Bobbio

Luiz Sérgio Henriques: As metáforas de Bobbio

Não são poucas as fantasias desfeitas e as ilusões perdidas que temos visto desfilar nos últimos tempos. Elas parecem passar mais depressa em períodos de crise vertiginosa e não poupam ninguém, mostrando os farrapos de bem e mal-intencionados, de “tribunos do povo” e adeptos de um liberalismo restrito. Difícil decifrar uma cena tomada pela centralidade dos órgãos de controle e pelos destroços de um sistema partidário que deveria vertebrar a institucionalidade democrática estabelecida há quase trinta anos.

Para usar uma metáfora de Bobbio, aliás originalmente de Wittgenstein, cada um de nós terá alguns bons motivos para se sentir como a mosca dentro de uma garrafa, a esperar talvez por uma intervenção externa que a livre da prisão. A intervenção externa em nosso caso, segundo os defensores extremados da inédita ação corretiva em curso, viria pura e tão somente de juízes, delegados e promotores, mesmo quando, ressalvado o papel globalmente positivo que desempenham, fazem como o Bacamarte machadiano, para quem toda a Itaguaí deveria ser encerrada na Casa Verde; ou para quem, atualizando a trama, a atividade política só poderia recomeçar depois de encontrada uma “solução final” para a corrupção.

Não é possível existir tal ator externo — foi o que Bobbio defendeu contra Wittgenstein e é o que já podemos ver com mais clareza, especialmente com a colaboração premiada do dono da JBS, no curso da qual, a par dos mecanismos jurídicos, se destacou a movimentação propriamente política do procurador-geral na seleção de alvos e prioridades. Pode-se e, de resto, deve-se muito bem admitir a impropriedade do diálogo registrado no Jaburu, indicador, no mínimo, de uma relação promíscua entre o líder político e o megaempresário. No entanto, corresponde a uma escolha mais problemática definir o papel do atual presidente da República como o de “número 1” na sequência de atropelos institucionais da última década e meia, alguns dos quais, como na Ação Penal 470, foram objeto a seu tempo de sanção do STF.

Se não há nenhum deus ex machina à nossa disposição, diante da atual miséria política nacional poderíamos talvez nos sentir como peixes apanhados numa rede – e é a segunda metáfora bobbiana a que recorremos para definir nosso estado de espírito. Estaríamos assim enredados num maniqueísmo indigente, a esbarrarmos uns nos outros com ódio, rancor e intolerância poucas vezes vistos e menos ainda previstos depois de trinta anos de vigência de amplas liberdades. Não soubemos nos autoeducar para a democracia ou então, à maneira de Weimar, vivemos numa democracia sem democratas, prisioneiros de culturas políticas que não se renovaram e, ao contrário, reiteraram alguns de seus piores vícios.

Tomemos, por exemplo, a cultura de esquerda, pelo menos a dominante. Após o longo ciclo autoritário, que expandiu e consolidou as relações capitalistas com sua mistura inseparável de arcaico e moderno, era de esperar que coubesse à esquerda – especificamente ao partido dos trabalhadores que surgiu ainda nos anos de transição – a função de esteio da política democrática: uma política de massas, culturalmente luminosa, capaz de promover os elementos modernos da nossa civilização e, aos poucos, cancelar os arcaísmos. Com frequência, no entanto, lemos seus documentos, observamos a ação de seus dirigentes e geralmente nos decepcionamos: a velha matriz de outros tempos — classe contra classe, proletariado contra burguesia — continua “produtiva”, mas produz menos a mudança e mais o alimento, no campo oposto, para uma direita igualmente primitiva e sectária.

Movimentamo-nos, então, como peixes aprisionados. Mas se trata de movimento rumo a uma saída catastrófica: levados para a margem, como lembra o filósofo, em vez da liberdade encontramos a morte. O que parecia saída era apenas a repetição do peso de chumbo da história: a “estadolatria”, o culto do chefe carismático, o sacrificium intellectum em suas mais variadas manifestações, a murchar o mundo da cultura ou a torná-lo tendencialmente irrelevante, à custa de adesões automáticas segundo o antigo roteiro dos “companheiros de viagem”, usados instrumentalmente e logo descartados.

O labirinto é a terceira das imagens bobbianas para figurar a condição humana e, nela, a dimensão política. Um labirinto sem saída, como convém a um pensador desconfiado de amanhãs radiosos e de uma humanidade utopicamente sem conflitos, ainda que insista, obstinada e racionalmente, em mudanças progressivas, “moleculares”, que possibilitem padrões de civilização mais altos ou, pelo menos, menos injustos. Mudanças estas que sempre foram, e presumivelmente serão, trabalho contínuo sobre madeira muito dura, baseado na disputa e na construção de consenso, na explicitação leal de divergências e na ampliação da tolerância entre os que divergem.

O labirinto é a política. Dentro dele temos de caminhar indefinidamente, contando tão só com nossas forças e nossa capacidade de invenção. Quedas e retrocessos nunca podem ser excluídos, mas temos a favor toda a caminhada anterior, isto é, o processo histórico, que, mesmo tragicamente acidentado, é um processo de criação de valores, entre os quais, como conquista difícil e sempre em risco, a democracia política.

Trinta anos de democracia não bastaram para civilizar as partes em conflito na cena brasileira. Mesmo na falta de alternativas radicais em confronto (e nem elas o justificariam), a divergência transbordou das redes “sociais”, infiltrou-se entre amigos, dividiu famílias. E criou impasses que não temos o direito de ignorar — afinal, o pecado mora ao lado, como nos mostra a desafortunada Venezuela de Chávez e Maduro. Segundo Bobbio, a arte de andar no labirinto — a arte da política — não é nada consolatória, mas, com o tempo, ensina a pressentir os caminhos bloqueados. Não é pouco.
* Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil