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Miguel Reale Júnior: Um país do avesso
Busca-se um juiz imaculado. Essa é uma ilusão tão louvável como irrealista
Como tudo o que atualmente sucede no Brasil, a adoção da figura do juiz das garantias revestiu-se de emoção e pré-juízos. Hoje, para ser jurista basta ser internauta.
O juiz das garantias é o competente para decidir sobre os incidentes ocorridos na fase do inquérito policial, em especial escuta telefônica, busca e apreensão e prisão preventiva do indiciado. Pretende-se, então, deixar o juiz da causa isento de qualquer participação em decisões anteriores ao início da ação penal, para que atividade anterior não comprometa a imparcialidade.
O juiz das garantias é adotado em diversas legislações em que há, contudo, o juizado de instrução, com ampla atuação probatória do juiz na fase inquisitiva. No processo penal chileno, no italiano e no código modelo para a América Latina há um juiz de instrução, com grande poder de determinação de produção probatória e até mesmo indicação de propositura da ação penal, como dispõem o artigo 258 do Código de Processo Penal (CPP) do Chile e o artigo 409 do CPP da Itália.
No nosso sistema, ao contrário, o juiz é passivo, pois em geral age por solicitação da polícia ou das partes, exceto nas hipóteses previstas nos artigos 156 e 242 do CPP, que deveriam ter sido revogados desde a Constituição de 88, pois efetivamente não deve o juiz ter nenhuma iniciativa probatória.
Presume-se que o juiz, por autorizar medidas cautelares pedidas pelas partes, venha a criar predisposição impeditiva de postura equidistante. Suspeita-se que o juiz, ao examinar pedido de medidas cautelares, como uma escuta telefônica, estará por isso comprometido com um veredicto final condenatório. Não me parece, todavia, que o juiz se vincule às suas decisões precárias no exame da prova de forma a estar já convicto de como decidir. Estaria o juiz que não concede a prisão preventiva solicitada pela polícia comprometido a absolver o réu? Não. E, igualmente, o que a concede deixará de absolver diante de provas de inocência produzidas no processo só porque decretou a preventiva?
Essa pressuposição de estar o juiz viciado para decidir a causa por ter atuado na fase de inquérito é exagerada, a ponto de se entender necessário preservar o juiz da causa da contaminação pelo conhecimento de qualquer dado obtido na fase do inquérito policial. Busca-se um juiz imaculado, sem mancha a comprometer-lhe a mais perfeita imparcialidade. É uma ilusão tão louvável como irrealista.
Ilusão porque a circunstância de o juiz do processo não participar da fase preliminar de inquérito policial não é elemento garantidor de uma decisão livre de posições de simpatia ou antipatia por um dos lados da lide, da parte do julgador. Seria, sem dúvida, ilusão pretender alcançar a perfeita imparcialidade por via de magistrado em estado de pureza probatória. Ilusão, ainda, porque a formação da decisão sofre a influência de fatores diversos, desde a conformação cultural do julgador, sua vivência, suas idiossincrasias, de modo que muitas vezes intui o justo antes da análise mais profunda da prova. Basta ver como o juiz preside audiência, por vezes simpático ou não, em processos dos quais apenas leu a denúncia no dia da audiência.
Mas, ainda por cima, há grave contradição. Pela nova lei, cessa a competência do juiz das garantias com a propositura da ação penal, cabendo, portanto, ao juiz do processo receber ou rejeitar a denúncia. Ora, esse exame só poderá, por óbvio, ser feito com base na prova colhida na fase inquisitiva, o que denota insuperável contradição, pois estará atuando na mesma posição de um juiz de garantias, decidindo antes da produção das provas em juízo.
E mais: as decisões tomadas pelo juiz das garantias, como, por exemplo, a decretação de prisão preventiva, não vinculam o juiz do processo, que deve, todavia, em dez dias do recebimento da denúncia decidir se mantém ou não a prisão. Como irá, então, após receber a denúncia e manter a prisão preventiva, com base única no inquérito, prolatar a sentença final se tomou medidas antes da prova em juízo? Não estaria comprometido também?
Por outro lado, há uma realidade incontornável. Pelo site do Conselho Nacional de Justiça se verifica haver em 18 Estados cerca de 3.500 juízes. Nove Estados têm entre 56 e 200 juízes. Na Bahia, 60% das comarcas têm apenas um juiz. Neste Estado imenso há 276 comarcas e apenas 582 juízes, a maioria deles em 30 comarcas. Pernambuco tem 536 juízes. Como, então, pensar, num país com esse quadro de magistrados, na exigência de um juiz das garantias diferente do juiz do processo?
Essa novela foi adiada sine die. Em inversão de competências: o presidente da República sancionou a lei por sugestão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que dias depois legislou ao adiar a vigência por seis meses e ao excluir os crimes de violência doméstica da “exigência” de juiz “imparcial”!!! Em seguida, o vice-presidente do STF adiou a vigência por tempo indeterminado. O contrário da segurança jurídica é a surpresa, que é o que não falta quando o País está do avesso.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
João Domingos: Falta articulação
Comissão de Orçamento tomou decisões sem a presença de representante do novo governo
Jair Bolsonaro soube passar para o eleitor a mensagem de que era o candidato anti-PT, anti-Lula, antitudo o que está aí. Em resumo, o candidato antissistema. Vencida a eleição, veio a fase da montagem do governo. Até agora, pelo que se viu, Bolsonaro mantém uma coerência muito forte com o que disse na campanha e com suas escolhas: liberal na economia, conservador nos costumes e ideológico nas relações exteriores e na educação. Nessa parte, nenhuma surpresa, portanto.
Surpresa é a forma pouco política como Bolsonaro tem lidado com o Congresso. Se ele não fosse deputado há quase 28 anos, se não conhecesse as estruturas da Câmara e do Senado, poderia se dizer que o presidente eleito não sabe como é que o Parlamento funciona. Mas ele sabe como é que são as coisas por lá. Sabe, por exemplo, que se não tiver uma articulação política competente, presente, vigilante e influente, vai enfrentar problemas.
Bolsonaro pode dizer que ainda não assumiu o governo, que o próximo Congresso só tomará posse no ano que vem. Então, paciência, deixa a roda girar. Mas não é assim que as coisas funcionam. O que o Congresso decidir agora terá reflexos em todo seu governo. Como já ocorreu com a aprovação do reajuste para o Poder Judiciário, que representará gastos suplementares de pelo menos R$ 4,1 bilhões no ano que vem, além da aprovação de incentivos para montadoras, o que não estava na contabilidade do novo governo.
Para evitar que decisões desse tipo voltem a ser tomadas, Bolsonaro tem de se convencer de que, apesar de não ter assumido a Presidência, precisa pôr uma equipe de articuladores no Senado e outra na Câmara. Fisicamente. Como disse o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, que elogiou a escolha da equipe econômica do futuro governo, não adianta só ter boas intenções. É preciso que essas boas intenções tenham a companhia de uma boa articulação política.
Nesta semana, a Comissão de Orçamento do Congresso esteve reunida para tomar decisões importantes sobre o orçamento do ano que vem, o que diz respeito integral ao governo de Bolsonaro.
Sem receber qualquer indicativo de interesse da equipe de transição na adaptação agora do orçamento de 2019 à estrutura que será adotada pelo novo governo, a Comissão de Orçamento selou um acordo que vai dificultar uma eventual alteração da lei orçamentária. A proposta, fechada pelo colegiado, restringe o prazo para a equipe de transição solicitar mudanças ao relator-geral, senador Waldemir Moka (MDB-MS), ao fim da votação dos relatórios setoriais, prevista para 28 de novembro.
Um ajuste agora do Orçamento seria importante para que o novo governo já inicie o próximo ano executando as despesas sob o novo arranjo de ministérios e órgãos que está sendo preparado pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro. Sem isso, a nova equipe econômica pode enfrentar problemas para executar alguns gastos, atrapalhando o funcionamento da máquina nos primeiros meses da gestão.
A repórter Idiana Tomazelli, do Estadão/Broadcast, acompanhou toda a reunião da Comissão de Orçamento. Ela procurou Moka para saber o que é que estava acontecendo. Moka respondeu: “Esse pessoal não tem muita ideia de governo, eu acho. Porque é esquisito eles ficarem anunciando fusão (de ministérios) e nós estarmos fazendo um relatório para a estrutura atual. Se essas fusões não estiverem previstas no orçamento, eles vão levar o ano inteiro (para resolver a questão). Ou eles estão fazendo propositadamente, ou é um desconhecimento”.
Moka lembrou ainda que em 2010, quando presidiu a Comissão de Orçamento, a equipe de transição de Dilma Rousseff indicou interlocutores que pediram alterações no Orçamento, todas acatadas pelo colegiado. A equipe de Bolsonaro ainda não fez nada disso.