bolsonarismo

Ricardo Noblat: Congresso escolhe caminhar em direção oposta a do país

Bolsonaro ganhou – e o Centrão mais do que ele

Jair Bolsonaro pagou uma fortuna ao Centrão para derrotar o que lhe pareceu ser o germe de uma aliança de parte da esquerda e da direita para minar suas chances de se reeleger em 2022.

A partir de agora, pagará outra para que o Centrão apoie no Senado e na Câmara dos Deputados os projetos do seu governo que não conseguiram avançar quase nada por culpa dele mesmo.

Uma vez de novo candidato a presidente, pagará uma terceira fortuna no mercado futuro para evitar que o Centrão se bandeie para o lado de seus possíveis adversários.

Deu Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidente do Senado, como previsto. Deu Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara depois que o DEM largou de mão Baleia Rossi (MDB-SP).

Foi o enterro da Nova Política prometida por Bolsonaro há dois anos, e a ressurreição com todo o seu esplendor da Velha onde, por sinal, Bolsonaro se criou durante quase 30 anos.

Eleito, Pacheco falou em Senado independente, em auxílio emergencial para os brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia, mas não só, e em reformas na economia.

Lira falou em Câmara “independente, mas harmônica”. Quer dizer: uma Câmara que, de preferência, aprove todas as pautas de interesse de Bolsonaro e que evite contrariá-lo.

Lira e o Centrão não podem garantir que será assim. Primeiro porque não detém votos suficientes para fazer todas as vontades de Bolsonaro. Segundo porque o Centrão não é uma coisa só.

Pesou na eleição de Lira o dinheiro gasto pelo governo na compra de votos, mas pesou também a diferença dos perfis de Lira e de Rossi, e o modo como Rodrigo Maia (DEM-RJ) escolheu Rossi.

Lira é um rato de plenário. Rato no sentido de que vive ali circulando por toda parte, participando de todas as rodas de conversa, cumprimentando todo mundo. É muito habilidoso.

Nunca distinguiu entre colegas notáveis e colegas do baixo clero. Rossi, como líder do MDB, fazia o oposto. Vivia no seu gabinete. Aparecia nas reuniões de líderes. Nunca foi popular.

O patrocinador de Lira foi Bolsonaro, que quando quer ser simpático no trato com ex-colegas, sabe ser. O patrocinador de Rossi foi Maia, um centralizador sisudo e às vezes de maus bofes.

A pretensão de Bolsonaro é fazer do Congresso um anexo do Palácio do Planalto, onde ele despacha no terceiro andar. Não é certo que consiga mesmo que continue pagando caro por isso.

Senadores e deputados só pensam na reeleição ou na eleição para outros cargos. O mais bobo deles conserta relógio suíço usando luvas de boxe, como disse um dia o deputado Ulysses Guimarães.

Presidente da República pode pedir a um parlamentar o que quiser, só não pode pedir ou esperar que ele politicamente se suicide. Não haverá um único capaz de atendê-lo.

Com Pacheco e Lira, o Congresso escolheu caminhar na direção oposta à que o país dá sinais de que caminha ao distanciar-se de Bolsonaro. Mais adiante os dois poderão se reencontrar – ou não.

Para onde irá Rodrigo Maia? E o DEM de ACM Neto?

Na direção dos ventos

Nada de convidar para a mesma mesa, pelo menos nem tão cedo, o deputado Rodrigo Maia (RJ), que ontem se despediu com lágrimas da presidência da Câmara, e ACM Neto, ex-prefeito de Salvador e presidente nacional do DEM, o partido de Maia.

Os dois pareciam se entender apesar das diferenças de estilo – Maia estourado e centralizador, ACM Neto calmo e disposto a fazer a vontade da maioria do seu partido. O rompimento se deu quando Maia escolheu Baleia Rossi (MDB-SP) para sucedê-lo.

Candidato ao governo da Bahia em 2022, ACM deu ouvidos aos deputados baianos que preferiam apoiar Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, deixando Maia pendurado no pincel. Maia anunciou que sairá do DEM, para onde ainda não sabe.

O destino de Maia só importa a ele e aos seus eleitores. O do DEM importa aos demais partidos que esperavam contar com a companhia dele para a formação de uma frente capaz de impedir a eventual reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

O DEM com Rodrigo negociava com o CIDADANIA e outras legendas o possível apoio à candidatura do apresentador de televisão Luciano Huck. Mas não descartava apoiar a candidatura do governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

Sem Rodrigo, ou com um Rodrigo murcho, o DEM poderá tomar outro rumo. O partido tem dois ministérios no governo Bolsonaro – o da Agricultura e o da Cidadania. Tinha três quando o médico Luiz Henrique Mandetta era ministro da Saúde.

Poderá abiscoitar o Ministério da Educação ou outro qualquer, desde que queira aproximar-se ainda mais de Bolsonaro. O avô de ACM Neto apoiou todos os governos da ditadura militar de 64, e quando viu que ela estava no fim, aderiu à oposição.

Neto aprendeu com ele a se antecipar à mudança de direção dos ventos. Seus próximos passos poderão indicar para que lado eles irão soprar.


Hélio Schwartsman: Bolsonaristas deveriam revoltar-se

Se eu fosse um deles (deus me livre), já estaria na rua quebrando tudo

Se eu (Deus me valha e guarde!) fosse bolsonarista, já estaria na rua quebrando tudo. É que há um limite para o número de vezes que uma pessoa pode deixar-se enganar sem comprometer a autoimagem. E, no caso dos admiradores do mito, esse limiar já ficou para trás em qualquer análise objetiva.

A cereja do bolo é o esforço bilionário do presidente de distribuir verbas e cargos entre congressistas para tentar assegurar aliados no comando da Câmara e do Senado. O próprio Bolsonaro, durante a campanha, dizia que o presidente que troca cargos por apoio no Parlamento merece o impeachment (declaração de 27 de outubro de 2018). E quem é um bolsonarista para discordar de Bolsonaro?

Não foi só na antipolítica que o ex-militar cuspiu em seu eleitorado. Ele também o fez em relação à pauta anticorrupção (foi Bolsonaro, não Temer, quem enterrou a Lava Jato) e à agenda econômica liberal (cadê o R$ 1 trilhão em privatizações?) para ficarmos só nos grandes temas.

Figurativamente, alguns grupos de bolsonaristas já começaram a quebrar tudo. É o caso da molecada do MBL, que passou recentemente a defender o impeachment.

Como não sou bolsonarista, não me sinto traído. Não posso nem dizer que tenha ficado surpreso com a quebra de promessas. Quem acreditou que o rei dos esquemas de baixo clero da Câmara (Wal do açaí, apartamento funcional "para comer gente") iria atuar contra a corrupção o fez por conta e risco.

Devo, porém, confessar que estou dividido em relação à minha torcida. Em nome da decência, adoraria ver Bolsonaro impedido —e penso que iniciar o processo é um imperativo moral. Mas, para que o afastamento se torne uma hipótese realista, a economia e a pandemia precisariam piorar. A conta consequencialista, que faltam elementos para resolver, é se o Brasil perde mais com um agravamento agudo das condições econômicas e sanitárias ou com a permanência de Bolsonaro até 2022.


Hélio Schwartsman: Epifania bolsonarista

Num átimo entendi a essência deste governo

Foi lendo o artigo do secretário de Comunicação Social do Ministério das Comunicações, Fábio Wajngarten, em que ele procura explicar as razões de o Brasil estar tão atrás de Israel na vacinação contra a Covid-19, que tive a epifania. Num átimo, entendi a essência do governo Bolsonaro: ocupam os cargos mais estratégicos aqueles que não têm qualificação para exercê-los.

No caso do secretário, isso fica evidente na própria peça, que incorre em erros lógicos e retóricos, além dos factuais. Como tenho pouco espaço, limito-me a apontar o que me pareceu o sofisma maior. Para Wajngarten, não se pode afirmar que o Brasil esteja atrasado na vacinação porque foi só agora que os laboratórios entraram com a papelada na Anvisa.

Não é preciso ser gênio para entender que o que permitiu a Israel ter imunizado cerca de 20% da população foi justamente ter-se antecipado às dificuldades, em vez de esperar que fabricantes, já abarrotados de pedidos, se mexessem. Israel pagou à Pfizer mais do que os europeus para ter acesso rápido a um estoque suficiente de vacinas e ainda ofereceu os dados do sistema de saúde local para a farmacêutica monitorar os efeitos da vacinação em massa.

O artigo de Wajngarten é uma tentativa incompetente de esconder a incompetência de outro auxiliar de Bolsonaro, Eduardo Pazzuello, o general que não sabia o que era SUS, mas comanda o Ministério da Saúde.

Outro ministro que não pode ser esquecido é André Mendonça, o titular da Justiça, que parece ter cabulado todas as aulas de direito penal, já que é incapaz de distinguir um crime de um artigo de opinião. Ele agora quer processar o Ruy Castro e o Ricardo Noblat por instigação ao suicídio devido a uma crônica de que não gostou.

É verdade que Wajngarten, Pazzuello e Mendonça são amadores perto do chefe, de longe o mais inepto de uma extensa galeria de figuras deploráveis que já passaram pela Presidência.


O Estado de S. Paulo: Militares das Forças rejeitam status de general para PMs

Oficiais criticam medida em projeto de lei; Ministério da Defesa já rechaçou decreto no Rio que deu patente a policiais e bombeiros

Tânia Monteiro, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Os dois projetos de lei que preveem a criação de cargos de general para a Polícia Militar e mandato de dois anos para os comandantes e impõem condições para que governadores possam demiti-los provocaram reação de militares da cúpula das Forças Armadas. “É uma proposta intempestiva, completamente precipitada e sem justificativa real para que esteja sendo apresentada agora, sem uma discussão prévia”, disse ao Estadão general Santos Cruz, demitido da Secretaria de Governo no início da gestão de Jair Bolsonaro e ex-secretário Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça do governo Michel Temer.

O general engrossa o coro dos que defendem uma regra uniforme para as PMs, mas ressalta que as propostas reveladas pelo Estadão “não estão no padrão do que se espera de uma lei orgânica”. Segundo o militar, é inadmissível conceder patente de general, algo exclusivo das Forças Armadas, para policiais. “Dentro de estrutura militar ninguém pode ter mandato, não cabe isso”, afirmou.

Em agosto de 2019, o Ministério da Defesa rechaçou a tentativa do governador afastado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que numa canetada criou o cargo de general “honorífico” na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros. A pasta considerou o decreto inconstitucional e acionou a Advocacia-Geral da União (AGU), o que levou Witzel a recuar e anular o decreto.

Procurado, o Ministério da Defesa manteve a posição divulgada à época sobre a criação destes postos, quando informou que, de acordo com a Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre o assunto. “Com base nessa competência privativa, encontra-se em vigor o Decreto-lei n.º 667/1969, que reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Território e do Distrito Federal, cujo artigo 8.º define que o maior posto hierárquico nessas corporações será o de Coronel”, diz em nota. Sobre os demais pontos do projeto, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, preferiu não se manifestar, sob a alegação que o texto oficial ainda não está em tramitação no Congresso.

Generais da ativa ouvidos pela reportagem sob condição de anonimato dizem que as PMs são forças auxiliares das Forças Armadas, como está previsto na Constituição, razão pela qual, se os projetos forem aprovados, podem provocar um grave problema de hierarquia. Como exemplo, um general cita que caso seja necessário acionar as Forças Armadas por alguma razão, como a Garantia da Lei e da Ordem, por exemplo, o policial pode não aceitar a ordem do militar por ter uma patente maior ou por se considerar do mesmo nível hierárquico.

Para este militar, esse potencial conflito de autoridade deve preocupar a sociedade em geral, não apenas as Forças Armadas. O temor dos militares é que essa discussão seja tomada pela ideologia e não pela razão e pela necessidade de preservação do Estado brasileiro. Pela lei hoje, um coronel do Exército é sempre mais antigo que um coronel da PM.

“Esse assunto não pode ser discutido de forma superficial”, reiterou Santos Cruz. Na avaliação dos oficiais-generais consultados, há uma gama de problemas com as propostas apresentadas. Consideram que a maioria deles pode atingir princípios básicos da estrutura militar – a hierarquia e a disciplina. Sobre a questão da escolha de comandantes da forma como está proposta, seja por lista tríplice, seja com ressalvas para os governadores poderem demiti-los, dizem considerar inadmissível.

Controle

O Exército controlava as polícias, por meio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM), até a Constituição de 1988. Depois disso, os governadores passaram a nomear seus comandantes e a IGPM perdeu seus poderes. Atualmente, o controle do Exército sobre as polícias é formal, versa sobre efetivos e armamento, mas não treinamento, formação de pessoal, ingresso na carreira, e promoções, o que ficou a cargo de cada Estado.


Hélio Schwartsman: O impeachment como dever

O processo não avançaria, mas temos obrigação moral de tentar

Na atual conjuntura política, um processo de impeachment de Jair Bolsonaro seria derrotado, mas daí não decorre que não tenhamos a obrigação moral de tentar.

Dilma Rousseff buliu com as contas públicas e foi corretamente afastada pelo Congresso. Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade muito mais graves, mas nada acontece com ele. Por quê?

Isso se deve à natureza meio capciosa do instituto do impeachment e, principalmente, à complacência da sociedade. Processos de afastamento de presidentes exigem uma base jurídica, que não é difícil de conseguir —"proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" vale para qualquer coisa—, e a quase inviabilidade política, já que o titular só é de fato destituído se mobilizar contra si 2/3 dos parlamentares.

Como o segundo elemento é muito difícil de obter, fechamos os olhos para violações constitucionais com uma frequência muito maior do que a recomendável.

Se a situação socioeconômica não se deteriorar muito nos próximos meses, o que não desejo, Bolsonaro não tem com o que se preocupar. O centrão deverá segurá-lo no cargo. Mas, sob pena de potencializar ainda mais os já escandalosos níveis de complacência nacional, a parcela dos brasileiros que rejeitam as atitudes e as políticas de Bolsonaro tem o dever de marcar posição, pressionando para que a Câmara ao menos dê início a um processo de destituição.

Ainda que a derrota seja quase certa, é uma satisfação que devemos aos pósteros. O Partido Democrata dos EUA passou por idêntica situação em 2020 e optou por dar seguimento ao primeiro impeachment de Donald Trump, mesmo sabendo que o processo morreria no Senado. Os democratas e os americanos que os apoiavam fizeram questão de mostrar que não haviam ficado cegos nem abandonado as noções básicas de retidão e decência.

A patacoada golpista de Trump na semana passada prova que tinham razão.


Merval Pereira: Ainda dá tempo

O presidente Jair Bolsonaro tem um projeto de poder muito perigoso. Ele, que cultiva desde o início de sua carreira os grupos militares, e sempre foi representante corporativo deles, como tenho debatido aqui nos últimos dias, tem marcado presença em várias formaturas, não apenas das três Armas - Exército, Marinha e da Aeronáutica -, mas também das polícias Militar, Federal, e Rodoviária Federal.

Dois projetos de lei que estão na Câmara, de autoria de deputados bolsonaristas, revelados pelo jornal Estado de S. Paulo, restringem o poder dos governadores sobre braços armados do estado, com mudanças na estrutura das polícias Civil e Militar, certamente saíram dessa tentativa de Bolsonaro de cooptar as Forças Armadas e as forças policiais auxiliares, que fazem parte do sistema de defesa nacional, mas não têm nenhum tipo de autonomia funcional, que sempre quiseram. Ainda dá tempo de pará-lo. 

Transformar a PM numa polícia independente, que não seja uma força auxiliar, acaba criando uma quarta força armada, o que é temerário. Já há uma preocupação muito grande com essa bolsonarização dos quartéis e da Polícia Militar, com mais de quatro mil militares em diversos escalões no governo, da ativa e da reserva, inclusive no ministério, numa tentativa de influenciar ideologicamente as forças auxiliares e as baixas patentes das Forças Armadas.

O primeiro levante de uma PM na Nova República aconteceu em 1997 em Minas, e o ex-deputado Marcus Pestana, que era secretário do governo, lembra que o Estado Maior perdeu totalmente o controle da tropa. “Como se falava na época, os coronéis começaram a obedecer ao cabo (Cabo Júlio foi o líder simbólico na época)”. Conquistaram espaços parlamentares corporativos, e nunca mais os princípios da hierarquia e disciplina foram os mesmos.

Os projetos de seus aliados criam ainda uma nova estrutura na organização das Polícias Militares, com cargos de oficiais superiores. Teríamos, pois não creio que os projetos sejam aprovados, generais de quatro, três e duas estrelas nas Polícias Militares. Vários governadores estaduais, que perderiam na prática o comando das polícias militares e civis, estão se movimentando, e o de São Paulo, João Doria reagiu: “Não há nenhuma razão que justifique, exceto a militarização desejada pelo presidente Jair Bolsonaro para intimidar governadores através de força policial militar”.

Os projetos preveem mudanças na estrutura das polícias, estabelecendo mandatos de dois anos para os comandantes-gerais da PM, dos Bombeiros e delegados-gerais de Polícia Civil, escolhidos por uma lista tríplice. O ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmou que seu ministério está acompanhando a tramitação dos projetos, e tem se reunido com representantes das categorias envolvidas e deputados federais.

As propostas de bolsonaristas são a concretização de um projeto de poder militar que sustente os avanços de Bolsonaro sobre as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. O presidente da República usa seus poderes para, de um lado, dar protagonismo aos militares em seu governo, ao mesmo tempo que cuida de seus proventos e dos projetos que mais lhes são caros, como o submarino nuclear. Os projetos de defesa nacional são importantes, mas não poderiam ser prioridades neste momento de pandemia e crise social aguda. Ao mesmo tempo que se queixa de que o país “está quebrado” e que não pode fazer nada, Bolsonaro permite o contingenciamento de verbas sociais e para o combate da COVID-19, e proíbe o bloqueio das verbas militares.

Censura descabida
 A anunciada decisão do ministério da Justiça de processar Rui Castro, e por tabela Ricardo Noblat, que transcreveu parte da crônica do primeiro, por um suposto incentivo ao suicído dos presidentes Trump e Bolsonaro, seria cômico se não fosse trágico.

Muito antes deles, Jair Bolsonaro, em campanha, convocou seus apoiadores no Acre a “fuzilar esses petralhas”, segurando um tripé simulando uma metralhadora. Ainda como deputado, Bolsonaro sugeriu que os militares na ditadura deveriam ter assassinado 30 mil brasileiros, a começar pelo ex-presidente Fernando Henrique.

 Mas, na época, havia governos democráticos no país.


Merval Pereira: A “bolsonarizacao” dos quartéis

A presença do presidente Bolsonaro em uma formatura em média por mês de militares membros das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e das polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal nos primeiros dois anos de seu governo, ressaltada em uma reportagem recente do GLOBO, corrobora um estudo do especialista Adriano de Freixo, professor do Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Inest-UFF) intitulado “Os militares e o governo Bolsonaro, entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo” das Edições Zazie, na coleção “Pequena biblioteca de ensaios”.   Nele, analisando a influência de Bolsonaro entre os militares, ele destaca que “uma variável que não deve ser ignorada nessa conjuntura é a “bolsonarização” dos estratos inferiores da corporação, mesmo que não se vislumbre no horizonte próximo a possibilidade de quebra de hierarquia militar”.

Adriano de Freixo ressalta que essa procura de um diálogo direto com os praças e oficiais subalternos, “que não por acaso constituem historicamente sua principal base eleitoral”,  é prática adotada desde o início de sua carreira política. A presença recorrente de Bolsonaro em formaturas e cerimônias militares “demonstra a disposição do presidente em cultivar o apoio desses segmentos”.  

Outro processo de “bolsonarização” que começa a se tornar motivo de preocupação, para o professor da UFF, é o das polícias militares estaduais, definidas na Constituição como forças auxiliares e reservas do Exército. “Esse fenômeno ficou explicitado na greve de policiais no Ceará, nos primeiros meses de 2020, e no tratamento diferenciado dado pela Polícia Militar a manifestantes contra e pró-governo em diversos estados”.

A possibilidade de rebeliões pontuais contra ordens de governadores da oposição começa a aparecer no horizonte, analisa Freixo, advertindo que essa posição “poderia gerar a necessidade de utilização das Forças Armadas para contê-las. Dentro do atual contexto, isso poderia se tornar um forte elemento de instabilidade, inclusive pela imprevisibilidade do comportamento do presidente e da reação das Forças Armadas em uma questão como essa”.O autor considera que “o quadro se torna mais complicado quando se leva em consideração a simbiose que existe em diversos estados da Federação entre parte das corporações policiais e forças parapoliciais, as chamadas “milícias” – que no Rio de Janeiro, por exemplo, já têm o controle efetivo de vastos territórios –, e os crescentes indícios de ligação entre elas e figuras relevantes do entorno de Jair Bolsonaro”. O professor Adriano de Freixo chama de “caixa-preta” a educação militar, definindo que “mais que locais de formação técnica e de preparação para o exercício das funções castrenses, as escolas militares são importantes espaços de socialização e transmissão dos valores institucionais aos futuros oficiais”. Esse processo se dá, diz o professor, “não somente pelas disciplinas que compõem os currículos das academias, mas também pela convivência com os professores e oficiais pertencentes a gerações anteriores, que, na prática, funcionam como responsáveis pela moldagem e consolidação da identidade institucional dos jovens cadetes”.

Nos últimos anos, o recrudescimento do conservadorismo acabou, na análise de Adriano de Freixo, por revigorar o anticomunismo no interior das Forças Armadas, “agora travestido de crítica ao “marxismo cultural e às “estratégias gramscistas” que estariam sendo implementadas pela esquerda brasileira desde o início do processo de redemocratização”.

A ampliação dos atritos entre o presidente e o vice-presidente da República, e as declarações do comandante do Exército, general Edson Pujol, de que os “militares não querem fazer parte da política, nem querem política dos quartéis”, têm sido entendidas por muitos como sinais de tensionamento da relação entre Bolsonaro e a oficialidade superior, traduzindo a insatisfação desta última com o uso político que o presidente tem feito das Forças Armadas. Mas Adriano de Freixo lembra que esses eventos também podem ser entendidos como sinais de que a “bolsonarização” dos quartéis começa a se tornar, de fato, motivo de preocupação para os oficiais-generais, pelos desdobramentos imprevisíveis desse fenômeno, que pode levar, inclusive, a cisões no interior da instituição militar.


Ricardo Noblat: Bolsonaro volta a atacar a imprensa e humilha seu filho Eduardo

“Você teve um voto. O resto foi meu”

Ao assumir a presidência da República em janeiro de 2019, a prioridade número um de Jair Bolsonaro era reeleger-se dali a quatro anos. Quanto ao resto, empurraria com a barriga.

Depois, à medida que seus três filhos zeros começaram a ser alvos de denúncias por corrupção, a reeleição passou a ser a prioridade número dois. Se não salvar os filhos, não se salvará.

É preciso, pois, desacreditar os autores das denúncias, especialmente a imprensa, que as divulga e pressiona os demais poderes a investigá-las a fundo.

A mais recente denúncia bateu diretamente à porta do gabinete presidencial no terceiro andar do Palácio do Planalto, e isso explica a escalada recente dos ataques de Bolsonaro à imprensa.

Ele reuniu-se com advogados do seu filho Flávio, acusado de embolsar dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio, com o propósito de ajudá-los no que fosse possível.

Estavam presentes o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu subordinado, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Dois relatórios, mais tarde, enviados por Ramagem aos advogados, são a prova de que a Abin deu o caminho das pedras para que eles fossem bem-sucedidos em sua tarefa.

A descoberta de que isso aconteceu, pode configurar crime de responsabilidade praticado por Bolsonaro e, no limite, até custar-lhe o mandato, deixou o presidente da República apoplético.

Sua entrevista, ontem, ao canal do filho Eduardo no Youtube não contém nada de novo, mas é uma demonstração de como ele está fortemente incomodado com o episódio.

“Me chama de corrupto, vamos lá”, desafiou Bolsonaro referindo-se à imprensa. “Me chama de corrupto, porra. Não tem mais grana mole para vocês. Acabou a treta. O fim de vocês está próximo”.

“Imprensa canalha, não vale nada”, insistiu. “Não leiam jornais. É tudo um lixo. Vão para a internet. […] Ai do ministro se eu souber que [no seu local de trabalho] tem jornais”.

Como seria impossível ocupar mais de uma hora de entrevista somente falando mal da imprensa, Bolsonaro revisitou seu estoque de temas preferidos. Ao fazê-lo, repetiu as velharias de sempre.

Sobre a facada que levou em Juiz de Fora: o caso foi mal apurado porque Sérgio Moro era o ministro da Justiça. Líderes políticos da esquerda queriam matá-lo, e ainda querem.

Sobre o voto eletrônico: não confia nele e, por seus cálculos, mais de 70% dos brasileiros também não. Perguntou: “Em que país do mundo esse sistema foi adotado?”

Sobre tortura no período da ditadura militar de 64: “[Os que reclamam] não eram presos políticos, eram terroristas. E eram tratados [nos porões do regime] com toda a dignidade”.

Sobre as eleições municipais: “A imprensa falou que eu perdi. Quantos prefeitos eu tinha? Zero. Então vou dar uma de Dilma aqui: Eu não ganhei nem perdi”.

E sobre a pandemia: “Ela está chegando ao fim. A pressa da vacina não se justifica. Vão inocular algo em você. O seu sistema imunológico pode reagir ainda de forma imprevista”.

Por último, em meio a risadas, humilhou o filho ao trocar de posição com ele. Travou-se então o seguinte diálogo:

– Vamos ver se você está ficando inteligente. Você teve quantos votos nas últimas eleições? – perguntou Bolsonaro.

– Eu fui eleito [deputado federal por São Paulo] com 1.843.735 votos em 2018 – informou Eduardo.

– Não aprendeu nada. Você teve um voto. O resto foi meu.

Enquanto o pai gargalhava, o filho apenas retrucou:

– Você não acha que foi o meu trabalho?

Bolsonaro não respondeu.


‘Liderar as Forças Armadas é imperativo para o país’, diz Raul Jungmann

Em artigo publicado na revista da FAP de dezembro, ex-ministro critica falta de protagonismo do Congresso

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann afirma que dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil é um imperativo para o país como nação soberana. “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as Forças Armadas, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites é também uma questão democrática, incontornável e premente”, diz, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, Jungmann lembra que, em novembro de 2016, o então presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que, à época, tinha coordenado na qualidade de ministro da Defesa.

Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o então presidente do Senado e do Congresso, senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção. Considerando que seu governo estava praticamente findo, Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos. O presidente Jair Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, a Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior, e não os sancionou.

“Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados. Nós fomos o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica”, afirma Jungmann. “Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal”, acrescenta, na revista Política Democrática Online de dezembro.

Ao negociar as emendas à proposta original com o ministro Nélson Jobim, imaginava-se o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. “Em vão”, diz o ex-ministro.

Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública, de acordo com o autor do artigo. “Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota”, acentua.

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‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Em entrevista à revista da FAP de dezembro, professor da USP afirma que ‘bolsonarismo não vai se desmilinguir’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) José Álvaro Moisés diz que o projeto da frente democrática deve ser mantido, já que, segundo ele, a premissa é que “o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria”. “Isso é uma presunção em relação a um governo que não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment”, afirma, em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, publicada na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Moisés explica que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria porque, segundo ele, seria como se os bolsonaristas abrissem mão de governar. “Isso não vai acontecer”, afirma.

O professor da Unesp avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ele é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil.

Moisés publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995),"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Na avaliação do entrevistado, o grande desafio da oposição para superar o bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

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RPD || José Álvaro Moisés: 'O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum'

As eleições municipais de 2020 passaram o recado que vai na direção oposta da polarização ocorrida em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro: Guinada ao Centro e criação de frente democrática progressista como itens necessários para vencer o Bolsonarismo em 2022

Por Caetano Araújo e Vinicius Müller

O professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés, avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do País, e possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Entrevistado especial desta 26a edição da Revista Política Democrática Online, o cientista político é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. Publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995) ,"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Para José Álvaro Moisés, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do cientista político José Álvaro Moisés à Revista Política Democrática Online:

Revista Política Democrática (RPD): Os resultados das eleições municipais apontam para uma transferência da liderança e das bandeiras carregadas historicamente por Lula e pelo PT aos candidatos de uma 'nova esquerda', como Boulos e Manuela D´Ávila?  

José Álvaro Moisés (JAM): Muito obrigado pela questão que aborda um tema de grande importância. Certamente, é uma perspectiva que se abre para os próximos anos e, nesse sentido, entender esse processo é muito importante para nos. Não tenho certeza se a liderança do Boulos tem solidez suficiente para substituir o que foi a do Lula. Isso se deveria, se ocorresse, ao envolvimento do PT e do próprio Lula com corrupção, ainda que saibamos pouco sobre como foi isso? Quando foi? Quais as provas, etc. Penso que parte do eleitorado brasileiro já deu uma resposta a essa questão. Por isso, emergiram Boulos e algumas outras lideranças jovens de esquerda, com algum conteúdo novo. Mas não acho ainda inteiramente claro qual é o rumo que vão tomar.  

A pergunta projeta para o futuro uma possibilidade que não sei se já temos suficientes elementos para responder com clareza. Será que é sólido? Penso que essa possibilidade está vinculada ao fato de que eleitores jovens e uma parte da classe média tem, digamos assim, uma atitude de rejeição em relação às políticas do PT, ao seu hegemonismo, à questão da corrupção e a todas as questões que ficaram sem resposta em tempos recentes, e que podem ter encontrado na liderança de Boulos em São Paulo, Manuela D'Ávila em Porto Alegre e, no caso de Recife, em nomes como de João Campos e da Marília Arraes, uma possibilidade alternativa em relação a esquerda representada pelo PT.  

RPD: Após a polarização que se consolidou no país a partir de 2013, parece haver um reajuste do processo eleitoral e político que mostra certo esgotamento desta polarização, algo como um refluxo. Haveria, assim, uma crise dupla, tanto do bolsonarismo quanto da 'esquerda'?  

JAM: Primeiro, acho sim que o bolsonarismo entrou em crise. O eleitor passou um recado que vai na direção oposta à polarização de 2018. Não quero entrar no mérito do impeachment da Dilma, mas creio que a polarização começou ali e que, de alguma maneira, se consolidou no resultado de 2018 com a ideia de que o Bolsonaro ocuparia um vazio que tinha sido deixado não só pela esquerda, mas também por todos os líderes democráticos. Vejo, assim, a adesão à candidatura de Boulos e à dos outros jovens líderes de esquerda que mencionei mais como resposta à ansiedade e ao espaço que uma parte da classe média e segmentos esclarecidos abriram em relação ao que aconteceu com o PT.  Contudo, o processo eleitoral de 2020 não fez um debate sobre a natureza dessa nova esquerda; muitos aderiram a ela porque foi uma alternativa que pareceu se contrapor ao que está aí, ao bolsonarismo.  

"O bolsonarismo entrou em uma crise que tem a ver com o fato de que ele não tem conteúdo nenhum, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, de uma mentalidade autoritária, de uma visão exagerada em relação à questão da segurança"

À luz dessas considerações, não consigo responder com segurança à pergunta. Quer dizer, não vejo com clareza o que esta nova esquerda vai projetar, ou mesmo até onde é possível falar de uma nova esquerda. Creio, no entanto, que ela não vai encarnar o contraponto que permitiria que o bolsonarismo se reconstituísse. Acho que o bolsonarismo entrou em crise porque não tem conteúdo, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, da tortura e de expressão de uma mentalidade autoritária, de uma visão radicalizada em relação à questão da segurança e tudo o mais que sabemos.

RPD: Neste novo arranjo, mais ao centro e produzido por um certo refluxo, quais seriam os principais temas e atores políticos que se destacam?  

JAM: O bolsonarismo refluiu da posição de extrema direita para o centro porque teve muitas derrotas no Congresso e por causa da crescente rejeição de parte dos eleitores. Está tentando migrar para um centro-direita para se salvar.  

Quanto as forças democráticas, também fomos, em certo sentido, mais para o centro. Os resultados da eleição apontaram nessa direção pelo lado das forças democráticas e progressistas. Agora, no caso do bolsonarismo - que está tentando ir para o centro - o problema consiste em saber onde ele vai encontrar um possível ponto de solidez ou de consolidação no conjunto dos partidos. A candidatura mais clara quanto a isso, como sabemos, são os partidos do Centrão, especialmente o Progressistas, o Republicanos e talvez o PSD.  

Mas o grande risco que vejo nesse quadro é o de o setor democrático e progressista, incluindo a esquerda democrática, não perceber inteiramente a natureza desse jogo. Não podemos cometer o equívoco de eventualmente deixar que o DEM seja atraído para o lado de Bolsonaro, o DEM e algumas outras forças, como o PSD de Gilberto Kassab - um caso mais difícil -, mas no caso do DEM, a possibilidade de se reposicionar em torno do bolsonarismo seria péssimo para o objetivo de levar o governo a uma derrota em 2022.  

Assim, não tenho dúvidas quanto ao refluxo do bolsonarismo na direção de um centro-direita. E, por isso, agir para trazer os liberais para o diálogo com o campo da perspectiva progressista é parte do objetivo de derrotar o bolsonarismo, um desafio seríssimo para os democratas.  

Nesse sentido, temo que a nova esquerda não seja capaz de perceber a natureza desse desafio e tente, a reboque de uma alegada solidez ao se supor capaz de substituir a figura de Lula, constituir uma alternativa para disputar diretamente com Bolsonaro, o que não acredito que teria sucesso. Creio que a média do eleitor brasileiro não aceitaria uma solução desse tipo.  

"O grande desafio que eu vejo é se o setor democrático progressista, a esquerda democrática, de alguma maneira não perceber, nós não podemos cair no risco de jogar eventualmente o DEM para o lado do Bolsonaro"

O ideal seria sermos capazes de compor uma frente democrática de setores liberais - a centro-direita liberal - com a centro-esquerda e, assim, construir uma solida alternativa capaz de enfrentar o bolsonarismo com sucesso. O bolsonarismo buscará sua solidez em torno do Centrão, vale dizer, do PP, Republicanos e talvez o PSD, mas seria bom que não fosse ajudado a ir além disso.  

RPD: Qual espaço para partidos tradicionalmente do centro, principalmente da centro-esquerda -  como o PSDB - neste novo centro político que parece se consolidar a partir de uma inclinação mais à centro-direita?  

JAM: Acho que o papel do PSDB é exatamente o de construir essa alternativa. Quer dizer, alguém na centro-esquerda, que esteja fora da centro-direita, tem, de alguma maneira, de fazer isso, levantar a bandeira de que é importante trazer o DEM para esse campo. Aliás, como disse o Rodrigo Maia, o centro não é um ponto único, o centro são vários pontos, e se nós quisermos trabalhar esse campo teremos de buscar o que você chamou de um equilíbrio capaz de unificar esses pontos do centro. Esse é o grande desafio que está posto tanto para uma parte da esquerda democrática, como para o PSDB. O papel da esquerda progressista, nesse sentido, é levantar o tema da frente para enfrentar Bolsonaro, insistir no tema e chamar para o diálogo as outras forças, e mostrar o quanto isso é fundamental para vencermos o bolsonarismo. A meu ver, esse é o caminho que nós deveríamos propugnar para que a esquerda democrática e progressista desempenhe sua missão nessa conjuntura.  

RPD: A construção de uma ampla frente democrática contra Bolsonaro continua na ordem do dia para as forças de oposição?  

JAM: Minha premissa é que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria. Isso é uma presunção em relação a um governo que, em realidade, não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment. Mas se desmilinguir por conta própria seria como se eles abrissem mão de governar. Isso não vai acontecer. E é por isso que o projeto da frente democrática tem de ser mantido.  

Algo que me surpreendeu nas eleições municipais deste ano foi o recado passado pelos eleitores. Rejeitaram as polarizações extremas e as perspectivas que preconizavam raciocinarmos politicamente com dois extremos. Além disso, também chamaram a atenção para a existência de um espaço de diálogo alternativo situado no centro. Deste ponto de vista, recolocaram o tema da frente na ordem do dia, como o revelam, de um lado, a sinalização de Ciro Gomes em relação ao DEM e, de outro, as conversações de Luciano Huck com algumas lideranças, inclusive com Sergio Moro. Um dos desafios dessas iniciativas é não qualificá-las de partida como sendo de esquerda ou de seu contrário, ainda que em política muito dependa da identidade dos atores que conduzirão as bandeiras.  

"Um dos aspectos do desafio de se constituir ou não essa frente é se a esquerda, inclusive a nova esquerda, insistir na ideia de que pode necessariamente sair sozinha"

Afora isso, a frente não poderá ser estritamente eleitoral. Terá de ser suficientemente abrangente para estabelecer as pontes que permitam construir uma alternativa de sentido positivo em torno de temas que os eleitores priorizam. Um deles é o enfrentamento da corrupção, o compromisso dos partidos com o seu combate. Outro é o enfrentamento das desigualdades, ou seja, quais desigualdades e como enfrenta-las? Será preciso buscar a maneira de mobilizar e interpelar o eleitor nessa direção. Desse ponto de vista, quem pode desempenhar esse papel são as forças democráticas progressistas. Esse é o desafio que teremos de enfrentar, e é preciso ter clareza de que esse é o problema fundamental da constituição da tão mencionada frente democrática.  

RPD:  Qual o papel do PSDB como operador da frente democrática, considerando seu movimento recente em direção à direita do espectro político?  

JAM: Penso que a coalisão que se formou em torno da candidatura do Bruno Covas indica um caminho e teve sucesso porque apontou na direção de uma aliança possível, em face de um esforço de alguns dos partidos de se reformularem, não tanto no sentido de uma recuperação de suas práticas tradicionais, mas no sentido de uma reacomodação em relação ao sentimento critico dos eleitores, ainda que um ponto débil do processo tenha sido a escolha do vice. Mas Bruno fez uma campanha clara e a coalisão o projetou como uma nova liderança no PSDB.  

Contudo, para se entender o papel que esse partido pode jogar em um plano mais amplo temos de pensar que há um problema aí. Qual é o problema? É que, por uma parte, o PSDB está sob algum efeito de hegemonia do governador João Dória, que não se caracteriza propriamente como uma opção progressista, está mais no campo de uma direita um pouco mais civilizada que Bolsonaro, mas que não tem preocupação, por exemplo, de manter a identidade social democrata do PSDB. Ao passo que, de seu lado, Bruno fez questão, na campanha, não só de fazer referência a lideranças históricas do PSDB, mas também a atores que precisamente representam esse conteúdo social-democrático. Não sabemos se isso levara a algum conflito, e tampouco se prosperarao as iniciativas de diálogo com o DEM com vistas a formação de uma frente democrática de conteúdo progressista. Nem mesmo sabemos, enfim, se o PSDB vai organizar-se para enfrentar Bolsonaro. Ainda é cedo para termos uma resposta em um sentido ou outro. Mas o importante é que as possibilidades estão abertas, quer dizer, inclusive a possibilidade de se constituir uma alternativa que vá na direção de uma aliança do PSDB com o DEM, incluindo, quem sabe, o MDB, como se fez no passado. A pergunta, portanto, é se em 2022 vai-se repetir o cenário de 2018, com candidaturas isoladas, ou se vai -se trabalhar na perspectiva de uma nova coalisão. Mas ainda não temos elementos suficientes para responder com segurança essas questões.    

"Ainda não vi, na personalidade destas lideranças que estão aí, nenhum elemento capaz de criar esse consenso que nós tanto necessitamos para enfrentar o bolsonarismo"

RPD: Até que ponto é possível supor que o debate ancorado em temas haverá de se sobrepor à tradicional “fulanização” das disputas eleitorais?  

JAM: Eu não sei se estamos, digamos assim, colocando mais ênfase nos temas fundamentais e menos nos personagens, ou na chamada “fulanização”. Não sei se temos suficiente material para dar uma resposta certa sobre isso. Acho que ambos aspectos estão se misturando nesse momento. O grande tema segue sendo o da formação da frente capaz de derrotar Bolsonaro. Nesse sentido, a temática da fulanização indaga, de alguma maneira, se temos um fulano - ou um nome ou alguns nomes - que unifique as forças democráticas, mas não vejo isso colocado. Desse ponto de vista, um dos desafios mais importantes que teremos será selecionar e definir quem poderá oferecer a alternativa capaz de construir a frente democrática com as características que precisamos que ela tenha, ou seja, de enfrentamento de Bolsonaro e seu conteúdo e, ao mesmo tempo, de enfrentamento da questão central dos progressistas, relativa a questão das desigualdades abismais que caracterizam a sociedade brasileira.

No momento, ainda não temos os nomes que se encaixam nesse projeto. O que indica, portanto, que parte do nosso desafio, além de construir a frente, além de enfrentar os divisionismos tradicionais de nossas forças e as tentativas de hegemonismo, implica em definir os critérios necessários para permitir indicar quem será capaz de mobilizar a sociedade e oferecer suficiente credibilidade para que os eleitores digam: "Nesse contexto, com essa experiência, com as características da coalisão formada, podemos depositar confiança nessa pessoa". Mas nenhum movimento político cria uma liderança em um curto espaço de tempo. Em certo sentido, esse processo terá de se dar com as lideranças que estão se apresentando nessa fase em torno dos nossos desafios, mas ainda não está claro quem construirá o consenso necessário para conduzir a empreitada de enfrentar o bolsonarismo. É tarefa das forças democráticas encontrar essa pessoa.    


RPD || Editorial: Horizonte sombrio

Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional. Colheu os frutos do programa de transferência de renda decidido no âmbito do Congresso Nacional, na forma de elevação do percentual de aprovação junto aos eleitores. Finalmente, operou com sucesso a mudança radical de uma estratégia de confronto das instituições, que teria o golpe como único corolário possível, para o funcionamento novo, na forma de “governo parlamentar”, com apoio dos partidos classificads como “centrão”. 

Ao fim do ano, contudo, dois contratempos relevantes para os projetos governamentais emergiram. Em primeiro lugar, a derrota de Trump nas eleições americanas, retirando de cena o único contraponto possível aos retrocessos procurados deliberadamente nas relações com a China e a União Europeia. Em segundo lugar, a derrota contundente da grande maioria dos candidatos que obtiveram o apoio presidencial explícito nas eleições municipais de novembro. Aparentemente, em muitos casos o apoio declarado do Presidente teria funcionado como “beijo da morte”, afundando candidaturas até promissoras até aquele momento. 

Ambos os revezes acontecem às vésperas da passagem para um ano que promete elevar os problemas do país e do governo a outro patamar. No que respeita ao enfrentamento da pandemia, tudo indica que a incapacidade do governo federal para obter vacinas em quantidade suficiente e planejar sua aplicação ordenada no conjunto da população será desvelada. A situação que se avizinha é a de comparação cotidiana, completamente desfavorável para nós, com países que conseguirão vacinar a tempo sua população.  

Na perspectiva econômica, por sua vez, a situação inspira cuidados. O fracasso em conter a pandemia impede uma retomada consistente. Por outro lado, não é viável manter o auxílio no montante atual e a comparação nesse caso acontecerá entre o cidadão de 2020 que recebia um tanto e o de 2021, que passará a receber uma fração desse montante. 

Comparações desfavoráveis geralmente são fonte de insatisfação, com potencial para evoluir para rejeição e fúria no plano da política. Num quadro com essas características, índices de popularidade são os primeiros a desaparecer e, na sua ausência, o debate sobre o abreviamento do mandato presidencial pode tomar assento na agenda da política. À luz da experiência recente, esse é o cenário mais provável, num cenário de aprofundamento das diversas crises. No entanto, na perspectiva da experiência mais antiga, que anima setores relevantes do governo, a situação de tempestade poderia, paradoxalmente, reunificar os defensores da ordem a qualquer custo em torno do fortalecimento político do Presidente da República.