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O Estado de S. Paulo: Candidatos 'independentes' ameaçam embaralhar disputa e forçar 2º turno na Câmara

Para ganhar a eleição, o candidato precisa ter a maioria dos votos dos 513 deputados, ou seja 257

Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A candidatura de deputados de forma "independente", sem o respaldo de seus partidos, ameaça embaralhar a disputa pela presidência da Câmara, em 1º de fevereiro, e pode levar a decisão para o segundo turno. Além dos dois favoritos, Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL), outros quatro deputados podem entrar no páreo.

Fabio Ramalho (MDB-MG) é um desses candidatos. Ele manteve promessa feita na última eleição e vai concorrer pela segunda vez à presidência da Casa, apesar de o presidente do seu partido, Baleia, ser o indicado no bloco de 11 legendas formado por Rodrigo Maia (DEM-RJ). O grupo reúne 280 parlamentares, mas, como o voto é secreto, as "traições" são comuns nestas disputas.

Para ganhar a eleição, o candidato precisa ter a maioria dos votos dos 513 deputados, ou seja 257. Caso nenhum atinja o número no primeiro turno, é realizada uma nova rodada de votação no mesmo dia, apenas com os dois primeiros colocados.

Em 2019, quando tentou pela primeira vez comandar a Câmara, Ramalho obteve 66 votos e ficou em segundo lugar, atrás do próprio Maia, com 334 votos. Naquele ano, Ramalho também disputou sem o apoio do MDB e tentou conquistar os colegas com um discurso em defesa da classe política e também pelo estômago - ele é conhecido por oferecer refeições em seu gabinete, principalmente durante longas votações. Com a pandemia, trocou a culinária por uma campanha pelo telefone.

Ramalho tem a simpatia de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e, ao longo de 2020, organizou almoços, sempre bem servidos de comida mineira, no Palácio do Planalto, a aliados do governo. Ele acredita que terá mais votos desta vez do que em 2019, mas não se arrisca a dizer de quais partidos devem sair esses apoios.

No bloco de apoio a Lira, que reúne dez legendas e 203 parlamentares, o deputado Capitão Augusto (PL-SP) também segue na disputa como "avulso", apesar de seu partido ter indicado o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) como primeiro vice-presidente na chapa do líder do Centrão. Augusto preside a chamada bancada da bala no Congresso, que reúne 304 parlamentares.

"Existe a possibilidade, ainda que remota, de eu conseguir ir para o segundo turno. Lembrando que o voto é secreto e temos quase 300 novos deputados, ficando impossível prever qualquer resultado. Acredito que as bancadas temáticas terão uma força grande nessas eleições", disse. Augusto está em campanha desde o início do ano passado e acredita que terá cerca de 80 votos, abocanhando apoio também da bancada da Bíblia.

Há ainda a possibilidade de o Novo, com oito deputados, lançar um candidato próprio. Em 2019, o novato Marcel Van Hattem (RS) representou a sigla na disputa e obteve 23 votos. O PSOL, com dez parlamentares, também discute se lança um nome independente ou se adere ao bloco de Baleia. A bancada está dividida e tem reunião agendada para o dia 15.

O azarão e Bolsonaro

Em fevereiro de 2005, foi um candidato avulso quem levou o comando da Câmara. O azarão Severino Cavalcanti (PP-PE) foi eleito sem o apoio do seu partido, mas com promessas de elevar salários e em defesa dos deputados.

Na votação do primeiro turno, com o PT rachado, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), candidato do governo, somou 207 votos; Severino teve 124 votos e Virgílio Guimarães (PT-MG), 117 votos. A eleição teve ainda José Carlos Aleluia (PFL-BA) com 53 votos e o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, na época deputado pelo PFL, com apenas 2 votos.

No segundo turno, Severino foi eleito com 300 votos. Mas durou pouco no cargo. Sete meses após assumir e em meio a denúncias de corrupção e nepotismo, ele renunciou para evitar ter o mandato cassado. Severino até tentou voltar à Câmara anos depois, mas não foi eleito. Conseguiu um mandato como prefeito de João Alfredo, no interior de Pernambuco, entre 2009 e 2013. O ex-deputado morreu em julho passado, aos 89 anos.


Paulo Hartung: Uma agenda de múltiplos avanços em 2021

Fica cada vez mais claro que a questão de ESG passa a ser o cerne de uma nova atitude

O ano se inicia iluminado pela necessidade de novas atitudes. Um novo ciclo em que o multilateralismo seja retomado de fato, debates sejam sustentados pela razão e pela ciência e o futuro sustentável do planeta seja uma obsessão de todos.

Fica cada vez mais claro que a questão de ESG (sigla em inglês para “ambiental, social e governança”) passa a ser o cerne de uma nova atitude. Este ano será marcado por eventos que reforçam o diálogo global e o trabalho em prol de soluções conjuntas que podem ajudar a tornar viável um mundo melhor.

Em 2021 serão duas conferências das Nações Unidas no mesmo ano: a COP-15 da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que deve negociar a nova Estratégia Global de Biodiversidade Pós-2020; e a COP-26 de Mudança Climática, em Glasgow, que pretende abordar a criação de um mercado global de carbono, conforme o Acordo de Paris, ferramenta fundamental para incentivar a aceleração da economia de baixo carbono. Teremos também, pela primeira vez no Brasil e fora da Finlândia, o Fórum Mundial de Bioeconomia, em Belém, no Pará.

O Brasil tem de saber aproveitar essa movimentação global. Trata-se do país com a maior floresta tropical do mundo, a maior biodiversidade do planeta e um agronegócio sustentável. Temos tudo para transformar nossas potencialidades em oportunidades e para isso há urgências que não podem ser deixadas de lado.

A tarefa mais impositiva é uma resposta adequada e concreta a atos criminosos na Floresta Amazônica, como os desmatamento, as queimadas, a grilagem de terras e o garimpo ilegal.

O setor produtivo brasileiro já tem sido demandado por consultas públicas, como as abertas pelo Reino Unido e pela Comissão Europeia, com o objetivo de criar legislações internas para coibir o desmatamento ilegal nas cadeias de suprimentos. Consumidores e varejistas têm feito movimentos buscando garantir que os produtos escolhidos sejam sustentáveis. Os alertas dos investidores internacionais são sonoros. Larry Fink, presidente da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, sentenciou que países emergentes que não provarem que estão cuidando das pessoas, do meio ambiente e da governança vão pagar juros mais altos.

Para mudarmos esta percepção do mundo precisamos de ações e resultados. E sabemos o caminho a ser percorrido: implementar o Código Florestal em sua plenitude, avançar em tecnologia e transmissão de dados para monitoramento e ação contra atos ilícitos, investir no desenvolvimento da Região Amazônica, para levar infraestrutura básica aos mais de 25 milhões de brasileiros e brasileiras que lá vivem.

Estancando essa crise que prejudica o hoje e o amanhã, o Brasil tem todas as condições para reassumir seu protagonismo no debate mundial sobre sustentabilidade. Não precisamos inventar a roda. Temos dentro do nosso território exemplos claros, que podem ser estímulos e modelos para outros negócios.

O cultivo de árvores para fins industriais no Brasil é um dos faróis dentro da bioeconomia, uma agricultura que tem em sua veia a sustentabilidade e a inovação. Essa agroindústria tem os olhos voltados para o futuro. Planta, colhe e replanta, comumente em terras antes degradadas pela ação humana. No Brasil, com mais de 50 milhões de hectares previamente degradados por outros usos, há muito espaço para continuar produzindo, sem necessidade de abrir novas áreas.

Encurtando cada vez mais a distância entre o futuro e o presente, esse segmento desenvolve novas aplicações da madeira. Entre novas fábricas e expansões, o setor tem anunciado mais de R$ 35,5 bilhões, incluindo dois projetos de celulose solúvel (Bracell e LD Celulose, joint venture entre a austríaca Lenzing e a brasileira Duratex). Sua principal aplicação é na viscose, que vem ganhando espaço na indústria têxtil, um mercado ainda dominado por fibras sintéticas. A Suzano trabalha a celulose microfibrilada em parceria com a startup finlandesa Spinnova para produzir fios têxteis com ganhos de sustentabilidade, redução de uso de água e químicos.

Outro exemplo de inovação verde a partir da celulose microfibrilada (MFC) vem da Klabin. Em parceria com o Senai e a Apoteka de cosméticos, a empresa finalizou, em tempo recorde, os testes para produção de álcool em gel. O novo produto, extraído da madeira, substitui o carbopol, componente da fabricação de álcool em gel de origem fóssil.

O mundo está entrando no movimento ESG, que significa uma nota de corte crescente para produtos, empresas e países. No Brasil já temos empresas e setores que navegam nesse universo há anos. Está na hora de enxergarmos tendências, percebermos potencialidades e construirmos pontes entre a possibilidade e a realidade. Assim fortaleceremos o combate às mudanças do clima, estabelecendo perspectivas de um mundo mais saudável para as atuais e as futuras gerações, produzimos riquezas e criamos empregos para a juventude brasileira, hoje.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Dorrit Harazim: A arte de viver

Parece que viramos a página: ficou escancarado em 2020 que, sem o outro, não somos nem seremos

Individualmente, nunca se saberá quem mais sofreu neste soturno ano de 2020. Coletivamente a resposta é fácil: foi a arte. Mas qual delas? Aquela que independe de qualquer genialidade ou talento específico para existir: a arte de viver. Para quem teve o privilégio de não estar entre as quase 2 milhões de pessoas levadas pela Covid, sobreviveu com medo, aceitou perdas, adequou-se ao vazio e ao silêncio, reinventou-se como pôde no confinamento abrupto. Sempre fomos moldáveis na arte de viver para conseguirmos sobreviver e dar sentido à espécie. 2020 quase nos tirou do prumo através de seu cortejo fúnebre. Mas parece que viramos a página: ficou escancarado que, sem o outro, não somos nem seremos.

Se viver é a maior das artes, a poesia vem logo atrás. Ela tem o poder de libertar as profundezas do possível, de restaurar zonas entumecidas. Ser alcançado por um poema de Armando Freitas Filho na hora certa é um choque transformador, libertador.

Em meio à clausura mundial de 2020, nada mais atual do que a meditação sobre a saga humana feita por John Donne 400 anos atrás. Donne, um dos maiores poetas de língua inglesa de todos os tempos, estava seriamente enfermo quando escreveu em prosa a “Meditação XVII” :

— Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é parte de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.

Donne foi homem de fé. Fé absoluta em Deus e convicto de que a humanidade só avança se compartilhada. O escritor americano Ernest Hemingway foi o oposto: era ateu roxo, ímpio por opção e incréu pelo que vivenciou. O que não o impediu de recorrer a Donne para o preâmbulo e título de uma de suas obras mais famosas, “Por quem os sinos dobram” (1940), romance sobre o fracasso humano na Guerra Civil espanhola.

Outro poeta-monumento, o galês Dylan Thomas, ao ver o pai moribundo e sem amparo da fé, criou um poema de resistência. “Não entres nessa noite acolhedora com doçura/ Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia/ Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura...”, dizem os 19 versos que convidam a não nos dobrarmos pacificamente ao inevitável. “Do not go gentle into that good night”, publicado em 1951, tornou-se um tesouro da língua inglesa, uma ode à tenacidade do espírito humano. Vem muito a calhar neste início de 2021.

Difícil saber no que se agarrar. Se o otimismo é uma forma alienada de fé, e pessimismo é uma forma alienada de desespero, como defende um grande humanista dublê de psicólogo, resta a fé racional no espírito humano. Simone de Beauvoir descreveria essa fé como esperança, “contrapeso lúcido e musculoso ao otimismo cego... esperança de que a verdade possa ser usada”.

Tempos atrás, quando a espécie humana ainda procurava se reconciliar com as ruínas da Segunda Guerra, a NPR, sigla da rede de rádio pública dos EUA, convidou 80 famosos e anônimos a sintetizarem seu credo pessoal de como tocar a vida. As narrativas, porém, precisavam caber em 100 palavras, proposta radical para tempos em que o mundo não girava em torno de 140 caracteres. Entre os participantes, uma vendedora de enciclopédias de porta em porta e John Updike, uma ajudante hospitalar e Eleanor Roosevelt. Havia, sobretudo, Thomas Mann, Nobel de Literatura e autor do colossal romance “A montanha mágica”.

Mann começa constatando que, apesar de a vida ser possuída por uma tenacidade assombrosa, nossa presença sempre será condicional. “Somente por este motivo acredito que a vida tem um valor e charme vangloriados em excesso”, escreveu. Sua crença maior, e no que depositava maior valor, era justamente o caráter perecível dessa presença: “A transitoriedade é a própria alma da existência. Ela dá valor, dignidade, interesse à vida. A transitoriedade cria o tempo... E, ao menos potencialmente, o tempo é a dádiva suprema, a mais útil. Sem começo ou fim, nascimento ou morte, também o tempo inexiste”. Sobraria um nada estagnado.

A cada um sua arte de viver. Da recomendada por John Donne há séculos à entoada com urgência por Emicida, hoje vamos de “AmarElo”: “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro”.


Celso Ming: Desafios à frente e o que esperar de 2021

Não será preciso muito para fazer deste 2021 um tempo melhor do que foi 2020, um annus horribilis, como diria a rainha Elizabeth II, do Reino Unido – se não por outras razões, pelo menos pelo desastre produzido pela pandemia.

A perspectiva da vacina já muda muitas coisas – algumas para melhor. É o que já se pressentiu no último trimestre do ano passado, quando houve boa retomada da atividade econômica, embora ainda faltem os números para dar ordem de grandeza a essa percepção e se possa, enfim, conferir a tal recuperação em “V”, de que tanto fala o ministro da Economia, Paulo Guedes.

As contas externas do Brasil, causa dos enfartes que caracterizaram as crises dos anos 1970 e 1980, continuam em excelente estado. Essa área não preocupa. A eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos aumentou o nível de confiança global, especialmente nas duas últimas semanas de dezembro, quando o Congresso dos Estados Unidos aprovou novo pacote de recursos para enfrentar a crise. A pandemia tende a ser agora nocauteada pela vacina, especialmente nos países avançados. Mas, levando-se em conta que há mais de 200 delas em desenvolvimento ao redor do mundo, não há como negar que há agora luz no fim do túnel.

Os investimentos nos países industrializados têm tudo agora para se destravar e boa parte deles pode chegar ao Brasil, onde novos recordes na produção de grãos devem ajudar a puxar as exportações.

O grande problema do Brasil são as condições internas. As contas públicas continuam em forte deterioração. A dívida pública bruta deve ter fechado o ano em torno dos 93% do PIB (veja o gráfico), mas caminha rapidamente para os 100% do PIB. O governo não tem estratégia clara de enfrentamento. Parece contar apenas com o aumento da arrecadação que se seguiria ao avanço da atividade econômica. O que poderia garantir a volta aos trilhos seriam avanços claros nas reformas administrativa e tributária, mas nada ainda garante esse trunfo.

A economia do Brasil enfrenta três grandes riscos. O primeiro está subjacente ao que ficou dito acima. Trata-se de uma eventual deterioração da confiança que se seguiria à inércia do governo para conter o rombo.

O segundo risco é o do esgotamento do aumento da demanda que reergueu a economia no último trimestre de 2020. Está claro que já não será possível continuar a distribuir auxílios emergenciais, não só pelo refluxo da pandemia como, também, porque o governo ainda não sabe de onde pode tirar os recursos para isso.

Mais preocupante, nada menos que 14,1 milhões de trabalhadores estão lançados ao desemprego. E há outros 5,8 milhões que nem procuram trabalho, porque estão no desalento. Se for confirmada a retomada, já não se espera que o setor produtivo volte a contratar pessoal como antes, porque passou a operar com mais tecnologia e menos mão de obra. Mesmo com a demanda contida, a inflação voltou a se acirrar no segundo semestre de 2020. Ainda não é uma grande preocupação, mas, se alguma coisa der errado, ela pode voltar a disparar. 

O terceiro risco tem natureza política e é o de que, já no primeiro semestre, seja deflagrada campanha prematura para as eleições gerais de 2022. As negociações montadas para as eleições das mesas das duas Casas do Congresso e as escaramuças que envolveram o presidente Bolsonaro e o governador paulista, João Doria, em torno da aplicação da vacina do Butantã mostram que esse risco é forte. Seria fator que poderia bloquear decisões que conduziriam ao saneamento das finanças públicas ou à aprovação das reformas e, por aí, minar a confiança na política econômica. 

Mas, digamos, a hora é de alívio por 2020 ter ficado para trás.


William Waack: De Dilma a Bolsonaro

As questões básicas não resolvidas do País permanecem as mesmas

A década que começou com Dilma e vai terminando com Bolsonaro tem uma extraordinária constância. Nossas mazelas continuam praticamente as mesmas. Apenas mais escancaradas por uma pandemia que expôs (e também agravou) problemas que já existiam. Nesse sentido, não se pode falar de uma década que começa e termina com sinais trocados. A incompetência governamental e nossa complacência em sua essência seguem as mesmas.

Sim, Dilma foi a vítima da tortura praticada por um regime de exceção, que Bolsonaro teima em exaltar. Por mais abjetas e fracassadas as ideias que ela defendia, não há nada que justifique tortura especialmente por órgãos de Estado, como aconteceu na ditadura militar brasileira. É um aspecto que o capitão Bolsonaro ignora e que exércitos profissionais de democracias abertas, como na França (na Argélia), Estados Unidos (por último, no Iraque) e Israel (na Intifada de 1987) reconhecem como destruidor da moral da força armada e se empenham em condenar.

A sociedade brasileira segue exibindo a mesma tolerância em relação a pragas nacionais há tempos estabelecidas: injustiça social, miséria disseminada, violência endêmica, corrupção e incompetência governamental. São características com as quais se podia descrever o Brasil de 10 ou 20 anos atrás, e a onda disruptiva de 2018 não ofereceu resultados até aqui convincentes para alterar fundamentalmente esse quadro. As comparações internacionais nada proporcionam para nos orgulharmos em termos de nível de desenvolvimento humano e, especialmente, educação, que continua sendo entendida no Brasil como ferramenta e não como valor em si.

Nas comparações mais recentes estamos capengando para proteger nossa população da covid-19. Os que primeiro começaram a vacinar estão em todas as regiões do mundo. Nessa lista figuram ricos e emergentes, países gigantes e pequenos, regimes abertos, democracias liberais, monarquias absolutistas, a ditadura comunista da China, variadas etnias, as principais denominações religiosas (entre os latino-americanos, governos de esquerda e de direita).

O atraso brasileiro na questão da vacinação é uma vitrine expondo nossos limites estruturais. O sistema de governo, possivelmente o pior do mundo, mantém Executivo e Legislativo em choque constante, agravado pela insegurança jurídica emanada de um Judiciário que não foi eleito para governar, mas está governando. O podre sistema de representação política é fator preponderante para entender a falta de lideranças abrangentes e enraizadas – um grande deficit em situações de crise econômica e sanitária que se reforçam mutuamente. A força dos regionalismos e o egoísmo de suas respectivas elites – não só as geográficas, mas as de diversos segmentos sociais e econômicos nos fazem assistir à concorrência dos entes da federação.

Há aspectos peculiares na incompetência demonstrada pelo atual governo no trato da pandemia, mas incompetência em várias questões, agudas ou não, causadas pela “sabedoria” de chefes de Executivo (só lembrar o que Dilma fez com o setor elétrico, por exemplo) tem sido recorrentes. No plano mais abrangente, para um País que cultiva a imagem de ser dono de um futuro brilhante, estamos sendo extraordinariamente incompetentes em chegar lá. Nossa distância nesses dez anos em relação às economias mais avançadas aumentou – e estamos há mais tempo do que isso estagnados em matéria de produtividade e competitividade internacionais.

É confortável apontar o dedo acusador para este ou aquele governo do começo ou do fim da década. O fato é que nós os colocamos lá.


Sergio Amaral: Cena internacional mudou, política externa terá de se ajustar

O Brasil precisa estar presente nas negociações que definirão as regras de convívio internacional

As relações entre os Estados Unidos e a China, de cooperação ou de conflito, serão, na visão de Henry Kissinger, o eixo central da nova ordem internacional. Barack Obama optou pela cooperação. Donald Trump, pela adoção de sanções unilaterais. Sua estratégia, no entanto, alcançou resultados modestos.

Após as sanções da guerra comercial, o déficit com a China permanece no mesmo patamar de antes, ou seja, cerca de US$ 350 bilhões, na média, por ano. As restrições à transferência de tecnologia abalaram a Huawei, mas também prejudicaram empresas e consumidores norte-americanos. A rejeição da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), que reunia 12 países sob a liderança dos Estados Unidos, mas sem a presença da China, mostrou-se um erro estratégico de Trump, ao ensejar a formação da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP em inglês) na Ásia, assinada em novembro passado, entre 15 países asiáticos, que representam um terço da população e do produto mundiais, sob a liderança de Beijing, sem a presença dos Estados Unidos. Por fim, a China saiu fortalecida da covid-19 e da crise econômica mundial, pela capacidade de conter a expansão do vírus e de recuperar mais rapidamente a sua economia.

Joe Biden propõe-se a reverter várias das políticas de seu antecessor. No plano interno, deverá promover a volta da política e a caminhada para o centro, em vez do populismo nacionalista e da radicalização. Na diplomacia, as mudanças serão substanciais. Em lugar das sanções unilaterais, a prioridade do presidente eleito estará na retomada das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, para a negociação de um modus vivendi com a China, na retomada do Acordo de Paris sobre o Clima, na renegociação das salvaguardas nucleares com o Irã e no fortalecimento do multilateralismo.

Os Estados Unidos de Biden e a Europa pós-crise coincidirão na agenda climática, inspirada por um green new deal que encontra adeptos fervorosos em ambos os lados do Atlântico. É preciso ter presente que ambientalismo, mais do que uma decisão de governo, é um compromisso da sociedade. É a utopia do século 21, que como uma mancha verde influencia os consumidores, espalha-se pela economia, pela política e pela cultura.

Não há razão para que Biden tome a iniciativa de hostilizar o Brasil. Mas fortes correntes políticas tanto em Washington quanto em Bruxelas farão pressão para a imposição de restrições comerciais se o Brasil não mostrar determinação em reduzir a taxa de desflorestamento na Amazônia. União Europeia e Estados Unidos, juntos, representam quase 50% das exportações brasileiras. Se a esse grupo adicionarmos a China, quase 70% das exportações poderão ser postas numa zona de risco, seja por motivações ambientais, seja pelas provocações contra Beijing.

O mundo mudou. É hora de mudar a política externa, em consonância com as opções da sociedade, com os interesses da economia, especialmente do agronegócio, e a necessidade de recuperar a imagem do Brasil entre os importadores e investidores.

A esse respeito valeria considerar quatro temas de uma nova agenda:

1) Revisão da política sobre o clima, de modo a considerar a Amazônia não como um passivo, mas como um valioso ativo e fator de uma liderança natural que o País já exerceu e pode voltar a exercer. A região precisa ser vista não como um problema recorrente ou hipotético objeto de cobiça externa, mas como um patrimônio a ser explorado de modo sustentável, mediante o engajamento da sociedade, particularmente do setor privado e da comunidade científica.

2) Preservação de espaços de autonomia ante a disputa hegemônica entre as duas grandes potencias. Em artigo recente para a revista Foreign Affairs, um grupo de influentes militares norte-americanos, entre os quais Jim Mattis, ex-secretário de Defesa, condenou a pressão de Trump sobre aliados para o seu alinhamento a interesses norte americanos, por serem contraproducentes. Destacados intelectuais, como Joe Nye, e diplomatas como o embaixador Tom Shannon reconheceram publicamente o direito soberano do Brasil de tomar decisões no seu interesse nacional.

3) Revalorização das alianças com parceiros tradicionais, como a Europa, o Mercosul e a Aliança para o Pacífico, de modo a fortalecer a presença externa do País.

4) Reafirmação do multilateralismo como instrumento tradicional da diplomacia e um caminho para sair do isolamento em que o Brasil se colocou, seja em foros internacionais, como a OMS, o BID e a Ompi, seja em suas relações bilaterais, por vezes na insólita companhia da Polônia e da Hungria.

No momento em que os principais atores mundiais estão engajados em redefinir as bases da economia, forjar uma nova configuração geopolítica e promover a revisão das instituições internacionais, o Brasil não se pode isolar nem deixar de estar presente às mesas de negociação em que serão definidas as novas regras do convívio internacional.

*Conselheiro de Felsberg e advogados, foi secretário executivo do ministério do Meio Ambiente e da Amazônia


Cristiano Romero: Por que o Brasil não é uma nação?

Fim do auxílio é demonstração de que não há contrato social

O jornalista e escritor Nelson Rodrigues escreveu que o Fla-Flu, o clássico dos clássicos, começou 40 minutos antes do nada. A hipérbole rodrigueana, usada para definir o caráter épico da rivalidade entre dois times de futebol, acabou sendo incorporada como síntese do antagonismo de ideias que caracteriza o debate dos problemas nacionais. Se a discussão de um tema relevante vira um Fla-Flu, é porque não há racionalidade, ou melhor, honestidade intelectual de uma ou das duas partes, uma forma de impedir mudanças que reduzam ou eliminem seus privilégios.

Numa sociedade profundamente desigual, marcada pela prática da escravidão (oficial, fator de acumulação de capital durante quase 400 anos, e dissimulada desde a abolição, em 1888), há poucos consensos, logo, não existe contrato social. Não há pacto social num país onde a maioria negra (56% da população) é discriminada pela minoria não negra.

Não há entendimento social se pouco menos de um quarto da população (50 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (com menos de dois dólares por dia), e todos conhecemos essa realidade há pelo menos quase 20 anos, afinal, graças a um dos poucos consensos de nossa história, criou-se nesse período um programa de transferência de renda para lidar com o problema - o Bolsa Família é excelente, cuida das consequências de políticas equivocadas que seguem provocando tanta miséria e desequilíbrio entre nós, brasileiros.

Não se pode falar em contrato social se metade dos adolescentes está fora do ensino secundário. Tampouco, é razoável afirmar que estejamos sob uma sociedade pactuada, uma vez que que 35 milhões de pessoas não possuem acesso à água tratada e 100 milhões (de uma população de 210 milhões) não têm coleta de esgotos. O pior: os números, compilados pelo Instituto Trata Brasil a partir de dados oficiais, referem-se apenas às cem maiores cidades.

Sem saneamento básico, não há saúde. Sem saúde, não há cidadania. Junte-se esta precariedade à outra (a baixa qualidade do ensino fundamental público), o que temos? Que futuro aguarda o país com a 5ª população do planeta, habitante do 4º maior território em terras contínuas?

Formadores de opinião espantam-se com a facilidade com que outras nações, não apenas as ricas, respondem prontamente a situações de emergência, como a enfrentada nesta pandemia. "Por que não conseguimos resolver rapidamente questões simples que afligem milhões de nossos compatriotas?", indagam-se os cidadãos de bem.

Não é preciso pensar muito para concluir que nossa dificuldade está no fato de o Brasil não ser uma nação - como a palavra "brasil" não significa coisa alguma (foi tirada de pau-brasil), seu significado depende da construção de uma nação, daí, a insistência do titular desta coluna em chamar este país de Ilha de Vera Cruz, a primeira denominação dada pelos invasores portugueses.

Numa nação, a distância entre ricos e pobres é muito menor, todos (ou quase todos) têm acesso às mesmas oportunidades, a maioria dos cidadãos compartilha dos mesmos valores culturais e aspirações, independentemente de sua renda e origem étnica.

Um exemplo do quão distante este território povoado por 210 milhões de viventes está de ser uma nação: o auxílio emergencial criado em abril para assegurar a sobrevivência de mais de 60 milhões de brasileiros, surpreendidos repentinamente pela parada súbita de seu ganha-pão nesta crise sanitária, expira em 31 de dezembro.

Amanhã, alguns milhões de brasileiros vão brindar a chegada de 2021 e da segunda década do século XXI com champagne e espumante, enquanto outros milhões dormirão sem saber como cuidar da família ou de si próprios no ano "novo". Para estes, 2020 não acaba nessa quinta-feira. Ademais, a segunda onda da covid-19, apesar do silêncio negligente das autoridades, já é uma realidade, cujos efeitos econômicos serão iguais ou piores que os do primeiro surto - não custa lembrar: por causa da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve recuar algo em torno de 4,5%, segundo previsão da maioria dos analistas consultados pelo Banco Central.

Ora, virar o ano sem resolver esse grave problema é a prova inequívoca de que não só a classe política mas toda a sociedade não se importam com a crise humanitária que se avizinha. Onde estão os intelectuais das universidades públicas e fora dela, os sindicatos, as centrais sindicais sempre dispostas a parar o país em defesa os trabalhadores, as elites empresariais pensantes (das que só vivem às custas do Estado não se deve esperar nem cumprimento de “bom dia”), as lucrativas instituições financeiras que se "comoveram" tanto com o primeiro capítulo da tragédia pandêmica, os artistas que se mobilizaram para cuidar de seus pares em situação menos favorável, uma vez que o isolamento social lhes tirou a possibilidade de trabalhar? Cadê os manifestantes que foram às ruas em 2013 exigir educação e saúde públicas de qualidade?

No país onde não há carência de problemas a serem resolvidos, o tema mais controverso, o que inflama discursos, provoca cizânia, separa amigos de infância e resulta até em divórcio, não é o racismo estrutural, esta infâmia, ou a situação dos cidadãos sem-auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro, mas a privatização, a venda de empresas estatais ao setor privado. Por que a classe média brasileira é tão suscetível à proposta de redução do Estado como produtor de bens e serviços?

Quando estourou o mega-escândalo de corrupção na Petrobras, em 2014, não demorou para que se promovesse um “abraço” na sede da estatal, no Rio. Não houve protesto contra as malfeitorias realizadas, responsáveis por desvio de recursos estimado em R$ 20 bilhões. Não houve sequer mobilização para que o acionista majoritário que nos representa na companhia - a União - melhorasse a governança da maior empresa do país. Por isso, leitor, duvide da palavra "estratégica" quando alguém defender as estatais.


Ricardo Noblat: A tempestade perfeita que poderá custar o mandato de Bolsonaro

Ele é uma ameaça à vida alheia

Se for o que resta para mostrar a que ponto chegou Bolsonaro, compare-se o seu comportamento com relação à vacinação em massa contra o vírus com o comportamento dos governantes mais autoritários do mundo, todos, como ele, de extrema-direita.

 O ditador da República da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, anunciou que não se vacinará porque a Covid-19 já o pegou faz algum tempo – como se não pudesse pegá-lo outra vez. Mas a imunização no seu país começou uma semana antes do previsto.

Até abril serão vacinadas 1,2 milhão de pessoas. Numa segunda etapa, mais 5,5 milhões. Na Hungria do primeiro-ministro Viktor Orbán, um dos poucos chefes de Estado a comparecer à posse de Bolsonaro, a vacinação começou no último sábado.

A Polônia tem um governo nacionalista conservador admirado pelo presidente brasileiro. Pois bem: ali, ontem, os dois líderes dos partidos rivais Plataforma Cívica (liberal) e Lei e Justiça (conservador) foram filmados vacinando-se juntos.

Ontem também, os países da Comunidade Econômica Europeia compraram mais 100 milhões de doses da vacina da Pfizer. Em colapso desde a explosão do seu porto em Beirute, o Líbano comprou à Pfizer duas milhões de doses de vacina.

Aqui, onde nas últimas 24 horas o vírus matou 1.075 pessoas e infectou mais de 57 mil, a Pfizer indicou em nota que no momento não irá pedir autorização de uso emergencial do seu imunizante porque as exigências do governo demandam tempo.

Como uma das muitas vacinas que já foram aprovadas em outros países e que estão sendo aplicadas por toda parte não pode estar rapidamente disponível para os brasileiros? É a pergunta que Bolsonaro e seus cúmplices se recusam a responder.

Na melhor das hipóteses, segundo o Ministério da Saúde, a vacinação contra o vírus está prevista para começar em 20 de janeiro, e na pior até o final da primeira quinzena de fevereiro. Quantas vezes você não leu previsões furadas?

Por outra parte, por que o espanto com a incompetência do governo Bolsonaro em dar início à vacinação? Quando foi que o governo dele revelou-se competente para tentar resolver um só grande problema do país nos últimos 2 anos?

O prefeito Alexandre Kalil, de Belo Horizonte, reeleito com uma votação recorde, estoca há meses seringas de sobra para vacinar os habitantes de sua cidade e de cidades próximas. O que impediu o governo federal de fazer a mesma coisa?

Fracassou o pregão eletrônico realizado ontem pelo Ministério da Saúde para a compra de seringas e agulhas. De um total de 331 milhões unidades previstas para serem adquiridas, o ministério conseguiu fornecedor para apenas 7,9 milhões. Uma titica.

Não se brinca impunemente com vidas alheias, mas Bolsonaro insiste em brincar. Gosta de viver em perigo. Por que não brinca com a própria vida, quando nada para relembrar os antigos e bons tempos de paraquedista do Exército?

Só a vacinação em massa já, e bem-sucedida, salvará o sonho de Bolsonaro de se reeleger daqui a dois anos, e mesmo assim não será tão fácil como parecia. O contrário disso será com toda certeza a abertura de um processo de impeachment.

Crime de responsabilidade é razão para a abertura de um processo de impeachment do presidente. Falhar gravemente em garantir a vida das pessoas é o maior crime de responsabilidade que um presidente pode cometer. E daí?

Daí que é por isso que Bolsonaro precisa tanto eleger Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara dos Deputados. A abertura de um processo de impeachment depende exclusivamente do presidente da Câmara. Por lá, mais de 50 pedidos repousam numa gaveta.


Cristovam Buarque: Vacina contra o Atraso

Escola de qualidade para todos, uma questão nacional

 O Brasil percebe que o seu sistema de vacina imunológica deve ser resultado de esforço e estratégia nacionais. Mas se recusa a tratar a vacina contra o atraso, a escola de qualidade para todos, como uma questão nacional.

Os Estados Unidos surgiram como união de estados independentes, sem intenção clara de ser um país unificado. Entre 1776 e 1861, a escravidão foi deixada como opção de cada estado. Para impor a vontade nacional de abolir a escravidão foi preciso uma guerra civil. No século do trabalho livre, os Estados Unidos entenderam que a Abolição não era uma questão de cada estado. No século do conhecimento, o Brasil precisa entender que educação é uma questão federal, não municipal.

Nascemos com a unidade de um Estado Imperial. A Abolição foi aceita por todos “estados” e municípios. Até porque já não interessava manter a escravidão no único país do Ocidente que ainda tinha este regime desumano, bárbaro, repulsivo e atrasado economicamente.

Mas cultura escravocrata se manteve na sua última trincheira, ao negar escola aos filhos dos ex-escravos e dos pobres em geral. É graças a isto que se mantém formas de trabalho servil, desigualdade, improdutividade, pobreza, racismo e o atraso nacional. Ingressamos na Era do Conhecimento oferecendo educação de qualidade conforme a renda da família e a receita e a vontade do município onde a criança mora. Além de indecente, porque sacrifica a vida da criança, esta diferenciação é estúpida, porque desperdiça o potencial de dezenas do principal fator de produção nos tempos atuais: o cérebro. A educação é o cimento da nacionalidade e a ferramenta do progresso. Impossível conseguir isto se a qualidade da escola depende da renda e do endereço.

Se olharmos para o futuro com o propósito de quebrar as amarras do atraso e construirmos progresso econômico e social, vamos perceber que o Brasil precisa de um sistema nacional para a educação de base de todas suas crianças. Nos últimos 40 anos, fizemos dezenas de leis e programas para o governo federal apoiar, sem responsabilizar-se os quase 7.000 sistemas educacionais mantidos e geridos pelos municípios. Melhoramos quando nos comparamos com o nosso passado, mas ficamos para trás e abrimos brechas ficando para em relação aos outros países; também em relação ao que um aluno de hoje aprende, comparado com o que precisa saber; e aumentando a brecha entre a educação dos pobres e a dos ricos.

A implantação de um sistema nacional é uma necessidade a ser implantado em uma estratégia ao longo de anos, voluntariamente, nos municípios que desejem.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador.


Ricardo Noblat: Natal manchado pelo sangue de mulheres assassinadas

Feminicídio avança no Brasil

Thalia Ferraz, 23 anos, celebrava o Natal com parentes em sua casa em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, quando recebeu por celular uma mensagem perguntando se ela gostava de surpresas. Momentos depois, um homem apareceu e a matou a tiros na frente de todo mundo. A polícia suspeita que foi o ex-companheiro dela.

Na mesma noite, a 3.204 quilômetros dali, no Alto do Mandu, na Zona Norte do Recife, um sargento reformado da Polícia Militar, de 53 anos, matou sua mulher, a cabeleireira Anna Paula Porfírio dos Santos, 45 anos, com dois tiros de revólver. Eram casados há 20 anos e tinham uma filha de 12 que testemunhou o crime.

Horas antes, na Barra da Tijuca, no Rio, a 2.297 quilômetros do Recife, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, de 45 anos, havia sido assassinada a facadas pelo ex-marido, Paulo José Arronenzi, de 52 anos. Um vídeo registrou os gritos de suas três filhas crianças que imploravam ao pai para que parasse de esfaquear a mãe.

Viviane era juíza. E foi por isso que o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal de Justiça do Rio e a Defensoria Pública manifestaram seu horror com o que lhe aconteceu. O ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, prometeu desenvolver ações para erradicar a violência contra mulheres.

“Enquanto nos preparávamos para nos reunir com nossos familiares e agradecer pela vida, veio o silêncio ensurdecedor. A tragédia da violência contra a mulher, as agressões na presença dos filhos, a impossibilidade de reação e o ataque covarde entraram na nossa casa na véspera do Natal”, escreveu Fux.

Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio, distribuiu nota onde diz que “o gravíssimo assassinato” da juíza “mostra que o feminicídio é endêmico no país: não conhece limites de idade, cor ou classe econômica. O combate a essa forma bárbara de criminalidade contra as mulheres deve ser prioritário”.

Palavras ao vento se algo de muito drástico não for feito para de fato frear os casos de feminicídio que só aumentam no país. No período colonial e até o século 19, era lícito no Brasil ao homem casado matar a mulher em flagrante delito com base no argumento da defesa da honra. Assim, maridos assassinos eram absolvidos.

Só a partir de 2015 o Código Penal Brasileiro incluiu a Lei 13.104 que tipifica o feminicídio como homicídio, reconhecendo o assassinato de uma mulher em função do gênero. O crime prevê pena de 6 a 20 anos de reclusão. Se caracterizado o feminicídio é considerado hediondo e a punição parte de 12 anos de reclusão.

O Brasil teve um aumento de 7,3% no número de casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018. Foram 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma média de uma a cada 7 horas, segundo levantamento feito pelo site G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.

Dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que quase 90% das vítimas de feminicídio no Brasil são mulheres mortas por ex-maridos ou ex-companheiros. Facas são as armas mais usadas nesse tipo de assassinato (53,6). Em seguida, as armas de fogo (quase 20% das vezes).

No Rio de Janeiro, segundo o Monitor da Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, o número de crimes graves cometidos contra mulheres dentro de suas casas cresceu desde o início da pandemia. Cabe perguntar: Quantas juízas precisarão ser mortas para que se trate o feminicídio com a gravidade que ele requer?


O Estado de S. Paulo: Baleia Rossi estreou na política aos 20 anos, seguindo passos do pai

Filho do ex-deputado Wagner Rossi, parlamentar vai disputar a presidência da Câmara com Arthur Lira

Jussara Soares, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Escolhido pelo grupo do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ)para disputar o comando da Casa, o deputado Baleia Rossi, eleito presidente do MDB no ano passado, estreou na política aos 20 anos ao se eleger vereador de Ribeirão Preto (SP), em 1992. Na campanha para o Legislativo municipal, o jovem teve o apoio do então deputado Ulysses Guimarães, símbolo do MDB que presidiu da Assembleia Constituinte.

O registro do encontro, que ocorreu meses antes de Ulysses morrer em uma queda de helicóptero em outubro daquele ano, em Angra dos Reis, é a foto de perfil do WhatsApp de Baleia, que foi apontado como o nome mais viável para o confronto com o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), candidato do presidente Jair Bolsonaro.

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Na semana passada, antes da definição do nome de Baleia, Maia, ao lançar o bloco de 11 partidos em uma ofensiva contra o Palácio do Planalto, também recorreu ao símbolo do MBD para respaldar o grupo. “Certamente, Ulysses Guimarães estaria deste lado aqui e talvez repetiria em alto e bom som: eu tenho ódio e nojo das ditaduras”, disse o presidente da Câmara.

O apoio de Ulysses no início da vida política do candidato à sucessão de Maia se deu graças ao pai, o ex-deputado Wagner Rossi, filiado ao MBD desde 1981. Anos depois, Rossi se tornaria ministro da Agricultura dos governos Lula e Dilma Rousseff (PT), entre 2010 e 2011. Pressionado, não durou muito: pediu demissão diante de denúncias de irregularidades na pasta.

Batizado Luís Felipe Tenuto Rossi, Baleia recorreu ao apelido dado pelos irmãos para concorrer à vaga de vereador, em uma ironia por ele ser, à época, muito magro. Em princípio, não gostava, mas foi convencido pelo avô a adotar a alcunha. Assim nasceu Baleia Rossi, eleito outras duas vezes vereador em Ribeirão Preto.

Em 1995, ele lançou o “Programa do Baleia”, transmitido por emissoras locais para todas as cidades do interior de São Paulo. Na televisão, Baleia apresentava quadros como o que proporcionava uma transformação visual e outro em que levava flores e lia cartas enviadas pelo público a outra pessoa. O programa durou até 2006.

A popularidade na TV o ajudou a ser conhecido em boa parte do Estado e a aumentar a projeção política. Em 2002, ele se elegeu pela primeira vez deputado estadual. Em 2014, se tornou deputado federal. Em 2015, votou a favor do impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Esse fato e a proximidade com o ex-presidente Michel Temer - muito amigo de seu pai - foram apontados como motivo para a resistência da oposição a seu nome.

Em maio de 2016, o deputado virou líder do MDB na Câmara e se aproximou de Rodrigo Maia (DEM-RJ), que se elegeu pela primeira vez presidente da Casa dois meses depois, em julho. No mesmo ano, foi apontado como recebedor de propinas em um esquema de fraudes em merenda em Campinas e em Ribeirão Preto. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), atendendo um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), arquivou o caso por falta de provas.

Baleia ganhou mais destaque ao apresentar, a pedido de Maia, o projeto da reforma tributária (PEC 45). O relator do texto é o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que até a reta final disputou com ele a indicação de Maia.

Interlocutores de Baleia atribuem sua escolha a um jogo de paciência no qual ele articulou boa parte do tempo parado ou sem grandes movimentos. Aos 48 anos e muito discreto com a vida pessoal, o deputado é apontado por integrantes do MDB como um político sensato e focado em seus objetivos.

Embora inicialmente com melhor aceitação por partidos da oposição, Aguinaldo é do mesmo partido de Arthur Lira e, portanto, não tem a legenda na mão. Enquanto Maia tentava encontrar um nome de consenso contra o candidato do Planalto, Baleia passou a conversar, nos últimos dias, com nomes do PT para quebrar resistências. Nas conversas, sempre disse que, se eleito para o comando da Câmara, dará espaço e se manterá independente do Planalto.


Fernando Exman: Sombra de Bolsonaro na eleição da Câmara

Campanha vai recomeçar em janeiro sem favorito

Em 2 de fevereiro de 2017, Jair Bolsonaro dirigiu-se à tribuna sabendo que não teria a menor chance de se eleger presidente da Câmara dos Deputados. Não demonstrava desânimo, tampouco desconforto com protestos da esquerda. Afinal, não era a primeira vez que se candidatava ao posto e o então deputado pelo PSC fluminense não mirava mesmo a principal cadeira da Casa. Estava lá, isso sim, para executar mais um movimento de sua campanha antecipada à Presidência da República.

Bolsonaro fez questão de marcar posição em relação à mesma agenda legislativa que hoje o leva a tentar influenciar a sucessão do presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Naquele dia, era Bolsonaro quem tentava ostentar o discurso de resgate da credibilidade da Câmara. “Todos sabem muito bem que vivemos uma crise nos três Poderes nunca sentida em nosso país”, declarou, talvez menosprezando a capacidade do país de boicotar o próprio futuro. “Sabemos que o Executivo sempre interferiu nos trabalhos desta Casa, em especial por ocasião das eleições. Hoje temos uma Câmara que não cria leis, que não fiscaliza e que não representa os anseios do povo. O Poder Legislativo se apresenta subserviente ao Executivo e submisso ao Judiciário”, prosseguiu, também talvez sem de fato acreditar que anos à frente estaria do outro lado da Praça dos Três Poderes.

O então deputado criticou o que considerava a usurpação das prerrogativas do Legislativo por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que discutiam a legalização das drogas. “O fato é que o Supremo vem legislando constantemente. E ele quer legislar não só sobre essa questão: legislou também sobre a questão ao aborto.” Para ele, a Câmara precisava de um presidente que batesse à porta do chefe do Poder Judiciário para buscar alternativas e dar fim a esse movimento. Ainda hoje aliados de Bolsonaro reclamam do que consideram ativismo judicial, e acreditam que o Congresso pode ajudar a reduzi-lo.

Ao pedir o apoio da bancada da segurança pública, que mais tarde lhe daria suporte na eleição presidencial, Bolsonaro questionou a regulamentação da audiência de custódia pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a discussão, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), do que pode ou não ser considerado crime de desacato. Não faltaram, claro, falas em defesa do projeto de lei que visa revogar o estatuto do desarmamento.

À bancada ruralista, sinalizou com um “ponto final na indústria de demarcação das terras indígenas”. “Não temos que ter um presidente para ficar apenas chancelando e buscando aprovar o que o Executivo quer. A bancada ruralista tem que ter um presidente que tenha esse compromisso com ela”, destacou. “Temos que ter um presidente, na Câmara dos Deputados, que tenha autoridade, posição e altivez, e não que precise ficar de joelhos para esse ou aquele Poder por causa de interesses pessoais.”

Proclamado o resultado, anunciou-se que Bolsonaro conquistara quatro votos. Quatro, ante os 293 de Rodrigo Maia. Porém, por mais paradoxal que possa parecer, os objetivos de Bolsonaro foram atingidos conforme o planejado.

Os dois voltam agora a se enfrentar, quando a pauta de costumes também retorna ao centro das atenções. A agenda econômica corre o risco de ficar definitivamente em segundo plano a partir de 2021. Também por isso Maia vem conseguindo atrair partidos da oposição para o seu campo, embora ainda não tenha conseguido definir quem será o seu candidato.

O atual presidente da Câmara passou os últimos dias conversando com aliados, medindo quem dos pré-candidatos de sua ala tem mais capacidade de reunir votos e evitar defecções. O voto secreto exige cautela, mas o tempo vai passando e dando espaço para que a candidatura do grupo sofra ataques especulativos ou questionamentos das cúpulas partidárias.

Independentemente do nome escolhido, a estratégia já está desenhada: tentar mostrar que de um lado estará o governo e toda as suas exigências em relação à pauta da Câmara, enquanto do outro ficarão os demais partidos que ainda defendem a independência do Poder Legislativo. Esse tipo de campanha é até capaz de garantir uma vitória moral ao grupo que se diz autônomo, seja qual for o resultado da eleição de fevereiro do ano que vem, mas a mensagem ainda precisa se mostrar forte o suficiente para assegurar uma vitória eleitoral ao grupo.

Essa demora também deu espaço para que líderes do Senado tentassem vincular as eleições das duas Casas do Congresso, o que está cada vez mais difícil de ser concretizado. Em primeiro lugar, porque o quadro de fragmentação partidária e o voto secreto dificultam acordos desse tipo. Além disso, diferentemente do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que insistiu na tese de que poderia concorrer à reeleição, Maia trabalhou na ampliação de seu grupo para fazer um sucessor e teria dificuldades políticas para desmobilizá-lo de uma hora para outra.

Por outro lado, sabe-se também que o deputado Arthur Lira (PP-AL), mesmo sendo o preferido do Palácio do Planalto, não deve ter uma postura de alinhamento absoluto em relação ao Executivo.

Como líder do Centrão, ele sinaliza com governabilidade e previsibilidade, mas sua campanha é baseada, por exemplo, no discurso de que a atual gestão da Câmara mantém controle total da pauta e, portanto, é preciso democratizá-la. Outra promessa do pepista é não interferir nos pareceres que chegarem ao plenário.

Quatro anos depois, Bolsonaro opera com muito mais força a partir do Planalto. Tornou-se onipresente nas discussões sobre a sucessão da Câmara e certamente conseguirá reunir mais do que quatro votos. Mesmo assim, ainda não tem certeza de que desta vez seus objetivos serão alcançados. Quanto mais o presidente aparecer na disputa, melhor será para seus adversários.