BOLÍVAR LAMOUNIER

Bolívar Lamounier: Piada pronta, ideias fixas

Na AL, o clássico absoluto é o de que o sistema presidencialista de governo é o único que se coaduna com nossa ‘índole’

Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo

Tem-se dito que o Brasil é o país da piada pronta, e exemplos disso não faltam; mas não nos esqueçamos de que somos também mestres em ideias fixas.

Piadas prontas não fazem mal a ninguém, ao contrário das ideias fixas, que podem causar sérios danos. Destas, na América Latina, o clássico absoluto é o de que o sistema presidencialista de governo é o único que se coaduna com nossa “índole”. Certa vez ouvi um presidente latino-americano dizer com toda seriedade que o presidencialismo é irremovível porque expressa a ideia do “chefe”, uma necessidade do inconsciente popular que remonta às comunidades indígenas de séculos atrás. No Brasil, desde a proclamação da República, os adeptos desse sistema não se cansam de afirmar que a concentração das duas funções, chefia de Estado e de governo, numa entidade unipessoal, o presidente, assegura a estabilidade do regime democrático e confere unidade aos programas de governo. Consumado o golpe militar encabeçado pelo marechal Deodoro, o Brasil não tinha como retornar ao parlamentarismo do Império, porque as regiões exigiam a Federação e porque, em tal hipótese, o sucessor de D. Pedro II na chefia do Estado seria uma mulher, ainda por cima casada com um conde estrangeiro.

Nos primeiros anos do regime de 1891, toda uma geração de intelectuais influenciados pelo fascismo em ascensão concordou com Rui Barbosa por ter ele elaborado uma Constituição presidencialista, mas lhe desceram o cacete por ter escolhido um modelo “fraco”, o dos Estados Unidos, por mero instinto de imitação. Queriam uma ditadura presidencial.

Deixemos, porém, de lado a República Velha e vejamos o que tem sido o nosso presidencialismo desde aqueles tristes primórdios. Em meu livro Da Independência a Lula e Bolsonaro, recentemente reeditado pela Editora FGV, citei este parágrafo do celebrado mestre Maurice Duverger, adepto de uma atenuação do presidencialismo: “O sistema presidencial (puro) é intrinsecamente propenso à instabilidade. É o que evidencia toda a América

Latina. O sistema presidencial jamais funcionou a contento a não ser nos Estados Unidos. Noutros países, ele degradou-se em presidencialismo – vale dizer, em ditadura”. Penso que o mestre francês seria menos benévolo mesmo em relação aos Estados Unidos, se tivesse testemunhado o confronto de 2016 entre Hillary Clinton e Donald Trump e o desempenho deste na presidência.

Mas o melhor exemplo da relação entre presidencialismo e estabilidade é, com certeza, a Argentina, país que logrou a proeza de regredir ao subdesenvolvimento após atingir um alto grau de riqueza. Reproduzo, aqui, o registro de Carlos H. Waisman, um destacado estudioso da história de seu país: “De 1930 até o restabelecimento da democracia em 1983, a Argentina sofreu seis portentosos golpes militares (1930, 1943, 1955, 1962, 1966, e 1976), e numerosos outros de menor importância. Naquele período, o país teve 25 presidentes. Excluindo a ditadura de Perón, que durou dez anos (19461955), foram, portanto, 24 presidentes em 38 anos, ou seja, governos com uma duração média de 1,6 ano! Estabilidade para ninguém botar defeito.

O ciclo brasileiro de governos militares (1964-1985) não chegou a tanto, mas enganase quem se atém à superfície dos acontecimentos, esquecendo-se da instabilidade que lavrou continuamente dentro da corporação militar durante aqueles 21 anos. O marechal Costa e Silva não acatou as diretrizes de seu antecessor, o marechal Castelo Branco, e se impôs como candidato. Quando faleceu, em 1969, o Alto Comando recorreu a um golpe sem rebuços, impedindo a posse do vice, deputado Pedro Aleixo, legitimamente eleito pelos critérios que a própria corporação militar antes estabelecera, e instalou no

Planalto o general Emílio Garrastazu Médici. A sucessão deste pelo general Ernesto Geisel foi, digamos assim, tranquila, graças ao detalhe de que seu irmão, Orlando Geisel, era então o titular do Ministério da Guerra. Mas o próprio Ernesto Geisel foi obrigado a sobrestar um golpe que seu ministro da Guerra, general Sylvio Frota, começara a articular contra ele. Para demitir Sylvio Frota, Ernesto Geisel deixou de lado as formalidades e disse-lhe na lata: “O cargo é meu”. Geisel precisou também aparar arestas na caserna quando decidiu delegar ao general João Figueiredo a incumbência de encerrar o ciclo militar.

Uma das muitas diferenças relevantes entre os dois sistemas de governo é a de que a única fórmula legítima de que o presidencialismo dispõe para afastar do cargo a pessoa que concentra as duas funções, chefe de Estado e de governo, é o sempre traumático impeachment, que requer a demonstração de “crime de responsabilidade”, conceito que só uma minoria da sociedade compreende. O parlamentarismo, para recorrer ao voto de não-confiança, só precisa demonstrar que o titular do cargo é incompetente ou corrupto, ou não conta com o respeito do Congresso. Dilma Rousseff, por exemplo, poderia ter sido afastada em três semanas, poupando-nos todo aquele tormento.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,piada-pronta-ideias-fixas,70003876909


Bolívar Lamounier: O poder da decadência

Poder político brasileiro é pateticamente débil, e nada autoriza a crer que logo seremos um colosso

Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo

Centenas de pessoas não perdem uma chance de cobrar “realismo” dos jornalistas e analistas políticos, como se a realidade política fosse uma coisa unidimensional, percebida sempre da mesma forma por toda a sociedade, hoje, amanhã e sempre.

Poucos se dão conta de que a “realidade” de hoje pode não ser a de amanhã, que por sua vez poderá diferir bastante da que teremos na próxima década. Esta observação seria inútil, se tivéssemos como superar as crises e acertar os rumos do País sem um grau razoável de convergência em nossas percepções. Sem esquecer que nossas preferências também divergem: alguns querem a democracia, outros anseiam por alguma forma de ditadura. Isso posto, peço licença para hoje escrever sobre uma realidade um tanto indefinida, que combina elementos de hoje com alguns de nosso passado histórico e outros situados no futuro, sendo que, sobre estes, é pouco o que nos é dado conhecer.

Ainda assim, atrevo-me a antecipar que o poder político brasileiro – vale dizer, nosso Estado – é pateticamente débil, uma decantação hoje virtualmente petrificada de muitos fracassos, e que nada nos autoriza a crer que logo seremos um colosso. Em 1958, Celso Furtado explorou esse tema pelo lado da história econômica, com o objetivo de demonstrar que os grandes ciclos econômicos que vivemos (cana-de-açúcar no Nordeste, mineração de ouro e diamantes em Minas e, finalmente, o café em São Paulo) não deixaram uma base sólida para um processo sustentável de industrialização, sem o qual não teríamos desenvolvimento, bem-estar e autonomia nacional. Examinando o mesmo fato pelo lado político, vemos que os resultados logrados foram ruins para a industrialização e desastrosos para a construção do Estado, uma vez que abriram espaços para um contínuo relançamento do patrimonialismo – a apropriação do poder político por setores empresariais decadentes, que se especializaram em concentrar os ganhos e socializar as perdas. Duas exceções permitem amenizar em certa medida esse argumento. A exaustão do ouro deixou alguns núcleos favoráveis à pecuária bovina; nessa área, o empresariado do Triângulo Mineiro, lixando-se para o governo federal, desencadeou um poderoso crescimento a partir da importação e aclimatação das raças zebuínas da Índia. O café, cujo legado foi mais importante, a começar pela passagem do trabalho escravo para o assalariado, não diferiu totalmente da cana-de-açúcar, uma vez que, forçado pela superprodução, teve de recorrer à generosidade estatal, trocando sua altivez política pelas mesmas bênçãos do Estado, que atuou como intermediário em mais uma reedição da “socialização das perdas”.

Essa, em grandes linhas, é a história de nosso mastodôntico Estado, cuja congênita inviabilidade se evidenciou com o experimento da industrialização em “marcha forçada” deslanchado pelo governo do general Ernesto Geisel. A “realidade” com que hoje nos deparamos é, pois, uma estrutura de poder incapaz de promover o crescimento num ritmo compatível com o aumento da população, com a superior organização de nossos competidores internacionais e com nossa dramática anemia educacional, científica e tecnológica.

Esta é a base sine qua non que precisamos levar em conta para delinear futuras realidades que podem estar à nossa espreita logo ali, ou um pouco à frente. O Brasil vive hoje uma polarização política infantil e estéril, contrapondo dois líderes populistas que bem fariam em se aposentar, dado já terem feito tudo o que ninguém os julgava capazes de fazer pelo Brasil – para o bem e para o mal. Lula, aos 77 anos, já bateu no teto, e o mesmo acontece com Bolsonaro, na pujança de seus (presumíveis) 15 anos. Sabemos todos que o clima de radicalização e turbulência é música para os ouvidos de Bolsonaro, reforçando a condutibilidade atmosférica que lhe facilita mobilizar seus fanáticos. Dá-se, no entanto, que este clima mantém o dólar valorizado e empurra a inflação para cima, a última crueldade que nossa medíocre politicagem pode perpetrar contra os 46 milhões de indivíduos que vivem em lares com zero reais de renda mensal.

Eu, com certeza, serei acoimado de irrealista se disser que ambos, Lula e Bolsonaro, poderiam fazer-nos o favor de ir para casa, para que o Brasil possa voltar à sua precária normalidade e retomar o processo de crescimento econômico. Realistas são os que tentam ver Lula não só como o imbatível antibolsonaro, mas também como o grande estadista-pacificador que ele nunca foi e não tem condições de ser. Com lápis e papel à mão, os que insistem em enxergar a realidade por esse prisma já podem, então, pôr mãos à obra, rascunhando seu cenário para daqui a dez anos. No centro de seu idílico desenho estará – Deus seja louvado – nossa política, finalmente renovada pelo Centrão. Os 46 milhões sem renda terão subido um nível, compartilhando a felicidade dos que auferem ao menos até um salário mínimo de renda mensal. Entre os Três Poderes, reinarão a harmonia e a independência que a Constituição tão sabiamente prescreve.

*Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, seu mais recente livro é ‘Antes que me esqueça’ (Editora Desconcertos)

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-poder-da-decadencia,70003849682


Bolívar Lamounier: Dois degraus a mais na escala do horror

A sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar

Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo

Não consigo conceber a humanidade convivendo com um país que submete as mulheres a rigorosa escravidão, impondo-lhes um tratamento atrocíssimo do nascimento à morte. Mas de agora em diante, com o Afeganistão dominado pelo Taleban e disputado pelo Estado Islâmico (EI), a realidade será essa.

O erro político do governo norte-americano foi deveras impressionante, pois não só deixou ao deus-dará um aliado que dele dependeu durante 20 anos, como saiu do país atabalhoadamente, entregando de mão beijada ao radicalismo islâmico grande quantidade de armas. É lógico que o Afeganistão, com sua população de apenas 39 milhões e sua enorme pobreza, não tem, sozinho, condições de se abalançar a uma aventura bélica. Mas aí, paradoxalmente, é que reside o perigo: uma teocracia totalitária, de inspiração claramente fundamentalista, poderá superestimar suas forças, agindo como uma faísca, tentando atiçar conflitos entre outros países, ou se engajando em alguma alucinação terrorista como a empreendida por Bin Laden 20 anos atrás. Nesse quadro, o Irã também precisa ser levado em conta, não obstante ser o seu poder também limitado.

Entendam-me: estou expondo uma hipótese e nem de longe pretendo generalizá-la para todo o universo islâmico. O islamismo não é um conjunto homogêneo. Compreende cerca de 60 países e a maioria não se encaixa no modelo de regimes totalitários. A vertente fundamentalista a que pertencem o Taleban e o EI, essa, sim, é capaz de perpetrar todo tipo de crueldade contra a sociedade e claramente propensa à expansão geográfica. O Estado Islâmico consegue ser muito pior que o Taleban. Destroçado na Síria, transferiu-se para o Afeganistão. A guerra entre ambos é um cenário altamente provável. Com a sobriedade que o caracterizava, o grande historiador Otto Hintze definiu movimentos como o EI como aqueles cujo objetivo último é se tornarem “impérios universais”. Em linguagem caseira, são culturas ou religiões que trazem em seu DNA um afã de ocupar e dominar militarmente outros países, a começar pela unificação de todo o mundo islâmico sob um só governo. Seguindo essa linha de raciocínio, não descabe afirmar que o horizonte do Taleban seja estender seu modelo de teocracia totalitária até o limite do possível.

O Ocidente demorou a perceber o risco da ascensão de Hitler na Alemanha, mas cumpriu, ao fim e ao cabo, junto com a URSS, seu dever de destruir a máquina de guerra responsável por todo tipo de atrocidades, culminando no frio extermínio de judeus, exemplificado por Auschwitz. Mas as lições da História nem sempre são assimiladas na devida proporção. Finda a 2.ª Guerra Mundial, o mundo acomodou-se à precária paz a que a vitória militar deu ensejo, aceitando-a como relativamente “normal”. Aceitando-a sem atentar para o fato de que ela continuava a se basear numa gigantesca desumanidade – com menos conflitos armados, é certo –, paz que não mantém sequer uma pálida semelhança com a paz perpétua cogitada por toda uma linhagem de filósofos utópicos. No mundo atual, essa desumanidade está corporificada em quase 8 bilhões de seres humanos, a maioria em estado famélico. O desafio de construir uma paz segura, assentada em fatores de realidade é, pois, simplesmente hercúleo. Mas a humanidade não tem como abrir mão sequer desse precário ideal. Os países democráticos e todos os outros que preferem a ordem à desordem e a civilização à barbárie têm o dever de colaborar na construção de uma paz manejável e duradoura, que assegure a cada nação a conservação de sua identidade e a possibilidade de prosperar e se beneficiar comercialmente de suas complementaridades com o resto do mundo.

Como sonhar com tal objetivo, mesmo na escala modesta a que me refiro, num mundo onde bilhões de seres humanos mal e parcamente conseguem resistir a seu miserável cotidiano, mundo no qual o terrorismo e o crime organizado mudaram de escala, mercê do avanço tecnológico, internacionalizando-se e beneficiando-se do efeito surpresa em escala antes impensável?

Empreitada hercúlea, sem dúvida. Muito maior que a visualizada pelos governos ignorantes e corruptos que não cessam de se reproduzir em nossa triste América Latina.

As explosões da última quinta-feira (26/8) no aeroporto de Cabul, provavelmente organizadas pelo Estado Islâmico, que causaram mais de 180 mortes, dão bem a medida do horror a que me refiro. Após o malfadado episódio da tomada da capital pelo Taleban, salta aos olhos que o curso dos acontecimentos será decisivamente determinado pelas grandes potências. Entre estas se inclui a China, cujo regime interno é declaradamente totalitário, mas precisa comerciar com o mundo inteiro, em nada lhe interessando, portanto, um sistema internacional conturbado. Com a Rússia, que nunca se desvestiu sinceramente de seu passado autocrático, a situação é mais ou menos a mesma.

Em resumo, a sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,dois-degraus-a-mais-na-escala-do-horror,70003823602


Bolívar Lamounier: Leôncio Martins Rodrigues

Conheci Leôncio Martins Rodrigues no primeiro trimestre de 1970, logo que me mudei para São Paulo. Lembro-me perfeitamente da situação. Foi num fim de tarde, num encontro promovido por Fernando Henrique Cardoso, que, naquela época, residia numa casa próxima ao Palácio dos Bandeirantes. Leôncio e eu ficamos trocando ideias sobre nossos respectivos interesses, num canto do jardim interno.

Gentil, simpático, falante, discorreu longamente sobre as pesquisas que andava a fazer sobre a formação da classe operária industrial e as mudanças que começavam a se operar no meio do antigo sindicalismo pelego da era getulista. Nesse campo, ele deu um vigoroso impulso à tradição da USP, que remontava aos trabalhos dos professores Aziz Simão e Juarez Rubens Brandão Lopes.

Não tive o privilégio de ser aluno dele. Tendo feito os estudos de graduação em Minas Gerais e a pós-graduação nos Estados Unidos, nutria a aspiração de lecionar numa universidade federal. Mas um fato insólito se interpôs entre meu regresso dos Estados Unidos e essa aspiração. Em abril de 1969, o governo decretou a aposentaria compulsória de certo número de docentes de várias universidades e entidades de pesquisa. Por alguma razão que Deus um dia me explicará, fui incluído entre os “aposentados”, embora não tivesse emprego algum, nem público nem privado. Lastreada no AI-5, essa medida não era suscetível de apreciação judicial. Daí decorreu que apenas pude lecionar por alguns anos na PUC-SP, passando depois à atividades de consultoria. Mas, decididamente, há males que vêm para bem. Na pós-graduação da PUC vim a conhecer minha mais que querida amiga Maria Teresa Sadek, que viria a ser a segunda esposa do Leôncio. Dessa forma, meus laços de amizade com ele se estreitaram muito.

O esdrúxulo decreto a que me referi antes foi a causa de eu estar na casa do Fernando Henrique naquela tarde. Fernando Henrique movimentava-se para criar um instituto (que viria a ser o Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), graças ao qual diversos pesquisadores puderam permanecer no Brasil, em vez de serem punidos também com o exílio intelectual.

Por seu prestígio como professor e graças a seus trabalhos sobre o sindicalismo, Leôncio rapidamente se tornaria conhecido em todo o Brasil. Havia tempos que Leôncio abandonara o esquerdismo de sua adolescência para se dedicar com crescente afinco a pesquisas sérias, sobre temas relevantes. Um aspecto a destacar é que nos trabalhos dele o embasamento empírico se associava a uma fundamentação teórica que nada tinha que ver com as especulações nefelibatas que grassavam na USP, mercê da influência predominantemente francesa em nossa principal universidade.

Nessa época, à medida que essa concepção pragmática ganhava corpo nos Estados Unidos, na França a maioria dos cientistas sociais ainda ciganeava na vaporosa fragilidade de vários esquerdismos. Na trajetória do Leôncio, os estudos sobre o sindicalismo culminaram numa obra de peso, O Destino do Sindicalismo (Edusp, 1999), que já estaria publicada em outros países se não estivéssemos condenados a fazer nossas carreiras nesse pobre grotão intelectual.

Finda aquela primeira fase, centrada no sindicalismo, Leôncio voltou suas atenções para duas outras direções igualmente relevantes. Por um lado, resolveu conhecer a fundo a classe política brasileira. Conhecê-la não para elogiá-la ou sepultá-la, mas para mostrar importantes mudanças que nela se operavam, com o declínio dos bacharéis desvinculados de interesses grupais ou públicos relevantes e a ascensão de sindicalistas e outros profissionais mais organicamente situados na sociedade. É certo que esse novo veio trouxe em seu bojo o famigerado corporativismo, ou seja, grupos preocupados tão somente em incrustar seus estreitos interesses no casco da nau do Estado patrimonialista. Mas Leôncio, como antecipei, não se propôs a xingar ou elogiar tais grupos: quis “apenas” mostrar que esse é o material de que dispomos para construir nossa democracia. É pegar ou largar.

O outro lado da bifurcação, e a este Leôncio se dedicou com extraordinária paixão, foi o conhecimento dos regimes totalitários. Salvo melhor juízo, não creio que outro cientista político brasileiro se tenha aprofundado nessa área tanto quanto ele. Estudou vorazmente o stalinismo e o Estado soviético, assim como o hitlerismo e o nazi-fascismo. Se até hoje nossas universidades tratam esses magnos temas do século 20 em tom de aquarela, cumpre-nos dizê-lo sem meias-palavras: ninguém como Leôncio combateu o totalitarismo europeu e o ranço dele que ainda permeia nossa cultura. E reparem: Leôncio formou-se nessa área como um autêntico autodidata, caçando bons livros a laço, numa época muito anterior à internet e ao Google.

Eis por que, caros leitores, Leôncio Martins Rodrigues ficará em nossa memória como um amigo inesquecível, um grande intelectual, um pilar de nossa vida universitária e um cidadão exemplar.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,leoncio-martins-rodrigues,70003707957


Bolívar Lamounier: Temos um governo genocida?

Bolsonaro não tem estatura para isso. Sinais de insanidade já dá – e não são poucos

Disseminar um vocábulo raramente usado no Brasil, como genocídio, é uma proeza. Jair Bolsonaro conseguiu, hoje tal vocábulo aparece nas redes sociais praticamente todo dia.

É certo que o termo é empregado para xingar o próprio Bolsonaro. Muita gente se vale dele para afirmar que o Brasil tem atualmente um presidente genocida. Dito assim, mesmo reconhecendo que algo há de verdade, devemos convir que se trata de um enorme exagero. Bolsonaro não tem estatura para carregar um peso desses. O que ele tem feito, dia sim e outro também, é sabotar o trabalho dos agentes de saúde no combate à covid-19, atrapalhando ação dos governadores e prefeitos, formando aglomerações e até criticando o uso de máscaras.

Lá atrás, em sua fase mais cômica, aventurou-se na charlatanice médica, receitando remédios que liquidariam o coronavírus num abrir e fechar de olhos. Hoje, parece-me inegável que ele é culpado por uma parcela dos 260 mil óbitos já registrados, mas não tenho, e penso que ninguém tem, como estimar a quanto monta tal parcela. Cabe, portanto, a suposição de que ele tem responsabilidade por certo número de mortes, mas daí a designá-lo como genocida vai uma longa distância.

Onde tem fumaça, tem fogo. A questão é séria e deve ser debatida, mas sem partir de cara para o exagero. Genocídio, como já sugeri, é uma coisa muito maior. Briga de cachorro grande. Se nossa intenção é compreendê-la e chegar a uma avaliação plausível do papel de Jair Bolsonaro, é indispensável começar pelo começo. Pelo conceito e por alguns exemplos históricos.

O termo baseia-se em dois componentes fundamentais. O primeiro, uma matança em larga escala, a intenção de exterminar todo um povo ou toda uma etnia, não necessariamente porque ela tenha feito alguma coisa, mas pelo simples fato de que ela existe, extermínio a ser conduzido com o máximo concebível de atrocidade. Segundo, tal matança compõe-se de ações conscientes, uma ordem premeditada e levada a cabo por um governo, um partido ou um órgão qualquer que tenha poder para tanto.

Historicamente, a ideia (mas não necessariamente o termo) genocídio remonta à Revolução Francesa e, especificamente, à guerra da Vendeia. Católica e monarquista, uma parte dos habitantes daquela província francesa reagiu violentamente à execução do rei Luís XVI, em fevereiro de 1793. No transcurso de dois anos, o confronto evoluiu para a guerra civil, levando os comandantes militares da revolução (o chamado Comitê de Salvação Pública, Robespierre à frente) a recorrer indiscriminadamente ao terror. Esse é o tempo das noyades (afogamentos coletivos, principalmente de mulheres e crianças, no rio Loire). O confisco de alimentos, a fim de sujeitar a população à morte pela fome.

Nesse quadro de absoluta insanidade, o nome que logo vem à mente é o de Jean-Baptiste Carrier, organizador do “trabalho de campo”, o mais demente dos dementes que chegaram ao poder com a revolução. A ideia passou a ser aniquilar toda a população daquela região. Gracchus Babeuf, autor da primeira narrativa circunstanciada dos fatos, deu-lhe o expressivo título de A guerra na Vendeia e o sistema de despopulação.

Stalin provavelmente não conhecia os detalhes do que ocorrera na França, mas levou a cabo com intensidade ainda maior o projeto de “matar por inanição”, vale dizer, de fome, como forma sistemática de terror, imposto à Ucrânia no inverno de 1932-33. Confisco geral de todos os alimentos, levando à morte pelo menos 3 milhões de indivíduos, muitos deles até a prática do canibalismo. Em ucraniano, o termo Homolodor significa exatamente isso, matar por inanição, e é o título de um magnífico filme ucraniano disponível no YouTube. Mas, como sabemos, a insanidade sempre pode aumentar.

A partir de 1942, trens lotados de judeus, ciganos e outras etnias começaram a ser descarregados na estação de Birkenau, na Polônia. Os passageiros (se assim os podemos chamar) passavam por uma triagem, sendo os mais fortes mandados para o trabalho forçado e os fracos, doentes, bem como as mulheres e crianças, para as câmaras de gás e os fornos crematórios. O saldo é bem conhecido: o Holocausto, no qual pereceram cerca de 6 milhões de judeus.

Carreguei bastante nas tintas para sublinhar o que afirmei no início: Bolsonaro é, se tanto, uma partícula minúscula na história dos genocídios. Dá-se, entretanto, que os conceitos precisam ser repensados à medida que as instituições humanas e a História avançam.

No século 18, bastava um salto para se passar de A a Z: de uma relativa normalidade para o terror. No século 21, com o País afundando numa pandemia terrível, um presidente que entretém seus convidados do almoço com gracejos e ataca a imprensa no preciso momento em que ela cumpre o seu dever, informando que chegamos aos 260 mil mortos, por certo não chegou ao Z, mas já saiu do A. Quando coloca seu interesse eleitoral a léguas do interesse público, deu mais alguns passos. Sinais de insanidade já está dando – e não são poucos.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Estados Unidos e Brasil num mesmo espelho

Temos na Presidência figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Donald Trump

A invasão do Congresso americano, na última quarta-feira, por baderneiros a mando de Donald Trump foi a pior agressão às instituições americanas desde o macarthismo (de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin) nos anos 1950.

Muito pior, porque o macarthismo era “apenas” um anticomunismo histérico, ao passo que o intento de Trump foi (quiçá ainda seja) se manter no poder por meio de um golpe de Estado, em claro desrespeito aos procedimentos institucionais do país. Brechas para tanto, em meu modesto entendimento, existem. A combinação norte-americana de voto direto e indireto (este no colégio eleitoral) é uma aberração, um arcaísmo concebido no século 18, que já devia ter sido extirpado há muito tempo. Vendo-se e reconhecido pelo mundo como um modelo político exemplar, os Estados Unidos nunca cogitaram de uma reforma política séria, o que até se pode entender, dada a riqueza e a virtual invulnerabilidade internacional do país durante mais de dois séculos. Fato é, não obstante, que a ascensão à presidência de um indivíduo despreparado e atrabiliário trouxe para a luz do dia os defeitos do sistema.

Em 1967 o cientista político Anthony Downs propôs deixar de lado a visão histórica autocondescendente dos americanos, substituindo-a por um lastro teórico mais sólido. Seu argumento, na verdade, era bem simples. Diferentemente dos países influenciados pela Europa, a política americana nunca foi permeada por enfrentamentos ideológicos. Seu sistema partidário sempre foi balizado por duas grandes organizações: democratas e republicanos. O sistema de governo presidencial completa o quadro. Um candidato que pretenda ser realmente competitivo tem de adotar uma plataforma convergente, moderada, sob pena de se isolar numa ponta minoritária. Tal argumento refletia fielmente o ocorrido em 1964, quando o senador sulista Barry Goldwater pretendeu encarnar uma posição direitista veemente e foi massacrado pelo moderado Lyndon Johnson.

Acontece que Goldwater, com todos os defeitos que se lhe possam atribuir, não ia além do conservadorismo sulista; não se apresentava como portador de uma ideologia sem pés nem cabeça, como a “supremacia branca” de Donald Trump. E era, digamos assim, um político normal, não um bilionário de Nova York. Por essas e outras razões, penso que as feridas abertas por Trump não cicatrizarão tão cedo.

O caso brasileiro é muito mais grave que o americano. No que toca ao curto prazo, não há muito a dizer. Temos na Presidência da República uma figura tão despreparada, ignorante e atrabiliária como Trump. O Congresso tem se saído algo melhor que o esperado, mas o custo fiscal é elevado, como sempre foi. E o Judiciário (entenda-se o Supremo Tribunal Federal) parece cada vez mais empenhado em combater o combate à corrupção.

Numa perspectiva mais dilatada, o problema é que o sistema político brasileiro é incapaz de impulsionar o crescimento da economia e o aumento do bem-estar. Claro exemplo disso é o sistema de ensino. O atual governo já está em seu quarto ministro da Educação, e todos eles, como diriam os teatrólogos, passam pela cena sem dizer palavra.

O acoplamento do sistema presidencial a essa grande ameba partidária é, com certeza, a pior invenção política de que temos notícia nos tempos modernos. No sistema presidencial, o Executivo não dispõe de meios legítimos para forçar um Legislativo recalcitrante a aprovar reformas sabidamente necessárias; e o Legislativo, por sua vez, não tem como destituir um chefe de governo que careça da estatura exigida pelo cargo, a não ser pelo procedimento do impeachment, sabidamente complexo, demorado e perigoso. O impeachment não é sequer remotamente comparável, sob esse ponto de vista, ao voto de não confiança, próprio do sistema parlamentarista.

Tivéssemos cabeça, nós nos abalançaríamos a uma reforma política séria, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista de governo. Escusado frisar que o debate sobre sistemas de governo, sistemas eleitorais e demais peças político-institucionais não é monopólio de Brasília. Sendo, como são, reformas estruturantes, com impacto generalizado e duradouro sobre a sociedade, devem contar com toda contribuição relevante que o País possa mobilizar de fora para dentro, muito além da classe política.

Outra precaução importante é não repetirmos o erro de 1993, quando submetemos tais matérias a uma consulta popular plebiscitária. Cabe aqui o ensinamento do liberal gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil (presidencialista, por sinal). Destacando a superioridade da busca da racionalidade no sistema representativo “em sua elaboração completa” e a falta dela no “simples plebiscito”, ele esclarece que o sistema representativo combina a pressão popular com a possibilidade “da discussão metódica, necessária para o completo esclarecimento dos assuntos, para a possível modificação do próprio modo de propor o objeto a resolver, e até para acentuar a responsabilidade das opiniões e dos seus portadores”.

*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Deitado eternamente num catre de madeira

Exceção feita ao agronegócio, a verdade é que estamos parados, ou retrocedendo

Sei que não é de bom tom fechar o ano numa nota pessimista, mas parece-me pior fazê-lo numa nota mentirosamente otimista.

Quantos de nós conservamos a esperança que tínhamos até poucas décadas atrás, a de que nossa geração veria um País mais desenvolvido, com mais bem-estar, escolaridade e civilidade? O problema, como ninguém ignora, é que não temos sido capazes de retomar o crescimento econômico em bases sustentáveis e, quiçá pior, nem temos uma consciência exata das raízes sociais e institucionais de nossa estagnação.

Há exatos 30 anos, dissecando o período Geisel-Collor, o economista Alkimar Moura definiu o objetivo de seu texto com estas palavras proféticas: “A ênfase reside nas políticas macroeconômicas de curto prazo, pois as preocupações mais largas com crescimento econômico, mudança estrutural e justiça social foram soterradas pelas violentas flutuações conjunturais que assolaram a economia brasileira nos últimos anos. Além disso, não se pretende oferecer nenhuma interpretação original para nossas recorrentes mazelas econômicas, pois a literatura econômica disponível é pródiga a esse respeito”.

Para chegarmos exatamente ao mesmo quadro, e torná-lo mais aterrador, basta acrescentar a pandemia às “violentas flutuações conjunturais” a que Alkimar Moura se referiu. Com uma ressalva: a pandemia já matou e ainda vai matar muita gente, mas por si só não explica o pessimismo (realista) que hoje permeia nossa sociedade. Exceção feita ao agronegócio, cujo desempenho é formidável, a verdade é que estamos parados, ou retrocedendo. Deitados eternamente num modesto catre de madeira.

Igualmente incapaz de oferecer alguma interpretação original, tocarei mais uma vez em questões já bastante exploradas. A questão central é, a meu juízo, a perda do dinamismo. O Brasil atual carece de impulso, de uma força ou um processo que o leve a superar a chamada “armadilha do baixo crescimento”. O leitor poderá objetar que, mesmo com o produto interno bruto (PIB) crescendo a taxas medíocres, o País poderia estar melhorando. Poderia estar aprimorando suas instituições, revolucionando seu sistema de ensino, reduzindo a violência endêmica e, não menos importante, alojando os corruptos nos aposentos que lhes seriam adequados. É óbvio que nada disso está acontecendo, e que não há exagero em afirmar que estamos regredindo em todos esses aspectos.

Esquematicamente, podemos identificar três causas para a falta de impulso: uma, derivada da estrutura social lato sensu; outra, devida à má organização das instituições de governo; e uma terceira, de mais difícil identificação, decorrente da inexistência entre nós de uma elite digna de tal denominação. No tocante à estrutura social, o termo estrutura nem parece apropriado. Não temos uma classe média, ou camadas médias bem delineadas, assentadas em pequenas e médias propriedades, urbanas e rurais. Temos um enorme conjunto informe, ameboide, constituído por pessoas que vivem de empregos mal remuneradas e de má qualidade, sem perspectiva e sem incentivos de ascensão.

Nesse conjunto é preciso incluir os desempregados e os que não estão tecnicamente desempregados porque já não têm ânimo para procurar emprego. Pessoas que pagam seus impostos (até porque a maioria deles está embutida no preço dos produtos), cumprem seus deveres eleitorais, etc., mas das quais não é razoável esperar pressões contínuas e racionais sobre as autoridades – menos ainda agora, que estão desmobilizadas pela pandemia – com vista a engendrar o impulso a que me referi.

Nossa organização institucional acopla o sistema de governo presidencialista a um multipartidarismo alucinado, sem dúvida a pior combinação jamais inventada. A dúvida que alguém pudesse ter a respeito dessa afirmação foi para o espaço, na era Lula, com o mensalão e o petrolão. O orgulho de termos ampliado generosamente o eleitorado, tornando-o tão abrangente como o dos países mais desenvolvidos, foi desmontado com um peteleco pela megacorrupção empresarial, que esfarelou todo o sistema de partidos.

No Brasil, a fragilidade da estrutura social e das instituições políticas é agravada pela inexistência de uma elite dotada de certa organicidade. Nas ciências sociais, há quem empregue o termo elite para se referir apenas aos ápices de quantas pirâmides queiramos construir com base em critérios de prestígio, renda, escolaridade, etc. Essa acepção é pobre, pois designa apenas agregados estatísticos. O sentido que ora nos interessa diz respeito a grupos reais, que se destacam não apenas por possuir recursos vultosos, mas também por certa autoconsciência e coesão e exemplaridade no tocante a valores. É graças a tal combinação de atributos que elites influenciam a política pública, balizam as ações dos governos e, em certas conjunturas críticas, os próprios destinos do país. Isso, decididamente, é o que não temos atualmente no Brasil.

Precisamos de ânimos desarmados, não de mais radicalização. Como está não pode dar certo.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Presença do blefe na atualidade política brasileira

O coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso

Nas condições em que se travou a disputa no segundo turno da eleição presidencial de 2018, era mesmo difícil imaginar que chegaríamos a 2020 com um governo sério e competente.

Agora, porém, somos forçados a admitir que a situação é bem pior que a inicialmente prevista, e não só por causa da pandemia. Os desafios, tanto na área econômica como na sanitária, são aterradores, e não há como conceber um alívio substancial nos próximos meses.

A vitória de Jair Bolsonaro foi a consumação de um blefe meticulosamente construído. Seu programa era um amontoado de metas altissonantes – como convém a um bom blefe –, grudadas entre si pelo visgo da malícia. Naquele amontoado desconexo e irrealista destacava-se a erradicação da “velha” política, ponto que retomarei adiante. Mas o que realmente interessava, naquele momento, era apresentar-se como o polo antipetista, o resto era recheio.

O blefe tem uma longa história na vida política brasileira. Seu marco cronológico clássico foi a eleição de Jânio Quadros em 1960 e sua renúncia em agosto de 1961. A vassoura, marca registrada do personagem que criou, já sugeria a intenção de combater a corrupção e a “velha” política – podendo nesse aspecto ser vista como uma avant-première do bolsonarismo. Mas o melhor estava por vir. Seria a renúncia, em agosto de 1961, comunicada em carta ao Congresso. Jânio imaginou que os parlamentares passariam vários dias discutindo a carta, engalfinhando-se enquanto o País entrava em convulsão. Dessa forma, ele voltaria ao Planalto nos braços do povo, com poderes ampliados. Mas o Congresso não foi na conversa e o homem da vassoura ficou a ver navios.

Em 1963, fazendo das tripas coração para exercer de fato a Presidência, João Goulart oferecia ao Brasil o banquete das “reformas de base”, uma promessa de reformar o Brasil de alto a baixo. Enquanto isso, Leonel Brizola ameaçava o Congresso (“reforma agrária na lei ou na marra”) e fazia soar seu estribilho: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”. Vinte e poucos anos depois seria a vez de José Sarney. Seu Plano Cruzado elevou-o aos píncaros da popularidade e ele optou por ficar lá, em vez de desfazer as ilusões subjacentes ao congelamento de preços e salários. A queda, como se sabe, sempre equivale à altura do galho.

Quem hoje monitora o drama político brasileiro logo percebe que a Bolsonaro só o que interessa é a reeleição em 2022. Seu ministro da Saúde parece um aprendiz de ventríloquo, o da Educação ainda não disse a que veio e o das Relações Exteriores tornou-se um órfão de Donald Trump. Nesse quadro, a pandemia não deixa de ser útil ao presidente, pois disfarça o vazio de seu governo e lhe fornece os adereços de que necessita para se manter visível na cena pública.

Seria tudo muito engraçado se não fosse trágico – a “gripezinha” já se aproxima de 200 mil óbitos – e perigoso, porque o coquetel covid + crise fiscal + desgoverno pode levar o País a um grave retrocesso.

Retrocesso: peço licença para inserir aqui algumas breves considerações sobre essa palavra. O apolitismo brasileiro é de tal ordem que muitos, quiçá a maioria de nossos compatriotas imagina que o regime democrático existe num estado estacionário. Que não vai para a frente nem para trás. Não vai para a frente, segundo o discurso mais batido, porque nenhum político presta. Vai para trás? Talvez, mas, e daí? Para alguns a questão nem faz sentido, pois estão convencidos de que não temos, nunca tivemos e nunca teremos uma “verdadeira” democracia. Outros, só para exercitar um discurso bilioso, e outros falando a sério, apregoam que um retrocesso total seria na verdade a solução, pois qualquer ditadura seria melhor que a contrafação democrática que nos rege. Curiosamente, essa conversa é por sua vez um blefe, pois quem aí se detém nunca dedica sequer meia hora a uma reflexão séria sobre o que está dizendo. A ascensão de Hitler e o massacre de milhões foram a solução para os problemas (cuja gravidade ninguém desconhece) da Alemanha do entreguerras? Sem ir tão longe, Hugo Chávez e Nicolás Maduro livraram a Venezuela de seus difíceis problemas?

De fato, aqueles que não dispõem de meia hora para refletir sobre essas questões não precisam se preocupar com um possível retrocesso. Permito-me, porém, lembrar-lhes que a ditadura benigna com que sonham, ou que se dispõem a tolerar, não pode ser obra de amadores. O antigo molde latino-americano, aquele que conhecemos tão bem, já não basta. Somos um país de 220 milhões de habitantes, com um potencial de conflito gigantesco e até com bandos de cangaceiros high-tech, como os que dias atrás atacaram e aterrorizaram cidades em Santa Catarina, em São Paulo e no Pará. Um regime ferreamente totalitário como o da China? Há quem aprecie.

Seja como for, convençam-se de que nenhuma varinha de condão nos vai tirar do angu em que nos encontramos. Nenhum passe de mágica, nenhum estalar de dedos vai oportunamente nos transportar para o Primeiro Mundo.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: O primeiro passo é conhecer o Brasil

No atual cenário social, econômico e político, hipótese de retrocesso não pode ser descartada

Se você acredita que o Brasil está progredindo a um ritmo medíocre, está certo; se pensa que estamos na iminência de um retrocesso grave, é provável que esteja certo também.

Só estará errado se achar que dispomos do tipo e do montante de conhecimentos de que vamos precisar para sair desta enrascada em que há anos nos vimos arrastando. Afirmação arrojada, bem o sei. No transcurso das últimas três ou quatro décadas, as pesquisas de opinião e os levantamentos do IBGE têm nos proporcionado uma montanha de informações de altíssimo valor. O problema, creio eu, é que tais informações não respondem em sua inteireza às indagações que se imporão quando nos depararmos com o inexorável desafio de reformar a sério nossa sociedade e nossas instituições políticas.

Ao dizer “inexorável”, peço permissão para passar ao largo do mar de mazelas que debatemos dia sim e outro também: estagnação econômica, desigualdades abissais, nível médio de escolaridade abaixo da crítica e condições sanitárias cujas deficiências conhecíamos de longa data, mas sobre as quais agora, com a pandemia, não cabe mais discussão. Tampouco me parece caber dúvida quanto à persistente perda de consistência das instituições: da alta administração pública, civil e militar, assim como do Legislativo e do Judiciário.

Volto aos conhecimentos de que necessitamos. A montanha de informações de que dispomos se compõe basicamente de dados “atomizados”, quero dizer, colhidos por meio da aplicação de questionários a indivíduos isolados e depois agrupados em categorias (classes A, B, C, D, diferenças entre grandes e pequenos municípios, etc.). Os resultados de tais operações não são grupos reais. Se nosso objetivo é evitar retrocessos e construir um sistema político capaz de impulsionar o desenvolvimento, informações desse tipo não são suficientes. Sociedades e sistemas políticos assentam-se sobre estruturas, vale dizer, sobre tramas de relações interindividuais e intergrupais, por sua vez amalgamadas por valores e crenças que não se dão a conhecer ao primeiro estímulo de um entrevistador.

Quem deu um passo adiante foi o antropólogo Roberto DaMatta, ao dissecar a expressão “você sabe com quem está falando?”. De fato, a proverbial “carteirada” é um retrato da estratificação autoritária que permeia nossa sociedade. Penso, no entanto, que a necessidade de um indivíduo de status superior se dirigir a um de status inferior ordenando-lhe pôr-se “em seu lugar” indica que a estratificação já está sendo questionada. Não precisaria fazê-lo caso se tratasse de uma estratificação estática, imemorial.

Façamos uma comparação com a França. Em 1920, em sua maravilhosa Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust evoca “... a ideia um tanto indiana que os burgueses (de algum tempo atrás) formavam a respeito da sociedade, considerando-a composta de castas fechadas, onde cada qual se via, desde o nascimento, colocado na posição que ocupavam seus pais, e de onde nada os poderia tirar para que penetrassem numa casta superior, a não ser raros acasos de uma carreira excepcional ou de um casamento inesperado” (vol. 1, pág. 21).

Vinte anos mais tarde, em sua igualmente maravilhosa Suíte Francesa, Irène Némirovsky trafega por um labirinto praticamente igual, o da França invadida pelos nazistas. Claro, não tendo tido escravidão, os pobres franceses não eram miseráveis desprovidos de tudo, como os nossos, nem precisavam as camadas mais altas de recorrer à “carteirada”. A estratificação, os limites prescritos nas interações e nos modos que os indivíduos observavam ao se dirigirem uns aos outros, tudo era rígida e minuciosamente regulamentado.

Voltando ao Brasil, o que mais chama a atenção é a inexistência sequer de uma classe média claramente delineada, com valores e padrões próprios de comportamento. Nunca tivemos uma petite bourgeoisie assentada sobre a pequena propriedade urbana ou rural. A maioria das camadas que têm o privilégio do vínculo empregatício vive de empregos instáveis e de má qualidade. Na área educacional do atual governo tivemos três ministros, mas nenhum plano.

Tampouco temos elites no sentido positivo da palavra, ou seja, grupos de pessoas (com ou sem recursos econômicos vultosos) com vocação de exemplaridade, devotados em alguma medida ao bem comum, e capazes de transitar pelos diferentes setores funcionais da sociedade, agregando atitudes e balizando o modo de agir dos três Poderes. Não estranha, pois, que estejamos presenciando um processo de “desinstitucionalização”, com sinais bem perceptíveis de deterioração em toda a extensão do tecido político.

Sem uma classe média robusta, sem elites no sentido que acabo de expor, com um ritmo pífio de crescimento econômico e um sistema de ensino de péssima qualidade, a hipótese do retrocesso não pode ser descartada. Nas condições aventadas, as instituições democráticas tendem a perder respaldo e robustez, permanecendo incapazes de impulsionar a economia, vulneráveis às formas de corrupção mais obscenas e aumentando a possibilidade de crises graves.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Anatomia do amoralismo brasileiro

A esperança de nos tornarmos mais civilizados parece ter-se esvaído de vez

Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes: somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.

A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.

Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis. Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social. Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.

Como compreender que tenhamos chegado a esse ponto? A interpretação geralmente aceita é a de que se trata do desfecho inevitável da colonização portuguesa. São “grilhões do passado”. Confesso que essa teoria não me agrada, mas não a rejeito in totum. A debilidade de nossa ordem normativa (ou seja, de nosso sistema de valores e normas morais) em parte se deve ao curso de nossa História. Decididamente, nunca tivemos e não temos nenhuma inclinação calvinista. Entre nós, nem o catolicismo, nem as religiões de origem africana, nem a família e muito menos o sistema de ensino facilitaram a formação de padrões morais introspectivos, de caráter individual. Sem esquecer que escravos, seres por definição carentes de interesses e desejos, não tinham de optar entre alternativas, portanto, não tinham que refletir sobre critérios de opção.

De qualquer forma, prefiro partir de premissas atualizadas. Parto da proposição de que nosso país, como qualquer outro, pode ser visualizado como uma justaposição de três grupos distintos: A, B e C.

O grupo A é composto pelos verdadeiros cidadãos. Gente honesta, que respeita os semelhantes, e não se afasta dos padrões morais aceitáveis e corretos em nenhuma circunstância. “No matter what”, como se diz em inglês.

No extremo oposto, o grupo C concentra a gente da pior espécie. Não só ladrões de colarinho branco, mas ladrões de verdade, gente violenta e assassinos que cedo manifestam tal inclinação e assim se comportarão ao longo da vida, em qualquer circunstância. “No matter what”.

O grupo B, presumivelmente o maior, é um emaranhado extremamente complexo. Compõe-se de gente que pode pender para um lado ou para o outro, conforme as circunstâncias. Gente que varia da simples malandragem até tipos mais perigosos, mas sem configurar um padrão previamente determinado. É plausível supor que o grupo B seja proporcionalmente maior em países mais pobres do que em países ricos, ou em momentos de depressão econômica do que em momentos de prosperidade, e em países governados por indivíduos e instituições corroídas pela ilegitimidade – retomo esse ponto adiante. Examinado ao microscópio, o grupo B deixa entrever alguns traços principais. O mais importante é o que Thomas Hobbes (1651) descreveu como a “luta de todos contra todos”. Sim, nesse grupo a luta pela sobrevivência é renhida e constante. Muitos dos que o integram não sabem do que vão viver amanhã, e não dispõem de recursos básicos (como uma boa escolaridade) que os tornem mais competitivos na arena cotidiana. Muitos não têm emprego, ou recaem no desemprego ao primeiro impacto de uma crise. Muitos conseguem trabalho, mas em empregos de má qualidade, mal remunerados, que não propiciam segurança, perspectiva de carreira, continuidade, e muito menos motivação. E não nos esqueçamos de que o Brasil nada possui que se assemelhe a uma classe média consistente, firmemente assentada em pequenos e médios empreendimentos, urbanos ou rurais.

Pois bem, o exemplo, como sabemos, deve vir de cima. Como poderá uma sociedade cujo núcleo coexiste com a amoralidade elevar-se a um nível de civilidade mais alto, se sua cúpula institucional – o Estado e as autoridades que o dirigem – todo dia nos brinda com aberrações jurídicas e acrobacias jurídicas de toda ordem, sem esquecer a corrupção propriamente dita? Se uma multidão de desempregados e subempregados recebe diariamente a informação de que, nos três Poderes, os que mandam metem a mão em cifras astronômicas?

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Nossa infindável fragilidade

A chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota

A pandemia e a certeza de que tão cedo não teremos um ajuste fiscal seguro trouxeram de volta a preocupação com a fala de “resiliência” do sistema político brasileiro. Esse termo significa que nosso Estado cambaleia toda vez que se depara com situações muito negativas.

Triste é constatar que essa joia do jargão politológico não diz nem metade do que precisa ser dito. A fragilidade da organização política brasileira não é ocasional. Não se manifesta somente quando batemos de frente com algum obstáculo poderoso. Trata-se de uma fragilidade mal compreendida, abissal, que deriva de várias causas e produz efeitos crudelíssimos sobre as parcelas mais vulneráveis da sociedade. Seu aspecto mais perceptível é o que Ricardo Noblat certa vez denominou “o céu dos favoritos”. A fauna brasiliense compõe-se de numerosas espécies que diferem em quase tudo, menos no apetite. E na volúpia. Habitam os três Poderes e se valem deles para se apropriarem de cifras estratosféricas, sob a forma de salários, de ajudas de custo, das cotas ministeriais que alimentam o famigerado “presidencialismo de coalizão” e de assessores-de-coisa-alguma, sem esquecer as proverbiais “rachadinhas”. Com as exceções de praxe, claro.

Nesse quadro, o termo “resiliência”, com sua conotação de excepcionalidade ou intermitência, soa doce como o trinado de uma ave da nossa fauna. O buraco é muito mais embaixo, e há um ponto sobre o qual não temos o direito de nos enganar: a chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota. Faz 35 anos que estamos discutindo reformas e o saldo é pífio. A rigor, não dispomos sequer de um diagnóstico, ou seja, de uma visão consistente, objetiva e abrangente do Estado e de suas relações com a sociedade. O problema, como vinha dizendo, não é a baixa “resiliência” de nossa estrutura institucional; é sua incapacidade de extirpar de si a infinidade de privilégios obscenos que se entrincheiraram em seus desvãos, para depois, com a ajuda de Deus, estabelecermos um sistema capaz de impulsionar o crescimento da economia, reduzir as desigualdades sociais e revolucionar o sistema de ensino.

Peço permissão aos leitores para repetir um argumento que venho martelando há várias semanas. Sem um sistema político verdadeiramente propulsor estaremos condenados à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com nossa renda per capita crescendo no máximo 2% ao ano, levaremos décadas para progredir. Nem temos como falar em progresso, pois, nesse horizonte, é de retrocesso que se trata, e deixo a critério de cada um imaginar o que isso significa.

Farei a seguir referência a três aspectos de nosso sistema político, os três com uma longa história e com tendência a piorar. O primeiro é nossa infantil fixação no “Executivo forte”, quero dizer, naquele anseio por um salvador, civil ou militar, que venha nos tirar do buraco. Aquele demiurgo capaz de fixar com sabedoria as prioridades nacionais e de assegurar unidade, estabilidade e eficiência à máquina de Estado que as irá executar.

Para ilustrar esse ponto o caminho mais curto é relembrar o ciclo de governos militares, 1964-1985. Durante aqueles 21 anos tivemos complicações sucessórias em todos os períodos presidenciais. Em todos, sem exceção. O próprio marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo, comandante inconteste do golpe de 1964, viu-se encantoado pelo general Arthur da Costa e Silva, que lhe impôs sua própria candidatura. O resto da história é bem conhecido.

Os representantes civis do pós-1985 não demonstraram muito mais tirocínio. No tocante ao tamanho do Congresso Nacional, por exemplo, os constituintes de 1987-1988 conseguiram piorar bastante o que começáramos a construir antes de 1964. Estabeleceu o mínimo de oito deputados por Estado e aumentou de dois para três o número de senadores. Ao mesmo tempo, conferiu status de Estado aos quatro territórios do extremo Norte, criando um Congresso mastodôntico.

Obviamente, não estou afirmando que a sociedade brasileira ficaria bem representada por cem ou duzentos parlamentares, mas o número a que se chegou – 513 deputados e 81 senadores – é um atroz disparate. Basta lembrar que o governo dos Estados Unidos, com uma população um terço maior que a nossa, mantém desde priscas eras uma Câmara de Representantes com 435 deputados e uma Câmara Alta com 100 senadores.

A premissa é a de que o poder da instituição e o poder individual de cada representante crescem indefinidamente com o aumento do total de representantes. No Paper Federalista número 55, um dos documentos que precederam a ratificação da Constituição norte-americana, James Madison foi direto ao ponto: “Mesmo se cada cidadão ateniense fosse um Sócrates, com milhares de membros a assembleia da cidade seria uma balbúrdia”.

Para organizar o tumulto contamos atualmente 26 deputados federais, nenhum deles chegando à marca de 20% das cadeiras. Ora, convenhamos que ter 26 partidos fracos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Bolívar Lamounier: Dois Bolsonaros

Um já conhecemos bem e o outro é o que me parece necessário, mas não sei se é possível

Espero que meus caros leitores e leitoras não estranhem o título deste artigo. De fato, hoje meu objetivo é contrastar dois presidentes Bolsonaro, um que já conhecemos bem e outro que me parece necessário, mas não sei se é possível.

É inegável que o presidente real, esse que conhecemos bem, teve um lance de inteligência, ou, melhor dizendo, de esperteza, no transcurso de sua já extensa carreira. Percebeu que sua figura, seu modo de ser e falar, se encaixava bem no papel que os eleitores estavam procurando: encarnar o antipetismo (vale dizer, o desastre legado por Lula e Dilma Rousseff), ante o desnorteio, a divisão, a inapetência ou que nome devam ter os chamados “partidos de centro”, que se apresentaram na eleição presidencial de 2018 como que incapacitados por um instinto suicida.

Tirante o referido lance de esperteza – e aqui me esforçarei para ser objetivo, com todo o respeito a Sua Excelência –, realmente não há muito a ressaltar na trajetória de Jair Bolsonaro. Da carreira militar foi levado a se afastar no posto de capitão. Na Câmara dos Deputados, durante 28 anos, foi uma corporificação perfeita do parlamentar do “baixo clero”, não aparecendo como autor de nenhum projeto marcante ou por algum momento de real protagonismo.

Na Presidência da República, tem-se mantido na contramão dos agentes de saúde que diariamente põem sua vida em risco, na linha de frente do combate à covid-19. Recusa-se até mesmo a observar os protocolos, fomentando aglomerações, recusando-se a usar máscaras e receitando o remédio em que acredita, peremptoriamente contestado pelos mais destacados cientistas e institutos de epidemiologia do mundo. Sou forçado a repetir esses lugares-comuns pelo que eles têm de pitoresco, pois a verdade é que a própria forma de transmissão da doença ainda não está satisfatoriamente esclarecida.

Um terceiro traço do Bolsonaro real é sua evidente incompreensão de certas engrenagens da sociedade e da política brasileiras. Por exemplo: ele prometeu erradicar a “velha política”, substituindo-a, presumivelmente, por uma nova, da qual somente participassem homens lúcidos, probos, competentes e devotados ao bem público. Nutrirá, por acaso, o presidente a crença de que a “velha política” é um fenômeno recente? De que muitos dos que nela ingressam o fazem com a evidente intenção de assaltar o erário? De que sem partidos sérios não há como haver política séria – e, convenhamos, um país ter 30 pequenos partidos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa? Desconhecerá, talvez, que mesmo com políticos e partidos razoáveis, o Brasil continuará por um bom tempo encalacrado na velha disjuntiva entre concepções econômicas “nacional-estatistas” e “neoliberais”, as primeiras sabidamente responsáveis por grandes desastres e a segunda (presumindo que saibamos o que é) nunca praticada de forma consistente entre nós?

Um Jair Bolsonaro “possível” é realmente uma possibilidade ou apenas um sonho de uma noite de verão? A primeira coisa que esse ser imaginário teria de entender é que não somos um país navegando em mar sereno, rumo ao desenvolvimento e ao bem-estar, mas, bem ao contrário, um país que corre sérios riscos de retrocesso. E que os conflitos que hoje grassam na sociedade, e nos assustam, poderão piorar muito mais, alastrando-se e tornando-se muito mais violentos, se não lograrmos aumentar substancialmente o investimento e a taxa de crescimento da renda anual per capita, com uma melhor distribuição, vigorosamente reforçada por um sistema de ensino apresentável.

Mas a tragédia que nos espreita é muito maior do que o que me empenhei em esboçar no parágrafo anterior. Mais grave é Jair Bolsonaro não ter feito uma leitura correta do estado de alma dos brasileiros, fazendo pose de violento dia sim e outro também, quando o que dele se espera é uma postura comedida, um exemplo de que precisamos dar meia volta e retomar, não direi o espírito de uma sociedade sem conflitos, mas pelo menos o de um país com instituições civilizadas, pautadas por boas maneiras. Invocar Deus e a religião é direito de qualquer um, mas um homem público precisa primeiro perceber que a sociedade brasileira tem uma ordem normativa muito frágil.

Como indiquei acima, Jair Bolsonaro convive há cerca de três décadas com a classe política e a cúpula dos três Poderes. Esse convívio deve ter-lhe ensinado muita coisa, e o ministro Paulo Guedes deve ter preenchido eventuais lacunas. Ambos sabem que os altos escalões consomem cifras astronômicas, tornando inviável o ajuste fiscal e solapando as bases da legitimidade política que precisamos urgentemente reconstruir. A receita para isso não é ameaçar jornalistas. É enfrentar de rijo o problema, propondo reformas administrativas e políticas realistas, que precisam ser trabalhadas com calma e de forma objetiva. É manter a compostura e a serenidade que se requer de um chefe de Estado, reconduzindo a sociedade à trilha que ela parece momentaneamente haver perdido.

*Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências