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El País: Prisão de Marcelo Crivella fecha ano infernal da política no Rio de Janeiro

Além da detenção domiciliar do prefeito, Estado teve governador sofrendo impeachment por acusações de corrupção, a exemplo dos mandatários anteriores. Enquanto isso, covid-19 avança e lota hospitais

Ana Paula Grabois, El País

2020 vem sendo um ano difícil para o Brasil, entre uma pandemia que já deixou mais de 188.000 mortos e uma crise econômica que poderá levar milhões de pessoas ao desemprego e à pobreza. No Rio de Janeiro, entretanto, o ano ganhou um contorno extra de agonia: uma crise política cada vez mais profunda, que culminou nesta terça-feira com a prisão do prefeito da capital, Marcelo Crivella (Republicanos), pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, acusado de liderar uma organização criminosa dentro da prefeitura para praticar corrupção ―no fim da noite, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, concedeu prisão domiciliar ao prefeito, com o uso de tornozeleira eletrônica. De acordo com o magistrado, Crivella não apresenta periculosidade o bastante para permanecer preso em uma penitenciária.

Além de preso, Crivella também foi afastado do cargo. O Rio terá como prefeito nos últimos nove dias deste ano o presidente da Câmara de Vereadores da cidade, Jorge Felippe (DEM), até a posse em 1º de janeiro de Eduardo Paes, filiado ao mesmo partido, vencedor da última eleição municipal ao derrotar o próprio Crivella. Via rede social, Paes disse que irá manter o trabalho de transição para o cargo. O episódio da prisão tem pitadas de ironia. No último debate na TV antes do segundo turno da eleição, Crivella afirmou repetidas vezes que o adversário iria ser preso.

A prisão ocorre depois de o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), ser afastado do cargo em agosto e ter seu impeachment aprovado pelo parlamento fluminense devido a diversas denúncias envolvendo fraudes em contratos na área da saúde, principalmente os emergenciais para a compra de equipamentos e a construção e operação dos hospitais de campanha para tratamento da covid-19.

O histórico recente dos governadores do Rio, aliás, é trágico. Os dois antecessores de Witzel estão presos devido às investigações do braço da Operação Lava Jato no Estado. O ex-governador Sérgio Cabral foi preso em 2016, após deixar o cargo, e está no Complexo Penitenciário de Bangu. Já o ex-governador Luiz Fernando Pezão, preso em 2018, está em prisão domiciliar. O casal Anthony Garotinho e Rosinha Matheus, que governou o Estado antes de Cabral, também já foi preso. Hoje os dois estão em liberdade, embora processos que motivaram as prisões ainda tramitem no Judiciário. Garotinho chegou a ser preso cinco vezes. Rosinha, três. Houve ainda a prisão do ex-governador Moreira Franco em 2019, quando era ministro do governo Michel Temer. Moreira Franco ficou preso por quatro dias devido à Lava Jato.

Como se não bastasse o caos na política, o Rio também enfrenta uma taxa de ocupação de mais de 90% dos leitos de UTI da rede pública em plena epidemia, poucas semanas após Crivella ―ainda durante a campanha em busca da reeleição à prefeitura― autorizar a volta de banhistas às praias, aumentar a flexibilização para o uso de bares e restaurantes e permitir a prática de esportes em espaços públicos, além da volta às aulas nas redes pública e privada. Desde o início da pandemia da covid-19, o Estado do Rio de Janeiro já acumula mais de 24.000 mortos.

QG da Propina

Como motivo da prisão, o Ministério Público do Rio de Janeiro acusa Crivella e mais seis pessoas de praticar os crimes de corrupção, peculato, fraudes a licitações e lavagem de dinheiro. Os promotores também teriam identificado uma movimentação atípica de quase 6 bilhões de reais na Igreja Universal do Reino de Deus entre maio de 2018 e abril de 2019, de acordo com o portal UOL. Ao chegar à delegacia para ser preso, o prefeito declarou ser alvo de “perseguição política” e que espera por “justiça”. “Fui o governo que mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro”, disse.

A detenção preventiva do grupo tem relação com o chamado QG da Propina, um esquema supostamente operado por Rafael Alves, amigo de Crivella que despachava na prefeitura sem ter cargo oficial. Também preso nesta terça-feira, Rafael é irmão de Marcelo Alves, que presidiu a Riotur, a empresa municipal de turismo. Rafael operava nas dependências da Prefeitura do Rio a partir da indicação de postos-chave, como no Tesouro Municipal e de acordo com o MP , negociava propinas com empresários que buscavam pagamentos devidos ou manutenção de contratos. Além dos sete presos, 26 pessoas foram denunciadas no esquema. Segundo o Ministério Público do Estado, tratava-se de “uma bem-estruturada e complexa organização criminosa liderada por Crivella” que atuava desde 2017, ano em que iniciou o seu mandato.

Como mostrou reportagem do EL PAÍS em setembro, em um vídeo gravado durante a busca e apreensão na casa dele, em março, Crivella supostamente liga para um dos celulares de Rafael Alves para avisar de uma busca na Riotur e é atendido pelo delegado da Polícia Civil responsável pela ação. Ao perceber que não se tratava de Alves ao telefone, Crivella encerra a chamada. A desembargadora Rosa Helena Guita, da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que deu a ordem de busca na ocasião e determinou a prisão do prefeito nesta terça, disse que na época que “a subserviência de Crivella a Rafael Alves é assustadora”.

O prefeito passou a ser investigado após a delação premiada do doleiro Sérgio Mizrahy, em 2018, no âmbito da Operação Lava Jato. Em setembro, no pedido para busca e apreensão na casa de Crivella, os promotores do MP diziam que a organização criminosa praticava “toda a sorte de crimes contra a administração” e que a sua “nefasta atuação se espalhou por todo o tecido da administração municipal do Rio de Janeiro, consistindo, o seu modus operandi, em um verdadeiro mecanismo predatório de governo, em que todas as facetas da administração são enxergadas como oportunidades para a consumação de novas negociatas espúrias”.

Agarrado a Bolsonaro

Durante sua gestão, Crivella foi alvo de três votações de impeachment na Câmara dos Vereadores e conseguiu se livrar de todos. Desaprovado por cerca de 70% dos cariocas, perdeu a reeleição para o seu antecessor. No segundo turno, a maioria dos concorrentes do primeiro turno declararam apoio a Paes contra Crivella, incluindo os partidos de esquerda PT e PSOL.

Com uma administração criticada em diversas áreas, o pastor buscou se agarrar ao seu eleitorado mais fiel, os evangélicos de denominações neopentecostais, e à figura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O Rio é o berço político do presidente e de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, ambos do Republicanos, mesma legenda de Crivella.

Durante a campanha, Crivella usou diversas imagens de arquivo junto a Bolsonaro na propaganda política, mas o presidente nunca chegou a gravar para o horário eleitoral. Cerca de duas semanas antes do primeiro turno, em sua live semanal, o presidente declarou apoio a Crivella, liberando os seus seguidores a votar em Paes. “O outro [Paes], eu não quero tecer críticas. É um bom administrador, mas eu fico aqui com o Crivella. Se você não quiser votar nele, fique tranquilo, não vamos criar polêmica e brigar entre nós porque eu respeito os seus candidatos também”, afirmou Bolsonaro.

Nesta terça, em conversa com jornalistas, o vice-presidente Hamilton Mourão negou que a prisão de Crivella respingue no governo. “Isso aí é questão policial, segue o baile, investigação e acabou”, disse ele “Para o governo não tem impacto nenhum. Tem nada a ver com a gente. Sem impacto, zero impacto”, afirmou. Bolsonaro não comentou o episódio ao longo desta terça-feira.

Problemas pela frente

À frente da prefeitura, Paes terá que encarar diversos problemas. Um deles é o déficit fiscal, estimado por sua equipe em R$ 10 bilhões. Outro é uma situação caótica de enfrentamento à pandemia na cidade. O Rio é a capital brasileira com a maior taxa de letalidade em relação ao total de casos de covid-19. Além da superlotação nas UTIs e do sucateamento do sistema de saúde, praias, igrejas e bares seguem liberados.

Para evitar a corrupção dentro da administração, o futuro prefeito anunciou no início de dezembro a criação da Secretaria de Governo e Integridade Pública, a ser comandada pelo deputado federal Marcelo Calero (Cidadania). “Todos nós na vida pública temos que responder pelos nossos atos. Aqueles que forem designados por mim terão suas vidas abertas, não a sua vida pessoal, mas terão a sua dimensão pública permanentemente acompanhada”, disse Paes ao anunciar a pasta.

A nova secretaria pretende implementar mecanismos de controle, transparência e sanção entre os integrantes do governo e nas compras públicas e licitações, além de adotar um novo sistema de gestão para o pagamento de dívidas.

Eduardo Paes foi muito ligado ao ex-governador do Rio Sérgio Cabral, preso na Operação Lava Jato devido a uma lista extensa de crimes de corrupção relacionados a contratos de fornecedores com o governo do Estado. Paes não é réu em nenhum inquérito criminal da Lava Jato, mas foi citado em delação da OAS por ter supostamente recebido caixa 2 na campanha eleitoral municipal de 2012. Existe também um processo que corre na Justiça Eleitoral por suposto recebimento de recursos da Odebrecht, também em campanha eleitoral.

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Paulo Fábio Dantas Neto: Congresso Nacional 2021 - Manter sempre teso o arco da promessa

A notícia da incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.

Vários tópicos entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas como partes de uma “operação casada”.  Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de ontem se incorpora.  Parto da premissa de que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na Câmara.

Judicialização como refração de um processo político

Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.

É bom lembrar que o STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB, partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento” via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo. Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição. Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto, para pôr ordem na “bagunça”.  Preconceito antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara. E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se verificaram nos últimos anos.  E se, no caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.

Para não raciocinar sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do PTB.  Aliás, se não fosse o preconceito que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário, apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo para impedir a "bandalheira".  Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes, dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.

Por que não o fez? Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto pelos garantistas.  Do paradoxo só escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.

Sergio Moro e sua turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente, atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção. Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.

Efeitos politicamente regressivos da judicialização

Salta aos olhos que uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados, no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite derramado.  O candidato fisiológico passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele. Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o Senado.  Mas tampouco será fácil isolá-lo, a não ser que ele deseje.

Por outro lado, foi um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.

Existe a possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista. A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF, também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das mesas do Congresso um parto prematuro. 

Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas.  Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.

Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia

Em meio a tantos percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas.  Situação oposta ficou patente, também nessa sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo, qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las”.

Esses sinais de contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também. Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia. 

Nomes assim não podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto personalizado com Bolsonaro.  A resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos. Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52% ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.

Na esteira dessas lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma eleição no interior do Legislativo.

Num cenário como esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro. Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso, numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.

Na falta de um horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental. Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o que responde?

Peço, a quem o desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso. Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.

* Cientista político e professor da UFBa.


Zeina Latif: O alvo é outro

O atraso na agenda de reformas também é reflexo da pobreza do debate econômico

De tempos em tempos, a discussão sobre o comportamento da taxa de câmbio volta à tona. Alguns economistas recomendam maior intervenção do Banco Central no mercado para depreciar o câmbio e, assim, supostamente, estimular a indústria e o crescimento. As intervenções não deveriam se limitar a conter a volatilidade da cotação do dólar, como faz o BC usualmente. Seria muito bom se essa recomendação funcionasse. A realidade é bem mais dura.

O conceito relevante a ser utilizado nessa análise é o de taxa de câmbio real, que desconta o nível de preços. Isso porque a alta do dólar tem impacto inflacionário que acaba “corroendo” a depreciação ocorrida. Quando salários e preços sobem muito, reduz-se o efeito final do dólar mais alto na competitividade externa dos produtos domésticos.

Indo além, se um banco central insistir na estratégia, haverá conflito com o objetivo de cumprir a meta de inflação. Os juros terão de subir e, como consequência, a moeda poderá valorizar ainda mais, desta vez pela entrada de dólares no país. Por aqui, já dá para perceber que o câmbio real é uma variável de difícil controle.

Vale ressaltar que, no Brasil, as intervenções do BC têm efeito de muito curto prazo, o que exigiria grande e preocupante ativismo. Assim, enfraquecer a moeda sequer seria uma boa estratégia de estímulo de curto-médio prazo da economia para suavizar crises.

A formação da taxa real de câmbio é muito mais reflexo do funcionamento do sistema econômico de cada país (no jargão dos economistas, é uma variável “endógena”) do que fruto de atuação dos bancos centrais.

Claro que o ciclo mundial também impacta as moedas dos países, mas é algo fora do controle dos governos. Períodos de maior dinamismo dos EUA vis-à-vis o resto do mundo, principalmente a China, estão associados ao dólar mais forte. Mas a magnitude do seu impacto sobre as moedas dos países, que nesse caso se enfraquecem, depende de fatores internos.

Economias emergentes com gastos públicos controlados e menos entraves estruturais ao crescimento – fatores que limitam o risco inflacionário – tendem a ter uma taxa de câmbio real, em média, menos valorizada ao longo do tempo. Nessa linha, países com taxa de poupança mais elevada (produzem mais do que consomem, somados o governo e o setor privado) tendem a exibir moeda mais fraca em termos reais.

Analisando as taxas de câmbio real efetivo (considera a cotação contra uma cesta de moedas e não apenas o dólar) de um conjunto de países emergentes, desde 2000, nota-se que o Brasil está no grupo daqueles com moedas mais valorizadas. A razão é a inflação mais elevada, e não o dólar ter subido pouco. Pelo contrário. Entre 2000-2019, a alta acumulada do dólar no Brasil foi de 123%, ante uma média de 10% em um amplo conjunto de países e em torno de 20% em emergentes. Em outras palavras, o câmbio subiu bastante aqui, mas a inflação também.

E o impacto do câmbio real sobre o crescimento? Não há evidências robustas de que a moeda mais fraca de um país gera mais crescimento econômico, quando se leva em consideração outras variáveis que impactam o crescimento de longo prazo. É o que apontam Carlos Eduardo Gonçalves e Mauro Rodrigues em artigo de 2017.

Ainda que, porventura, possa haver algum impacto – como sugere a elevada correlação entre o câmbio real (ou a razão câmbio/salário) e a participação da indústria de transformação no PIB dois anos depois – , a solução não seria intervir no mercado cambial, mas sim eliminar as amarras estruturais que comprimem a produtividade da indústria, reduzem o potencial de crescimento e elevam o risco inflacionário.

A taxa de câmbio não deveria ser um objetivo de política econômica. Convém enfrentar o que realmente importa para sairmos da armadilha do baixo crescimento econômico.

O Brasil é um país hostil ao investimento e à eficiência produtiva, mas ainda não discutimos o suficiente as soluções. O atraso na agenda de reformas estruturais também é reflexo da pobreza do debate econômico.


Eugênio Bucci: Seu desaforista!

O novo Odorico leva o povo para o altar do sacrifício. Que morram muitos mais. E daí?

Em 1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo jornalista José Maria Mayrink.

Pois no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão estupidamente violenta?

Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.

Se diante dos noticiários de TV a sociedade prestava silêncio obsequioso aos ditadores que se sucediam, diante da novela podia rir deles sem medo da cana. Graças a Odorico Paraguaçu, o país vilipendiado caçoava do arbítrio, da demagogia e da estultice. Foi um sucesso instantâneo e impune. Os homens da ditadura, que se viam como agentes “modernizantes” e “urbanos”, não percebiam que o prefeito de Sucupira, de feitio rural, regionalista, antiquado e ridículo, era o retrato escarrado deles mesmos. A ditadura era burra, tão burra que batia palmas para a televisão que a fazia de palhaça. Contrassenso total.

Odorico se impôs de tal maneira que nunca mais saiu de cartaz. A Rádio CBN andou usando diálogos da antiga novela para ilustrar a desconversa de políticos da vida real acusados de corrupção. Agora, nos dias que correm – embora corram sem sair do lugar –, recortes de cenas impagáveis viajam nas redes sociais para delícia dos públicos mais diversos,

As semelhanças com o presente são efetivamente cômicas, mas também estarrecem. Numa das cenas que hoje circulam nas redes, Odorico aparece conversando com seu assessor direto, o igualmente antológico Dirceu Borboleta, interpretado por Emiliano Queiroz. O assunto é uma epidemia que ameaça Sucupira. O prefeito armou uma tramoia para impedir que o dr. Leão (Jardel Filho), seu desafeto político, distribua a vacina. Dirceu não se conforma. Sabendo que Odorico vai interceptar o carregamento das vacinas do dr. Leão, interpela o chefe para expressar sua discordância exasperante.

Com a voz medrosa, em titubeios que vão e vêm, Borboleta empreende enorme esforço para externar seu protesto. Ele, sempre submisso, está quase fora de controle. Aquilo não pode ser. Dirceu se exalta. Como deixar sem proteção o povo de Sucupira?

O prefeito reage, impaciente: “E daí, seu Dirceu?”. Esse “e daí?” soa chocante. O espectador descobre que a pergunta retórica vem de entranhas imemoriais da política nacional. O “e daí?”, como expressão de desprezo pela vida, não é de hoje.

Dirceu não se cala. Tomado de furor cívico, aumenta a voz: haverá um “assassinato em massa, um genocídio”. Passa a mão direita sobre a manga da camisa no antebraço esquerdo, como se acometido de comichões, dizendo que isso lhe dá “até arrepio”.

Então Odorico se põe em brios patrióticos, ralha com o assessor e começa a explicar seu plano. Diz que não vai impedir a vacinação, mas apenas desviar o carregamento para o posto de saúde que planeja inaugurar na cidade. Aí, sim, entregará a salvação sanitária a todos e todas. O herói será ele, Odorico, e não o dr. Leão, esse tal “que está do outro lado, do lado da oposição”. Dirceu vai se resignando, vai se rendendo, compreende o plano e fica aliviado. De um jeito ou de outro, a vacina virá e, para ele, está bom assim.

É fato que hoje, na Sucupira Central, há um Odorico pior, assumidamente genocida, que quer exterminar a vacina da oposição sem ter nada para oferecer no lugar. O novo Odorico seguirá levando o próprio povo para o altar do sacrifício ritual. Que morram mais, muitos mais. “E daí?”.

Dias Gomes talvez tenha sido um humorista profético. Ou um charadista. Em que chave cômica se explica a tragédia brasileira?

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Vera Magalhães: Boçalidade contagiosa

Mais que o vírus, é o comportamento indigno do presidente que se alastra

As pesquisas divulgadas no fim de semana pelo Datafolha pintam um cenário tão desanimador quanto a nossa absoluta ausência de estratégia para uma campanha de vacinação eficaz contra o novo coronavírus: elas mostram que boa parte da sociedade brasileira foi inoculada pela boçalidade de Jair Bolsonaro, e que ela se alastra por terrenos perigosos e dá a esse presidente, o pior da República, uma resiliência inacreditável num cenário de mortes e crise econômica.

O presidente, com seu comportamento indigno da cadeira que ocupa, voltou a dizer nesta terça-feira que não se vacinará contra o novo coronavírus.

Como tantas vezes tem feito nos últimos dois anos, novamente se comportou como um inconsequente, ao promover aglomerações na Ceagesp e instar uma criança a tirar a máscara para ser compreendida, e mostrou o ridículo de que é feito ao se enfurnar no meio da bandinha da Polícia Militar do Estado de São Paulo, numa pose ridícula de prefeito de Sucupira.

Esse tipo de postura se impregnou em setores da sociedade de forma mais deletéria do que poderíamos imaginar antes da pandemia. No Brasil, movimentos antivacina nunca tiveram grande aderência, mas com Bolsonaro até isso vai sendo corroído.

A pesquisa Datafolha mostra que são 22% os que dizem que não pretendem se vacinar. Eram 9% em agosto! Entre os que dizem confiar em Bolsonaro, esse índice vai a 33%. E os que dizem que não aceitariam se vacinar com imunizante chinês são 47%.

É impressionante a adesão de uma parcela imensa dos brasileiros à desinformação absoluta em relação às vacinas, praticada de forma deliberada e estudada pelo presidente e por seus asseclas.

Isso no momento em que o País já vive uma segunda onda de contágio pelo SarsCov2e não tem perspectiva de receber vacinas que não sejam a Coronavac, produzida pelo Butantã, pelo fato de Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o inepto general Eduardo Pazuello, não terem feito seu trabalho.

Combinado com os outros dados da pesquisa, que mostram aprovação de 37% dos brasileiros a Bolsonaro e que 44% livram o presidente de culpa pela má condução do combate à pandemia, temos um cenário desolador em que vamos ficar no fim da fila da vacina sem que a população exija de forma altiva o seu direito a ser vacinada para que o País comece a superar a maior epidemia que o atingiu desde 1918!

Trata-se de uma corrosão muito rápida e profunda dos valores que guiam a vida em sociedade — entre os quais a constatação, que deveria ser óbvia, de que a vacinação é um direito, sim, mas também um dever de um indivíduo em relação à coletividade e à saúde pública.

A completa falta de preocupação de Bolsonaro com as mais de 181 mil mortes de brasileirose sua incapacidade de recomendar àqueles que governa qualquer conduta que não seja individualista, egoísta e baseada numa visão estreita e mesquinha de mundo vão moldando o pensamento de uma parcela do povo brasileiro à imagem e semelhança do capitão. E sua imagem é a de alguém que banaliza a vida.

Diante de tal estado de apatia combinada com cinismo cabe como último recurso contar com o funcionamento ainda que precário das instituições. Hoje o Supremo Tribunal Federal terá a chance de colocar nos trilhos o Plano Nacional de Imunizaçãoindigente divulgado pelo general Pazuello, e estabelecer regras para que sim, a vacinação (quando houver vacina) seja obrigatória para matrícula e frequência em escolas, viagens de avião, inscrição em concursos, frequência em academias de ginástica etc.

Porque só esperar o bom senso dos brasileiros, como mostram as pesquisas e as cenas de aglomeração em várias cidades e as promovidas pelo presidente, não será suficiente.


Rosângela Bittar: Depois da meia-noite

Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais

Para quem não está entendendo o sucesso da plataforma eleitoral antipovo do candidato Arthur Lira à presidência da Câmara, inclusive com o embarque da esquerda na caravana bolsonarista, aqui vai uma explicação. O deputado alagoano e suas costas quentes exploram muito bem, pois a conhecem profundamente, a oportunidade que o calendário oferece.

O tempo do Congresso se divide em dois. No primeiro, os dois anos iniciais do mandato, procuram-se realizar os avanços e as reformas. No segundo biênio, o bom senso dá lugar ao vale-tudo da renovação dos mandatos. Quando coincide com a campanha da reeleição também do presidente da República, a confluência de interesses chega ao paroxismo. É o que está se vendo neste momento.

Deputados e senadores só pensam em poder, emendas e cargos que os ajudem eleitoralmente. No Senado, os prazos são outros, pois o mandato é de oito anos, mas a essência é a mesma.

O ex-deputado e ex-ministro Roberto Brant, com sabedoria mineira, costumava comparar o que ali se passava com as diferentes etapas de uma festa: até a metade, os convidados mantêm a compostura e a elegância, conservam o glamour das novas ideias que trouxeram de casa. Mas, ao bater a meia-noite, tendem ao desespero. Jogam para o ar o que tinham de melhor e partem para o uso e o abuso.

Rumo à reeleição, afloram os piores instintos políticos. A busca por adesões excita os currais. Principalmente se quem vai exercer o poder o faz em nome do presidente da República.

Avanços políticos, alguns verdadeiramente civilizatórios, como foi a extinção do imposto sindical, voltam à mesa de negociação com cínica naturalidade. Celebrado no passado como novo sindicalismo, tal como Jair Bolsonaro foi celebrado como nova política, o malfadado imposto foi reprovado com amplo apoio popular. Para os que dele viviam, os chamados pelegos, a extinção teria sido a razão do enfraquecimento dos sindicatos. Raciocínio que é uma impostura. Sem ele, os sindicatos ganharam autenticidade. Ao associar-se ao projeto, a esquerda atinge o trabalhador em uma de suas mais difíceis conquistas.

Na cabala de votos, sobretudo do PT, o candidato bolsonarista se solidariza também com o período do uso da Petrobrás na montagem de um extenso esquema de corrupção. Acena com a facilitação da volta da candidatura Lula por intermédio da desmoralização da Operação Lava Jato, já abalada por certos equívocos dos principais condutores das investigações. Momento em que os extremos se encontram. Todos deliram na mesma farra eleitoral embora saibam que, Lula, candidato, nunca mais.

Incluiu-se na barganha temática um tranco na Lei da Ficha Limpa, outro avanço com apoio popular prestes a ser perdido. O candidato bolsonarista promete atenuar a lei, quem sabe, abrindo uma janela de fuga. As lacunas são conhecidas, entre elas uma das piores é o poder de juízes locais de fustigar os inimigos políticos com um peteleco jurídico, mas não é nesta circunstância que a discussão será justa e eficiente.

De posse da chave do cofre do governo nesta campanha, o candidato bolsonarista à presidência da Câmara promete reabastecê-lo de recursos, com a aprovação da também defenestrada CPMF. Uma regressão em proporções nunca vistas, camuflada pela infamante versão de que o único obstáculo ao absurdo imposto sobre transações era um capricho do atual presidente da Câmara. O fantasma da meia-noite da virada do mandato vestiu, com isso, sua máscara. A Câmara inteira era aliada da sociedade, contra o imposto. Não se sabe como será agora.

Se ficar a serviço deste projeto de poder, o Congresso deixa de ser proteção para ser ameaça. Pode-se prever o quadro de desequilíbrio que vem por aí. A economia, mal; a recuperação, incerta; o desemprego, subindo; o isolamento internacional, absoluto; o Congresso, servil. Para a sociedade, perplexa, nega-se até a vacina contra a morte.


Hélio Schwartsman: Luta contra Covid não é só incompetência

O fracasso contra a Covid-19 se deve à sabotagem dos consensos científicos sobre a doença

É impressionante a resiliência de Bolsonaro na pesquisa Datafolha que avaliou as percepções do eleitorado sobre sua performance. Apesar do agravamento da epidemia, a aprovação ao presidente continua em 37%, mesmo nível registrado em agosto, quando a curva das infecções refluía.

Seria tentador decretar que o eleitor é um marciano cego, incapaz de reconhecer a realidade que o cerca, desistir da democracia e sonhar com um déspota esclarecido. Mas não é tão simples. A Covid-19 é corretamente percebida como um problema, e a maior parte dos entrevistados (42%) considera o desempenho do presidente nessa frente como ruim ou péssimo --30% cravaram bom ou ótimo.

Não obstante, a maioria (52%) afirma que o presidente não tem nenhuma culpa pelos mais de 180 mil brasileiros mortos, e 38% dizem que ele tem alguma responsabilidade, mas não é o principal causador dos óbitos.

Há aqui, acredito, um problema de "accountability". Seria um despropósito apontar Bolsonaro como o principal culpado pelas mortes, como fizeram 8% dos entrevistados. O presidente se sai mal em praticamente tudo o que diz respeito ao controle sanitário da pandemia, mas não foi ele que criou e espalhou o vírus, a causa mais direta do morticínio.

Só que isentá-lo de qualquer responsabilidade, como fizeram, vale repetir, 52%, significa ignorar as funções precípuas do Estado contemporâneo, que existe, entre outros objetivos, para dar respostas coordenadas e efetivas a emergências nacionais, sejam elas decorrentes de guerras, desastres naturais, crises econômicas ou epidemias.

O que torna o caso de Bolsonaro especialmente revoltante é que o fracasso do Brasil no manejo da Covid-19 não se deve apenas à incompetência das autoridades, um fato da vida, mas à insistência do presidente em sabotar os poucos consensos científicos sobre a doença a fim de extrair ganhos políticos pessoais. E isso é abominável.


Carlos Andreazza: A pazuellização

Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general?

Um governo que ancorou seu negacionismo frente à pandemia num discurso de compromisso radical com a saúde econômica deveria ser obcecado por vacinar maciçamente a população. Porque só a vacinação destravará a economia.

Este, no entanto, é um governo que só criou — e cria — dificuldades para a vacinação. Na prática, o governo Bolsonaro — força regressiva, dependente de imprevisibilidades, que melhor vigorará quanto maior for a calamidade — lida com a pandemia de forma antieconômica. É um contrassenso. É, pois, a mais pura expressão do bolsonarismo, fenômeno reacionário anabolizado pela dissonância cognitiva.

A principal constituição discursiva de Jair Bolsonaro ante a peste apenas se serviu da preocupação com a economia para fabricar conflitos e difundir teorias da conspiração. Falamos de um presidente que manteve taxa de aprovação acima de 30% mesmo, no auge da pandemia, quando cultivava declarações beligerantes no cercadinho do Alvorada. Ingênuo crer que sua pregação antivacina não resultasse em aumento no número daqueles que não pretendem se imunizar.

Isso passa, contudo. Reverte-se. No caso da Covid-19, é ter as doses nos postos para que a desconfiança dos que dizem que não se vacinariam se converter em braço esticado. Sim: teremos os antivacinas vacinados. E continuarão bolsonaristas. Ok. O problema é a cisão social derivada da descrença; o eco influente da desinformação — sim, genocida — sobre outrora sólida cultura vacinal. Voltou o sarampo. A estúpida campanha antivacina produz atraso objetivo quando o estúpido é o presidente da República.

No mundo real, vários países iniciam seus programas de vacinação já neste dezembro. O Brasil não poderia mesmo formar entre os primeiros. Não é o Reino Unido. A questão é se precisaria ficar tão atrás. Há países em condições político-econômicas piores que começarão antes. Isso é produto da incompetência; da pazuellização do Brasil. O governo brasileiro é péssimo de serviço, o que foi potencializado — esta ruindade sabotadora — pela doença ideológica bolsonarista.

Meses de delinquência criaram a lama para este ambiente de caos anestesiado. De modo que o governador Ronaldo Caiado, de Goiás, deveria calibrar melhor a leitura das razões para o que diagnosticou — corretamente — como corrida maluca por vacinas. E pensar sobre quem prospera investindo na loucura.

Não há corrida maluca porque um governador — diante, por exemplo, de empecilhos forjados por uma Anvisa a serviço de um projeto de poder — tomou a frente para assegurar a vacinação dos seus. Há corrida maluca porque o governo federal — por meio de atitude sociopata — recusou-se, boicotando qualquer esforço coordenado, a comandar o processo. O governo Bolsonaro plantou o cada um por si.

Caia quem quiser na armadilha polarizadora sobre quem teria politizado primeiro; se Bolsonaro ou Doria. Políticos politizam. Claro que olham para 2022. Normal. Todos o fazem, inclusive Caiado. Com uma diferença: tudo o mais constante, só um entre os politizadores terá vacina para aplicar em janeiro. É uma diferença civilizacional.

O pânico, esta é a palavra, quem promove agora, por medo de natureza político-eleitoral, é o governo federal reativo, cujo plano nacional de vacinação — um catadão vergonhoso cuspido no papel — só existe porque obrigado, feito às pressas sob a vara de um Supremo que se deixa enganar. Como acreditar que um Ministério da Saúde inconfiável, que se prestou a cavalo de um mistificador, cavalo também sendo o Exército, e que nada planeja desde abril, seria — será — capaz de conceber um programa vacinal em semanas?

Foram meses de escolhas cretinas. A começar pela inexistência de convênios com todos os grandes produtores de vacina. Precisaríamos de todas. O governo, porém, preferiu restringir-se a um só fabricante, incapaz de atender a toda nossa demanda — e de que ficaríamos cativos em caso de alguma delonga no trâmite de aprovação de seu imunizante. Foi o que ocorreu.

Acontece. Ninguém obrigou o Brasil a se atrelar ao destino de um só laboratório. Quem dera, porém, fosse apenas esse o nosso espeto... Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general? A questão é quando. Questão — quando? — que projeta fosso de negligência em que milhares morrerão.

Nunca tive dúvida de que, havendo vacinas, o governo federal correria para comprar todas, inclusive a CoronaVac, aquela chinesa, a comunista etc. Aquela que Bolsonaro disse que não compraria. Comprará. O mundo real se impõe. Nunca duvidei de que o governo safado testaria até a tese do confisco; a surpresa sendo um macaco velho como Caiado, pazuellizado, deixar-se servir por boi de piranha da barbárie.

O mundo real se impõe. E a lei se imporá, inclusive para tornar a Anvisa bolsonarista irrelevante... A lei se imporá também ao processo de pazuellização da vida pública. O revés é o tempo perdido —sempre ele. Veja o caso da vacina da Pfizer. O Ministério da Saúde, leviano, arrotou várias dificuldades, antecipando-se para difamar um imunizante porque exigiria geladeiras especificas. E agora é o “ai, Jesus” — com Pazuello, talvez já convencido de que haja demanda, anunciando acordo para aquisição de milhões de doses antes mesmo de o contrato assinado.

Compraremos todas, qualquer que seja o preço. E esperaremos — no fim da fila. O mais caro preço. Párias e otários.


Ricardo Noblat: Era Bolsonaro marca mais uma fase de fechamento político

A reabertura virá, só não se sabe quando

Ideias, princípios e valores que catapultaram Jair Bolsonaro para o cargo que ocupa foram convalidados na eleição municipal deste ano que deu a vitória às forças da direita e do centro, e outra vez assim será em fevereiro próximo quando a Câmara dos Deputados e o Senado escolherem seus novos dirigentes.

Candidatos a prefeito e a vereador apoiados por Bolsonaro podem ter sido derrotados, mas ele não foi. E disso também informam as pesquisas mais recentes de avaliação do governo, do presidente, e de intenção de votos para 2022. Com mais de 180 mil mortos pela pandemia, a aprovação de Bolsonaro permanece estável.

Os que apostam no seu eventual fracasso nas urnas daqui a dois anos argumentam que a economia em 2021 atravessará seu pior momento. Aumentará o número de desempregados e faltará dinheiro para quase tudo, inclusive para o pagamento do auxílio emergencial contra o vírus, tenha ele o nome que tiver.

De resto, de acordo com os mais otimistas, emergirão os dispostos a enfrentar Bolsonaro, o que fará muita diferença. Por ora, ele galopa sozinho sem que ninguém o acosse. O distinto público observa à distância e de maneira desinteressada. Quando os demais cavaleiros entrarem na raia, tudo mudará. A ver.

O raciocínio pode até fazer algum sentido, mas está longe de enfraquecer a condição de favorito de quem se candidata à reeleição. Dizia-se que Bolsonaro não sobreviveria a sua trágica performance durante a fase mais assassina do coronavírus. Pois sobreviveu sem que se registrassem danos à sua imagem.

Diz-se, agora, que corre o risco de ir para a estrebaria se a vacinação em massa, sem data marcada para começar e sem meios adequados para ser aplicada, frustrar a expectativa da população ansiosa por virar a página do ano mais sofrido de sua vida. Não é o que parece. O vírus ideológico joga a favor de Bolsonaro.

A resiliência do brasileiro é notável, o que significa sua capacidade de assimilar golpes sem reagir à altura. É o que explica o fato de o Brasil ser um dos países de maior concentração de riquezas do mundo. Explica porque nele dá-se o nome de “bala perdida” aos projéteis que matam inocentes, e fica tudo por isso mesmo.

O general Golbery do Couto e Silva, um dos arquitetos do golpe militar de 64 e, mais tarde, do processo de abertura política do regime, valeu-se de termos da cardiologia para ilustrar o que acontece também com a política. Sístole quer dizer fechamento. Diástole, distensão. São dois estágios do ciclo cardíaco.

Entende-se por sístole a fase de contração do coração, em que o sangue é bombeado para os vasos sanguíneos. Diástole é a fase de relaxamento, quando o sangue entra no coração. A ascensão de Bolsonaro ao poder é mais uma fase de sístole do processo político. A diástole virá, só não há sinais dela no horizonte. Isso é ruim.


Merval Pereira: Passando do limite

Se havia alguma dúvida de que o presidente Bolsonaro queria ter um sistema de inteligência que o servisse, e à sua família, em termos pessoais, agora não há mais. É devastadora a revelação de Guilherme Amado na revista Época de que a Agência Brasileira de Informação (Abin) fez pelo menos dois relatórios para orientar a defesa do senador Flavio Bolsonaro na tentativa de anular as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o esquema de “rachadinha” montado por ele e outros deputados estaduais na Assembléia Legislativa do Rio.

O diretor-geral da Abin é ninguém menos que o delegado Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro queria ter nomeado para a direção-geral da Polícia Federal, e foi impedido por decisão do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal. A alegação para proibir sua nomeação foi evitar o que aconteceu agora. O delegado tornou-se amigo da família quando passou a fazer a segurança pessoal do então presidente eleito Jair Bolsonaro, e a partir daí sua proximidade com o clã tornava sua nomeação potencialmente uma afronta ao princípio da impessoalidade, da moralidade e do interesse público, exigências para a nomeação de servidores.

Justamente no momento em que, por não concordar com a nomeação, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, pedia demissão e acusava o presidente Bolsonaro de interferência na Polícia Federal. Aliás, esse caso da Abin já teve um começo escandaloso, quando foi denunciada pelo próprio Guilherme Amado uma reunião no Palácio do Planalto, com a presença do presidente Bolsonaro, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, com os advogados do senador Flavio Bolsonaro, para discutirem caminhos para a defesa do filho do presidente das investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Na ocasião, o ministro Augusto Heleno admitiu que houve a reunião, mas disse que nada foi feito porque verificou que aquela não era uma tarefa que dissesse respeito à segurança institucional do país. Já era escandalosa a reunião em si, mas a garantia de que nao houve consequências dela pareceu satisfazer. Os documentos obtidos pelo repórter da Época, porém, tiveram a autenticidade e a procedência confirmadas pela defesa do filho do presidente, o que colide com mais uma negativa do General Augusto Heleno, que voltou a afirmar que não partiram da Abin tais informações.

Acreditando-se no depoimento do General, e sabendo-se que os documentos vieram da Abin, por WhattsApp, para a defesa de Flavio, é factível acreditar que funciona na Abin uma inteligência paralela que alimenta a defesa do filho de Bolsonaro sem que o chefe da inteligência brasileira tenha conhecimento, o que aumentaria a gravidade do caso.

O caso do filho 04 do presidente Bolsonaro, Renan Bolsonaro, que teve a festa de inauguração de sua empresa de eventos filmada e fotografada gratuitamente por uma firma que tem contratos com o governo federal, é um trambique mixuruca, medíocre, coisa de republiqueta de banana. Comparável com o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, que perdeu o posto porque extorquia uns caraminguás do concessionário do restaurante da Casa.

Tem que punir, não se pode aceitar, mas o caso da Abin é gravíssimo, e passível de impeachment do presidente por improbidade administrativa. É o presidente usando órgãos de investigação do Estado brasileiro para proteger seu filho. E para desmoralizar outros serviços públicos, como a Receita Federal e o Coaf. Não se pode aceitar isso. Estamos vivendo num país em que coisas anormais viram normais.

Houve uma reunião no Palácio do Planalto, no gabinete do presidente, para usar a agência de segurança nacional, instituição do Estado brasileiro, para resolver problemas de acusação de corrupção da família do presidente.

É um coquetel de mal-feitos. Faz contato com a investigação que está sendo realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela denúncia de interferência na Polícia Federal, dando indícios graves do que estava sendo tramado no entorno do presidente. Quem quiser ligar os pontos, terá uma imagem perfeita do que acontece nesse governo que mistura o público com o privado como nenhum outro.


Guilherme Amado: A Abin e a operação para ‘defender FB’ e enterrar o caso Queiroz

Abin produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz. Nos dois documentos, obtidos pela coluna e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a Abin detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que gerou o inquérito das rachadinhas. Enviados em setembro para Flávio e repassados por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre Ramagem, diretor da Abin, em 25 de agosto.

Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão daquele trabalho. Em um campo intitulado “Finalidade”, cita: “Defender FB no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.

O primeiro contato de Alexandre Ramagem com o caso foi numa reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu das mãos das advogadas de Flávio uma petição, solicitando uma apuração especial para obter os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita. Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a orientação de que o protocolasse na Receita Federal. A participação da Abin, a partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro, com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.

No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de “defender FB no caso Alerj”, a Abin classifica como uma “linha de ação” para cumprir a missão: “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O texto discorre então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita e a ex-secretários, a exemplo de Everardo Maciel.

 “A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo seguida”, diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.

O relatório sugere a substituição dos “postos”, em provável referência a servidores da Receita, e, sem dar mais detalhes, afirma que essa recomendação já havia sido feita em 2019.

“Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB!”, explica o texto.

A agência traça em seguida outra “alternativa de prosseguimento”, que envolveria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).

“Com base na representação de FB protocolada na RFB (Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita judicialização da matéria pela AGU. (...) FB peticiona acesso à CGU aos autos da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ”, recomenda o texto, resumindo qual é a estratégia: “Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob comando do Executivo”.

Ainda nesse primeiro documento, outros dois servidores federais são acusados pela Abin, o corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, e o corregedor da Receita, José Barros Neto.

“Existem fortes razões para crer que o atual CGU (Gilberto Waller Júnior) não executar(ia) seu dever de ofício, pois é PARTE do problema e tem laços com o Grupo, em especial os desmandos que deveria escrutinar no âmbito da Corregedoria (amizade e parceria com BARROS NETO)”, disse o texto.

Um parêntese curioso. Neste trecho, já no fim do documento, a Abin, comandada pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, sugere que Bolsonaro demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral e coloque no lugar dele um policial federal: “Neste caso, basta ao 01 (Bolsonaro) comandar a troca de WALLER por outro CGU isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF de sua confiança”.

O outro documento enviado pela Abin a Flávio e repassado por ele a sua advogada traça uma “manobra tripla” para tentar conseguir os documentos que a defesa espera.

As orientações da agência aqui se tornam bem específicas.

“A dra. Juliet (provável referência à advogada Juliana Bierrenbach, também da defesa de Flávio) deve visitar o Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”, diz a primeira das três ações, chamadas pela Abin de “diversionária”.

Em seguida, o texto sugere que a defesa peticione ao chefe do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita, baseando-se na Lei de Acesso à Informação — o que de fato a defesa de Flávio Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito. “O e-sic (sistema eletrônico da Lei de Acesso) deve ser evitado pois circula no sistema da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB”, explicou a Abin.

E, por fim, o relatório sugere “neutralização da estrutura de apoio”, a demissão de “três elementos-chave dentro do grupo criminoso da RF”, que “devem ser afastados in continenti”. “Este afastamento se resume a uma canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de diversas fraudes fartamente documentadas”, afirma o texto, sem especificar que condutas seriam essas. E cita os nomes de três servidores: novamente o corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio, Christiano Paes. Num indicativo de que Bolsonaro talvez esteja seguindo a recomendação da Abin contra os servidores, Paes pediu exoneração do cargo na semana passada.

Procurado, o GSI negou a existência dos documentos, mesmo informado que a autenticidade de ambos havia sido confirmada pela defesa de Flávio Bolsonaro, e manteve a versão de que não se envolveu no tema. Procurada, a advogada Luciana Pires confirmou a autenticidade dos documentos e sua procedência da Abin, mas recusou-se a comentar seu conteúdo.

A Abin não respondeu aos questionamentos sobre a origem das acusações feitas nos relatórios nem se produziu mais documentos além dos dois obtidos pela coluna. Alexandre Ramagem, diretor da agência, atualmente voltou a ser cotado para comandar a Polícia Federal, caso Bolsonaro seja inocentado no inquérito que investiga se ele queria controlar a corporação ao nomear Ramagem, amigo de seus filhos, para a direção da PF.


Demétrio Magnoli: O Doria da vacina contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público

Suspeito que, em 2022, todas as versões do governador marcharão juntas, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo

"Os dois fazem política com a vacina" —no rastro do bate-boca entre João Doria e Eduardo Pazuello, sobraram analistas dispostos a colocar um sinal de equivalência entre o governador paulista e Jair Bolsonaro. A pretensa identidade sustenta-se na ideia de que a política é um domínio tóxico —e no corolário segundo o qual, quando se trata de uma pandemia, deve ser substituída pela pura razão científica.

Nenhuma nação enfrentou a pandemia sem apelar à razão política, pelo simples motivo de que existem argumentações científicas capazes de justificar diversas abordagens (embora nem todas: cloroquina não vale!). A Itália aplicou rígidos "lockdowns". A Alemanha, quarentenas moderadasA Suécia, suaves restrições sanitárias. Nos três casos, especialistas conceituados divergiram entre si e os governos adotaram as decisões finais, guiadas pela política. No caso da vacina, Doria faz a boa política, norteada pelo interesse público mais vital —e, se isso o beneficia politicamente, melhor para ele.

O lance magistral foi a divulgação antecipada do cronograma de vacinação paulista. O xeque ao rei obrigou o governo Bolsonaro a mover suas peças.

O governo federal apostou tudo numa única vacina, a de Oxford/AstraZeneca, cujos testes sofreram atraso. Ignorando a Coronavac, que mantém contrato com o Butantan, Pazuello anunciara o início da imunização para as calendas de abril. De repente, açoitado por Doria, o ministro da Doença girou 180 graus, negociando a compra de estoques da vacina Pfizer/BioNTech, algo que antes descartara. Mais: no compasso do pânico, antecipou o começo da vacinação para "dezembro ou janeiro", um compromisso que dificilmente poderá honrar.

O plano original de Brasília era usar a Anvisa para postergar a aprovação do imunizante que o presidente rotula como "vacina chinesa" até depois da inoculação das primeiras doses da "vacina federal". Tratava-se de sacrificar deliberadamente as vidas de milhares de brasileiros no altar da febre ideológica bolsonarista e dos cálculos eleitorais de Bolsonaro. Doria frustrou a ofensiva da infantaria presidencial contra a saúde pública.

A guerra prossegue, em novos teatros. O contra-almirante Barra Torres, chefe da Anvisa, um soldado raso tão obediente quanto o submisso general Pazuello, ameaça enrolar a avaliação da Coronavac por infinitos 60 dias, que valem (na cotação atual) cerca de 39 mil óbitos. Mas, sob pressão da opinião pública e da peregrinação de estados e municípios às portas do Butantan, é provável que o Congresso ou o STF dispersem a caravana da irracionalidade, impondo a vacinação geral.

O Doria da vacina, que emerge vitorioso do bom combate, contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público.

O primeiro é o governador que propiciou o fechamento eterno das escolas paulistas. Pelo mundo afora, em nações ricas e pobres, estudos avalizados pela OMS comprovam que escolas não são focos significativos de contágios. O prolongado cancelamento das aulas presenciais cobra preço devastador das crianças pobres e de seus pais. Mas, curvado à resistência corporativa dos professores e ao compreensível temor de famílias assustadas, Doria virou as costas à ciência na qual proclama se inspirar.

O segundo é o governador que cumpre a promessa eleitoral de proteger uma polícia treinada no esporte de "atirar para matar". A letalidade policial em São Paulo bate recordes históricos, vitimando centenas de jovens nas periferias —sem, obviamente, arranhar os negócios do PCC. O Doria da vacina, que é o da vida, convive pacificamente com o Doria da morte, um político semibolsonarista pronto a surfar a onda da barbárie.

Qual Doria se apresentará como alternativa a Bolsonaro em 2022? Suspeito —e espero estar errado— que todos eles marcharão juntos, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.