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Paulo Sotero: Biden não hostilizará o Brasil

Mas o presidente eleito dos EUA não terá tempo para o trumpolavismo de Bolsonaro

O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o País enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos EUA não faz diferença. Já os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o País.

No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles – um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o País tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus em pleno curso no Hemisfério Norte e que, inevitavelmente, chegará ao Brasil.

O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio-92, a convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e da expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.

De imediato caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova administração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior que a Nação. Brasília ajudará se não der palpites sobre a crise potencialmente gravíssima provocada pela resistência de Trump a reconhecer a vitória de Biden e sabotar a transição.

“Estou alarmado” com as ações desse “patife e fora da lei”, afirmou à MSNBC o ex-general Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de exonerar pelo Twitter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem ocorrer no comando da CIA e do FBI, como no Departamento de Segurança Interna. Mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.

Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos – sua especialidade –, tumultuando a recontagem automática de votos nos Estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no Estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara dos Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia.

Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá dando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo “pólvora” se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam – sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas, e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul-União Europeia, já há tempo nas cordas.

Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty, instituição outrora respeitada, a dizer e fazer tolices, como vangloriar-se do novo status de pária internacional do País. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do Brasil na cena internacional deixou de ser indispensável.

*JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON


Fernando Schüler: O recado das urnas

Ganha força o espectro de um centro político que pode se mover a meia distância da esquerda e do bolsonarismo

O ministro Luiz Eduardo Ramos disse que os aliados do governo venceram as eleições. Mencionou o crescimento de prefeituras do DEM, PP e PSD, bem como o encolhimento do PT e concluiu: a turma que segue as “pautas e ideias” de Bolsonaro ganhou o jogo.

Há vários problemas aí. O primeiro é saber exatamente quais são as pautas e ideias do governo. Por vezes o suporte do governo, e em particular do presidente, à sua própria agenda de reformas se parece com o apoio de Bolsonaro ao prefeito Crivella: “Se não quiser não vota, tranquilo”.

É verdade que os partidos tradicionais foram vencedores. A Folha identificou uma tendência significativa de deslocamento à direita dos novos prefeitos. Há muitos significados nisso. Um deles diz simplesmente que esta foi uma eleição de baixa propensão a risco. É a tese levantada pelo professor Carlos Pereira: diante da pandemia e do espectro da morte, o eleitor tende a recuar da lógica do confronto e se afastar das “saídas polares”.

Há uma explicação mais pragmática: DEM, PP e PSD trabalharam forte e foram os partidos que mais cresceram com o troca-troca partidário entre as eleições. Só o DEM passou de 272 para 456 prefeitos, já antes das eleições, basicamente puxados por governadores eleitos pelo partido, em 2018. O resultado obtido agora é em boa medida uma consequência disso.

O ponto é que a interpretação dada pelo ministro Ramos põe um detalhe para baixo do tapete: o bolsonarismo virtualmente não apareceu nessas eleições. É evidente que há candidatos identificados com Bolsonaro, alguns com relativo sucesso. Nas 18 capitais com segundo turno há no mínimo cinco com candidaturas claramente identificadas com o presidente e seu estilo. Mas, cá entre nós, frente ao que vimos há dois anos, é muito pouco.

O próprio bolsonarismo reconhece isso. Filipe Martins, assessor internacional de Bolsonaro e geralmente visto como ideólogo do grupo, pediu “autocrítica” aos conservadores e conclamou a turma a “recuperar os ideais e bandeiras de 2018”.

Vai aí o problema. O que a eleição revela é que os tais princípios de 2018 talvez não tenham lá grande profundidade. O conservadorismo de Bolsonaro nunca produziu muita coisa, no governo, e o que se anunciava como sua agenda no Congresso (escola sem partido, redução da maioridade penal, liberação do porte de armas) nunca andou.

No Brasil recente, se confundiu conservadorismo com palavras de ordem do tradicionalismo de costumes (não raro misturado com religião). Vem daí o completo desinteresse de Bolsonaro em criar a Aliança pelo Brasil e sua acomodação junto aos partidos do centrão.

O mesmo vale para a agenda econômica. Paulo Guedes pode ser um histórico do liberalismo brasileiro e de algum modo ainda funciona como fiador da pauta de reformas junto ao mercado, mas vamos convir: terminamos o ano com menos consenso sobre reforma tributária do que parecíamos ter antes da pandemia; a reforma administrativa, além de tímida, se arrasta, e as privatizações, dois anos depois, quando muito prosseguem como um “ideal” do governo.

Em meio a este quadro, Bolsonaro resolveu improvisar. Bem a seu estilo, mencionou alguns candidatos, em suas lives, fez escolhas erradas, desconsiderou aliados políticos no Congresso e colheu um resultado melancólico.

O que estas eleições fizeram foi acender uma luz amarela no Planalto. A avaliação positiva de Bolsonaro caiu entre 15% e 20% desde o início da campanha, a agenda de reformas está parada e não há sinal sobre o que o governo fará com o auxílio emergencial a partir de janeiro.

Talvez o governo se dê conta disso e comece a trabalhar com algum senso de urgência no Congresso. O recado das urnas parece claro: ganha força o espectro de um centro político que, sabendo capturar a agenda reformista, pode começar a se mover por conta própria e produzir uma alternativa para 2022, distante simultaneamente da esquerda e do bolsonarismo.

Para Bolsonaro, que depende da lógica da polarização para sobreviver, este é o principal recado que surge das urnas. ​

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Merval Pereira: Meia volta, volver

O resultado mais importante desta eleição municipal é que ela parece marcar o fim da polarização dos extremos políticos, caldo de cultura que levou Bolsonaro ao poder em 2018. A sensação é de que essa maneira de fazer política cansou os eleitores, que estão procurando coisas novas, não necessariamente do ponto de vista etário, mas diferente do cardápio que foi oferecido em 2018.

O fracasso do governo Bolsonaro, juntamente com a “nova política”anunciada na campanha presidencial e que acabou ancorada na velha política, mostra que o presidente fez bem ao escolher aliar-se ao Centrão para organizar sua base congressual, mas também que ele agora tem menos força na negociação com seus novos parceiros.

PP e PSD são as estrelas do Centrão, mas partidos que abandonaram o grupo para uma posição independente, como DEM e MDB, também se destacaram. O Centrão é tradicionalmente formado por partidos que se adaptam a qualquer governo, e essa maleabilidade também é uma ameaça à composição parlamentar de Bolsonaro, pois, para se posicionarem em outros caminhos, não custa. Até na esquerda os eleitores procuraram novas alternativas, a mais emblemática o PSOL, que não quer ser moderado, mas não está envolvido em corrupção, ao contrário, nasceu da revolta de alguns membros do PT com relação à corrupção, quando da confissão do marqueteiro Duda Mendonça, que admitiu ter recebido pagamento do PT em contas no exterior no mensalão.

O choro na ocasião de deputados petistas como Chico Alencar, que ontem teve uma grande votação no Rio como vereador pelo PSOL, ainda marca essa dissidência. Não é de estranhar que o PSOL continue aliado do PT, assim como o PSDB, nascido de uma dissidência dentro do MDB, ganhou vida própria, mas não impediu que os tucanos aderissem ao governo Michel Temer. Mas são bichos diferentes.

Está claro que as pessoas querem eficiência – para prefeito, essa exigência ainda é mais forte –, mas diante da tragédia que é o governo Bolsonaro, essa tendência vai contar mais na disputa presidencial em 2022 do que contou em 2018. A capacidade de gestão, o conhecimento, a experiência do candidato, passaram a contar para além da disputa ideológica.

Em São Paulo, o candidato do PSOL Guilherme Boulos, que teve uma votação importante, superando candidatos tradicionais como Marcio França ou Russomano e tornando-se o líder hegemônico da esquerda neste momento, vai procurar jogar o prefeito Bruno Covas para a direita, enquanto Covas já começou a colocá-lo como radical.

Ontem mesmo, depois do discurso de Covas na noite anterior dizendo que os paulistanos recusam o radicalismo, o governador tucano João Doria, candidato potencial do PSDB à presidência da República, disse uma frase que resume o que será a campanha nesse segundo turno: “Aqui, nós defendemos a propriedade privada, eles invadem”.

A pandemia foi fator preponderante nessa eleição. Ficou claro que governadores e prefeitos que tiveram atitudes firmes no combate ao coronavirus, à Covid -19, que adotaram desde o início o afastamento social e a obrigatoriedade de usar máscaras foram recompensados no final pela população, que entendeu que não era uma política contra, mas a favor dela.

É a antítese da pregação de Bolsonaro, que foi derrotado fortemente nessa eleição, não apenas pelos candidatos que apontou terem sido derrotados na ampla maioria dos casos, mas porque a visão dele da pandemia foi derrotada. Ele mesmo ficou irritado, recentemente comentou não entender como os políticos que fecharam tudo, quebraram a economia, estão sendo reeleitos.

Bolsonaro, num claro declínio, só recuperará sua popularidade se conseguir colocar o auxílio emergencial de novo na mão desses milhões de brasileiros que estão perdidos, sem emprego, sem perspectiva. Mas isso ele dificilmente vai conseguir, pois quebraria o país. A deputada mais votada no Brasil em 2018 foi Joyce Hasselman, que ontem foi das ultimas na eleição para a prefeitura de São Paulo. A deputada Carla Zambelli não conseguiu eleger o irmão, e apelou, insinuando fraude na eleição, seguindo os passos do próprio Bolsonaro, que ontem, aproveitando-se do problema técnico na apuração do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), voltou a insistir na inconfiabilidade de nossa urna eletrônica. Michele Bolsonaro apoiou quatro candidatos a vereador, e nenhum se elegeu. A ex-mulher de Bolsonaro, mãe dos 01,02,03, não se elegeu. Carlos Bolsonaro teve menos votos do que em 2016.

Assim como 2016 deu sinais do que poderia acontecer em 2018, agora parece que o vento deu meu volta, no sentido da direita civilizada.


El País: Investigação sugere elo entre grupo que tentou derrubar site do TSE e bolsonaristas

Ataque teria como objetivo "inocular na população o vírus da dúvida” sobre as eleições. Na darkweb, tentativa semelhante de ofensiva hacker custa apenas 1.000 dólares e é paga com bitcoins

Afonso Benites, El País

Ataques como o que sofreu o site do Tribunal Superior Eleitoral na manhã de domingo, durante o primeiro turno das eleições municipais no Brasil, custam apenas 1.000 dólares (cerca de 5.400 reais) em redes clandestinas de hackers. Essa compra ilegal pode ser feita na darkweb e até em sites abertos ao público sediados no exterior, com o pagamento por meio da moeda virtual bitcoin, que é mais difícil de ser rastreada. É um tipo de ataque de negação de serviços no qual redes de computadores zumbis, infectados por vírus e manipulados sem que seus donos saibam, tentam promover milhares de acessos simultâneos a um portal com o objetivo de retirá-lo do ar. Os dados foram levantados a pedido do EL PAÍS pela ONG SaferNet, que enxerga no ataque deste domingo a intenção de abastecer teorias conspiratórias.

No caso do site do TSE, o ataque foi de 30 gigabites por segundo durante uma hora. No período, era como se 436.000 computadores tentassem acessar a página a cada segundo. Ele foi repelido, e causou apenas uma lentidão nas informações acessadas no portal. Mas só a notícia de que o site estava sob risco já gerou um tsunami de teorias conspiratórias de que toda eleição poderia ser fraudada

Uma apuração iniciada pela SaferNet, que tem parceria com o Ministério Público Federal no combate à desinformação, mostra que a tentativa de derrubar o site do TSE teve uma ação coordenada que tinha como objetivo final desacreditar as eleições. E, entre os divulgadores das informações falsas difundidas poucos minutos ao ataque, estavam dezenas de militantes bolsonaristas, alguns deles investigados nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, que tramitam no Supremo Tribunal Federal.

A conclusão da SaferNet é que o ataque foi uma operação em cadeia, iniciada em outubro, quando um grupo de hackers conseguiu obter informações dos recursos humanos sobre ex-servidores e ex-ministros da Corte. Esses dados só foram vazados por volta das 9h25 de domingo e, às 10h41, começou o ataque. Que foi repelido. Caso conseguisse retirar o site do ar, o efeito obtido seria apenas cosmético, pois não não teria a capacidade de alterar qualquer apuração eleitoral.

É o que o presidente da SaferNet, Thiago Tavares, chamou de “combustível das teorias da conspiração”. “Em caso de sucesso, os atacantes só trariam o inconveniente de a população ficar sem acesso ao serviço por um tempo. É uma operação cujo objetivo não era causar um dano material, mas psicológico. É você criar a suspeita, inocular na população o vírus da dúvida sobre a integridade, a lisura e a segurança do processo eleitoral”, disse Tavares ao EL PAÍS.

As informações obtidas pela equipe da ONG em tempo real no domingo foram compartilhadas com o TSE e com a Procuradoria Geral da República. Nelas há a comprovação que postagens com fake news resultaram em mais de um milhão de compartilhamentos o Facebook e no Instagram, em poucas horas.

Diante desses dados, o presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, encaminhou o documento para a Polícia Federal que abriu uma apuração. O ministro suspeita que houve “uma motivação política na operação” e uma “orquestração para desacreditar o sistema e as instituições”.

“Milícias digitais entraram imediatamente em ação tentando desacreditar o sistema. Há suspeita de articulação de grupos extremistas que se empenham em desacreditar as instituições, clamam pela volta da ditadura e muitos deles são investigados pelo STF”. A rede zumbi envolvia computadores sediados no Brasil, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos, conforme a apuração inicial do próprio TSE.

Essa milícia digital aproveitou a crise de imagem do tribunal para voltar a defender o voto impresso e para dizer que as urnas eletrônicas não são confiáveis, apesar de serem usadas há 24 anos no Brasil sem qualquer comprovação de fraude. “Se alguém trouxer um documento, uma prova, de que ocorreu alguma coisa errada, nós vamos imediatamente investigar. Ninguém aqui é apaixonado por urnas eletrônicas, somos apaixonados por eleições limpas”, afirmou Barroso.

Atraso na apuração

Um outro evento que impulsionou a rede de boatos foi o atraso em quase três horas na apuração dos votos. Neste caso, a demora, conforme o TSE, ocorreu porque não foi possível fazer todos os testes necessários no supercomputador que passou a ser usado na totalização dos votos neste ano. Antes, essa apuração era realizada pelos 26 tribunais regionais eleitorais. Neste ano, por sugestão da Polícia Federal, passou a ser centralizado o TSE.

O computador deveria ter sido entregue pela empresa Oracle, que venceu uma licitação, em março. Mas só o foi em agosto. Esse atraso afetou a inteligência artificial da máquina, porque fez com que menos testes fossem realizados, o que comprometeu a conclusão da apuração. “Ele [o computador] aprendeu pouco a entender o fluxo de informação que chega, que é uma quantidade muito alta de dados em um período muito curto”, explicou o secretário de tecnologia da informação do TSE, Giuseppe Janino.

Ainda assim, Barroso minimizou o atraso. Comparou a demora a um carro de fórmula um que precisa parar no box para fazer um reparo e, ainda assim, vende a corrida. “Tem país esperando há 14 dias a divulgação final dos resultados e o mundo não desabou por causa disso”, disse o ministro em alusão ao pleito nos Estados Unidos. Por lá, boa parte dos votos são em cédulas e impressas e, em alguns Estados, a contagem não foi concluída, apesar de o pleito ter ocorrido em 3 de novembro.


Marco Aurélio Nogueira: Bolsonaristas perdem ímpeto

Nas capitais, o eleitor não se dispôs a apoiar candidatos vinculados ao presidente da república

A pandemia não impediu a realização das eleições de 2020. É um marco para a democracia brasileira, tão maltratada ultimamente. Em ano tão atípico e cruel, algo para comemorar. Como sempre, a disputa foi aguda nas capitais, onde os temas locais prevaleceram sem que a política nacional deixasse de ressoar. Novos polos ganharam destaque, deslocando o embate PT x PSDB. Na corrida paulistana, todos bateram em Bruno Covas e tentaram associá-lo ao governador João Doria. O PT minguou, em benefício do candidato do PSOL, Guilherme Boulos. O quadro ficou diferente.

O bolsonarismo procurou sobreviver girando em torno de um "anticomunismo" estapafúrdio, que não adere aos fatos da vida. Nas capitais, o eleitor não se dispôs a apoiar candidatos vinculados a Bolsonaro. Em São Paulo, a aposta em Russomanno foi um fiasco. Assim também no Rio, com Crivella. Os bolsonaristas perderam o ímpeto de 2018, perturbados pela charlatanice errática do presidente.

Despontaram caras novas: Manuela D’Avila em Porto Alegre, Boulos, Marina Helou e Arthur do Val em São Paulo, João Campos e Marilia Arraes no Recife. Sinal de que pode estar amadurecendo uma nova geração política. Entre os candidatos a vereador, muita disposição renovadora. O fim das coligações para as Câmaras Municipais fez os partidos mostrarem a cara, mas não ajudou a unificá-los. Os velhos caciques da política mal apareceram.

Nas grandes cidades, a disputa foi para saber quem irá ao segundo turno. Na capital paulista, a candidatura de Bruno Covas à reeleição ultrapassou 30% das intenções de voto. Chegará com força ao segundo turno, ainda sem saber quem o enfrentará.

Falou-se a língua das cidades: mobilidade, transporte, saneamento, enchentes, habitação, lixo. Os debates entre os candidatos foram pobres. Pouca atenção foi dada ao problema ambiental, à saúde pública e à batalha contra a covid-19, temas que dramatizarão a pauta dos próximos gestores. A omissão evidenciou o despreparo dos candidatos e as incertezas que cercam a evolução do vírus e as perspectivas de vacinação.

*Marco Aurélio Nogueira é professor Titular de Teoria Política da Unesp


Merval Pereira: Cenários possíveis

Partindo do principio de que bolsonarismo e o petismo são as duas grandes forças a moldar a política brasileira na atualidade, o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da FGV Rio acredita que o que os anos de 2021-2022 nos reservam dependerá do estado de cada um deles (fortalecido x enfraquecido), que resulta em quatro cenários hipotéticos, que abaixo resumo com base no texto publicado no Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da FGV-Rio

Cenário 1:– Bolsonarismo fortalecido vs petismo fortalecido. Esse cenário supõe o aprofundamento da “normalização” política do governo, iniciada a partir da prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flavio Bolsonaro. As enérgicas ações do ministro Alexandre de Moraes na condução dos processos que investigam tanto atos antidemocráticos patrocinados por seguidores de Bolsonaro quanto ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais foram decisivas para forçar o ex-capitão do Exército a mudar sua postura política.

O fato de as Forças Armadas não terem apoiado as referidas tentativas também contribuiu para o fracasso destas. A mudança levou Bolsonaro a procurar o respaldo legislativo do Centrão, o qual tem dado ao Executivo uma base de sustentação parlamentar distante ainda de uma maioria, mas suficiente para evitar a destituição do chefe do Executivo.

Se o novo presidente da Câmara dos Deputados for um parlamentar alinhado com o Palácio do Planalto, facilitará a aprovação dos projetos do Executivo, mas também dificultará a abertura de um processo de suspensão do mandato presidencial. A reeleição de Donald Trump nos EUA será outro fator relevante para o fortalecimento do bolsonarismo.

Para que os pleitos municipais signifiquem o fortalecimento do bolsonarismo, é preciso que este colha um bom resultado na cidade do Rio de Janeiro, berço político de Bolsonaro. Para que o bolsonarismo se fortaleça, o presidente deverá ter êxito em sua manobra de transferir os custos econômicos da Covid-19 para os governadores, e lograr a aprovação de um substituto do auxílio emergencial que sinalize ao mercado que a dívida pública e os gastos públicos não seguirão uma trajetória explosiva.

Para que o petismo saia fortalecido nos próximos meses, bastará que o PT tenha um desempenho superior ao que teve nas eleições municipais de 2016, que Lula continue aparecendo como um nome competitivo nas pesquisas de opinião relativas à disputa presidencial de 2022, e que não surja nenhuma nova de liderança de esquerda que efetivamente desafie a hegemonia petista nesse campo.

Cenário 2: Bolsonarismo fortalecido vs petismo enfraquecido. Se o bolsonarismo se fortalecer, se descortinará uma real oportunidade para a formação de uma frente democrática de oposição ao governo, alternativa que tem sido rechaçada por Lula. Caso o PT perceba que corre sérios riscos de não ir para o segundo turno em 2022, e que Bolsonaro tem grandes chances de ser reeleito, Lula poderá vir a apoiar um candidato de outra sigla, formando assim uma ampla coligação eleitoral que vá do centro à esquerda.

Cenário 3 – Collor 2.0 – Bolsonarismo enfraquecido vs petismo fortalecido. O fator-chave para o enfraquecimento do bolsonarismo será o mau encaminhamento da questão fiscal. Se o mercado consolidar a expectativa de que a economia está em um “rumo insustentável”, poderá testemunhar um ciclo vicioso sob o qual mau desempenho econômico e debilitamento político do governo se retroalimentam aceleradamente, como se deu com Collor em 1991.

Com o petismo fortalecido e o fim da pandemia, protestos de rua poderão ocorrer com frequência, o que, por sua vez, poderá reativar o radicalismo que caracterizou o atual governo até junho deste ano. Esse cenário ressuscitará a ideia de destituição de Bolsonaro.

Cenário 4 - Bolsonarismo enfraquecido vs petismo enfraquecido: O enfraquecimento das duas forças oferecerá uma grande oportunidade para o renascimento do centro político. Eventuais vitórias de Bruno Covas (PSDB), Eduardo Paes (DEM) e Bruno Reis (DEM) nas disputas para as prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, respectivamente, favorecerão o renascimento do centro. Esse cenário facilitará consideravelmente a formação de um novo partido centrista que junte nacos do MDB, PSDB e DEM, processo também estimulado pelo fim das coligações nas eleições proporcionais a partir das eleições municipais.


Alon Feuerwerker: Mais Brasília. Menos Brasil

Há algumas dúvidas sobre o resultado desta eleição municipal. Uma: qual será o desempenho dos candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro. Outra: em que grau o PT conseguirá se recuperar da dura derrota de 2016, no auge da Lava-Jato. Mais outra: qual será desta vez o fôlego da chamada nova política.

Dúvidas à parte, pelo menos uma coisa é certa desde já. A grande massa dos prefeitos e vereadores eleitos chegarão a janeiro de 2021 abrigados nos partidos do chamado centrão. Ou do centrão formal, estrito senso, ou do centrão ideológico, lato senso. Uso aqui o “ideológico” apesar de parecer uma contradição em termos.

A previsão tem pelo menos três razões objetivas. Os partidos do centrão são em geral legendas médias, dotadas de razoáveis fundo partidário e eleitoral. São também relativamente alheios à recente agudização da polarização político-ideológica, o que os imuniza em algum grau contra ter de carregar fortes rejeições.

A terceira razão, entretanto, é a que pesa mais. Desde quando Jair Bolsonaro ajustou a rota e estabeleceu uma quase tradicional política de alianças no Congresso Nacional, os partidos que lhe ofereceram um colchão de segurança passaram a ter acesso preferencial ao orçamento. Que costuma ser essencial para investimentos na vida dos municípios.

Uma palavra de ordem muito usada na campanha eleitoral bolsonarista foi “Menos Brasília, Mais Brasil”. A descentralização de recursos para fortalecer estados e municípios e diminuir a dependência destes ao governo federal. Seria injusto fazer um diagnóstico definitivo depois de apenas dois anos, mas por enquanto pouco ou nada aconteceu nesse sentido. Ao contrário.

Uma rotina do presidente da República tem sido visitar os estados e municípios para lançar ou inaugurar obras feitas com dinheiro federal e canalizadas para a região por emendas parlamentares da autoria de deputados e senadores que apoiam o governo em Brasília, e por isso têm mais trânsito nos ministérios a quem compete liberar a verba.

É bastante razoável prever que deputados e senadores com mais acesso ao Orçamento Geral da União terão mais facilidade para eleger seus prefeitos e vereadores. Os quais, naturalmente, estarão propensos a apoiar os benfeitores daqui a dois anos. E mantém-se o tradicional sistema de reprodução de poder na República.

Eis por que é devaneio imaginar, como chegaram alguns, anos atrás, a iminência do colapso do que a ciência política apelidou de “peemedebismo”. E que não necessariamente tem a ver com o PMDB. É o predomínio numérico de uma massa de partidos sem capacidade hegemônica mas com suficiente musculatura para impedir qualquer um de governar sem se dobrar a eles.

Como romper a lógica? Um caminho seriam reformas políticas que permitissem ao eleito para o Executivo, nos três níveis, carregar com ele uma maioria parlamentar. Ou seja, pedir ao sistema que cometa haraquiri.

E olhe que não seria difícil encontrar fórmulas. Uma: calcular as cadeiras nas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados não pelo voto dado às legendas na eleição parlamentar, mas na eleição de prefeito, governador e presidente.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Como superar retórica do ódio? João Cezar de Castro Rocha sugere ética do diálogo

Em ensaio na revista Política Democrática Online de outubro, professor da Uerj cita que técnica do bolsonarismo pode ser aprendida e transmitida

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Professor Titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ensaísta, João Cezar de Castro Rocha sugere a busca pela ética do diálogo como caminho para superar a retórica do ódio. Em artigo na revista Política Democrática Online de outubro, ele explica que o combustível do bolsonarismo é uma técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. “Caracterizada a retórica do ódio, descritos os seus procedimentos textuais, damos o primeiro passo para sua superação. Isto é, precisamos abraçar a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes”, afirma Rocha.

De acordo com o professor da Uerj, a retórica do ódio, ensinada na pregação de Olavo de Carvalho, é uma técnica e, portanto, pode ser transmitida. “E, como uma técnica, possui elementos próprios. No caso do discurso de Olavo, destacam-se dois procedimentos: a desqualificação nulificadora e a hipérbole descaracterizadora”, afirma o ensaísta.

A esquerda, conforme analisa Rocha, é o alvo expresso da retórica do ódio. Isto porque, acrescenta ele, “é compreendida como bloco monolítico, representante da ‘mentalidade revolucionária’, e um conjunto determinado de recursos, sempre com a finalidade de eliminar o adversário”.

Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica olavista, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de alguém nenhum, segundo Rocha. “O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho”, afirma.

Como se trata de uma técnica, reforça o ensaísta, a desqualificação nulificadora foi apreendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes e deslikes. Além disso, segundo ele, foi traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.

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RPD || Ensaio - João Cezar de Castro Rocha: A desqualificação nulificadora

Ensaio de João Cezar de Castro Rocha analisa a retórica do ódio presente nas pregações do guru do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho. Falso silogismo olavista pode - e tem - de ser desmascarado, avalia

Tal como ensinada na pregação de Olavo de Carvalho, a retórica do ódio é uma técnica discursiva que pretende reduzir o outro ao papel de inimigo a ser eliminado.  

Trata-se de uma técnica — e esse aspecto deve ser sublinhado. Por isso, pode ser ensinada e transmitida. E como uma técnica, possui elementos próprios. No caso do discurso de Olavo, destacam-se dois procedimentos: a desqualificação nulificadora e a hipérbole descaracterizadora. 

A retórica do ódio tem um alvo expresso — a “esquerda”, compreendida como um bloco monolítico, representante da “mentalidade revolucionária” — e um conjunto determinado de recursos — sempre com a finalidade de eliminar o adversário.  

Marco zero da retórica do ódio, gênesis e apocalipse da técnica olavista, a desqualificação nulificadora reduz o adversário ideológico num outro tão absoluto que ele passa a se confundir com um puro nada, um ninguém de alguém nenhum. O efeito é assustador porque autoriza a completa desumanização de todo aquele que não seja espelho. E como se trata de uma técnica, a desqualificação nulificadora foi apreendida e multiplicada pela miríade de youtubers de direita, empregada à exaustão nas redes sociais, por meio da orquestração muito bem coordenada de likes deslikes, e, por fim, traduzida e ampliada nos círculos políticos do fenômeno bolsonarista, por meio do linchamento permanente do inimigo de plantão.  

O primeiro nível da técnica da desqualificação nulificadora não passa de um truque infantil. Olavo de Carvalho principiou o joguete: por que não desqualificar um adversário pela corrupção paródica de seu nome próprio? Não vou me estender muito mais nesse primeiro (des)nível. O historiador Marco Antônio Villa, torna-se Marco Antônio Vil; o pensador Mário Sérgio Cortella, Mário Sérgio Costela. Sem comentários... 

Venho, pois, ao segundo nível da desqualificação nulificadora. Trata-se da estigmatização que converte o outro numa mera caricatura, estimulando o seu sacrifício simbólico — pelo menos numa fase inicial.  

A estigmatização tem um alvo preciso, aliás, ponto de interseção entre olavismo e bolsonarismo: 

       Cada vez mais me convenço de que o movimento comunista tem sido a ÚNICA força agente no cenário mundial. O resto é apenas “reação”, termo com que os próprios comunistas o descrevem   com notável exatidão. (Facebook, 25 de setembro de 2016, grifos meus).  

A sequência da postagem é uma peça inadvertidamente dadaísta: 

       (...) Desde a II Guerra o “establishment” americano, incluindo um exército inteiro         de conservadores, tem como uma de suas principais ocupações acobertar — e             portanto ajudar — a penetração comunista nos altos círculos do governo,         tornando-a tanto mais poderoso e devastadora quanto mais invisível e imencionável. (grifos meus). 

um exército inteiro, não de democratas radicais, porém de conservadores, unidos na improvável missão de propiciar o triunfo do movimento comunista internacional, muito embora a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tenha sido dissolvida sem honra alguma em dezembro de 1991. Pois é... 

Chegamos assim ao terceiro nível da desqualificação nulificadora: eliminação do outro, pois no âmbito da retórica do ódio, o adversário é um inimigo a ser eliminado. 

Não exagero: leia esta postagem de 2018: 

       Quebrada a hegemonia intelectuala guerra cultural começa com a desocupação de espaços. Botar         para fora, da maneira mais humilhante possível, os farsantes e usurpadores. Isso exige militância organizada e PRESENÇA FÍSICA. (Facebook, 20 de março de 2018, grifos meus).  

PRESENÇA FÍSICA? Ameaçadoras letras maiúsculas, associadas à ideia belicosa de uma militância organizada? Compreende-se que a noção de guerra cultural pouco tem de metafórica, sendo antes a expressão de um desejo nada obscuro, explicitada por verbos como quebrarvarrereliminarapagar. Mais uma vez, o fantasma da hegemonia intelectual da esquerda é um falso passaporte que pretende legitimar toda forma de violência simbólica, que, agora sabemos, é o prelúdio cinzento da PRESENÇA FÍSICA — violenta, por óbvio.  

A desqualificação nulificadora é o meio através do qual a retórica do ódio e a Doutrina de Segurança Nacional vivem em permanente lua de mel, inventando inimigos em série. Esse é o passo mais importante na caracterização da retórica do ódio. Contudo, precisamos ainda descrever um segundo procedimento padrão da mentalidade revolucionária olavista, a hipérbole descaracterizadora. Se entendermos seu alcance, o castelo de cartas marcadas do sistema de crenças Olavo de Carvalho terá os dias contados.  

Hipérbole descaracterizadora  

A marca d’água da mentalidade olavista é o cacoete da redundância, que pretende, por assim dizer, manipular a consciência do leitor, já que a reiteração sistemática do que se acabou de dizer almeja, conscientemente ou não, paralisar o receptor, que assediado pelo mesmo sentido, confundindo a reflexão filosófica com a experiência iniciática.  

Comecemos a descrever a hipérbole descaracterizadora com o vídeo O Olavo tem razão 1: quem sou eu. O próprio fala de si. Um artigo que Ruy Fausto dedicou a sua obra serviu de pretexto.[1] Olavo então esclareceu a razão do impacto que produziu na cena brasileira.  

Escutemos: 

       E o que eu escrevi tem mais efeito do que o que ele escreveu, porque eu escrevo mil vezes melhor           do que esses caras, pô! É a coisa mais óbvia do mundo.  Eles             não sabem nem português, são uns             coitados, porra! Então... agora o que eu escrevo é vivo, é engraçado, tem humor, tem sentido, tem           conteúdo; então, é claro que acaba tendo muito mais repercussão. É obvio.[2] (grifos meus) 

A autoproclamação hiperbólica — eu escrevo mil vezes melhor —econfirmatória— o que eu escrevo é vivo, é engraçado, etc. —tornou-se a máscara sem medo usada por Olavo de Carvalho em sua persona nas redes sociais. O efeito é devastador: seus discípulos adotam o truque, embora em geral não disponham de formação sólida em área alguma do conhecimento. Rapidamente, e com invejável ousadia, ministram cursos online com base em dois ou três livros consultados dogmaticamente acerca de um tema aleatório. O resultado é o caos cognitivo que domina o cenário brasileiro contemporâneo.  

Nos textos de Olavo sempre estamos às voltas com o mais vasto empreendimento, envolvendo centenas de militantes-delatores infiltrados nas mais diversas instâncias do estado e na sociedade civil, e, claro, jamais houve na história do Ocidente uma tal empresa; naturalmente, não há nenhum precedente histórico para esse fenômeno, capaz de criar um império universal da impostura, pois, ao fim e ao cabo, um cérebro marxista nunca é normal.  

Ora, tomei frases soltas da trilogia de Olavo de Carvalho, e simplesmente alinhavei uma longa frase, tendo como ponto de fuga a “ameaça vermelha”, pânico que, no campo da direita e sobretudo da extrema-direita, confere verossimilhança às associações mais desconexas e às conclusões mais disparatadas. Inventei assim um aplicativo: o gerador automático de frases do sistema de crenças Olavo de Carvalho. É uma espécie de silogismo aristotélico de Napoleão de hospício. Isto é, no silogismo, digamos, com juízo, duas proposições verdadeiras possibilitam a inferência de uma terceira proposição igualmente válida. A primeira premissa é de caráter mais geral, a segunda, mais restrita, e a conclusão é derivada da relação entre as duas proposições anteriores. No exemplo sempre citado: 

       Todo homem é mortal. 

       Sócrates é homem. 

       Sócrates é mortal.  

Cristalino, não é mesmo? 

Agora, por efeito de contraste, o falso silogismo olavista pode ser desmascarado. Olavo parte sempre da conclusão — “o perigo vermelho” iminente, e, desse modo, pouco importa o conteúdo das proposições, que, logicamente, deveriam anteceder à conclusão. Como ela se encontra determinada à priori e jamais se altera, Olavo inaugurou uma nova modalidade de lógica: trata-se da lógica do vale-tudo. Em 2019, a conclusão pau-para-toda-obra conheceu uma formulação impecável: 

       Nada no mundo se compara à intensidade do ódio no coração de um esquerdista.            É implacável, incessantesem fim. (Twitter, 4 de novembro de 2019, grifos meus).  

A redundância e suas reiterações infinitas: se o ódio é incessante, já se sabe que é sem fim. Se essa é a ilação-matriz, então, literalmente qualquer conteúdo se torna inaceitável; mesmo as afirmações mais absurdas parecem razoáveis.  

Acredite! 

Vejamos alguns exemplos.  

       A tal quarentena é A MAIOR FRAUDE DA HISTÓRIA HUMANA. (Twitter, 20 de abril de 2020,            grifos meus). 

       Para o futuro do Brasil,  a luta contra os comunistas é prioritária. O resto é TUDO desconversa,          oba-oba e carreirismo. TUDO. (Facebook, 15 de setembro de 2020, grifos meus) 

A mentalidade do Messias Bolsonaro ecoa essa lógica do vale-tudo. Recentemente, diante do fracasso óbvio da política econômica de seu governo, o presidente levantou a suspeita da presença de “infiltrados do PT” na equipe econômica.[3]Os ineptos ministros da Educação justificam a inação de suas gestões recorrendo à noção olavista das centenas de militantes infiltrados. O predomínio do silogismo de Napoleão de hospício nas altas esferas da administração pública somente torna ainda mais agudo, quase dramático, o paradoxo: o êxito do bolsonarismo implica o fracasso do governo Bolsonaro. 

hipérbole olavista é descaracterizadora porque ela suprime deliberadamente as mediações entre os pontos tratados num argumento qualquer. Transita-se do alfa ao ômega sem pausa alguma, numa vertigem que impede a reflexão e despreza o conceito. O uso constante de letras maiúsculas apenas dá forma visual ao efeito pretendido, qual seja, a adesão absoluta ao exposto pelo mestre-sabe-TUDO. 

O inquietante é a homologia entre o recurso estilístico olavista e a natureza autoritária do projeto político bolsonarista. Em ambos os casos, o propósito último é o de abolir toda forma de mediação, a fim de estabelecer seja o controle da consciência dos discípulos, seja o estabelecimento de uma “democracia” direta por meio da abolição das mediações institucionais entre poder e cidadania.  

Caracterizada a retórica do ódio, descritos os seus procedimentos textuais, damos o primeiro passo para sua superação. Isto é, precisamos abraçar a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes. 


[1] Ruy Fausto. “Única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões”. Folha de SPaulo, 30 de novembro, 2018: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/unica-coisa-rigorosa-no-discurso-de-olavo-sao-os-palavroes-diz-ruy-fausto.shtml

[2] O Olavo tem razão 1: quem sou eu: https://www.youtube.com/watch?v=5q1FhFgjBhY

[3] Thiago Bronzatto. “Bolsonaro desconfia de ‘infiltrados do PT’ na equipe econômica”. Revista Veja, 27 de setembro de 2020: https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-desconfia-de-infiltrados-do-pt-na-equipe-economica/

https://youtu.be/5q1FhFgjBhY

Marcelo Godoy: Heleno chefia contra-ataque bolsonarista no meio ambiente e na diplomacia

Depois de defender ações contra o Congresso, o ministro do GSI agora concentra seus ataques aos críticos da política ambiental do governo

Caro leitor,

Depois de dois anos de governo, Jair Bolsonaro criou uma base no Congresso. Parece ter compreendido como lidar com o Supremo Tribunal Federal, depois de integrantes do bolsonarismo terem defendido um putsch, que seus expoentes designavam como "intervenção militar", para fechar o tribunal e o Parlamento, silenciar a oposição e defender as boquinhas no governo. Se o presidente pôs cera nos ouvidos para não ouvir o canto dos blogueiros inconformados, só o tempo dirá. Só o tempo dirá se trocou a uso da força pela força da cooptação de adversários.

Bolsonaro pode obter sua détente, mas não significa que tenha abandonado sua guerra fria. Como diz Spinoza em seu Tratado Político, "a paz não consiste na ausência da guerra, mas na união das almas, isto é, na concórdia". Esta o bolsonarismo parece ser incapaz de construir. A começar dentro do próprio governo, como mostram Paulo Guedes, Rogério MarinhoSérgio MoroLuiz MandettaSantos Cruz etc. O problema é anterior à paz armada com as outras instituições da República. Ele surge não apenas quando há desorganização e ausência de etiqueta no Planalto, mas também quando não se compreende a liberdade.

Bolsonaro já esbravejou em reuniões contra a falta de unidade de princípios e atropelos de ministros. Em governos organizados, somente o presidente da República manifesta-se sobre os mais variados temas. Mas alguns dos generais do Planalto parecem desconhecer a subordinação ao presidente ou acham suas estrelas mais reluzentes do que as do capitão. Isso já foi percebido por oficiais ouvidos pela coluna. Não se trata aqui apenas daquele que não pode ser demitido, por ser o vice-presidente da República.

Para esses militares, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, como assessor do presidente não deveria expressar opiniões sobre temas que não são de sua responsabilidade no governo, como o Meio Ambiente. Ou será que Ricardo Salles – goste-se ou não dele – não é o responsável pela área, ainda que sob a vigilância de outro general, Hamilton Mourão, e seu Conselho da Amazônia? Ora, qualquer general chamaria de desleal a ação de um hipotético comandante militar da Amazônia que resolvesse dar palpites públicos sobre o Comando Militar do Sul.

Por que então Heleno se comporta de forma diferente no governo? Por que deixou os padrões militares para trás para adotar os da política? Ou será que Heleno ocupará o papel de ideólogo de seu grupo, antes reservado a Olavo de Carvalho? Foi para o canal do YouTube de Eduardo Bolsonaro, o filho do presidente que acredita que sua propaganda substitui o jornalismo independente, que ministro do GSI resolveu dizer que o governo ainda não teve tempo para executar a sua política para a Amazônia. E as pessoas de bom senso podem imaginar o que isso significa, quando o general afirma que a floresta tropical suporta "maus tratos".

"Nós sabemos exatamente o que temos de fazer na Amazônia brasileira e no Pantanal, só que não houve tempo ainda de colocar em prática, de colocar gente para fazer isso", diz Heleno. Mas o governo não mudou normas e regulamentos na área, impediu a queima de máquinas de garimpeiros, passou quase dois anos afastando fiscais e punindo quem tentava coibir a desordem e foi acusado de leniência com madeireiros ilegais, garimpeiros, grileiros, enfim, com desmatadores e incendiários de toda ordem para pôr a culpa do que acontece na floresta e no pantanal em ONGs, índios e caboclos? Quem planta ideologia colhe incêndios.   

Mas não é isso o que pensa Heleno. Ele prefere pôr a culpa nos governos da Nova República, os tais 40 anos de intervalo entre o reino dos militares e a redenção bolsonarista. O sorridente Heleno se transforma no Bandarra do bolsonarismo, levando aos seus compatriotas a miragem de um Quinto Império. Em vez de d. Sebastião, oferece ao povo a figura de Jair Bolsonaro. Diz o ministro: "Nós temos 80% da cobertura florestal da Amazônia preservada. A Europa tinha 7%, hoje tem 0,1%. Mas agora ganharam a condição de nos criticar diariamente, nós somos os 'grandes vilões' do meio ambiente no mundo." 

Às ameaças dos anos 1970, o Movimento Comunista Internacional e as ONGs a serviço de poderes estrangeiros, Heleno acrescenta potências europeias que cobiçam nossas riquezas. O Bandarra do governo, que já foi o tradutor-mór de Bolsonaro, adverte que a Amazônia é "o destino manifesto do Brasil" e afirma que "integrar a região é a prioridade nacional". A professora Adriana Barreto de Souza, da Universidade Federal Rural do Rio, mostra em A Defesa Militar da Amazônia, entre história e memória, como a defesa da região se articula com a batalha de Guararapes nas representações militares. E como a doutrina da resistência ao agressor externo vincula a luta contra o invasor holandês ao presente da floresta.

É o passado que não passa na floresta. Heleno ainda afirma: "Agora, gente fora do Brasil que não tem moral para nos criticar, que acabou com suas florestas, criticar com a veemência que critica, querer nos colocar como vilões do meio ambiente, não dá para aceitar". E conclui, reclamando da imprensa, pois “notícias ruins trazem prejuízo”. Ou seja: culpa o carteiro pelo aviso de cobrança. Por fim, diz que pretende convidar embaixadores estrangeiros para sobrevoar a Amazônia e, assim, pararem de "falar bobagens". Eis o que o Brasil precisaria saber...

Há duas semanas, Heleno defendeu sanções contra produtos da Alemanha e da Suécia em caso de boicote a produtos brasileiros. Depois, disse que não queria citar países, pois poderia ser injusto e até causar um problema diplomático. Ainda bem que se tratava apenas de entrevista para uma rádio e, certamente, nenhum representante desses países escuta o que o ministro diz a jornalistas. Por fim, se Salles pode ser tratorado, por que Ernesto Araújo iria reclamar sobre os pitacos de Heleno na diplomacia brasileira?  Por achar que os defensores do meio ambiente eram gente mal-intencionada, o governo teve de fazer as Operações Verde Brasil 1 e 2.

Para ser justo, Heleno não é o único oficial general a pensar assim. Um importante brigadeiro consultado pela coluna sobre as declarações do ministro e suas consequências para a diplomacia e a economia brasileiras, disse:  "Acho muito mimimi por parte de países, ONG’s , intelectuais e artistas estrangeiros sobre um assunto interno do Brasil. Isso é antigo e extremamente suspeito. A soberania brasileira tem que ser respeitada. Nenhum desses organismos tem que se intrometer nisso. Como brasileiro de bem, é o que penso!"  Do jeito que o governo vai, alguém ainda vai sugerir a prisão de índios e caboclos para, enfim, pacificar a floresta.


‘Na cidadania, mitos se despedaçam’, diz Rogério Baptistini Mendes

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, pesquisador da Unesp diz que ‘bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A polarização civilização e barbárie demarca grupos e sociedades humanas, analisa o sociólogo e pesquisador da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) Rogério Baptistini Mendes, em artigo que publicou na 23ª edição da revista Política Democrática Online , produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojilo Pereira), em Brasília. “No campo da cidadania, a democracia se fortalece e os mitos se espedaçam”, diz ele, em outro trecho.

Clique aqui e acesse a 23ª edição da revista Política Democrática Online!

Para além do caráter evolucionista da classificação, herdado do século 19 europeu, o sentido da polarização está atrelado aos movimentos históricos e sociais emancipadores do homem, sendo o Iluminismo sua síntese. “A construção de uma noção inclusiva e abrangente de humanidade, que daí deriva, não está dissociada das ideias dos antigos, mas as alarga”, diz ele.

O cultivo do espírito pela filosofia encontra o método, as técnicas e a disseminação dos saberes contra a ignorância, segundo o autor do artigo da revista Política Democrática Online. “A razão esclarecida abre seu caminho em meio às trevas e aponta para o reconhecimento mútuo dos seres humanos como portadores do mesmo destino e condição. É o que torna possível a convivência e, repugnante, o assassinato”, analisa o pesquisador da Unesp.

Em outro trecho, Mendes destaca que a subversão da pólis pela lógica binária que apostou na pedagogia do conflito, do “nós contra eles”, se fez acompanhar por patologias de um mercado que nunca integrou e se apresenta como lugar de resistência desregrada, incivilizada. “Neste contexto, a cidade, lugar da política, é hostil, e os espaços são privatizados. Sob o manto de defesa da ordem, da propriedade e dos direitos do ‘cidadão de bem’, o bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos”, critica ele.

Mais adiante, o sociólogo diz que a história não é uma marcha ascensional e unilinear, estando repleta de dificuldades e incoerências. “Mas com ela se aprende. A partir dos ensinamentos do passado, da experiência e da apreciação racional, o homem civilizado e verdadeiramente livre se manifesta, constrói o presente e projeta o futuro”, afirma. “Na civis, no espaço público e em relação aos demais, é que a liberdade esclarecida e verdadeiramente emancipadora é exercida”, continua.

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RPD || João Cezar de Castro Rocha: A mentalidade bolsonarista

A ascensão da direita, articulada desde meados da década de 1980, primeiramente na caserna e depois no movimento civil, preparou a vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018, avalia João Cezar Rocha em seu artigo

Almejo, neste artigo, caracterizar brevemente a mentalidade bolsonarista por meio da guerra cultural, isto é, a ponta de lança de um projeto autoritário, com base no resgate insensato da Doutrina de Segurança Nacional, no alinhamento cego à matriz narrativa conspiratória do Orvil e na adesão náufraga ao sistema de crenças Olavo de Carvalho.

De fato, a ascensão da direita é anterior à emergência do bolsonarismo, o que favoreceu sua possibilidade de êxito. Em boa parte dos estudos acerca do fenômeno, o efeito é tomado como causa. O bolsonarismo não possibilitou o triunfo eleitoral da direita, mas, pelo contrário, a ascensão paulatina da direita, articulada desde meados da década de 1980, preparou a vitória do Messias Bolsonaro no segundo turno, em 2018.

Hora, portanto, de analisar esse fenômeno sem preconceitos, destacando a força incomum da presença de um escritor, metamorfoseado em ativista político no reino encantado do universo digital. Refiro-me a Olavo de Carvalho, artífice de uma retórica do ódio que ameaça levar o país a um esgarçamento inédito.

Debruçar-se sobre o fenômeno é fundamental. De imediato, menciono quatro fatores, cuja inter-relação esclarece o caráter orgânico da ascensão da direita nas últimas duas décadas. A redução desse movimento à vocação golpista, atribuída ao impeachment de 2016, tem paralisado a esquerda, que, assim, se revela incapaz de entender a importância de uma juventude de direita, força decisiva na política brasileira dos últimos anos. Pelo menos desde 2002 – muito antes, portanto, de 2013.

A simples enumeração dos elementos ilumina a incompreensão ainda hoje predominante:

1) a ação de Olavo de Carvalho na década de 1990, ampliando o repertório bibliográfico e fortalecendo a musculatura da direita por meio de polêmicas estratégicas contra ícones da esquerda;

2) uma fissura geracional que escapou aos cálculos da esquerda, em geral, e do Partido dos Trabalhadores, em particular. As quatro eleições presidenciais, legitimamente vencidas pelo PT, possibilitaram a associação automática entre establishment, sistema político e campo da esquerda; daí, pela primeira vez na história republicana brasileira, foi possível considerar-se de oposição por ser de direita;

3) o conflito geracional foi agravado pela difusão da tecnologia digital e sua apropriação criativa e irreverente por uma inédita juventude de direita, cuja presença nas redes sociais materializou-se nas multitudinárias manifestações a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff;

4) por fim, a partir de 2013, no princípio timidamente, porém de forma ostensiva já em 2015, a direita começou a disputar as ruas com o campo da esquerda, um desdobramento surpreendente para qualquer analista, pois as ruas pareciam propriedade simbólica dos que estavam à margem do poder, ou seja, antes do triunfo eleitoral do PT, a própria esquerda. Os 14 anos de permanência do PT no Governo Federal alteraram de maneira profunda a ecologia da política brasileira, sem que tal abalo fosse imediatamente perceptível.

Iniciadas em março de 2015 e ampliadas em abril, agosto e dezembro do mesmo ano, as manifestações de rua da direita explodiram em março de 2016, revelando ao país uma organização sólida de grupos conservadores, com destaque para movimentos articulados nas redes sociais, que, com grande desenvoltura, tomaram os céus de assalto, não para defender a revolução, porém, todo o oposto, para derrubar o único partido de esquerda que chegou à Presidência do Brasil.

Em relação aos quatro fatores que terminei de elencar, o último é o mais visível e muitas vezes o único considerado na ascensão da direita. Por isso, ela é reduzida ao ânimo golpista. E esses dois elementos se encontram: a juventude de direita, ativíssima nas redes sociais, formou sua visão de mundo primariamente por meio do sistema de crenças Olavo de Carvalho, apreendido por meio das mesmas redes sociais — e, aqui, a redundância é o sal da terra.

Para dizê-lo de forma direta: desde meados dos anos 1980, como uma reação à distensão implementada pelo general Ernesto Geisel, na década anterior (1974-1979), e sobretudo à redemocratização, conduzida aos trancos e barrancos pelo general João Batista Figueiredo (1979-1985), um movimento subterrâneo de direita foi articulado, inicialmente na caserna e, posteriormente, na sociedade civil.

O Orvil é o modelo narrativo adotado pelo bolsonarismo. Trata-se de documento-chave que oferece o relato de uma permanente “ameaça comunista”, fortalecendo o discurso da atual extrema-direita no Brasil, pois se trata do livro de cabeceira da família Bolsonaro. Ele foi um livro preparado pelo Exército entre 1986 e 1989, cujo objetivo era denunciar a “ameaça comunista”. A ascensão da direita, um movimento de duas décadas, explodiu em 2015 e 2016, porém sua intensidade foi preparada lentamente por meio da criação de uma linguagem própria, saturada de clichês anticomunistas com ressonâncias anacrônicas da Guerra Fria, ademais do recurso a uma moldura narrativa com base nas tentativas de tomada do poder por parte da esquerda brasileira, “naturalmente” em acordo com o movimento comunista internacional, numa vasta trama de proporções apocalípticas. O próprio subtítulo de Orvil, tentativas de tomada do poder, revela o sentido das teorias conspiratórias que presidem a mentalidade bolsonarista, autêntica matriz de suas obsessões. Por fim, não se negligencie o milagre às avessas da proliferação de teorias conspiratórias involuntariamente dadaístas.

Nas páginas finais do Orvil, o inimigo comum das próximas décadas é identificado: “Entende-se que o ‘partido de Lula’ é o principal resultado da luta da classe operária”.[1] Decifre-se a esfinge: sem um alvo determinado, como manter grupos diversos reunidos num mesmo projeto? Nesses casos, a diferença é subsumida na miragem de um adversário tentacular, convertido em inimigo útil, nada inocente, que assegura a coesão do movimento.

A mentalidade bolsonarista pode então completar-se: trata-se de reduzir o outro ao mero papel de adversário, inimigo a ser eliminado. Por isso, muito mais importante do que somente derrotar o Messias Bolsonaro é superar o próprio bolsonarismo.

*João Cezar de Castro Rocha é professor Titular de Literatura Comparada da UERJ e ensaísta.