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El País: Eleições põem à prova o potencial das alianças anti-Bolsonaro

Pleito vai vislumbrar o potencial de frentes amplas criadas em oposição ao presidente em capitais como Rio de Janeiro e Fortaleza e se a esquerda intensifica o avanço apontado nas pesquisas em SP

Naiara Gallarraga Cortázar, El País

As prefeituras de São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores cidades do Brasil, são o prato principal do segundo turno das eleições municipais que 60 cidades realizam no domingo. O primeiro turno, no dia 15, foi um revés ao presidente Jair Bolsonaro e uma vitória da direita tradicional. Ainda que sejam eleições decididas principalmente por dinâmicas locais, também permitirão vislumbrar o potencial das alianças anti-Bolsonaro ― os prognósticos para seus candidatos são ruins ― e se a esquerda intensifica o avanço que lhe dão as pesquisas em São Paulo até surpreender e ganhar a prefeitura da cidade mais rica do país.

Mesmo com pouca repercussão midiática, a violência golpeou com força a campanha. Por volta de 200 candidatos foram assassinados, feridos e vítimas de tentativa de assassinato, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.

Para Bolsonaro, o tiro saiu pela culatra em sua estratégia de desprezar a gravidade do coronavírus, que matou 172.000 brasileiros, e culpar governadores e prefeitos pelos estragos econômicos da pandemia. O presidente parecia acreditar que os milhões de dinheiro público entregues aos brasileiros mais pobres bastariam para que os candidatos indicados por ele triunfassem. Não foi assim no primeiro turno e, de acordo com as pesquisas, também não será no segundo. Nesta semana, coincidindo com um aumento de hospitalizações por covid-19, chegou a acusar a imprensa de inventar a declaração que se transformou na síntese de sua gestão da pandemia, a de que o coronavírus é “como uma gripezinha”, palavras que pronunciou em um discurso ao país em março.

Nestas eleições “vemos um esfriamento da extrema-direita, um fortalecimento de uma direita tradicional, uma maior pluralidade na esquerda”, resume a cientista política Flavia Bozza Martins, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ela acrescenta que em plena crise sanitária, o eleitorado apostou em políticos com experiência de gestão e castigou as candidaturas antissistema e de outsiders.

O ultradireitista apoiou no primeiro turno das eleições municipais um punhado de candidatos divididos por diversas siglas porque ele há tempos está sem partido. Dois foram ao segundo turno. Estes dois apadrinhados são sua opção para salvar a honra nas eleições. Sua principal aposta é o pastor evangélico Marcelo Crivella, que disputa a reeleição à prefeitura do Rio de Janeiro, feudo político do presidente e a segunda maior cidade do Brasil.

Mas o desempenho ruim de Crivella no primeiro turno se somou a uma frente ampla de quase todos os outros contra ele, que acabou por afundá-lo nas pesquisas. Crivella tem por volta de 32% das intenções de voto contra 68% de Eduardo Paes, de acordo com o Datafolha deste sábado. Quase todo o arco político, da direita tradicional à extrema-esquerda, pediu voto a Paes para derrotar um prefeito que encarna o ultraconservadorismo e gera grande repúdio.

O apoio a Paes é entusiasta em alguns casos. Outros votarão nele tapando o nariz. Por que o que foi o prefeito do Rio nos anos da Copa e das Olimpíadas é cercado por suspeitas de corrupção, ainda que nunca tenha sido formalmente acusado. Apaixonado pelo Carnaval, seus partidários destacam as melhorias no transporte como o grande feito de sua gestão (2009-2016).

Também em Fortaleza foi criada uma grande frente contra o candidato apoiado pelo presidente, o policial militar Wagner Souza, agora empenhado em se desvincular de Bolsonaro. Lá a aliança foi forjada ao redor do homem do clã político que manda na região, a família do esquerdista Ciro Gomes. Tem 20 pontos de vantagem em relação ao capitão Wagner.

A batalha mais encarniçada é a de São Paulo, onde Bolsonaro não conseguiu colocar seu candidato no segundo turno. O duelo é entre o prefeito, Bruno Covas, de centro-direita, e o esquerdista Guilherme Boulos, um ativista e professor que surpreendeu ao passar ao segundo turno e que desde então foi subindo até se colocar a 10 pontos de Covas. Como se não faltasse intriga à disputa, Boulos testou positivo para coronavírus na sexta-feira, o que causou a suspensão do último debate e sua entrada em quarentena. Boulos deu um impulso formidável ao pequeno Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), uma cisão nascida do flanco esquerdo do Partido dos Trabalhadores.

“Não quero gritar gol antes, mas acho que estamos em um período de paixões menos desatadas, onde aumenta a racionalidade, a escuta, o espaço às propostas de Governo, ao debate, isso que toda democracia precisa”, diz a cientista política Martins. “Isso irá se manter para (as eleições presidenciais de) 2022? Não se sabe”.

A melhor aposta do PT para salvar sua honra, após os resultados ruins no primeiro turno, está em Recife. É também a disputa eleitoral que atrai mais curiosidade porque coloca dois primos frente a frente, herdeiros de um clã político. A petista Marília Arraes e João Campos estão em empate técnico. Ambos têm 50% dos votos válidos, segundo pesquisa Datafolha deste sábado.


Maria Cristina Fernandes: A contida expressão eleitoral do antirracismo

A intolerância, como o vírus, ainda paira no ar

As primeiras pesquisas depois da morte de João Alberto Freitas no supermercado Carrefour em Porto Alegre não confirmam a contaminação da disputa municipal pela brutalidade do episódio.

O precedente é o da invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), por tropas do Exército e da Polícia Militar. O episódio produziu três mortos e dezenas de feridos. Seis dias depois, elegeu-se uma bancada de prefeitos sindicalistas - do ex-metalúrgico de Volta Redonda, Juarez Antunes, a Luiza Erundina (São Paulo), passando por Olívio Dutra (Porto Alegre), Chico Ferramenta (Ipatinga) e Jacó Bittar (Campinas).

Desta vez, são escassos os sinais de que o fenômeno se repita. O primeiro Ibope do segundo turno em Porto Alegre, que colheu entrevistas ao longo do fim de semana depois do assassinato, mostrou que o líder, Sebastião Melo (MDB), distanciou-se ainda mais da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela d’Ávila.

Melo terminou o primeiro turno dois pontos percentuais à frente de Manuela, que havia liderado durante toda a campanha. Agora a distância aumentou para sete. O movimento sugere não apenas a continuidade da curva com a qual Melo terminou o primeiro turno, como a tradicional migração de votos do eleitorado de candidatos mais afinados ideologicamente com os finalistas. O crescimento de Manuela pouco supera a soma dos votos de Juliana Brizola (PDT) e Fernanda Melchionna (Psol).

Da mesma maneira, Melo cresceu com a adesão dos eleitores de todos os demais candidatos, do centro à direita, desde o atual prefeito Nelson Marchezan (PSDB) até mesmo o candidato do PSD, Valter Nagelstein, cuja declaração sobre a nova composição da Câmara (“muitos deles jovens, negros, sem nenhuma tradição política e com pouquíssima qualificação”) não foi rechaçada por Melo.

Foi a primeira vez que Porto Alegre elegeu vereadores negros (dois do Psol, dois do PCdoB e um do PT). Os dois que atualmente exercem mandato foram eleitos como suplentes. O Ibope, no entanto, indica que os dividendos eleitorais do antirracismo não invadiram o segundo turno.

Levantamento da Bites indica que nos cinco dias que se seguiram à morte de João Alberto Freitas, os 36 candidatos que disputam o segundo turno em capitais publicaram nas redes (Twitter, Facebook e Instagram) 5.213 “posts”. Desses, apenas 129 mencionaram racismo, Carrefour, João Alberto ou “vidas negras”. Quem mais tocou no assunto foi Manuela, com 45 “posts”, seguida de Guilherme Boulos, em São Paulo, com 30. Sebastião Melo publicou quatro e Bruno Covas, sete.

Ambos os finalistas de Porto Alegre mencionaram o episódio na sua propaganda eleitoral gratuita. Manuela chegou a ir para a passeata do dia da Consciência Negra, mas deixou o evento antes do confronto com policiais. Três dias depois, nova manifestação, em frente a uma outra unidade do Carrefour, também foi reprimida pela polícia. A candidata não estava lá, mas entre os que portavam adesivos nas camisetas, só se viam os de Manuela.

Para os jovens que lá estavam, como o vereador eleito pelo Psol, Matheus Gomes, que nem era nascido no massacre de Volta Redonda, a referência são as manifestações que pipocaram nos EUA e no mundo depois da morte do vigilante negro George Floyd em Minneapolis.

Se Manuela e Boulos foram os candidatos que mais indignação demonstraram, ambos foram cautelosos em demarcar distância dos conflitos com a polícia. Dos 97 “posts” sobre os protestos na unidade do Carrefour nos Jardins, bairro da zona sul de São Paulo, nenhum deles, na métrica da Bites, foi de autoria do candidato do Psol. O racismo, apesar da indignação nacional, não moveu o debate eleitoral. O total de “posts” dos 36 candidatos nas capitais nos cinco dias que se seguiram à morte geraram mais de 11 milhões de interações, sendo que apenas 2,5% delas trataram de racismo.

Marqueteiro da campanha de Boulos e daquela que elegeu Erundina em 1988, Chico Malfitani não usou o episódio 32 anos atrás nem pretende fazê-lo hoje. A única menção feita três décadas atrás foi nos segundos finais do último dia da propaganda eleitoral. O programa foi embalado por um tom de comemoração pela trajetória de Erundina na campanha. Ao final, ela dizia que a alegria nem sempre é completa e a dela havia sido abalada pela morte dos operários.

Se não explorou naquele momento em que ainda se tinha ódio e nojo da ditadura tampouco tem motivos para explorar hoje. Se, por um lado, Bruno Covas não é Paulo Maluf, o país hoje, diz, é mais reacionário: “O Brasil de 32 anos atrás estava ansioso por democracia. Agora tinha muita gente olhando o linchamento sem fazer nada”.

O marqueteiro de Boulos não atribui sua alavancagem entre homens negros com renda de até dois salários mínimos ao episódio, mas ao fato de o candidato hoje encarnar esse sentimento difuso de revolta que, dois anos atrás, beneficiou Jair Bolsonaro.

A canalização dessa revolta é pesada e medida porque o mote da campanha desde o início, na opinião de outra veterana em eleições, a diretora do Ibope, Márcia Cavallari, é a segurança. Aquela que indique ser possível sair da hecatombe que se abateu sobre o eleitor com a pandemia.

Em novembro de 2018, com a eleição de Bolsonaro ainda fresquinha, Márcia colocou uma pesquisa na rua para tentar identificar o perfil do eleitor. A fatia daqueles que se identificavam com a direita superava a soma dos eleitores de centro e de esquerda. Agora esta soma ultrapassa, com folga, os que se dizem de direita. Não porque a esquerda tenha crescido, mas graças ao centro, que se encorpou.

O racismo não é de esquerda, de centro ou de direita. É odiento. Mas este rechaço parece ter uma contida tradução eleitoral porque não é contra um candidato ou outro que se expressa, nem mesmo contra um presidente que o ignora, mas contra a intolerância que ainda paira no ar, como o vírus.

São tão grandes as incertezas da conjuntura que todos parecem movidos por um pacto de sobrevivência, guiado pela moderação. Há exceções, como a campanha do prefeito-bispo, no Rio, ou a lamentável disputa que sacode as tumbas ancestrais dos primos-candidatos no Recife. A batalha contra os fantasmas despertados em 2018 ainda demora.


Bruno Boghossian: Diplomacia da extrema direita aproxima o país de prejuízos reais

Diplomacia da extrema direita aproxima o país de prejuízos reais

A diplomacia brasileira conseguiu cometer uma barbeiragem dupla. Nas últimas semanas, o governo desprezou o próximo presidente dos EUA e enviou sinais hostis para a China. Amarrado a Donald Trump e às bandeiras da direita radical, o país pode sofrer prejuízos concretos na relação com seus dois principais parceiros comerciais.

Na terça (24), a embaixada chinesa ameaçou o Brasil com “consequências negativas” depois que Eduardo Bolsonaro publicou uma mensagem que ligava a tecnologia de 5G do país asiático com atos de espionagem.

“Essa talvez seja a mais enfática advertência para os danos que Eduardo e seus cúmplices podem causar às relações com a China”, diz Roberto Abdenur, que foi embaixador brasileiro em Pequim e Washington. Para ele, o silêncio de Jair Bolsonaro sobre a declaração do filho “endossa essa barbaridade”.

O diplomata vê uma escalada nas manifestações do governo chinês, com uma ameaça real de retaliação nos investimentos e no comércio. “O Brasil se ilude ao achar que teremos eternamente a posição privilegiada de grandes exportadores de soja, carne, minério de ferro e açúcar”, diz.

Ainda que existam questionamentos sobre a segurança da tecnologia chinesa de 5G, o governo brasileiro usa uma retórica infantil para satisfazer sua base ideológica. Abdenur afirma que o país enfrentará tempos difíceis se não souber manter uma equidistância entre China e EUA.

O desafio pode ser ainda maior porque Bolsonaro escolheu “uma posição de subserviência” em relação a Trump, segundo Abdenur –o que criou uma política externa baseada em “alucinações, fantasias e teorias conspiratórias”.

Para o ex-embaixador em Pequim e Washington, a atuação de Eduardo e do ministro Ernesto Araújo na diplomacia funciona como elo entre a extrema direita americana e a extrema direita brasileira, “que é uma sucursal da extrema direita americana”. “A não ser que haja uma guinada nessa postura, o que eu não acredito, nós vamos ter problemas”, avalia.


Míriam Leitão: Truque da negação mantém o racismo

A estratégia mais velha do racismo brasileiro sempre foi negar a própria existência. Fica mais difícil combater um inimigo que se camufla. Por isso, as atitudes do presidente e do vice-presidente do Brasil na morte de João Alberto são tão lesivas, porque elas fortalecem a maneira como o racismo sempre prevaleceu no país. O caso revela também um defeito do mundo corporativo que é a inclusão em seus índices de qualidade, de sustentabilidade e diversidade, de empresas sem qualquer compromisso com os valores que aqueles indicadores representam. Engana-se assim o distinto público.

O Carrefour só agora foi expulso da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e, apesar de não fazer parte do índice de sustentabilidade da B3, estava em outro indicador internacional, em parceria com a bolsa americana S&P, o Brazil ESG Index. Agora, terá a participação revista. A pergunta é o que a rede de supermercados, que já tem tantos antecedentes, fazia nesses indicadores. A B3 tirou a Vale do índice de sustentabilidade apenas depois do desastre de Brumadinho. Esses selos de qualidade acabam servindo para enganar.

Os indicadores corporativos atraem investidores e consumidores. O problema é a mistura entre empresas realmente comprometidas com o enfrentamento das desigualdades sociais, raciais, e com a defesa do meio ambiente, com empresas que usam esses índices e iniciativas apenas como maquiagem.

A desculpa do Carrefour de que o crime foi praticado por uma terceirizada não a exime. Toda empresa faz exigências na contratação de seus fornecedores e é responsável por eles já que a atuação se dá no ambiente de trabalho. Até por uma preocupação reputacional as empresas teriam que impor código de conduta às empresas fornecedoras. O que se viu naquela cena revoltante foi um conluio entre o supermercado e a firma terceirizada para o uso da violência contra um cliente. Nada há que diminua a culpa do Carrefour e tudo isso coloca em dúvida os critérios dos indicadores de responsabilidade corporativa. Existem para informar ou para enganar?

Quanto à dupla Bolsonaro e Mourão, ninguém ficou surpreso com essa reação, porque essa é a estratégia mais usada para a perpetuação do racismo. No governo militar chegou-se ao absurdo da eliminação da pergunta cor e raça no questionário do Censo de 1970, deixando uma cicatriz nas estatísticas. A invisibilidade do problema que atravessa a sociedade brasileira é a forma de dar sobrevida a ele.

As declarações de Bolsonaro e Mourão, mesmo previsíveis, não deixam de ser revoltantes. Elas agridem os negros e ofendem a realidade. Os pretos e pardos brasileiros têm os piores indicadores sociais, enfrentam as barreiras do preconceito onde quer que tentam entrar, são atacados por injúrias raciais que vão minando a autoconfiança e são os alvos mais frequentes da violência policial. Segundo os dados do último Atlas da Violência, um jovem negro tem 2,7 vezes mais risco de morrer vítima da violência do que um jovem branco. Antes de ser eleito, Bolsonaro referiu-se a moradores de quilombo usando uma medida de peso que se usa com animais e afirmou que nem para “reprodutor” eles serviam. Já Mourão disse que o brasileiro tem a indolência do indígena e a malandragem do negro. Mais racistas não poderiam ter sido.

São tantos, tão diários, tão frequentes e visíveis os atos de discriminação a que pretos e pardos estão expostos no Brasil que o presidente e o vice-presidente só conseguiram demonstrar que o governo vive divorciado do país. Governam de costas e agarrados a velhas desculpas esfarrapadas.

O racismo tem uma coleção de sofismas para continuar existindo no Brasil e fazendo seu trabalho de dividir os brasileiros pela cor da pele dando mais oportunidades aos brancos e mais riscos aos pretos. Um desses é que o Brasil é miscigenado e por isso não tem discriminação. É mesmo, o que torna ainda mais absurdo o preconceito. Outro é de que nos Estados Unidos houve segregação e aqui não. O Brasil criou um conjunto tão grande de barreiras que segregou os negros mesmo sem ter uma lei.

Não entender o racismo brasileiro é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que as desigualdades permaneçam. Há muito tempo tenho exposto neste espaço a minha profunda convicção de que lutar contra o racismo é tarefa de cada um de nós, brancos e negros. É uma luta em favor do Brasil e que tornará o país economicamente mais próspero, e com uma democracia mais sólida.

Não entender o racismo é não entender o Brasil, é aliar-se ao que houve de pior na nossa história para que desigualdades permaneçam.


O Estado de S. Paulo: João Doria defende uma frente em 2022 com a centro-esquerda

Governador diz não ser candidato à reeleição e afirma que cabem todas as forças nesta aliança, menos os ‘extremistas’

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

Depois de se eleger à Prefeitura, em 2016, e ao governo do Estado, em 2018, com um discurso marcado pelo antipetismo, o governador João Doria (PSDB) se reposicionou e, agora, tem pregado um diálogo “contra os extremos”, por meio de uma frente que inclua a centro-esquerda.

Potencial candidato ao Palácio do Planalto em 2022, Doria é, atualmente, desafeto político do presidente Jair Bolsonaro. “O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado”, disse o governador em entrevista ao Estadão, na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes. Apesar do embate com o presidente, Doria afirma que ainda não é o momento de fazer oposição ao governo federal.

Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Houve um reposicionamento no discurso do sr. entre 2016, 2018 e hoje? O antipetismo perdeu espaço e o sr. parece menos radical e buscando o centro...

O comportamento das pessoas muda ao longo do tempo. Não há comportamento estanque, paralisado, congelado das pessoas nem da sociedade. O comportamento evolui. Pode evoluir para melhor, para pior, mas evolui.

Candidatos passaram a campanha tentando colar Bruno Covas no sr., dada a alta rejeição ao seu nome na capital. O paulistano não perdoou sua saída da Prefeitura antes do fim do mandato?

Isso é tempo passado. Eu hoje sou governador do Estado de São Paulo, eleito. O Bruno no primeiro turno foi votado para ser reconduzido à Prefeitura de São Paulo. Em suma, o que vale na democracia é o voto.

O presidente Jair Bolsonaro antecipou o debate sobre a eleição presidencial de 2022. É hora de se discutir a construção de uma frente para disputar as eleições contra ele?

A frente não deve ser contra Bolsonaro, mas a favor do Brasil. A frente deve reunir o maior número possível de pessoas e pensamentos que estejam dispostos a proteger o Brasil e a população. (Essa frente) Comporta o pensamento liberal de centro, que é o que eu pratico, mas comporta também centro-direita, centro-esquerda, aqueles que têm um pensamento mais à esquerda e à direita. Só não caberá o pensamento dos extremistas, até porque os extremistas não querem compartilhar, discutir. Eles querem impor situações ao País, tanto na extrema-esquerda, quanto na extrema-direita. Destes extremos nós temos que ficar longe.

Com qual centro-esquerda o sr. acha ser possível dialogar?

Com todos aqueles que integram um sentimento múltiplo, compartilhador e dedicado ao País, sem interesses pessoais se sobrepondo ao interesse do País. Temos que ter a capacidade de diálogo com humildade. Saber ouvir e valorizar o contraditório. O contraditório ajuda o Brasil, e não prejudica. O que prejudica é o extremismo.

É possível incluir nas conversas Ciro Gomes e Marina Silva?

Não devemos excluir ninguém que tenha esse sentimento. Todos que têm esse sentimento são bem-vindos, até mesmo os que no passado praticaram posições mais extremistas, mas que possam ter mudado e estejam hoje no campo do diálogo.

Não é difícil que alguém abra mão de ser candidato à Presidência em 2022? Nas conversas estão Sérgio Moro, Luciano Huck...

O pressuposto para unir o maior número possível de pensamentos pelo Brasil é não haver prerrogativa pessoal.

Sérgio Moro desponta nesse grupo?

Ele deve fazer parte dessa frente. Tem história, biografia e posicionamento. Nunca declarou que era candidato. Sempre teve altivez e grandeza para defender o País, independentemente dos interesses pessoais.

O sr. evita falar que essa frente é contra Bolsonaro. Por quê?

A frente não deve ser de oposição, nem contra o Bolsonaro. Deve ser a favor do Brasil. Esse é o sentimento que une. O sentimento do contra não agrega. Tudo tem a sua hora. Agora é hora de estarmos unidos pelo Brasil, e não fazer oposição a este ou aquele governo.

O PSDB pode estar à frente desse projeto de centro em 2022?

O PSDB deve participar desse movimento, mas não é preciso liderar. Esse é um movimento de compartilhamento, não de exclusão ou de escolha, um lidera e os outros são liderados. Todos devem liderar.

Essa aliança partidária feita em São Paulo, com DEM, MDB e PSDB, pode se repetir na eleição para a presidência da Câmara?

Por que não? O sentimento desses partidos é dialogar para achar um nome e apoiá-lo.

O sr. descarta disputar a reeleição para governador?

Não se trata de ser ou não candidato a presidente, mas de manter minhas convicções. Sou contra a reeleição. Sempre defendi mandato único de cinco anos. Não critico nem condeno os que disputam reeleição, como Bruno Covas. Mas eu, por ser contra a reeleição, vou manter a minha coerência. Não vou disputar a reeleição.

Ainda é uma ideia promover uma fusão, mudar a logomarca e reformular o discurso do PSDB? Ou, diante da ascensão de Bruno Covas, que prega a volta às origens do partido, retomar a bandeira da social-democracia?

O Bruno não prega a volta às raízes, mas um PSDB moderno, digital, inovador e com uma visão social de atender aos mais pobres. Com respeito aos programas de desestatização, ao liberalismo econômico.

O sr. defende que o PSDB seja mais progressista em pautas como casamento gay, aborto, drogas, escola sem partido?

O PSDB é progressista, tanto na economia quanto no plano social. Sem preconceitos.

Arrepende-se do “Bolsodoria” na disputa de 2018?

A eleição do Bolsonaro foi um grande erro para o Brasil. Eu não mantenho meu compromisso diante de um equívoco tão grande. O Bolsonaro prometeu um país liberal, economia globalizada, combate à corrupção. E não fez.

O que os governadores estão fazendo para evitar a politização da vacina contra a covid-19?

Os governadores estão unidos. Todos defendem as vacinas, a vida, e não a politização nem da vacina nem da covid. O único que faz essa defesa hoje se chama Jair Bolsonaro.

Mas o sr. também não politizou a vacina aqui em São Paulo?

Não politizamos. Nós defendemos a vida, a ciência e a saúde. Vacina não deve ser avaliada pela origem, mas pela eficácia.

Como avaliou essa coalizão que se formou na Assembleia Legislativa contra o ajuste fiscal do governo estadual? Partidos como Novo e siglas de esquerda se uniram contra o pacote.

Um equívoco. O Novo demonstrou que já ficou velho logo no início da sua existência, o que é uma pena. A reforma administrativa foi aprovada e São Paulo foi o primeiro Estado a fazer. Fizemos aquilo que o Brasil deveria ter feito no governo federal e não fez.

Foi precipitado pôr o Estado na fase verde, que é mais flexível?

Não há nenhuma relação do aumento dos casos de covid-19 em São Paulo com o Plano São Paulo. A correlação está no relaxamento que estão, infelizmente, adotando. As pessoas estão saindo sem máscara, participando de aglomerações, festas e encontros em momento inadequado. Enquanto não tivermos a vacina, as pessoas devem se preservar.


El País: Derrota de Trump abala o populismo no mundo, mas não o derruba

Os Governos e partidos da Europa e da América Latina que recebem com frustração o afastamento de sua grande referência continuam desfrutando de considerável popularidade

saída de Donald Trump da Casa Branca deixou os movimentos populistas sem sua liderança mais visível no poder mundial. Alguns líderes e Governos confiavam com entusiasmo na reeleição do presidente dos Estados Unidos, com destaque para Hungria, Polônia e Brasil. Não saiu como esperavam. Mas sua derrota está longe de ser o fim das tendências eleitorais que nos últimos anos colocaram os partidos de extrema direita no comando de vários executivos ou na liderança da oposição.

vitória de Trump em 2016 foi um presente para líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia,Narendra Modi na Índia e Rodrigo Duterte nas Filipinas. O presidente do país mais poderoso do mundo ingressou em um clube de contornos difusos formado por dirigentes nacional-populistas. “Isso complica um pouco suas vidas porque eles perdem seu ídolo”, diz o analista Oliver Stuenkel, colunista do EL PAÍS, que acrescenta: “É óbvio que eles vão analisar os erros que Trump cometeu e que farão o que for preciso para evitá-los. Trump não tinha a disciplina necessária para permanecer no poder. Com um pouco mais de disciplina, de tenacidade, de pragmatismo, poderia ter vencido as eleições”.

Na Europa, em particular, tanto os partidos nascidos antes da vitória do presidente dos Estados Unidos em 2016 como aqueles que cresceram no rastro de seu mandato continuam a gozar de uma importante parcela de popularidade, como é o caso de Orbán. E embora o drama da covid-19 tenha deixado em segundo plano seus proclamas identitários e xenófobos, analistas alertam que a tremenda ressaca econômica e social que a pandemia deixará poderá revitalizar a força eleitoral de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, a Liga na Itália, a Alternativa pela Alemanha (AfD) e o Vox, na Espanha.

A vitória de um político com o perfil de Trump há quatro anos teve mais repercussão entre os populismos do que a derrota agora do republicano. Pawel Zerka, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores, acredita que o ímpeto de 2016 sobreviverá à saída do atual inquilino da Casa Branca “porque Trump mostrou que não há tabus e isso torna mais elegíveis os populistas europeus ou de qualquer outra parte do mundo”.

Além do mais, a hidra populista agora tem muito mais cabeças, tanto visíveis como soterradas. E sua influência não se limita mais aos extremos do arco político, pois também está no cerne das formações tradicionais à direita e à esquerda. Tanto o Partido Popular Europeu (PPE) como os Socialistas (S&D) e os Liberais (Renew) abrigam grupos e líderes claramente identificados com a corrente populista mundial que entre 2016 e 2018 assumiu o poder nos Estados Unidos, Brasil e Filipinas, ficou às portas do Governo na Holanda e na Itália e conseguiu a saída do Reino Unido da UE.

“Sofreram um duro golpe com a derrota de Trump, mas o trumpismo e o populismo continuam vivos”, concorda Shada Islam, analista e fundadora do New Horizons Project, uma empresa de consultoria e serviços estratégicos com sede em Bruxelas. Islam acredita que os partidos tradicionais cometeriam um erro se dessem por derrotadas as candidaturas eleitorais populistas. E recomenda que a presença de Joe Biden na Casa Branca seja aproveitada “para se estabelecer uma corrente transatlântica progressiva que se contraponha à articulação internacional que o populismo organizou durante o mandato de Trump”.

A pressão populista no Velho Continente atingiu seu auge entre 2016 e 2019: o Brexit se impôs no referendo do Reino Unido, a extrema direita de Marine Le Pen parecia estar às portas do Eliseu na França e a de Geert Wilders aparecia com possibilidades de assumir o Governo da Holanda. O líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini, alcançou a vice-presidência do Governo (vice-premiê) de seu país. Além disso, Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, agora caído em desgraça por seus problemas com a Justiça, desembarcou na Europa com a intenção de encorajar uma onda populista que arrasasse nas eleições para o Parlamento Europeu.

Mas as previsões mais catastróficas não se concretizaram. A vitória de Emmanuel Macron na França marcou um ponto de inflexão no avanço dos populistas, que também não conseguiram se tornar uma força-chave no Parlamento europeu. Bannon partiu em retirada. E Salvini caiu do Governo por um erro de cálculo eleitoral. A reeleição de Trump significaria o fim da sequência de reveses. Mas a maré de votos democratas impediu seu segundo mandato, apesar do bom resultado obtido por ele.

“Uma das consequências positivas do populismo é que provoca uma grande mobilização do restante do eleitorado”, diz Zerka. Ele recorda que a grande participação nos Estados Unidos também ocorreu nas eleições presidenciais de julho na Polônia, onde o populismo nacionalista liderado por Jaroslaw Kaczynski continua vencendo as eleições, mas se depara com uma resistência popular cada vez maior.

A Europa Central e do Leste se tornou um dos principais celeiros do voto populista no âmbito da UE. E o único onde os dirigentes mais próximos de Trump estão no poder, seja de forma arraigada, como Orbán na Hungria, ou de maneira instável, como Janez Jansa na Eslovênia. Tanto Orbán quanto Jansa pertencem ao PPE. Mas suas estratégias políticas são muito mais semelhantes ao populismo de Trump do que ao conservadorismo tradicional da primeira-ministra alemã, Angela Merkel.

“Sem dúvida, a vitória de Biden complicará a futura atitude política de líderes como Orbán ou Jansa”, prevê Boris Vezjak, filósofo e professor da Universidade de Maribor, na Eslovênia. Vezjak acredita que a Hungria, a Eslovênia e outros países da Europa Central terão mais dificuldade em continuar com políticas que, na opinião deste filósofo, “defendem novas formas de autoritarismo e a chamada democracia iliberal, com a liberdade individual limitada e subordinada a uma cultura nacional e à tradição”.

Os populistas europeus perderão, de cara, o incentivo que recebiam da Administração Trump por meio de seus embaixadores e enviados no Velho Continente. “Os embaixadores de Trump se dedicavam a propagar o populismo, a insultar a UE e a tentar erodir o sistema democrático em geral”, acusa Islam. Talvez o mais beligerante de todos os diplomatas procedentes de Washington tenha sido Richard Grenell, estrategicamente colocado em Berlim e enviado especial aos Bálcãs para mediar o conflito entre a Sérvia e Kosovo. Grenell chegou a ser descrito na Alemanha como “uma máquina de propaganda tendenciosa”. Assim que chegou a Berlim e em meio à ascensão da AfD, de extrema direita, Grenell afirmou que parte de sua tarefa como diplomata era “dar poder a outras forças conservadoras na Europa”, aludindo à substituição de partidos tradicionais como o de Merkel.

A perda do incentivo diplomático de Washington e do apoio financeiro que Bannon tentou canalizar pode enfraquecer os populistas europeus. Entre os potenciais prejudicados está o atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, embora não se enquadre na classificação de populismo puro, mostrou sem rodeios sua boa sintonia com Trump. Depois do Brexit, Johnson esperava chegar a um rápido e vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, graças a essa relação privilegiada com a Casa Branca, que obrigasse a UE a aceitar termos semelhantes. O pacto de Londres com Washington não chegou e a entrada de Biden deixa essa possibilidade ainda mais distante, o que forçará Johnson a ajustar sua posição negociadora com Bruxelas a menos de 50 dias da consumação, em 31 de dezembro, da saída do Reino Unido da UE.

Zerka também acredita que os ultraconservadores norte-americanos vão se concentrar nos próximos quatro anos na oposição a Biden e na tentativa de retornar à Casa Branca, o que deixará líderes próximos a Trump, como Johnson, Orbán e Kaczynski, sem interlocutores disponíveis em Washington. Islam, por sua vez, está convencida de que “a colaboração populista transatlântica se intensificará porque essas forças têm uma agenda de longo prazo e a experiência dos Estados Unidos lhes mostrou que aquelas que ainda não tomaram o poder podem fazer isso”.

Os analistas concordam em que a grave crise econômica causada pela pandemia, cujo maior impacto poderia ocorrer no primeiro semestre de 2021, dará ao populismo europeu a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Nos últimos meses se viu deslocado pelas medidas de ajuda emergencial e de estímulo fiscal adotadas pela maioria dos Governos. “Mas se a pandemia se prolonga, a frustração aumentará e os líderes populistas estão cientes de que poderão transmitir sua mensagem”, prevê Zerka. Sem Trump e com a pandemia no meio, o populismo europeu está abalado, mas não afundado. Somente agachado.

Revés para Bolsonaro

Fora da Europa, o Brasil é um dos principais expoentes do populismo. O resultado eleitoral dos Estados Unidos representa para Bolsonaro, além de um descontentamento pessoal, um revés político e diplomático. Primeiro, perde seu aliado mais estratégico e poderoso. E também “a narrativa de que esta é uma espécie de Governo do futuro, na vanguarda do processo político, foi derrotada”, explica Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas. Uma boa notícia para os que acreditam na democracia e nas sociedades abertas.

A chegada de Trump à Casa Branca em 2017 deu asas à vitória eleitoral de Bolsonaro, seu discípulo mais fiel, mas não é o único fator que a explica. O brasileiro se encaixa perfeitamente na tradição do caudilho latino-americano. A primeira consequência para o Brasil de Bolsonaro é que, sem um Trump no poder atraindo quase toda a atenção, o escrutínio sobre o gigante latino-americano aumentará. E “com Biden apoiando o multilateralismo e o meio ambiente, o custo da atuação radical do Bolsonaro no exterior vai aumentar muito”, acrescenta o analista.

Mas moderar suas posições dentro e fora do Brasil implica um desgaste do apoio fundamental que lhe dão seus partidários mais extremistas. A política externa brasileira deu um giro enorme neste biênio para focar em questões que, em sintonia com a Casa Branca trumpista, ativam sua base eleitoral mais leal, como as críticas pontuais e estridentes à China, o alinhamento com Israel, a defesa de valores conservadores cristãos, a batalha contra o feminismo e os direitos das minorias.

O Brasil ficará isolado como nunca antes, mas a popularidade do presidente tem melhorado, apesar de sua recusa explícita em administrar a pandemia que causou mais de 160.000 mortes, enquanto os desempregados agora já são 14 milhões. Bolsonaro deu mostra de seu instinto político ao aprovar rapidamente um dos maiores pacotes de ajuda pública do mundo, o que amorteceu o golpe e fez sua popularidade disparar.

Outro grande aliado de Trump na América Latina é Andrés Manuel López Obrador, no México. A vitória de Biden abalou a política externa do Governo mexicano, que mantém sua recusa em felicitar o democrata, informa Jacobo García. A reação de Trump após a derrota remete ao protesto público que López Obrador empreendeu em 2006, quando perdeu a eleição presidencial para Felipe Calderón por uma estreita margem de 250.000 votos e mobilizou milhares de seguidores nas ruas. Isso provocou uma crise institucional sem precedentes.

Ao mesmo tempo, a derrota de Trump exige de López Obrador um jogo de cintura política incomum para ele. O presidente terá de reciclar as boas relações que estabeleceu com Trump, a quem sempre se refere em termos elogiosos como um presidente respeitoso. As boas relações que afirma ter com ele significaram, no fundo, suportar em silêncio cada um dos ataques de Trump e permitir que o republicano usasse desde sua primeira campanha em 2016 os insultos ao México como forma de somar votos entre o eleitorado mais racista.


Vera Magalhães: João Alberto e as urnas

Casos de grande comoção às vésperas de pleitos podem influenciar o voto

Casos como o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, por espancamento seguido de asfixia numa loja do Carrefour em Porto Alegre, ocorrido na última quinta-feira, quando acontecem próximos de eleições, costumam ter o condão de virar tema das campanhas e mobilizar setores do eleitorado.

O exemplo recente mais rumoroso vem dos Estados Unidos e tem muitos pontos de contato com o caso João Alberto: foi o assassinato de George Floyd por asfixia por policiais em Minneapolis, em maio. Lá como aqui, a ação dos assassinos foi filmada. A frase repetida por Floyd, “I can’t breath”, que significa “Eu não posso respirar”, virou mote de manifestações que cobriram o país.

O movimento Black Lives Matter, ou Vidas Pretas Importam, surgido anos antes, ganhou dimensão nacional e deu força a grupos locais, que tiveram grande engajamento nas eleições presidenciais e peso real na vitória de Joe Biden sobre Donald Trump em Estados como a Geórgia.

No Brasil, os casos mais conhecidos de comoção nacional às vésperas de pleitos são a greve da siderúrgica CSN em Volta Redonda, em 1988, e o massacre do Carandiru, em 1992, em que 111 presos foram chacinados pela Polícia Militar para conter uma rebelião.

No primeiro, operários da Companhia Siderúrgica Nacional, ainda estatal, entraram em greve por reajuste salarial e redução de jornada e tomaram a planta de Volta Redonda (RJ). Quatro dias depois do início da greve, em 9 de novembro, o Exército e a PM invadiram a empresa e três grevistas foram assassinados.

As eleições municipais nas capitais ocorreram no dia 13 e, em São Paulo, venceu Luiza Erundina, feito inédito do PT numa capital. As pesquisas até as vésperas apontavam vitória tranquila de Paulo Maluf, e cientistas políticos e historiadores veem grande peso de Volta Redonda na virada.

Quatro anos depois, o massacre do Carandiru ocorreu na noite de 2 e outubro, a sexta-feira anterior à eleição. Ali, no entanto, a tragédia não teve influência no pleito, porque a Secretaria de Segurança Pública abafou os dados. Paulo Maluf venceu e o candidato do governador Luiz Antonio Fleury Filho, Aloysio Nunes Ferreira, ficou em terceiro lugar.

E agora, como o caso João Alberto vai ecoar nas urnas? Em Porto Alegre, onde ocorreu o assassinato, Manuela D’Ávila (PC do B) enfrenta uma eleição dura, em que foi, ao longo de toda a campanha, alvo de ataques ferozes dos adversários e agora aparece nas pesquisas em desvantagem em relação a Sebastião Melo (MDB). Ela se engajou de imediato nos protestos pela morte de João Alberto.

Em São Paulo também pode haver influência do crime. Foi aqui que ocorreu o maior protesto depois do assassinato, com o quebra-quebra numa loja do Carrefour nos Jardins. Guilherme Boulos não participou. O candidato do PSOL tem lutado na campanha contra a pecha de “radical”. As urnas mostraram que candidaturas em defesa de direitos civis, equidade e diversidade encontraram um eleitor disposto a investir nessas agendas, antes tachadas pejorativamente de “politicamente corretas” ou “identitárias”.

A sanha com que Jair Bolsonaro oprimiu minorias, ou mesmo maiorias sem representatividade política, provocou reação oposta dois anos depois de sua eleição. No caso João Alberto, o presidente só se manifestou 24 horas depois, para negar racismo no ocorrido e sem mencionar o nome da vítima nem se solidarizar com sua família.

Os próximos dias vão mostrar se o caso João Alberto vai virar tema central da campanha ou se os protestos vão perder fôlego. E o que terá mais peso: o voto de protesto contra a recorrência de fatos como esse ou a reação maior de parte da sociedade ao que ela chama de “vandalismo” que ao assassinato em si?


Vinicius Torres Freire: Na hora de planejar a economia em 2021, há apagão na escuridão do governo

Por ação ou omissão, é hora de decidir por arrocho ou avacalhação do teto

Existem três hipóteses para o começo de 2021: 1) um arrocho por inércia dos gastos do governo federal; 2) um arrocho conflituoso, que depende de mudanças da Constituição; 3) uma avacalhação do limite de gastos federais, o “teto”. O ritmo de despiora da economia e a popularidade de Jair Bolsonaro dependem da decisão que será tomada (por ação ou omissão).

Se vier uma vacina no início do ano, haverá um choque favorável de expectativas, claro. Seus efeitos práticos, ao menos econômicos, apareceriam na segunda metade do ano, porém. Nem é bom pensar no que aconteceria em caso de repique relevante do número de infecções, agora ou até o Carnaval mudo de 2021. Mesmo no melhor cenário para a epidemia, o gasto do governo terá papel dominante.

Faz meses que esse é o assunto maior e mais urgente da economia, discussão empurrada com a barriga pelo governo, em particular desde o início de outubro. Passada a distração das eleições, o muro do final do ano parlamentar e do problema do gasto estará a palmos dos nossos narizes. Qual o risco de quebrarmos a cara?

No cenário de “arrocho por inércia”, o governo não aprova medida alguma de corte relevante de despesas. Corta mais um pouco, a fim de respeitar o teto, de início talvez até mais, pois é grande a possibilidade de o governo federal não ter um Orçamento aprovado no início do ano (o que exigirá um escalonamento de despesas mais comedido). Nesse cenário, não haverá Renda Brasil, Bolsa Família encorpado ou coisa que o valha. Os pobres desempregados irão à miséria e haveria um impacto mais forte na capacidade de consumo.

Dadas a incompetência e a desumanidade de quem comanda o governo federal, que não sabe fazer coisa melhor, o cenário “arrocho conflituoso” talvez seja o menos mau. Nessa hipótese, governo e Congresso aprovam alguma mudança constitucional que arroche setores específicos. Isto é, cortam salários de servidores ou o abono salarial, por exemplo; pior e improvável, acabam com a despesa mínima federal em saúde e educação. Neste caso, haveria algum troco para dar auxílio aos mais pobres.

No cenário “avacalhação do teto”, governo e/ou Congresso inventam pelo menos uma gambiarra a fim de burlar o limite constitucional de gastos e pagam algum auxílio emergencial ou Bolsa Família menos magro.

O primeiro cenário, de inércia, é o arroz com feijão. Depois de despiorar, a economia se arrasta quase ao passo de 2017-2019. Há uma degradação lenta das expectativas econômicas e, tudo mais constante, do prestígio de Bolsonaro.

No segundo, haveria conflitos políticos sérios com as vítimas específicas do arrocho, melhora mínima do auxílio para pobres e miseráveis, alguma perspectiva melhor de crescimento e um resultado incerto na política.

No terceiro, do teto avacalhado, haveria alguma degradação das condições financeiras (juros em alta, dólar mais caro) e perspectiva de estagnação econômica ou coisa pior, a depender do tamanho da avacalhação e do tumulto financeiro. Note-se que não se discute aqui de revisão ordenada do teto dentro de um plano econômico sério (goste-se ou não da cor ideológica dele), tocado por governo e economistas capazes. Trata-se de avacalhação.

O país não tem nem Orçamento. O Congresso está atolado em disputas sobre seu comando em 2021 e sobre a (suposta) reforma ministerial. Bolsonaro está quase em pânico com o risco de cadeia para o filho Flávio e, pois, de mais revelações sobre os negócios históricos da família. Aumenta o risco de apagão na escuridão do governo.


Fernando Exman: Frente de prefeitos contra o isolamento

Bolsonaro quer apoio para pressionar governos estaduais

Jair Bolsonaro sentiu o baque. Anda reclamando da vida até mesmo em eventos públicos e conversas informais com os apoiadores que fazem plantão em frente ao Palácio da Alvorada.

O presidente tinha confiança no peso do seu voto e achou que poderia fazer uma entrada triunfal no fim da campanha. Fracassou. Elegeu poucos aliados e agora terá que observar, pacientemente, adversários questionarem seu prestígio político. No entanto, neste momento preocupa-o, sobretudo, como os prefeitos eleitos enfrentarão a pandemia a partir de 2021. Desenha-se a tentativa do presidente de construir uma frente municipalista formada por prefeitos dispostos a promover a reabertura das atividades econômicas, a despeito de eventuais orientações partidárias ou determinações dos governadores.

Esta é uma questão crucial para o governo federal. Pouco se sabe o que o ministro da Saúde pensa a respeito, mas na equipe econômica já se fala de imunidade de rebanho. No Planalto, teme-se que uma segunda onda de covid-19 leve os entes subnacionais a adotarem novas medidas de isolamento social, o que atrapalharia a retomada da atividade econômica.

Também por isso o presidente ignorou a recomendação de alguns auxiliares e acabou decidindo ampliar a campanha para além do seu grupo político mais próximo. Mal sabia o número ou a legenda daqueles que estava promovendo. Insistia, por outro lado, que os eleitores escolhessem quem estivesse disposto a pressionar os governadores contra a adoção de novas medidas de isolamento social.

O governo tem um mapeamento de quais foram as políticas de contenção dos Estados. Acompanha as consequências dessas medidas em relação à evolução da pandemia e aos seus efeitos na economia. Monitora os setores mais prejudicados em algumas das unidades da federação, como o de serviços em São Paulo ou no Rio Grande do Sul.

Isso começou a ser feito logo depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou a autonomia de Estados e municípios para a implementação de ações voltadas a impedir a propagação do coronavírus.

Desde o primeiro momento, Bolsonaro preferiu se posicionar contra as políticas de restrição social e virar uma voz crítica aos governadores que pensavam de forma diferente. Sem um exemplo vindo de Brasília, cada Estado agiu de uma forma, diante de suas especificidades e das informações disponíveis.

Não houve uma padronização. Algumas unidades da federação deixaram poucas alternativas aos municípios e determinaram de forma rigorosa as ações a serem executadas em seus territórios. Isso ocorreu, em alguns casos, porque os prefeitos hesitavam em reagir à moléstia que se espalhava com rapidez pelo país. A maior preocupação era o risco de colapso do sistema de saúde. Na visão do poder central, agiram dessa forma Goiás, Pará e Santa Catarina - neste último caso, apenas num primeiro momento.

Outros Estados preferiram políticas articuladoras, como Ceará, Pernambuco ou São Paulo, ainda de acordo com autoridades federais. Essa estratégia buscou encorajar o diálogo entre órgãos públicos estaduais, municipais e entre prefeitos de cidades vizinhas. A ideia era compartilhar responsabilidades e, claro, eventuais ônus políticos.

Um grupo de governadores preferiu delegar às prefeituras o poder de decisão. Outro optou por dar liberdade de ação aos prefeitos, desde que as políticas adotadas não fossem rigorosas demais ou impeditivas. Em diversos casos, as posturas de Estados e municípios evoluíram ou foram sendo calibradas ao longo dos últimos meses, dependendo do achatamento ou não da curva de mortes e infecções.

A leitura de uma recente pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios também pode explicar por que o presidente está tão decidido a impedir novas iniciativas de controle e prevenção, mesmo que a equipe econômica não trabalhe com a possibilidade de uma segunda onda.

Segundo o levantamento da CNM, 96,5% das prefeituras aplicaram medidas restritivas para a diminuição da circulação de munícipes ou de aglomerações. Outros números também chamam atenção: 52,4% adotaram barreiras sanitárias, com posto de monitoramento de entrada e saída de pessoas no município; 75,7% estabeleceram isolamento social com a permissão de abertura e funcionamento apenas dos serviços essenciais; 94,2% publicaram normas para uso obrigatório de máscaras; e 54,4% reduziram oferta de transporte público.

Por outro lado, o documento traz um relativo alento para o presidente, pois 61,9% dos executivos locais reconheceram que houve flexibilização durante o período da pesquisa. O levantamento foi realizado entre março e agosto.

No último fim de semana, contudo, a democracia deu mais uma lição a Bolsonaro. Fazer política é um processo que demanda mais do que uma conexão de internet e um horário na agenda depois do expediente para transmissões ao vivo nas redes sociais. Exige conversa e a valorização dos partidos políticos, além do respeito às instituições.

Mesmo assim, novamente o presidente demonstra a intenção de arregimentar um grupo suprapartidário em torno de suas ideias. No início do governo, ele achou que conseguiria negociar com o Congresso por meio das frentes parlamentares temáticas e foi obrigado a aproximar-se dos políticos tradicionais que tanto desprezava. Agora, acena aos gestores locais com programas federais e uma possível ajuda na implementação de iniciativas potencialmente populares, como a estruturação de escolas cívico-militares.

Os prefeitos tomarão posse em janeiro já pedindo mais apoio financeiro, diante da perspectiva de que não se repetirá o grande volume de transferências de recursos observado durante este ano. Será uma nova oportunidade para o presidente defender o fim do isolamento social e movimentar a máquina em direção à campanha de 2022.


Eliane Brum: “Me beija e me chama de centro”, diz direita brasileira

No Brasil, o “moderado” que se apresenta para “unir o país” é o novo velho malandro da crônica política

Mais importante que o mau desempenho nas urnas dos candidatos que Bolsonaro apoiou formalmente são os dois grandes marcos desta eleição: um novo líder se consolida no campo da esquerda no Brasil; e a disputa do legislativo aconteceu com um número inédito de candidatos negros, de indígenas e de pessoas transexuais, algumas delas as mais votadas de seus municípios. Também o número de mulheres cresceu. É pouco, diante do domínio de alguns dos partidos mais viciados e fisiológicos, mas é bastante em um dos países que mais mata negros e faz vítimas por transfobia do mundo, além de ostentar um número assombroso de estupros e feminicídios.

A ampliação da diversidade na política institucional acontece exatamente no momento em que o país é governado por um presidente declaradamente racista, misógino e homofóbico. O avanço dessas forças e o risco de Bolsonaro fracassar em seguir representando os interesses das elites econômicas faz a direita iniciar um curioso processo de mudança de identidade. “Me abraça, me beija e me chama de centro” poderia ser o título do mais recente capítulo da crônica política brasileira.

A eleição de domingo mostrou que toda a violência e o autoritarismo de Bolsonaro não foram capazes de interromper o crescente protagonismo dos grupos periféricos da sociedade― negros, indígenas, mulheres e LGBTQIA+― que reivindicam o centro político. Mostrou também que, depois de passar os últimos anos dando voltas em torno do próprio rabo, devido ao controverso legado de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, o campo da esquerda começa a se mover. Guilherme Boulos, do PSol de Marielle Franco, é líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, uma das principais organizações populares de luta por moradia do país. O fato de disputar o segundo turno para a prefeitura de São Paulo, maior e mais rica cidade brasileira, é a maior notícia desta eleição. Que o PSDB de Bruno Covas saia na frente, com toda a máquina de governo e o tempo de propaganda eleitoral a seu favor, é o óbvio. Boulos é o corte.

O que acontece em São Paulo sinaliza rumos para o Brasil. Não justifica nenhum maremoto de otimismo, mas aponta que existem brechas e que aqueles que aprenderam a resistir seguem avançando por elas. Se é verdade que o antipresidente fracassou como cabo eleitoral, é também muito cedo para dar Bolsonaro e, principalmente, o bolsonarismo, por derrotado. Em pequenas e médias cidades, abrigados nos mais variados partidos, há muitos prefeitos bolsonaristas de alma e também de coldre, e a violência nos interiores do Brasil, tanto quanto nas periferias urbanas, é da ordem do massacre. Como, por exemplo, em municípios do Arco do Desmatamento, na Amazônia.

Os sinais de que Bolsonaro pode se enfraquecer para disputar a reeleição em 2022, porém, já levou a direita a buscar um rearranjo estratégico nas últimas semanas. Figuras que até pouco tempo atrás dançavam de rosto colado com o antipresidente, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, começaram a costurar uma aliança para 2022 junto com Luciano Huck, popular apresentador da TV Globo, que já fez efusivas carícias públicas em Bolsonaro. Doria quis tanto se grudar em Bolsonaro em 2018 que literalmente colou o nome dos dois na propaganda eleitoral: “BolsoDoria”. No caso do herói decaído da Operação Lava Jato, até sua mulher, Rosângela Moro, insuspeita, portanto, já afirmou que via o juiz justiceiro e o Governo Bolsonaro “como uma coisa só”. Huck, na eleição de 2018, chegou a declarar que Bolsonaro tinha “uma chance de ouro de ressignificar a política”.

Antecipando-se ao risco de que a esquerda possa se unir para disputar a sucessão de Bolsonaro, como acontecerá no segundo turno de São Paulo, a direita tira do bolso truques manjados, mas que ainda podem funcionar. Como fizeram com Lula quando o então líder sindical se iniciou na política, as urnas nem tinham terminado de ser apuradas no domingo e já começaram a estampar em Boulos o carimbo de “radical”, na tentativa de amedrontar o eleitor num momento de intenso desamparo por conta do desemprego e da pandemia. Ao colocar “radical” como palavrão, a direita revela seu profundo preconceito contra os movimentos sociais. Tratar como radical a luta por moradia num país em que há mais casas sem gente do que gente sem casa revela mais da direita que se finge de centro do que da esquerda que Boulos representa.

O fato é que a esquerda finalmente começa a dar sinais de que há vida depois do lulismo ―e o legislativo vai ficando mais preto e mais trans. Dez prefeitos indígenas e mais de 50 vereadores quilombolas também foram eleitos, desbranqueando prefeituras e câmaras, embora ainda não suficientemente. Nas ruínas do Brasil, é necessário olhar para onde está a resistência que teima em criar vida mesmo nos escombros.

Assustada, a velha direita tenta vestir a máscara de moderação de Joe Biden. O problema é que Joe Biden foi eleito porque teve o apoio da esquerda progressista do Partido Democrata, na qual a maior parte dos expoentes nasceu justamente de lutas contra o racismo e o preconceito. A direita que agora se finge de centro e pretende nunca ter apoiado um defensor de tortura, quer justamente fazer o contrário: esmagar toda a potência emergente que primeiro Michel Temer (MDB) e depois Bolsonaro golpearam, mas fracassaram em parar. Não há máscara grande o suficiente para conter o topete laranja que salta bem no meio da testa destes malandros.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Merval Pereira: Meia volta, volver

O resultado mais importante desta eleição municipal é que ela parece marcar o fim da polarização dos extremos políticos, caldo de cultura que levou Bolsonaro ao poder em 2018. A sensação é de que essa maneira de fazer política cansou os eleitores, que estão procurando coisas novas, não necessariamente do ponto de vista etário, mas diferente do cardápio que foi oferecido em 2018.

O fracasso do governo Bolsonaro, juntamente com a “nova política”anunciada na campanha presidencial e que acabou ancorada na velha política, mostra que o presidente fez bem ao escolher aliar-se ao Centrão para organizar sua base congressual, mas também que ele agora tem menos força na negociação com seus novos parceiros.

PP e PSD são as estrelas do Centrão, mas partidos que abandonaram o grupo para uma posição independente, como DEM e MDB, também se destacaram. O Centrão é tradicionalmente formado por partidos que se adaptam a qualquer governo, e essa maleabilidade também é uma ameaça à composição parlamentar de Bolsonaro, pois, para se posicionarem em outros caminhos, não custa. Até na esquerda os eleitores procuraram novas alternativas, a mais emblemática o PSOL, que não quer ser moderado, mas não está envolvido em corrupção, ao contrário, nasceu da revolta de alguns membros do PT com relação à corrupção, quando da confissão do marqueteiro Duda Mendonça, que admitiu ter recebido pagamento do PT em contas no exterior no mensalão.

O choro na ocasião de deputados petistas como Chico Alencar, que ontem teve uma grande votação no Rio como vereador pelo PSOL, ainda marca essa dissidência. Não é de estranhar que o PSOL continue aliado do PT, assim como o PSDB, nascido de uma dissidência dentro do MDB, ganhou vida própria, mas não impediu que os tucanos aderissem ao governo Michel Temer. Mas são bichos diferentes.

Está claro que as pessoas querem eficiência – para prefeito, essa exigência ainda é mais forte –, mas diante da tragédia que é o governo Bolsonaro, essa tendência vai contar mais na disputa presidencial em 2022 do que contou em 2018. A capacidade de gestão, o conhecimento, a experiência do candidato, passaram a contar para além da disputa ideológica.

Em São Paulo, o candidato do PSOL Guilherme Boulos, que teve uma votação importante, superando candidatos tradicionais como Marcio França ou Russomano e tornando-se o líder hegemônico da esquerda neste momento, vai procurar jogar o prefeito Bruno Covas para a direita, enquanto Covas já começou a colocá-lo como radical.

Ontem mesmo, depois do discurso de Covas na noite anterior dizendo que os paulistanos recusam o radicalismo, o governador tucano João Doria, candidato potencial do PSDB à presidência da República, disse uma frase que resume o que será a campanha nesse segundo turno: “Aqui, nós defendemos a propriedade privada, eles invadem”.

A pandemia foi fator preponderante nessa eleição. Ficou claro que governadores e prefeitos que tiveram atitudes firmes no combate ao coronavirus, à Covid -19, que adotaram desde o início o afastamento social e a obrigatoriedade de usar máscaras foram recompensados no final pela população, que entendeu que não era uma política contra, mas a favor dela.

É a antítese da pregação de Bolsonaro, que foi derrotado fortemente nessa eleição, não apenas pelos candidatos que apontou terem sido derrotados na ampla maioria dos casos, mas porque a visão dele da pandemia foi derrotada. Ele mesmo ficou irritado, recentemente comentou não entender como os políticos que fecharam tudo, quebraram a economia, estão sendo reeleitos.

Bolsonaro, num claro declínio, só recuperará sua popularidade se conseguir colocar o auxílio emergencial de novo na mão desses milhões de brasileiros que estão perdidos, sem emprego, sem perspectiva. Mas isso ele dificilmente vai conseguir, pois quebraria o país. A deputada mais votada no Brasil em 2018 foi Joyce Hasselman, que ontem foi das ultimas na eleição para a prefeitura de São Paulo. A deputada Carla Zambelli não conseguiu eleger o irmão, e apelou, insinuando fraude na eleição, seguindo os passos do próprio Bolsonaro, que ontem, aproveitando-se do problema técnico na apuração do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), voltou a insistir na inconfiabilidade de nossa urna eletrônica. Michele Bolsonaro apoiou quatro candidatos a vereador, e nenhum se elegeu. A ex-mulher de Bolsonaro, mãe dos 01,02,03, não se elegeu. Carlos Bolsonaro teve menos votos do que em 2016.

Assim como 2016 deu sinais do que poderia acontecer em 2018, agora parece que o vento deu meu volta, no sentido da direita civilizada.


Andrea Jubé: Destinos cruzados

Bolsonaro repete teimosia de Dilma e preocupa aliados

Candidato a prefeito de Recife, o deputado João Campos (PSB) teme o revés de uma derrota em dose dupla: para as urnas e para o destino.

Mais do que vencer a prima Marília Arraes (PT) no segundo turno na principal capital do Nordeste, João precisa driblar a arapuca eleitoral que o destino armou para ele.

O projeto político de João é repetir o pai, Eduardo, e se tornar governador de Pernambuco num futuro próximo. Mas João não quer repetir o pai, que saiu derrotado de sua primeira eleição majoritária. Justamente, para a Prefeitura de Recife.

Eduardo Campos tinha a mesma idade de João em 1992, quando desobedeceu a recomendação do avô, o ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, que o desaconselhou a concorrer ao comando da capital naquele ano.

Arraes ponderou que o neto, embora dedicado e competente, era jovem e inexperiente. Até então, seu único currículo na política era a chefia de gabinete do avô, em seu segundo mandato no Palácio do Campo das Princesas, de 1987 a 1990.

Arraes profetizou que Eduardo seria engolido pelos tubarões da política pernambucana. Ele enfrentaria nas urnas: Jarbas Vasconcelos (MDB), Humberto Costa (PT), André de Paula (do então PFL de Marco Maciel) e Newton Carneiro (PSC).

Cumpriu-se o vaticínio de Arraes: aos 27 anos, Eduardo Campos acabou em quinto lugar na eleição para a Prefeitura de Recife, atrás de quatro lideranças pernambucanas.

Agora, as coincidências tramam contra João: ele completará 27 anos no próximo dia 26, a três dias do segundo turno. Terá, então, a mesma idade de Eduardo quando este concorreu ao comando da capital há quase três décadas. Assim como o pai, seu primeiro emprego foi a chefia de gabinete do governador - no caso, Paulo Câmara (PSB), cria política do pai.

Não se sabe o que pensaria Miguel Arraes, morto em 2005, sobre o embate eleitoral entre os seus descendentes: a neta Marília e o bisneto João. A pecha da imaturidade, entretanto, recai sobre João. Não pelo alerta do bisavô, mas pela acusação da prima e adversária, que exibe trajetória mais longeva que ele na política.

No único debate na televisão antes do primeiro turno, Marília apontou o dedo para o primo, usando o argumento que o avô usou contra o neto no passado. “O debate mostrou quem é experiente e tem propostas, e quem é imaturo. Eu tenho trajetória, já o candidato do PSB é inexperiente e fabricado pelo marketing”.

João concorre menos verde que o pai na disputa atual: além da chefia de gabinete do governador, também exibe no currículo quase dois anos de mandato de deputado federal.

Dez anos mais velha que o primo, Marília foi vereadora em Recife por três mandatos. Em 2014, quis concorrer a deputada federal pelo PSB, mas não teve o respaldo de Eduardo, que presidia a sigla. No mesmo ano, ele nomeou João líder da juventude do PSB, cargo cobiçado pela prima.

Foi o estopim para o rompimento. Marília filiou-se, então, ao PT. Em 2018, despontou como nome competitivo para o governo, mas acabou sacrificada em nome de um acordo que evitou o apoio do PSB à candidatura presidencial de Ciro Gomes (PDT).

Agora, o destino pregou uma peça nos petistas. Marília se projeta como a principal aposta do PT para tentar levar uma prefeitura de capital, depois de um desempenho a desejar nas eleições municipais. Se João repetir a sina do pai, o destino pode dar um voto decisivo para Marília no segundo turno. Mas o destino, aos eleitores pertence.

Teimosia

Um dos aliados mais antigos do presidente Jair Bolsonaro acredita que ele paga o preço da teimosia ao sair com a pecha de derrotado nas eleições municipais.

Este aliado explica assim o desempenho presidencial no pleito: Bolsonaro “jogou errado” porque entrou tardiamente na campanha, e insistiu em apostar em candidatos desde o começo comprometidos com o fracasso.

Um exemplo emblemático é o Coronel Menezes (Patriota), que acabou em quinto lugar na disputa pela Prefeitura de Manaus. Em nenhum momento na campanha ele despontou sequer entre os três primeiros colocados nas pesquisas.

Confrontado por este aliado sobre o apoio inconsequente, Bolsonaro retrucou que não acredita em pesquisas. Alega que os institutos teriam falhado em sua eleição. Na tréplica, o aliado ponderou que na reta final, todas as pesquisas o confirmavam no segundo turno em 2018. Mas o presidente não dá o braço a torcer.

O presidente também não gosta de ouvir que as incursões pelo país para inaugurar obras irrelevantes ou inacabadas são inócuas para manter ou alavancar sua popularidade. Os poucos amigos não-bajuladores o advertem que as claques de 150, 200 pessoas que o recebem nos aeroportos, não representam, nem de longe, sua aprovação popular naquele Estado. Mas o presidente se irrita e desconversa.

Este aliado reafirma o que já se sabe até aqui: o presidente é refratário a críticas. Em vários episódios, demitiu auxiliares que ousaram dizer a verdade. O exemplo mais recente é o ex-porta-voz, general Otávio do Rêgo Barros.

Os ouvidos moucos e a aversão às críticas são reclamações que os petistas repetiam como ladainhas em relação à então presidente Dilma Rousseff. Lideranças influentes da sigla lamentavam que ela não sabia ouvir, e pagaria o preço da teimosia, quiçá, da arrogância.

Quando cedeu aos apelos para ouvir o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez um primeiro gesto: substituiu Aloizio Mercadante por Jaques Wagner na Casa Civil. Mas já era tarde demais.

Este aliado critica os conselhos do núcleo político para que o presidente intensifique o tom moderado. O rompante da semana passada, com o “país de maricas”, e a menção à pólvora, assustou a ala militar, mais ponderada, e os aliados de centro preocupados com a reeleição.

O aliado rechaça que Bolsonaro se converta ao centro de uma vez por todas. “Como ele vai se transformar em político de centro, se ele foi de direita a vida toda?” Ele descarta qualquer mudança radical de Bolsonaro. “É uma bobagem falar em conversão, ele nunca vai mudar o jeito de ser”.