combate à pandemia.
O líder do governo disse, no auge dos recordes letais da pandemia no Brasil, que a situação do país é “até confortável”. É uma declaração estapafúrdia, que os fatos esmagam. Noto, entretanto, que mencionou na mesma fala a existência da oposição a Bolsonaro.
Ocorreu-me pensar que o líder considera que a oposição verbal a Bolsonaro é também algo que está dentro da zona de conforto.
A existência de uma pandemia devastadora e de uma frente ampla contra Bolsonaro pede mais que uma oposição verbal. Ele se incomoda quando o chamam de “genocida” ou mesmo de “pequi roído”.
Certamente, vai se incomodar mais quando essa frente ampla multiplicar suas ações em todos os níveis do combate à pandemia.
Quando escrevi que os governadores e a sociedade deveriam avançar no caso das vacinas, alguns acharam que não havia salvação fora do poder federal. Felizmente, a realidade mostrou que é possível agir. Governadores do Nordeste conseguiram fechar negócio para comprar 37 milhões de doses da Sputnik V. Na verdade, a realidade já mostrara antes disso que foi a iniciativa de São Paulo que garantiu afinal a maior parte das vacinas que imunizam neste momento cerca de 5% da população.
Ficou evidente também que o governo não tem o monopólio das relações externas. Na verdade, seria um absurdo colocá-las nas mãos de um chanceler extremista como Ernesto Araújo.
O caminho diplomático não se resume a comprar vacinas. Os governadores tentam convencer a OMS da urgência da remessa da compra de três milhões de doses, já efetuada junto ao Covax, consórcio que busca democratizar a venda de vacinas.
Lula propôs que Biden se encontre com outros líderes mundiais e discuta esse ponto central das vacinas no mundo. Aliás, Biden já participou de um encontro para garantir vacinas a alguns países asiáticos.
Os Estados Unidos têm 30 milhões de doses da vacina de Oxford estocadas em Ohio. Ela ainda não foi aprovada pelas autoridades sanitárias de lá. Parte será doada ao México.
A vacina de Oxford seria útil aqui. Poderíamos comprá-la, se for o caso, ou mesmo pagar com as doses que a Fiocruz produzirá no segundo semestre. Essas manobras diplomáticas não são simples. Mas os governadores poderiam tentar.
Tudo o que fizermos agora, seja no nível diplomático, seja no da própria sociedade, é um ato dessa frente ampla que se formou não apenas contra a Covid-19, mas contra seu principal aliado objetivo: Jair Bolsonaro.
Não importa o que aconteça lá na frente. Quando tivermos eleições, certamente a frente ampla terá amadurecido não só a ponto de ajustar as contas com Bolsonaro na Justiça, mas também para redefini-lo como o adversário comum.
A realidade nos trouxe uma tragédia que pode nos custar meio milhão de mortos. Mas, depois dela, saberemos dizer: nunca mais.
Christian Edward Cyril Lynch: Bolsonaro expõe autoritarismo de neoliberais e nova 'jornada de otários' de liberais
Cientista político analisa distinções de duas vertentes do liberalismo na história brasileira
Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro (1822-1930)’ (ed. Alameda), entre outros livros
[resumo] A adesão e o repúdio ao autoritarismo conservador de Jair Bolsonaro demonstram com clareza as distinções históricas de duas correntes do liberalismo no país, diz cientista político. Embora ambos tenham sido acometidos em períodos de crise pela tentação do golpismo, os liberais democratas têm como princípio central a defesa das liberdades individuais e políticas, o que pode trazer no bojo também a econômica, enquanto os neoliberais veem no livre mercado a razão de ser da ordem social, mesmo que às custas do desgaste do Estado de Direito.
O tema do neoliberalismo está em voga desde a década de 1980, quando a crise da social-democracia europeia trouxe a crítica do planejamento econômico pelo Estado e a defesa do liberalismo econômico como fórmula capaz de superar a estagnação.
Nos últimos dez anos, seu prestígio cresceu e seus partidários aderiram à chamada "nova direita", parte da qual viria a apoiar o governo Bolsonaro. O debate público sobre o conceito de liberalismo é intenso. Hoje, o tema guarda grande atualidade, tendo em vista o referido endosso de Paulo Guedes e de maioria dos neoliberais brasileiros às tendências conservadoras e autoritárias de Jair Bolsonaro.
Entre os pretendentes dessa ideologia política, a querela gira em torno de um liberalismo democrático inimigo do autoritarismo político (a vertente liberal democrata), que mantém relações pragmáticas com a economia, e um outro, para quem a liberdade política depende essencialmente da econômica, ponto de vista segundo o qual o verdadeiro autoritarismo seria a intervenção do Estado na economia (a vertente neoliberal).
Os neoliberais se apresentam como “liberais”, ou como sendo os “autênticos liberais”, alinhando-se, todavia, a pautas reconhecidamente conservadoras em sua dimensão política. Tentam, assim, conciliar em abstrato a distinção histórica entre conservadorismo e liberalismo, sem deixar de aderir a uma coalizão de vocação autoritária, que conta com conservadores reacionários (olavistas) e estatistas (militares).
Eles enfrentam sempre a oposição de outros “liberais”, que se pretendem progressistas e negam a compatibilidade entre liberalismo e conservadorismo ou autoritarismo político.
Vários estudiosos conferiram grande importância à questão das chamadas famílias, tradições ou linhagens do pensamento político brasileiro. Esse tipo de classificação tem entre suas vantagens a capacidade de servir de anteparo ao presentismo: a tentação de ver os problemas do momento atual como puramente inéditos. Assim, podemos revisitar a tradição do liberalismo brasileiro, buscando suas regularidades no tempo.
Desde o começo do século 19, os liberais associaram o suposto atraso brasileiro a um problema de origem. A baixa capacidade de os portugueses estabelecerem as bases de uma civilização moderna nos trópicos, a influência da Igreja Católica, a concentração da grande propriedade agrária e a escravidão teriam produzido uma sociedade civicamente egoísta, indiferente à ciência, dependente de um Estado autoritário e patrimonial, avessa ao indivíduo autônomo e incapaz de cooperação —como descrito, por exemplo, por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” (1958).
Para além do transplante de instituições anglo-saxãs, o programa liberal inspirado por Stuart Mill tem se pautado por políticas públicas voltadas para a abertura comercial e cultural, para a descentralização político-administrativa, desregulação econômica e redução da burocracia.
Do ponto de vista político, o liberalismo brasileiro de tendência democrática manifesta um certo centrismo. O mais destacado intelectual liberal brasileiro do período pós-independência, Evaristo da Veiga, já celebrava a moderação como a virtude política por excelência. Essa postura confere aos liberais um dinamismo de se deslocar para a direita ou para a esquerda, conforme percebam a ameaça autoritária vindo de um dos lados opostos, socialista ou conservador.
No governo, o liberalismo democrático brasileiro tende a ser mais cauteloso, hesitando a respeito da conveniência e do ritmo da expansão dos direitos sociais e políticos. Acreditando que a colonização teria conformado uma sociedade inclinada a soluções políticas messiânicas, populistas e estatistas, os liberais acabam por não confiar no “bom senso” das massas. Daí a tendência a um excesso de moderação que conduz ao elitismo, ou seja, a circunscrever o centro decisório a uma minoria homogênea de cidadãos em termos de renda e cultura.
Desde que a democratização começou a surgir no horizonte, a partir da Campanha Abolicionista com Joaquim Nabuco e, depois, com a Campanha Civilista de Rui Barbosa, a classe média entrou no radar dos liberais. Como segmento social, exprimiria as qualidades da sociedade civil, por sua sensibilidade a temas como participação política, liberdade, mérito e moralidade.
Entretanto, por vezes, os liberais democráticos se perceberam em um clima de polarização entre a esquerda e a direita radicais que reduzia o seu espaço de atuação em defesa das liberdades públicas e inclinava o país para o autoritarismo. A sociedade brasileira parecia não se adequar à pedagogia dos valores cosmopolitas liberais.
Inoculada nas massas, a hostilidade a esses valores inclinaram-nas à tutela de um líder carismático; daí a fortuna de um conceito controverso como o de “populismo” tanto entre liberais quanto entre socialistas cosmopolitas. Tal diagnóstico leva muitos liberais democráticos a periodicamente advogarem mecanismos institucionais como o parlamentarismo e o judiciarismo.
Este último é uma velha aspiração que data da queda da Monarquia e encontrou seus grandes defensores em Rui Barbosa e Pedro Lessa, para quem a República transferira para o Supremo Tribunal a função arbitral exercida antes pelo Poder Moderador.
Somente na Nova República, todavia, com a retirada de cena do Exército, o judiciarismo se tornou hegemônico, auxiliado pelo desenho institucional da Constituição de 1988. No começo do século 21, voltou a ser apresentado como um remédio para as tendências corruptoras e oligárquicas da representação política.
Em épocas de polarização e crise aguda do Estado de Direito, quando as instituições constitucionais parecem indiferentes ou hostis à cultura do liberalismo, nasceu frequentemente entre os liberais democratas brasileiros a tentação do golpismo.
Desde 1889, o liberalismo nacional tendeu a encarar esse recurso como legítimo em momentos críticos para salvar a liberdade contra seus inimigos percebidos como autoritários. Quem melhor representou essa ambiguidade foi o próprio Rui Barbosa. O temor de um eventual reinado reacionário da princesa Isabel o fez embarcar no golpe militar e a se tornar ministro da ditadura republicana, interpretada por ele como um autoritarismo transitório que preparava um Estado de Direito mais sólido, conforme o figurino estadunidense.
Depois de combater o militarismo dos presidentes Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, Rui voltou a cogitar a intervenção do Exército no começo dos anos 1920, quando lhe pareceu que a República marchava de novo para o autoritarismo.
O golpe de 1964 também foi apoiado por liberais democratas, a exemplo de Afonso Arinos e Carlos Lacerda, como um breve período de exceção destinado a afastar o risco de ameaça comunista. Na prática, em todas essas ocasiões, os liberais brasileiros só participaram de uma “jornada de otários”, que precipitou o advento de um autoritarismo de direita que terminou por voltar-se contra eles e persegui-los como subversivos.
Embora se imagine sempre uma correlação automática entre liberalismo econômico e político, essa relação, ao longo dos últimos três séculos, é mais complexa e nem sempre de fácil distinção. Se a liberdade de mercado é parte das liberdades modernas, o foco sobre a liberdade política, aquela plasmada na forma dos direitos e das garantias constitucionais, distingue o liberalismo democrático daquele que via no livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal.
A esta última vertente poderíamos chamar de libertarianismo econômico, ou neoliberalismo. Surgido pelas mãos de Herbert Spencer por volta de 1880 como reação ao processo de democratização política, impulsionado pelo socialismo e pelo alargamento do sufrágio, o neoliberalismo consiste em um híbrido de liberalismo e conservadorismo: ao mesmo tempo em que apresenta características liberais, como o individualismo, eleva o mercado à condição de gerador e ordenador da vida social, intangível porque produto de forças extra-humanas —uma suposta “ordem espontânea” do universo social fruto da interação não planificada entre os indivíduos.
Os neoliberais apresentam seus argumentos em uma roupagem supostamente “técnica” ou “científica”, defendendo suas posições como as únicas “realistas”, não capturadas pela tentação idealista e normativa da mentalidade planificadora e maximizadora do Estado que teria marcado as ideologias democráticas desde o século 18, como se notaria tanto nos liberais quanto nos socialistas.
Na ideologia neoliberal, a função do Estado é essencialmente a preservação das condições de competição dos indivíduos no mercado. A justiça social é produto das leis do mercado, cujo livre funcionamento por parte de empresários “empreendedores” e criativos, em um contexto de população tecnicamente educada, geraria de forma mais ou menos automática riqueza pública e emprego, através de sucessivos ganhos de produtividade.
Para os neoliberais, o Brasil estaria sempre patinando entre a barbárie e a estupidez, carecendo constantemente de abertura comercial e financeira para o mercado exterior. Aqui, empreender teria muito mais obstáculos a enfrentar devido à ausência de uma cultura moderna, ou seja, capitalista. Em contraste, os países do Atlântico Norte costumam ser referenciados como modelares.
O cosmopolitismo neoliberal demonstra, coerentemente, grande apreço a organismos internacionais —mas não os de caráter político, como a Liga das Nações ou a ONU, enaltecidas pelos liberais democratas, e sim os financeiros, como o FMI, bancos e empresas multinacionais.
E se é verdade que ambas as tradições liberais podem ter uma aproximação instrumental com o autoritarismo, no caso dos neoliberais essa dimensão é muito mais acentuada. De todo esse diagnóstico negativo dos libertários econômicos sobre a situação do Brasil resultava um descompromisso ainda maior com a democracia.
A necessidade de um choque civilizador de capitalismo vindo de fora justificava métodos autoritários. A marca acentuadamente demofóbica já estava presente nos fundadores libertários da República, como os irmãos Alberto e Campos Sales, que ajudaram a urdir o golpe de 1889 contra os liberais e defendiam a toda força o presidencialismo, na crença de que só um governo forte e enérgico poderia enfrentar o “socialismo”.
No século 20, Eugênio Gudin e Roberto Campos demonstraram idêntico descaso com o regime democrático. Diziam que as constituições de 1946 e 1988, por não corresponderem às suas doutrinas, eram produtos da ignorância e da utopia. Como nenhuma delas resolvia os problemas do país, duravam pouco e mereciam, por isso, o desprezo geral.
Muitas tensões marcaram a convivência dos dois liberalismos, o democrático e o neoliberal, em nosso país. Para Rui Barbosa, o presidente Campos Sales era o grande artífice do conservadorismo da Primeira República. Ele acusava Sales de autoritário, oligarca e corruptor, assim como via na política neoliberal de seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, uma cortina de fumaça doutrinária destinada a favorecer os interesses internacionais. Já Sales e Murtinho chamavam Rui de subversivo e tendente ao socialismo, criticando sua política econômica.
Quando o regime militar impôs a Constituição de 1967, o liberal democrata Afonso Arinos também se queixou de que a nova Carta continha “excessivo liberalismo econômico em contraste com o autoritarismo político”. Em defesa dela, os neoliberais Gudin e Roberto Campos justificaram o fortalecimento do Executivo pela necessidade de passar as reformas modernizadoras de corte libertário.
Roberto Campos também se estranhou publicamente com Carlos Lacerda, quando este atacou sua política neoliberal como própria de tecnocratas e defendeu uma abordagem pragmática da economia. No livro “Brasil entre a Verdade e a Mentira” (1965), Lacerda invocou em seu apoio a autoridade de Rui Barbosa, cuja obra defendeu contra Murtinho e Campos.
Apoiador de primeira hora do golpe militar, Lacerda acabou preso após o AI-5 e teve seus direitos políticos cassados. Também para ele, a adesão ao golpismo resultou numa “jornada de otários”. A história se repetiu recentemente, com a adesão dos liberais democratas ao lavajatismo como método de deposição da esquerda. Ao invés de chegarem ao reino da liberdade republicana, esquentaram a cama para Jair Bolsonaro se deitar.
Depois de 1990, os liberais democratas recuperariam o discurso do liberalismo econômico, voltando a apresentar um ponto de contato com os neoliberais. Nem por isso se tornariam a mesma coisa. Em suas memórias, “A Lanterna na Popa” (1994), Roberto Campos lamentou as brigas com Arinos e Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro...”. Ele estava errado. Embora aparentados do ponto de vista “macro ideológico”, o liberalismo democrático e o neoliberalismo, como já se percebia então, são ideologias distintas.
O liberalismo democrático, que representa o tronco principal da linhagem, na segunda metade do século 19 já havia, por meio de Stuart Mill, renunciado a aspectos secundários da doutrina, como o voto censitário e o liberalismo econômico, vinculados ao governo oligárquico e plutocrático.
O neoliberalismo, ao contrário, surgiu como uma reação conservadora à adaptação do liberalismo ao ambiente democrático, destinado a preservar a dimensão oligárquica e plutocrática do Estado de Direito. Onde os liberais viam democracia, os neoliberais passaram a ver socialismo. Longe de preservar o liberalismo oitocentista, os neoliberais deliberadamente o reformularam, modificando seus fundamentos, para se concentrar, quase que exclusivamente, na defesa do Estado mínimo.
O atual contencioso em torno do autoritarismo conservador de Bolsonaro demonstra com clareza a distinção de neoliberais e liberais democratas. A adesão de Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica.
Basta lembrar que no passado apoiaram as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a oligárquica República Velha e o regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol...
A quem tiver o interesse de se aprofundar no assunto, recomendo a leitura deste artigo que escrevi sobre a trajetória do neoliberalismo no Brasil.