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Presidenciáveis: Debate, revigoramento da democracia e o futuro do país

Discussão de temas fundamentais poderia ajudar a revigorar a democracia brasileira

José Eduardo Faria / Blog Horizontes Democráticos

Não fosse o candidato que disputará a reeleição, em 2022, conhecido por sua ignorância, pela compulsão à mentira, pelo desprezo ao diálogo construtivo e pela obsessão em desqualificar adversários, os debates entre os candidatos à presidência da República poderiam recolocar na ordem do dia alguns temas esquecidos, como, por exemplo, os relativos à capacidade organizadora, indutora e administrativa do Estado. Como esses temas são fundamentais para o futuro do País, sua discussão poderia ajudar a revigorar a democracia após a deterioração e a polarização do debate público que marcaram a vida política após o pleito de 2018.

Um dos temas mais importantes é a ideia de planejamento, o que exige a definição de objetivos, a fixação de metas, a formulação de indicadores, o estabelecimento de estratégias de longo prazo e a coordenação das ações necessárias. A ideia de planejamento é fundamental, dados os efeitos sociais dramáticos decorrentes da política de austeridade fiscal sem critérios sociais adotada por este e pelo governo que o antecedeu. Trata-se de uma política que, por estar focada somente na solvência do poder público, promoveu cortes orçamentários sem escalas de prioridade e sem consideração de suas repercussões sociais.

Ao ampliar o alcance da política de privatizações, convertendo em negócio privado o que até então eram determinados serviços públicos, essa política hiper-responsabilizou cada cidadão pelo seu destino, independentemente de sua condição social. A premissa era de que cada cidadão dependeria de suas capacidades, de seu empenho e de seus méritos, o que, no fundo, acaba culpando os mais desvalidos por sua situação. E como isso ocorreu num contexto de reformas trabalhistas, de enxugamento de direitos sociais e de baixas taxas de crescimento econômico, o resultado foi darwinista. Ou seja, preservou o poder dos que já tinham autonomia econômica, financeira e patrimonial e excluiu os que já estavam marginalizados.  

Para reverter esse cenário de agravamento das desigualdades, uma vez que essa híper-responsabilização reduz dramaticamente a capacidade dos cidadãos de controlarem os fatores que determinam sua situação pessoal e social, o planejamento é fundamental. Contudo, para que uma política de planejamento seja posta em pratica, é preciso que os candidatos apresentem seu projeto de poder para o País e que tenham consciência de que parte de seus esforços, em matéria de planificação, somente oferecerá resultados no governo do sucessor daquele que for eleito em 2022.  

Outro tema não menos importante diz respeito ao modo como os candidatos encaram as funções do poder público, a regulação das atividades socioeconômicas e a atuação dos agentes econômicos privados. Esse tema implica a distinção entre função pública, por um lado, e negócio, por outro. Como dizia Rolf Kuntz, que considero até hoje meu professor de filosofia política, embora seja possível analisar uma função pública em termos de eficiência e de rentabilidade financeira, esses critérios não podem ser determinantes para sua manutenção. No plano político, a ideia de função pública envolve a noção de responsabilidade. E, se as atividades na prestação de um serviço público podem ser transferíveis, a responsabilidade não pode. Por isso, concluía ele, a questão politicamente importante é determinar o que é ou não é a responsabilidade estatal.

Planejamento é atividade essencial na esfera pública

Nas duas ou três últimas gestões presidenciais, falou-se muito a respeito disso. No entanto, os dirigentes governamentais se comportaram de modo bastante contraditório. Os mais recentes pareceram desconhecer até mesmo que, em determinadas áreas da máquina administrativa, somente o poder público tem autoridade efetiva para decidir e regular. Igualmente, pareceram ignorar que um dos aspectos básicos da implementação e execução de políticas públicas diz respeito, justamente, aos meios e instrumentos públicos.

Por causa desse desconhecimento e da incapacidade de compreender a diferença entre público e privado, esses dirigentes se imiscuíram de modo abrupto no livre jogo de mercado, tentando controlar preços e interferindo desastrosamente na administração das políticas de tarifas e preços. Com isso, passaram por cima de atos jurídicos perfeitos, desprezando assim o fato de que garantias contratuais são inerentes ao Estado democrático de Direito. Ao agir desse modo, enfraqueceram a segurança jurídica, que é fundamental para que o País possa atrair os investimentos de que necessita para retomar o crescimento.

Esses governantes também se revelaram incapazes de diferenciar funções que são intrínsecas do poder público – e, portanto, não intransferíveis, das funções governamentais que podem ser executadas por meio de convênios com a iniciativa privada. Neste caso, especificamente, o problema foi que não souberam conjugar a lógica do lucro privado (já que os empresários concessionários de determinados serviços públicos encaram a concessão como negócio), com os objetivos de prestação de serviços públicos, que são de interesse de toda a sociedade. Não compreenderam que o público é mais do que a interação das ações privadas, o que leva à distinção entre Estado e mercado. Esqueceram-se de que o próprio livre jogo de mercado necessita de uma ordem legal que ultrapasse a perspectiva particular.

Associado aos demais, um terceiro tema envolve a questão do tempo, que é de longo prazo em matéria de planejamento, e de curtíssimo prazo, com relação ao funcionamento dos mercados financeiros. À medida que as novas tecnologias de comunicação propiciaram as decisões em tempo real, tomadas on-line, e os investimentos no setor industrial passaram a depender cada vez mais de emissão de ações, de bancos de investimento e de fundos de pensão, os mercados financeiros ganharam enorme poder de pressão sobre os governos e os bancos centrais dos Estados.

O domínio dos mercados financeiros é global

A história recente revela que os capitais financeiros se tornaram hegemônicos no campo da economia, a ponto de influenciar e – até de capturar – o braço monetário dos Estados. Baseando-se nas premissas do máximo de lucro no menor período de tempo possível, e com o máximo de segurança e o menor risco igualmente possível, os mercados financeiros levaram os Estados a perder progressivamente o horizonte de longo prazo. Dito de outro modo, com o avanço da globalização econômica, que restringe a autonomia nacional para definir seus próprios impostos e seus mecanismos regulatórios, dada a liberdade que os capitais têm para cruzar fronteiras, os mercados impuseram essas premissas como critérios aferidores de rentabilidade e atratividade dos investimentos.

Por operar basicamente no horizonte de curto prazo, perseguindo ganhos correntes crescentes e se protegendo somente de riscos imediatos, os mercados financeiros levaram as decisões alocativas dos Estados a ficarem distantes da sociedade, não sendo mais resultantes – ainda que indiretamente – de escolhas coletivas por meios democráticos. Desse modo, à medida que as escolhas coletivas foram sendo substituídas por escolhas seletivas dos mercados financeiros, a capacidade de planejamento dos Estados foi ficando progressivamente comprometida.

Este é um dos dilemas que os presidenciáveis têm de enfrentar e que tem de ser discutido nos debates eleitorais. Como disse acima, para um país tão desigual e excludente como o Brasil, o planejamento é fundamental para a reorganização da economia, propiciando a remoção dos gargalos estruturais que impedem uma distribuição de renda mais equitativa e acesso a serviços públicos, principalmente nas áreas de educação e saúde – condições necessárias, ainda que não suficientes, para propiciar inclusão socioeconômica.

Um último tema, entre outros não menos importante, diz respeito à formulação de uma política externa em um mundo de incertezas globais – algo que foi desprezado por um governo que chegou até a afirmar, por meio de seu chanceler, que não haveria problema algum caso o país se tornasse um “pária” nas relações internacionais. Política externa envolve uma discussão sobre a afirmação ou renúncia às interconexões globais após a pandemia, especialmente por causa da interdependência do comércio e da produção de fármacos, nos quais os países avançados se especializavam em produtos sofisticados de alta tecnologia, vendendo-os para mercados mais remuneradores, como os países desenvolvidos e em desenvolvimento,  enquanto países tecnologicamente menos avançados e com baixo custo de produção forneciam peças, equipamentos e remédios mais simples.

A produção chinesa impacta o mundo

A excessiva dependência de bens intermediários e a concentração de sua produção na China foram uma armadilha para as cadeias globais de valor, que são redes complexas que propiciam vantagens de custos baixos, alta escala e flexibilidade espacial. Esses processos de produção fragmentados e espacialmente espalhados em vários continentes, com diferentes estágios localizados em distintos países mostraram sua vulnerabilidade quando a Covid atingiu a China e o governo destinou sua produção para atender à demanda interna, restringindo suas exportações, apoiando fornecedores internos e deixando de cumprir suas obrigações contratuais com os demais países. Em resposta, as chancelarias dos países que ficaram sem receber o que haviam contratado passaram a ver na produção local de vacinas uma forma de defesa de seus respectivos interesses nacionais.  

Ao lado de questões fundamentais, como desenvolvimento sustentável financiado pela emissão dos chamados “títulos verdes e sociais”, ação climática, segurança alimentar, comércio internacional e tecnologias fundamentais, a política externa agora também envolverá a discussão sobre o multilateralismo num mundo pós-Covid, num contexto de crescente rivalidade entre China e Estados Unidos. Envolve, igualmente, discussões sobre como neutralizar riscos geopolíticos daí advindos, que podem abrir caminho para tensões internacionais.       

Esses são alguns temas fundamentais que presidenciáveis têm de debater, para que o País possa revigorar sua democracia e os cidadãos tenham plena condição de escolher em quem votar. Contudo, pelo perfil do candidato que disputará a reeleição, com seu círculo de assessores primatas, civis e militares, esse debate poderá não ocorrer. E, caso essa previsão não se confirme, esse debate, infelizmente, correrá o risco de acabar em picadeiro de circo por quem, no exercício do poder, vem confundindo a presidência da República com o banco da Praça da Alegria.

(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 24 de outubro de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jose-eduardo-faria-debates-democracia/)

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-debate-entre-presidenciaveis-o-revigoramento-da-democracia-e-o-futuro-do-pais/


Alberto Aggio: Resistência da sociedade é visível e vai continuar

Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político

Vanessa Maranha / Folha de Franca

A política é motor do funcionamento e palco dos reveses nas sociedades. O Brasil e o mundo têm vivenciado, sobretudo na última década, pela facilitação da comunicação em rede via Internet, o acirramento ideológico, a polarização das posições partidárias e também subjetivas por uma já evidenciada manipulação da percepção da realidade que as mídias possibilitam. Folha de Franca convidou o historiador Alberto Aggio, docente e autor de artigos e livros de relevância com foco na História Política da América Latina, um nome mais do que avalizado para pensar o Brasil e o mundo de hoje na esfera política em perspectiva temporal e factual. 

Formado em História pela USP, onde também fez mestrado e doutorado, é professor de História na Unesp/Franca desde 1987, na qual tornou-se Livre-docente e Titular. Atualmente, colabora como professor de pós-graduação no PROLAM da USP. Foi articulista do jornal O Estado de São Paulo. É colaborador da revista eletrônica Estado da Arte e criador e editor do Blog-Revista Horizontes Democráticos (www.horizontesdemocraticos.com.br).

Nesta conversa, a partir de seu arcabouço teórico e numa articulação lógica e ao mesmo tempo reflexiva, Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político. Ao longo de todo o texto há indicações de links para aprofundamento nos temas mencionados, discutindo a renovação na crença da democracia e defesa da mesma, retrocessos e sectarismos na atualidade, bem como as perspectivas para 2022, sem poupar críticas ao governo atual.

K. Marx e A. Gramsci

Folha de Franca – De que forma e por que se deu a sua escolha em estudar essa área? Quais são os pensadores que balizam o seu percurso?

Alberto Aggio – Desde minha mudança para São Paulo, em 1970, me interessei pela área de Humanas. Na escola média, o teatro e a escrita me interessaram muito. Com amigos fizemos ambas as coisas, mesmo depois de terminar a escola. A escrita ensaística de opinião foi o que mais me prendeu. Tornar-me professor foi uma questão profissional, de sobrevivência. Na minha formação e como professor universitário os autores que mais me influenciaram foram K. Marx, A. Gramsci, A. Tocqueville, E. Hobsbawm, G. Vacca, Luiz Werneck Vianna, dentre outros.

FF – Seus posicionamentos políticos se modificaram conforme seu percurso teórico e o próprio fluxo dos acontecimentos mundiais/nacionais? Em suma: como você se posicionava politicamente no início de sua carreira …

 AA – Não noto grandes mudanças, não. Reconheço-me desde sempre como um partidário da democracia e da mudança social, por mais igualdade, mais progresso e desenvolvimento. Lutei contra a ditadura, na periferia de São Paulo, ajudando a organizar a população e estimulando a cultura e as artes; na universidade, defendia uma luta intransigente pela democracia, mas sempre com realismo. Fui crítico à esquerda que aderiu a luta armada. Revendo essa trajetória, creio que há mais continuidade do que mudanças súbitas e profundas. É claro que a vida profissional e a dedicação aos estudos, à teoria, geraram mais solidez e ampliaram meus conhecimentos. Politicamente, sempre me mantive na defesa, consolidação e aprofundamento da democracia.

FF -A mídia de países como EUA e Inglaterra declara abertamente sua posição político-partidária. Como você avalia isso sob a ótica brasileira?

AA – São histórias políticas diferentes, culturas políticas distintas. Nesses países o embate entre correntes político-ideológicas foi mais incisivo e direto. Havia jornais que cumpriam a função de partidos, que formaram o seu público por longos anos. No Brasil não foi assim. Manter um jornal em circulação custa muito e somente empresas de comunicação podem suportar esses custos e nem sempre conseguem. Mesmo assim, o jornalismo de opinião faz parte da nossa grande imprensa, mas é uma parte pequena dela. Com a internet tudo se alterou radicalmente. Com ela é possível uma comunicação mais abertamente partidária. Mas também há uma dispersão maior.

FF – Como e por que, na sua avaliação, em nível de mundo e de Brasil chegamos a tal polarização política?

Manifestantes de extrema-direita em cidade européia

AA – Creio que há fatores mundiais e domésticos que se combinam. O fim do comunismo abalou muito as convicções e, por outro lado, aqueles que acreditaram que a História havia chegado ao fim perceberam que sua crença se despedaçava com as crises que se sucederam desde o início do século XXI. A pós-verdade se instalou e junto com ela o relativismo integral. Da crítica ao padrão civilizatório ocidental se evoluiu para a destruição dele, para a defesa de um passado imaginário, de rejeição à globalização, aos direitos humanos etc. Isso gerou um retrocesso cultural e humano imenso. Não há como não resistir a tudo isso. Mas é uma resistência difusa e, muitas vezes, confusa. Às vezes, atua de maneira tão sectária que faz o jogo desses novos “destruidores”, como é o caso dos chamados “identitarismos” de raça, de gênero, etc. Do meu ponto de vista, há um polo de destruição em ação (equivocadamente chamado de populismo) e a principal vítima é a democracia. Os “novos bárbaros” querem o fim dela ou sua mitigação e advogam por uma “democracia iliberal”. Ora, o essencial da democracia não ela ser liberal, é ela ser pluralista e representativa, sustentada por valores e regras consensuais. Como renovar nossa crença na democracia e saber defendê-la me parece que se tornou o nosso maior desafio.

FF – Como você avalia a evolução-involução da política brasileira sob uma perspectiva histórica e cultural?

AA – A política brasileira sentiu o impacto dessas mudanças globais e emergiu entre nós, com muita força, a antipolítica, em suas diversas faces. O PT foi um ator da antipolítica, instalou no país a lógica do “nós contra eles”, foi hegemonista e majoritarista. Essa prática feriu de morte a democracia que estava sendo construída à base de consensos, como foi o conquistado pela Constituição de 1988. E então veio o bumerangue: a reação da ultradireita. Creio que a ruptura da frente democrática na primeira eleição pós-ditadura abriu espaço para essa involução. O país enfrentou vários desafios de lá para cá, venceu alguns, mas estruturalmente permaneceu muito desigual socialmente. E, fundamentalmente, a democracia da Carta de 1988 não está consolidada como cultura política na sociedade. Vide esse movimento da extrema-direita que conseguiu galvanizar massas e ganhar a presidência da República. Com Bolsonaro o grau de destruição e de ameaça à democracia tornou-se dramático. Não haverá possibilidade de retomar o “fio da meada”, como escreveu Luiz Werneck Vianna, sem que se ultrapasse o equívoco que a sociedade cometeu em 2018.

FF – De que forma, a seu ver, pode ser definido o atual cenário político brasileiro? Estamos às voltas com um autocrata que sonha uma teocracia?

Bolsonaro em uma das suas motociatas

AA – Somos governados por um personagem que se coloca fora do campo das forças políticas democráticas, mesmo as de direita. Bolsonaro é um parasita das estruturas do Estado Democrático de Direito, é um homem de facção, vive para seus apoiadores mais diretos, não se configura como o líder de uma Nação, não é um estadista. No início do seu governo, eu cheguei a imaginar que iríamos por esse caminho, de uma teocracia. Escrevi até um artigo em que comparava Bolsonaro com Girolamo Savonarola, um pregador ultracatólico que queria moralizar a Florença da época dos Medici (https://horizontesdemocraticos.com.br/do-fantasma-pinochet-ao-risco-savonarola/) . Chegou ao poder, mas durou pouco; mandou muita gente para a fogueira, mas depois foi lá que ele foi parar. Mas a vinculação de Bolsonaro com as igrejas me parece pragmática, instrumental e utilitária. E hoje, felizmente, ele não galvaniza mais o apoio de antes.

FF – Quais são seus prognósticos para 2022?

AA – Ao que tudo indica caminhamos para um regresso ao passado se a disputa eleitoral se concentrar entre Bolsonaro e Lula. Bolsonaro é em si mesmo o passado, o atraso; enquanto Lula expressa um retorno ilusório a um período que não volta mais (https://horizontesdemocraticos.com.br/quando-o-regresso-se-impoe/) . De qualquer forma, entendo que, para o bem do país, Bolsonaro tem que ser derrotado nas urnas. Penso que a eleição tem que assumir um caráter plebiscitário: deve ser um “não” a Bolsonaro (https://horizontesdemocraticos.com.br/uma-eleicao-plebiscitaria/) . Em segundo lugar, a sociedade deve refletir sobre como quer encontrar o tal “fio da meada”: salvar a democracia, retomar a luta pela equidade, pela sustentabilidade, retomar o crescimento e recuperar a nossa inserção internacional. E isso sem ilusões e sem demagogia, com olhos voltados para a retomada da economia global no pós-pandemia. O processo está em curso e não sabemos se os atores políticos e a própria sociedade estarão conscientes desse quadro e à altura dos seus desafios.

FF – Em artigo que você publicou recentemente sobre Antonio Gramsci, você o coloca como valor representação, numa basilar simbólica das esquerdas. Falo no plural porque, no seu texto você sugere uma pluralidade de esquerdas de vários matizes, inclusive aquela que deturpou o pensamento gramsciano. Por favor, resuma ao nosso público leitor a ideia central dessa discussão.

Imagem da capa da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere

AA – Antonio Gramsci foi sempre um autor de referência, um clássico. Ele foi publicado no Brasil em diversas edições desde a década de 1960. É um autor póstumo. Morreu em função da prisão imposta por Mussolini. Sua recepção no Brasil tem uma história político-cultural que precisa ser conhecida e é isso que tentei fazer nesse artigo que você mencionou (https://horizontesdemocraticos.com.br/o-gramsci-que-conhecemos-e-o-que-ele-inspirou/) . Ele influenciou a esquerda brasileira, especialmente no período de luta contra a ditadura. Ajudou a pensar que tipo de formação social era a nossa e como a democracia aqui é difícil, mas imprescindível. Há diversas correntes interpretativas sobre seus escritos. Algumas o tem como um revolucionário comunista, movimento ao qual, de fato, ele esteve vinculado. Outros, já o veem como um pensador que escapa ao comunismo e se vincula aos desafios da contemporaneidade, na qual a democracia é uma forma política que nos auxilia a vencer os traços oligárquicos e excludentes que ainda existem na sociedade atual.

FF – Quando você menciona, ainda nesse texto, uma “revolução passiva à brasileira” a que exatamente se refere?

AA – A expressão é de Luiz Werneck Vianna. Para esse autor, o Brasil nunca teve uma revolução, no sentido convencional do termo. O Brasil é um exemplo paradigmático da “revolução passiva”, um conceito presente nos seus Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci. Nele está a ideia de que a História moderna muda por meio de processos nos quais a conservação controla os ímpetos maiores de transformação da sociedade. E isso assume diversas formas e dinâmicas, conforme a época. Há momentos de negatividade, de autoritarismo; e momentos de positividade, de reformismo e mudança. A “revolução passiva à brasileira” alude ao longo processo que vai da nossa Independência até os dias atuais, embora tenhamos que fazer um reparo: com Bolsonaro nem mesmo esse processo não-revolucionário de andamento da História existe; o que existe é simplesmente destruição e regressão.

FF – O que você diz da trajetória histórica do PT (Partido dos Trabalhadores)? O que você tem a dizer acerca do antipetismo?

AA – O PT é parte da história da redemocratização do Brasil. Ele se forma pela combinação de militantes da luta sindical no ABC paulista, das CEB da Igreja católica mais os egressos da luta armada dos anos 60 e 70. Tudo isso se junta aos novos seres sociais que emergem com a modernização conservadora impulsionada pelo regime militar, o famoso “milagre econômico”. Forjou-se então um grande partido de massas, com uma grande liderança que é o Lula. O problema esteve nas suas convicções democráticas e no reconhecimento de que a política, em especial a política democrática, é diferente da luta sindical, da prática religiosa ou da militância radical dos guerrilheiros. E mais: a compreensão do Brasil necessitava mais do que a vontade de transforma-lo. E então veio a vitória de 2002 e o desafio de governar o país. A política cobrou seu preço. A saída foi desastrosa: Mensalão, Petrolão, etc…; o PT apostou na compra dos outros atores políticos para ter sustentação. Fez uma opção antidemocrática e antirrepublicana. Acabou desmoralizando a esquerda. O impeachment de Dilma é um desdobramento disso. Aí emergiu o monstro que já existia entre nós. Das manifestações de 2013 ao impeachment a ultradireita ganhou espaço e se firmou por meio do antipetismo que se desdobrou em antiesquerda, em antidemocracia. E aí estamos.

Bolsonaro e Trump, duas expressões da extrema-direita

FF – As eleições de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil trouxeram a marca da manipulação algorítmica que as redes sociais propiciam. O documentário Privacidade Hackeada (Netflix) denuncia como a extrema direita de lá e de cá, assessorada por Steve Bannon, polarizou a opinião pública a partir de perfilamento psicológico dos usuários das redes e compartilhamento desses dados para manipulação das mentalidades. Podemos falar, nesse sentido, em estelionato eleitoral? O que você tem a dizer sobre isso?

AA – Tudo isso é verdade. Há uma clara influência dessas iniciativas manipuladoras no processo eleitoral de 2018, mimetizando o que ocorreu nos EUA. Mas não vejo aí um “estelionato eleitoral”. Creio que a situação brasileira guarda especificidades. Além de se sustentar no antipetismo, Bolsonaro manifestou uma série de ambiguidades: foi mais corporativo do que um liberal-reformista, como pregava no seu discurso eleitoral. Creio que aqueles que se dizem liberais podem dizer que foram enganados. Da mesma forma, aqueles que votaram em Bolsonaro para continuar a luta contra a corrupção. A ruptura com Sergio Moro e as denúncias de corrupção dos Bolsonaros e mais o que tem revelado a CPI da Covid mostram que o descrédito do presidente tem razão de ser.  

FF – O movimento da História é mesmo pendular? A cadela do fascismo está sempre no cio, como vaticinou Bertolt Brecht?

AA – O fascismo é sempre um perigo e temos que estar atentos. No momento em que os democratas não conseguem sustentar a democracia, o fascismo pode emergir e vencer. A História é aberta em todos os sentidos. Não é repetível, nem como tragédia nem como farsa. Essa foi uma imagem usada por Marx para ilustrar uma situação específica. A História também não é “um carro alegre com um povo contente que atropela indiferente todo aquele que a negue”, como cantou Chico Buarque referindo-se à Cuba revolucionária. A História é simplesmente desafiadora. Em termos acadêmicos e sociais penso que a História não pode ser vista como reprodução do passado. Ela é uma reconstrução do passado e tem seus métodos reconhecidos.

Manifestantes protestam contra Bolsonaro

FF – O que você diria sobre a mentalidade do brasileiro dentro da perspectiva da História das Mentalidades, no que tange à política?

AA – É difícil dizer que o brasileiro tem uma única mentalidade. O brasileiro é multifacetado. Reconhecemos que padece de algumas dificuldades do ponto de vista de valores coletivos. É a expressão de uma História difícil, com traços singulares de adaptação e atualização à dinâmica do mundo.

FF- Como você avalia as últimas manifestações como a de 02 de outubro?

AA – Acho que as manifestações de 02 de outubro ficaram aquém do esperado. Mas elas se generalizaram pelo país e houve participação. As oposições estão muito divididas, com projetos eleitorais particulares que dificultam uma mobilização unificada. A pandemia e o governo Bolsonaro machucaram muito a população. Mas a resistência da sociedade é visível e vai continuar. Acho que a dinâmica eleitoral vai se impondo com os diversos candidatos e a ideia de uma mobilização única contra Bolsonaro vai se diluindo. Fica claro que o impeachment não virá. O que não significa que a oposição a Bolsonaro irá arrefecer.

Fonte: Folha de Franca e Blog Horizontes Democráticos
https://folhadefranca.com.br/secoes/colunas/alberto-aggio-a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/

https://horizontesdemocraticos.com.br/a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/


Alberto Aggio: O paradoxal e iluminante conceito de "revolução passiva"

Revolução passiva expressa combinação de continuidade e mudança ou uma dialética entre conservação e renovação

Alberto Aggio / Horizontes Democráticos

La Liberté guidant le peuple, Delacroix, 1830

"O conceito de revolução passiva é reconhecidamente um dos pilares dos escritos gramscianos e alude originariamente a transformações históricas ocorridas a partir do século XIX, como desdobramento dos impactos da Revolução Francesa de 1789 na Europa. Esta categoria, voltada para a compreensão de processos de imposição capitalista nos quais não ocorreram ou fracassaram revoluções político-sociais, ou mesmo para compreender as dinâmicas político-sociais que se desdobraram de processos revolucionários que perderam ou arrefeceram este caráter, assume, como afirma Gramsci, o estatuto mais geral de um critério de interpretação na análise “de toda época complexa de transformações históricas” (GRAMSCI. 2002, p. 331)."

Reconhecendo que essa é uma formulação geral, é importante ter em conta que há nos Cadernos do Cárcere um certo ritmo no desenvolvimento do conceito que, de acordo com Gramsci, parte de um pressuposto: “O conceito de ‘revolução passiva’ deve ser deduzido rigorosamente dos princípios fundamentais de ciência política: 1) nenhuma formação social desaparece enquanto as forças produtivas que nela se desenvolveram ainda encontrarem lugar para um novo movimento progressista; 2) a sociedade não se põe tarefas para cuja solução ainda não tenham germinado as condições necessárias, etc.”(GRAMSCI, 1975, p. 1827).

A preocupação de Gramsci estaria em compreender essencialmente os nexos que vinculam economia e política e, por conseguinte, o lugar do Estado, nos processos de afirmação da modernização capitalista que acabaram conformando, historicamente, processos de transformação real da sociedade muito menos óbvios do que aquele que se tornou o clássico exemplo da “revolução em ativação”, a Revolução Francesa de 1789. Para se compreender tais processos se deveria levar em conta, de acordo com Gramsci, que “o impulso para a renovação pode ser dado pela combinação de forças progressistas escassas e insuficientes em si mesmas (a despeito de seu elevadíssimo potencial, porque representam o futuro de seu país) com uma situação internacional favorável a sua expansão e vitória”. Desta forma, “quando o impulso do progresso não se encontra intimamente vinculado a um vasto desenvolvimento econômico local, que é artificialmente limitado e reprimido, mas que é o reflexo do desenvolvimento internacional que manda à periferia suas correntes ideológicas, nascidas com base no desenvolvimento produtivo dos países mais avançados, então, o grupo portador das novas ideias não é o grupo econômico, mas a camada de intelectuais, e a concepção de Estado da qual faz propaganda muda de aspecto: este é concebido como uma coisa em si, como um absoluto racional”(GRAMSCI, 1999. p. 428).

Por meio desta referência, pode-se inferir que a revolução passiva, compreendida como um critério de interpretação, possibilita pensar processos bastante variados de construção estatal e de modernização capitalista, implicando a sua verificação por meio da análise histórica. Isto porque a modernização capitalista e o Estado moderno não se generalizaram por meio de uma “revolução em ativação”, ainda que Gramsci tenha chamado atenção para o fato de que a Revolução Francesa de 1789 tenha “criado uma mentalidade”.

Risorgimento italiano – iconografia

De um ponto de vista teórico, a epistemologia gramsciana da “revolução sem revolução”, de acordo com Luisa Mangoni (1987), tende a individualizar um procedimento metodológico circular, isto é, “de um fenômeno definido como um paradigma interpretativo mais geral que, por sua vez, deve ser verificado concretamente à luz de específicas exemplificações históricas”. Para a mesma estudiosa, trata-se de um método de trabalho que “comporta uma progressiva articulação da mesma hipótese inicial”.

Supor, como se afirmou acima, que pode-se supor a existência da revolução passiva onde se dá “uma combinação de forças progressistas escassas e insuficientes por si mesmas… com uma situação internacional favorável à sua expansão e vitória”, implica trabalhar com a ideia de que “a complexa realidade política que está contida na ‘expressão metafórica’ da Restauração não pode ser lida como puro processo de conservação, a partir do momento que detrás do aparente imobilismo de uma ‘envoltura política’ ocorre, na realidade, uma transformação molecular das ‘relações sociais fundamentais’” (MANGONI, 1987). A metáfora da Restauração, referida ao período posterior à queda de Napoleão Bonaparte, que implicou o restabelecimento das monarquias na Europa, à primeira vista, esconde a sua verdadeira natureza de uma “evolução reformista” na qual o fundamental é a “transformação molecular” que se processa (DE FELICE, 1978). A revolução passiva, “uma construção linguística propositalmente paradoxal”, não pode ser vista, portanto, como uma reação integral à mudança social, esta sim melhor definida como uma “contrarrevolução” (VIANNA, 1997).

Aprofundando mais a abordagem do conceito, podemos dizer que a revolução passiva expressa essencialmente uma combinação de continuidade e mudança ou uma dialética entre conservação e renovação. Num processo desta natureza, o conjunto da sociedade é afetado pela modernização, como um processo de mudança estrutural, sem que haja uma transformação político-social de caráter radical. Analiticamente, a revolução passiva se reporta, portanto, a situações onde as soluções são, em geral, encaminhadas “de cima”, com o Estado e a camada de intelectuais vinculada a ele exercendo um papel preponderante, uma vez que atuam em substituição a uma burguesia estruturalmente débil na transição do momento econômico-corporativo para o ético-político, ou seja, na construção e consolidação do Estado moderno.

Gramsci sugeriu que o americanismo fordista teria sido também uma revolução passiva

O tipo de acordo político eventualmente firmado (formalmente ou não) entre frações das classes dominantes, mais avançadas ou retardatárias do ponto de vista econômico, ou mesmo com outros segmentos ou grupos sociais (como as camadas médias), assim como a ausência ou não de uma aliança com as massas populares, além da incompletude da reforma intelectual e moral ou do grau de frustração no processo de afirmação de uma vontade nacional-popular, à moda jacobina, transformadora do aparelho estatal, são todos elementos que compõem analiticamente o conceito e que necessitam da verificação caso a caso, para que se possa aferir os resultados e as possíveis alternativas que existiam diante dos sujeitos históricos.

Se é correto afirmar que a revolução passiva, como um critério de interpretação, refere-se historicamente a processos diferenciados de formação, consolidação e defesa do bloco histórico da sociedade capitalista, ou seja, aos processos pelos quais “o grupo econômico portador da função produtiva alcança sua elaboração superior, fundando um novo tipo de Estado, desenvolvendo um complexo de superestruturas novas” para dar suporte à “expansão generalizada de uma nova sociedade civil” (KANOUSSI & MENA, 1985, p.125/6), também é importante ressaltar que o conceito de revolução passiva possibilita uma ampla abertura para a análise histórica da “forma política que permite ao capital conservar o poder”, ou seja, do “reformismo preventivo dos Estados modernos” (KANOUSSI & MENA, 1985, p. 109 e 125). Em outros termos, pode-se sinteticamente dizer que a revolução passiva alude aos processos históricos de formação dos Estados nacionais e também à etapa de crise burguesa subsequente à sua consolidação originária, que demandará a intervenção do Estado na absorção da crise e regulação da função produtiva.

Remo Bodei afirma que “em todos os lugares, de fato, assiste-se a revoluções passivas, na Europa e na América, tentativas de racionalização da economia e de controle do consenso”; o mesmo autor observa que na história da Itália “uma série contínua de revoluções passivas” (BODEI, 1978:104/106). Franco De Felice observa que o conceito de revolução passiva é desenvolvido por Gramsci de forma a atingir graus de especificações determinados. Nesta chave de análise, Gramsci interpretou tanto a fase posterior à Grande Guerra e à Revolução de Outubro quanto a emergência do que ele chamou de americanismo, como “governo das massas e governo da economia (…), estas novas casamatas através das quais passa a reconstituição do aparelho hegemônico das classes dominantes” (DE FELICE, 1978, p. 210).

Gramsci como ícone de manifestações no Dia do Trabalho na Itália

Em relação ao trânsito ao primado burguês, além da passagem de caráter revolucionário, Gramsci concebe a possibilidade da imposição do “transformismo”. Neste sentido, após a avaliação da “Restauração” conforme exposto acima e a admissão de que o critério da revolução passiva serve para pensar a generalização do predomínio da burguesia, não apenas o caso francês passa a ser visto como “atípico” como também se junta aos países retardatários neste processo, como foram a Alemanha e a Itália, nada menos do que a Inglaterra. Existe aqui uma indicação importantíssima. Ela se expressa no fato de que a revolução passiva não pode ser vista como um fenômeno atinente apenas a países retardatários. Em outros termos, a revolução passiva não pode ser tomada exclusivamente como um critério de interpretação da passagem do “Oriente” ao “Ocidente” pela via da modernização, ainda que seja inteiramente pertinente a sua utilização para se compreender processos de modernização ou de “ocidentalização”.

Como se sabe, o qualificativo de “retardatário” aplicado a alguns países se prende fundamentalmente à construção tardia do seu Estado moderno e se expressa, na avaliação gramsciana, ao que se pode compreender como um “primeiro ciclo” da revolução passiva, aquele posterior à conjuntura europeia entre 1789 e 1848, o ciclo do Risorgimento italiano. Um “segundo ciclo” seria aquele desencadeado depois da Guerra de 1914 a 1918, do qual fazem parte o fascismo – resultante da primeira onda de revolução passiva depois da Revolução de Outubro –, o americanismo e o fordismo – fenômenos, novos à época, da fortaleza estrutural demonstrada pelo capitalismo – e, por fim, indo além de Gramsci, a socialdemocracia e o Estado de Bem-estar social do pós-guerra – manifestas expressões da pouco compreendida, mas cristalina “revolução passiva europeia” (VIANNA, 1995; VACCA, 1991).

Neste segundo ciclo, estabelece-se um nexo de continuidade entre fenômenos aparentemente distintos mas que, por fim, evidenciam uma nova fase assumida pelo capitalismo, na qual passavam a predominar os modernos processos moleculares de transformismo social. Desta forma, a revolução passiva dessa fase poderia ser verificada no “fato de (se) transformar a estrutura econômica, ‘reformisticamente’, de individualista em economia segundo um plano” (GRAMSCI, 1975, p.1089; GRAMSCI, 1999, p.299/300), contraditando a prevalência individualística na esfera econômica e indicando a “necessidade imanente de (se) chegar à organização de uma economia de programação”, dirigida quer pela política, quer pelo Estadoem sua trama privada.

A figura de Gramsci num mural em Firenze, Itália

Ocorre, assim, uma operação sutil de ampliação do conceito, visando apanhar as mudanças que se processaram historicamente: da tentativa de apreensão das formas pelas quais se processou a metamorfose “dos sujeitos sociais dominantes”, a revolução passiva passa a aludir, politicamente, ao modo de ser dos “seres dominantes” (DE FELICE, 1978, p.194). Avança-se, desta maneira, para a possibilidade de se observar e compreender não apenas as modalidades de trânsito ao moderno, mas também as modalidades de reprodução da dominação sob o moderno. Em outras palavras, nesta nova conformação, esta “moderna revolução passiva” (KANOUSSI & MENA, 1985) se reporta, assim, a uma fase capitalista distinta da época da formação dos Estados Nacionais.

Neste contexto, opera-se a difusão da hegemonia burguesa entre as massas, “amplia-se o seu Estado, captura-se e assimila-se elementos importantes da cultura das classes subalternas, com o propósito apenas aparentemente paradoxal de organizar as massas “para mantê-las desorganizadas”; enfim, exclui-se a experiência estatal das massas, mas contempla-se, ainda que restritiva e controladamente, seus interesses econômico-corporativos. Nesta fase, marcada, de um lado, pelo desenvolvimento desigual do capitalismo a nível mundial, e de outro, pela pujança, universalização e “alcance objetivo” do fenômeno do “americanismo”, o Estado já não é mais o “vigilante noturno” ou “gendarme” e sim um Estado moderno que solda instituições e massas e que intervêm centralizadamente no processo de reprodução social do capital, mediando produção e consumo.

Portanto, ademais do chamado “diagnóstico da fase” presente na avaliação das mudanças morfológicas pelas quais passa o capitalismo, Gramsci adiciona uma outra abordagem dos processos de trânsito à ordem burguesa que se configura como decisiva para fundamentar a revolução passiva como um critério de interpretação. Trata-se da possível distinção entre modalidades de revolução passiva.

Mostra Gramsci em Milão (2017) expos os originais dos Cadernos e os livros de Gramsci na prisão

As gradações no processo de ingresso e solidificação do predomínio burguês estabelecidas por Gramsci entre Itália, Alemanha e Inglaterra são elucidativas. Não se trata apenas de estabelecer uma distinção em relação aos processos de alteração da ordem tradicional, sem levar em conta a luta política e a conquista do poder. Para Gramsci, a Itália se configura como o processo mais atrasado de revolução passiva, em comparação com os dois outros, porque é aí que a burguesia se mostrou mais débil e o jacobinismo mais ausente. “É a maior ou menor presença ativa do portador da antítese, mesmo que derrotado, o que singulariza uma forma atrasada de uma forma avançada” de revolução passiva, sintetiza Luiz Werneck Vianna. Continua o mesmo autor: “a variável-chave na tipologia gramsciana sobre processos de revolução passiva está no elemento jacobino” (…) “nem toda revolução passiva se cumpre com plena subsunção da antítese pela tese: o ator subordinado pode ser ativo (ou ter sido), sobretudo deve, e é a sua ação que vai qualificar o resultado final como mais ou menos ‘atrasado’”(VIANNA, 1997, p.73-74). Neste quadro comparativo, a Alemanha expressaria um processo intermediário, de presença ativa, mas de frustração do elemento jacobino, e a Inglaterra – com seu “transformismo ininterrupto” – a mais avançada modalidade de revolução passiva, uma vez que o jacobinismo se afirmou como parte constitutiva das origens da história moderna britânica.

Mesmo assim, a versão mais atrasada de um processo de revolução passiva não se configura como capaz de impedir que a hegemonia burguesa se faça pela introdução de elementos de “progresso” na formação social. Pela situação internacional, o processo de imposição burguesa e de modernização capitalista se torna irrefreável em seus efeitos de irradiação e expansão. Nestas circunstâncias, em todas as modalidades de revolução passiva o problema está em saber em que graualcance e através de que formas as classes subalternas terão constrangido o seu protagonismo.

Pode-se admitir, assim, que há modalidades específicas de revolução passiva condicionadas ou determinadas pelo tipo de ativação alcançado ou conquistado pelas classes subalternas. Não se trata, como advertiu Gramsci, da inversão dos sinais, em chave de “antirrevolução passiva”, ou, ao contrário, do ator subalterno, em prospecção, assumir para si a revolução passiva como “programa”. Gramsci chamava atenção para o fato de que o conceito de revolução passiva continha o “perigo do derrotismo histórico, ou seja, de indiferentismo, porque a formulação geral do problema pode fazer crer num fatalismo etc.; mas a concepção permanece dialética, isto é, pressupõe e até postula como necessária uma antítese vigorosa e que disponha intransigentemente em campo todas as sua possiblidades de explicitação”. 

Entretanto, a modernização também carrega consigo um processo inelutável de democratização social que, do ponto de vista das classes subalternas, demanda e demandou uma ação política realista no sentido de “traduzir a revolução passiva” num outro signo: o de fazer com que a mudança venha a preponderar sobre a conservação. É esta avaliação que possibilitou a Gramsci sistematizar a complexidade que havia assumido a sociedade moderna: a revolução passiva expressaria, simultaneamente, positividade “em termos de processo, uma vez que, no seu curso, a democratização social, por meio de avanços moleculares, se faz ampliar” e negatividade “porque a ação das elites se exerce de modo a ‘conservar a tese na antítese’” (VIANNA, 1997).

As modalidades de revolução passiva guardam, portanto, este aspecto paradoxal e, encaradas desta maneira, aparecem à análise como processos abertos, a serem aferidos em seu percurso e resultados através do comportamento e protagonismo dos sujeitos históricos.

Se levarmos em conta a filiação e Gramsci ao marxismo e ao comunismo de sua época, não há como notar a grande inovação presente em toda essa formulação que se pode reconhecer nos escritos dos Cadernos do Cárcere. De acordo com Giuseppe Vacca, o conceito de revolução passiva formulado por Gramsci cumpre a função de “superar as limitações da teoria da história como história da luta de classes” e acabará por se tornar “um paradigma historiográfico da teoria da hegemonia” (VACCA, 2016, 143), reconhecidamente o núcleo central do pensamento político de Gramsci.

Referências

BODEI, Remo, “Gramsci: vontade, hegemonia, racionalização”. VVAA. Política e História em Gramsci, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p.71-115, 1978.

DE FELICE, F., “Revolução Passiva, fascismo, americanismo em Gramsci” in VVAA., Política e História em Gramsci, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 189-257, 1978.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v.1, 1999; v.5, 2002.

GRAMSCI, A. Quaderni del carcere, Torino: Einaudi, 1975.

KANOUSSI, D. & MENA, J. La Revolución Pasiva: una lectura de los Cuadernos de la Cárcel, Universidad Autónoma de Puebla, 1985.

MANGONI, L. “Rivoluzione Passiva”. Antonio Gramsci: le sue idee nel nostro tempo, Roma, Editrice L’Unità, pp. 129-130, 1987.

VACCA, G. Gramsci e Togliatti. Roma: Riuniti, 1991.

VACCA, G., Modernidades alternativas – o século XX de Antonio Gramsci. Brasília/Rio de Janeiro: FAP/Contraponto, 2016.

VIANNA, L. W. A Revolução Passiva – iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, especialmente p. 28-88.

(Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 07 de outubro de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/revolucao-passiva-gramsci-aggio/)

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-paradoxal-e-iluminante-conceito-de-revolucao-passiva/


Fabiana de Souza: Ele não pode estar de volta se nunca foi embora

No filme, Adolf Hitler “acorda” na Berlim de 2014 e, paulatinamente, se habitua ao cotidiano

Fabiana de Souza / Horizontes Democráticos

O filme Ele está de volta coloca como questão central os limites, cada vez mais tênues, entre ficção e realidade, explorando os significados desta mudança contemporânea para a sustentabilidade da política democrática. Dirigido pelo cineasta alemão David Wnendt e lançado em 2015, o roteiro contou com a participação de Timur Vermes, autor do romance de título homônimo, no qual o filme foi inspirado. No enredo, Adolf Hitler “acorda” na Berlim de 2014 e, paulatinamente, se habitua ao cotidiano. Não são poucas as situações inusitadas em que Hitler se envolve até perceber que não se encontra em 1945. Conhece um produtor autônomo de programas de TV que o insere no centro do poder contemporâneo, as mídias.

Cena do filme “Ele está de volta”

Ele está de volta nos obriga a perguntar: mas por onde ele andou? Como voltou? Por que voltou? As circunstâncias esdrúxulas do aparecimento de Adolf Hitler na Berlim de 2014 permitem elaborar um incômodo essencial: não é possível que ele esteja de volta! E não é possível não porque seja um absurdo do ponto de vista biológico, mas porque ele nunca deixou de estar entre nós. O personagem Hitler não entende como voltou, mas, logo, demonstra saber o motivo: aproveitar a chance de repetir uma história, para a qual o final se encontra aberto, no ambiente da ficção. Aos espectadores são apresentados novos cenários e novos personagens, mas a história desfila marcada pela permanência. Essa é a causa do desconforto. Para o Hitler da ficção, enfrentar sobriamente uma senhora judia, em 2014, era o mesmo que suportar, estoicamente, não caçar judeus durante as Olimpíadas em 1936. Ainda não chegara o tempo de eliminá-la, esse tempo viria. O que permite a ele enfrentá-la sobriamente? Estratégia e certeza da profecia. Também para o Hitler da ficção a história é medida por uma concepção de tempo fatalista e teleológica. É esta concepção – a mesma que sustentou a ideologia totalitária – a que o Hitler do filme recorre, quando diz à Bellini, sua musa, uma mistura perfeita de Goebbels e Riefenstahl: “a essência da minha visão de mundo me permite sempre tomar a decisão certa”.

Contudo, importante não é apenas a conclusão de que o Führer está vivo ou de que cada um de nós guarda, em potência, um Hitler, um Stalin, um Mao. Fundamental mesmo é como, por meio de quais recursos, um processo profundo de identificação entre coletivos e lideranças se viabiliza. Ainda melhor: como uma “ideia” se torna tão poderosa ao ponto de acreditarmos ser ela o pilar que sustenta e integra nossa vida psíquica? Evidente que, para tratar dessas questões, o filme dialoga com a história. A frase final de Bellini, dirigida a um repórter, é a seguinte: “Tivemos 70 anos para digerir nossa história. As crianças estão cansadas de aprender sobre o Terceiro Reich. Vamos parar de subestimar as pessoas”.

Há um filme dentro do filme. Uma comédia estava sendo filmada e, nela, o Hitler da ficção é protagonista. Por isso, pouco antes de mencionar o cansaço das crianças alemãs com o Terceiro Reich, Bellini, ao ser perguntada se “comédia com Hitler pode dar certo”, diz: “Há comédia alemã pré-Hitler e pós-Hitler”. A inferência propositada à Educação após Auschwitz[1] desvela que o filme nos coloca na posição de aprendizes. Interessante, então, é nos darmos conta de como a montagem cinematográfica atua para alcançar tal propósito. Duas estratégias chamam a atenção. 

Cena do filme “Ele está de volta”

A primeira delas, a mistura entre ficção e realidade. O personagem Hitler viaja pela Alemanha e conversa com pessoas comuns, há diversas cenas em que interage com a população. Além desses diálogos, integram o filme entrevistas realizadas no decorrer de 2014. Dessa maneira, a história ficcional convive com elementos próprios ao documentário. O encontro das pessoas com o ator paramentado provoca reações de empatia e asco visibilizadas pela câmera.

A segunda estratégia tem a ver com os tempos da comédia e do drama no filme. Intercalando esses tempos, somos encaminhados à experiência com o sombrio – vigoroso elemento da aprendizagem. Iniciada em tom de comédia, a narrativa fílmica nos diverte, nos faz esquecer da gravidade do tema e da situação. Faz mais: com Hitler, rimos. Para ficar claro: não rimos dele, mas com ele. Sentimos empatia por aquele homem perdido que, ao se colocar em situações cômicas, expressa preocupação, atenção e educação. É fato: um Hitler anacrônico e confuso nos diverte. O filme nos mobiliza profundamente, muito mais do que se fosse um documentário ou um drama, fórmulas testadas à exaustão, especialmente no caso do nazismo. Mobiliza porque choca. E choca porque dialoga com o nosso presente. Somos colocados na posição de quem experimenta rir com Hitler e se inebria com a sua capacidade de comunicação.

Ao criticar as mídias e expor as estratégias contemporâneas de comunicação, o filme obriga o espectador a refletir sobre seu lugar e responsabilidade na cadeia de eventos que corroem a convivência democrática. Afinal, não é o dissenso ou o conservadorismo que colocam em xeque a democracia. As democracias morrem pela intolerância e por nossa alienação da política, compreendida como atividade que conecta pessoas no espaço público, em busca do bem-estar coletivo. A política reduzida ao algoritmo é o que torna central o debate sobre a simbiose entre ficção e realidade, com o objetivo de desalojar o negacionismo e as fake-news. Exatamente por isso, inseridas ao longo do filme, as entrevistas impactam mormente. Por meio delas, descobrimos racistas, nacionalistas e neonazistas acomodados à lógica da violência. Em contraponto, também capturamos o eficaz poder da ficção, que ativa a linguagem dos grupos que não se abstêm de colocar-se às câmeras. A ficção não está fora da vida, antes, é o que nos permite enxergar melhor o real, por isso este filme merece atenção. A propósito de uma trama cinematográfica e tendo à frente um “Hitler de mentira”, as pessoas expõem desejos bem reais, em sua maioria relacionados ao desconforto com a imigração. A inserção das entrevistas funciona porque essas reforçam o jogo entre o real e o ficcional, obrigando-nos a ver a presença do passado como trauma. Não por acaso, um dos entrevistados confessa: “não podemos dizer nada porque somos alemães, há o estigma do passado”.

Cena do filme “Ele está de volta”

Resta responder, a propósito do filme, o que une cultura, política e mídias. Catapultado à celebridade, o Hitler do filme encanta as pessoas que o cercam, sem dispensar a linguagem e a estética violentas. Para viabilizar e visibilizar esse personagem, a mídia se movimenta compartimentando o fato e a exploração do fato, tendo conhecimento da cultura política com a qual interage e buscando tornar efêmera a memória coletiva. Assim, o espetáculo midiático unifica o diverso, impõe “uma verdade” e afirma a aparência. Isso não é exatamente novo; a novidade é como as novas tecnologias ampliaram o poder midiático de cultivar versões e pontos de vista, a despeito da verdade. Em um universo assim constituído, a liderança escolhida pode ser um “zé-ninguém”, que não tem o que dizer, embora pareça ter. Assustadoramente, Hitler tinha mais a formular, se comparado à liderança autoritária brasileira, que se sustenta pelo esvaziamento das instituições, pela perversão da política e por uma defesa antissistêmica, cuja máxima é “destruir tudo o que aí está”.

Longe de mim insinuar que nosso país é dirigido por um nazista – a história e a nossa cultura política não permitem tal linearidade. Interessa-me, de fato, apontar o uso certeiro da mídia digital para produzir uma realidade que encerra convertidos sem escrúpulos ao uso da violência. Por esse motivo, retornar à polis se faz urgente. A repetição traumática assim o exige. Ora ou outra, a conta chega. Um coletivo emancipado exige alteridade tanto quanto dissenso. O eu é um outro: é isso que a história nos ensina, do ponto de vista ético-político.


[1]Trata-se de uma palestra de Adorno transmitida na rádio de Hessen, em 18 de abril em 1965, publicada em Frankfurt, no ano de 1967. 

Fonte: Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/ele-nao-pode-estar-de-volta-se-nunca-foi-embora/


Marcos Sorrilha: Realidade ou mundo virtual? Faça a sua escolha

Vivemos tempos em que o real e o ficcional estão cada vez mais mesclados pelas tramas da virtualidade/ realidade.

Marcos Sorrilha Pinheiro / Blog Horizontes Democráticos

Existe uma frase atribuída a Mark Twain na qual se afirma: “a diferença entre a verdade e a ficção é que a ficção faz mais sentido”. Ainda que seja uma referência à imprevisibilidade da vida, ela também aponta para um cuidado que todo escritor de ficção deve ter: estabelecer regras e limites para sua própria narrativa, fazendo com que ela soe crível ao leitor (ou espectador), para que ele aceite aquilo que está consumindo como sendo uma realidade plausível.

Mark Twain (1835-1910)

Mesmo as histórias de fantasia devem possuir esse cuidado: propor um conjunto de regras pelas quais aquele universo funciona, sob pena de “perder” a credibilidade junto ao público caso traia as balizas estabelecidas. Mario Vargas Llosa, na introdução de seu livro A Verdade das Mentiras, diz que a ficção é poderosa justamente por isso, pois oferece ao leitor uma realidade possível com a qual ele confronta a sua existência, percebendo suas imperfeições. Justamente por essa característica, os livros são tão subversivos quanto perseguidos.

Além disso, por estabelecer uma coerência a sua história, a preocupação com a plausibilidade exige que o autor recompense de alguma maneira as expectativas por ele criadas, seja com um final glorioso ou um anticlímax capaz de levar a audiência à indignação. Diferente da vida, o final da trajetória percorrida deve vir acompanhado de um prêmio.

Justamente por isso, filmes inspirados em vidas reais frequentemente possuem seu final alterado. Construir a história de um rei prometido, narrar suas vitórias, a trajetória que o leva ao trono, para que no dia de sua coroação ele morra engasgado, comendo peito de peru no café da manhã é totalmente inaceitável. Contudo, totalmente possível na realidade, ainda que não faça o menor sentido.

Acontece que até pouco tempo, esta barreira entre a realidade e a ficção estava muito bem-posta. Um livro ou um filme possuíam espaço de apreciação bem delimitado e suas narrativas estavam circunscritas ao momento de seu consumo. Porém, isso mudou no espaço dos últimos vinte ou trinta anos. Vivemos tempos em que o real e o ficcional estão cada vez mais mesclados pelas tramas da virtualidade/ realidade. 

Desde seu livro Cibercultura, Pierre Lévy (muito otimista, por sinal), dizia que haveria uma invasão do mundo real pelo virtual, de modo que as barreiras entre eles cairiam aos poucos. Segundo entendia, nossa memória de longo prazo seria substituída pelos mecanismos de armazenamento digitais e as interações sociais se concretizariam em multiplataformas, sendo o mundo físico, uma delas.

Cibercultura

Ao que parece, Lévy não estava tão errado, embora o resultado não tenha sido tão bom quanto ele esperava. As redes sociais e as redes de sociabilidade vivem um movimento de simbiose cada vez mais visceral, porém de maneira que as primeiras acabam por estabelecer parâmetros e referenciais sobre as segundas. As postagens de Instagram acostumaram nosso cérebro a pensar que aquelas narrativas construídas, roteirizadas e editadas sejam o equivalente a como a vida deve ser. Isso também serve para o impacto da incompatibilidade entre o posicionamento das pessoas no espaço público, comparado às expectativas geradas pela opinião pública virtual.

O problema em torno dessa questão é que, por aceitarmos que o que vemos no mundo virtual segue os mesmos padrões do mundo real, olhamos para a realidade buscando nela o mesmo “senso de edição” que consumimos em nossas plataformas digitais. Assim, a realidade (o fato dado) passou a ser compreendida não apenas como aquilo que não é previsível, mas como aquilo que não é crível, uma vez que destoa da versão roteirizada vista nas telas dos smartphones. Desta forma, ao não percebermos coerência na vida real, olhamos para ela como se ali existisse algum segredo guardado, capaz de torná-la semelhante às “mentiras verdadeiras” do mundo virtual.

Neste cenário, as teorias da conspiração ganham força e são turbinadas à sua máxima potência. Todos sabemos que fakenews sempre existiram, mas eram até pouco tempo “inofensivas”. O que mudou? Nossa relação com a ficção e a “verdade”. Afinal, as fakenews por mais que apresentem teorias que se desmancham quando postas ao teste do real, possuem uma coerência, uma lógica de roteiro, com causa e efeito, justificativa e ação, que faz dela um produto muito mais “factível” e atraente do que a realidade que ali se apresenta.

O mais incrível disso tudo (ou seria um plot twist?) é que a barreira quebrada entre a ficção e a “verdade” começa a afetar o próprio universo da produção de narrativas ficcionais. Exemplo claro disso é o próximo filme do Homem Aranha. Várias informações, oriundas de diversas fontes, confiáveis ou não, dão conta de que o filme reunirá os atores e personagens das franquias anteriores em um único filme. Diante de tal perspectiva, os fãs do herói montaram um roteiro “perfeito” em suas cabeças, sobre como devem ser as falas, os momentos em que os protagonistas virão à cena e como os vilões serão derrotados.

Cena de Matrix

Não existe, porém, uma única confirmação oficial de que isso de fato ocorrerá. O estúdio responsável pela produção do longa-metragem, assim como os atores, nega tais informações e, mesmo assim, todos seguem difundindo por aí aquilo que será “o maior filme de heróis de todos os tempos”. Pode ser que este crossover ocorra e que as informações sejam verdadeiras. Mas o fato é que já existe um roteiro moldado na mente das pessoas e, caso o filme (o verdadeiro) não cumpra com tais expectativas, ele será sumariamente execrado. Muitos dirão uma frase que vem se tornando cada vez mais célebre em relação ao universo da ficção: “este filme era muito melhor na minha cabeça”.

Isso já aconteceu em Game of Thrones e tem potencial para se repetir em Matrix – Resurrections. O irônico é que diferente do que ocorre no primeiro filme das irmãs Wachowski, escolhemos a pílula azul[1], pois não aceitamos o simples fato de que a realidade seja um deserto. O que funciona em nossas cabeças, nas simulações das realidades possíveis, das “mentiras verdadeiras”, passou a ser a medida de valor sobre como a vida deve ser. O exercício de se usar um romance para despertar nosso descontentamento diante da realidade tornou-se hábito corriqueiro para qualquer usuário de redes.

Não à toa, passamos a dizer que os roteiristas do Brasil ou de 2021, ou da próxima eleição se superam a cada dia. De fato, temos acreditado que a vida segue o fluxo de uma narrativa tal qual aquelas escritas por alguém. Assim, olhamos para a realidade esperando a mesma coerência de uma série da Netflix. Nesses tempos, atualizando Mark Twain, “a diferença entre verdade e a ficção é que a verdade parece ter perdido relevância”.


[1] As irmãs Wachowski (Lilly e Lana) dirigiram a trilogia de filmes Matrix. No primeiro dos três filmes da franquia, o personagem principal, Neo, descobre que a humanidade vive em um mundo de simulação criado por máquinas. Diante da descoberta, é oferecido a ele duas opções: tomar uma pílula vermelha e conhecer a realidade ou tomar uma pílula azul e seguir vivendo a simulação.

Fonte: Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/realidade-ou-mundo-virtual-faca-sua-escolha/


José Eduardo Faria: Artigo 142, as Forças Armadas e o "Poder Moderador"

O presidente Jair Bolsonaro voltou a invocar o artigo 142 da Constituição, que trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, afirmando que ele confere aos militares um “poder moderador” para repor a lei e a ordem quando houver conflito entre os Poderes. “Nas mãos das Forças Armadas, a certeza da nossa liberdade e do apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação. Obrigado por existirem. Nós sabemos o que é bom e o que é justo para o nosso povo”, disse ele no dia 12 de agosto, numa solenidade de promoção de generais.


DEFILE MILITAR NA ESPLANADA


Desfile militar na Esplanada - Operação Formosa. Foto: Pedro França/Agência Senado
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Desfile militar na Esplanada - Operação Formosa. Foto: Pedro França/Agência Senado
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Desfile militar na Esplanada - Operação Formosa. Foto: Pedro França/Agência Senado
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Bolsonaro defendeu reiteradamente essa tese no ano passado, principalmente depois de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional um de seus atos normativos. Na ocasião, o presidente da corte, Luiz Fux, o rebateu de pronto, esclarecendo que a leitura do artigo 142 feita pelo presidente da República é equivocada, em termos técnico-jurídicos. Por causa disso, Bolsonaro ampliou suas afrontas à corte, estimulando seus seguidores a fazerem o mesmo.

Agindo nessa linha, um grupo de 52 membros da Aeronáutica, 16 da Marinha e 10 do Exército – todos da reserva – publicou um manifesto acusando os ministros do STF de fazerem “uso de um palavreado enfadonho, supérfluo, verboso, ardiloso, como um bolodório de doutor de faculdade”. E um deputado, Marcio Labre (PSL-RJ), chegou a afirmar pelo YouTube que, “se as Forças Armadas decidirem que os senhores (ministros do STF) estão destituídos, os senhores estarão, porque o fuzil atira e a caneta não atira. A vida funciona assim, sempre funcionou. Quem manda no jogo é o dono do fuzil, não é a caneta do senhor Fux, nem do senhor Toffoli, nem do senhor Lewandowski, nem do senhor Gilmar Mendes. Um único movimento de tanque na sala dos senhores e os senhores saem algemados, destituídos, podem perder num instante o status que têm hoje”.

Deixando de lado a adulação de Bolsonaro aos novos generais, o palavrório dos oficiais de pijama e o golpismo desse parlamentar, a ideia de que o artigo 142 permite às Forças Armadas agirem como poder moderador de conflitos entre os poderes não procede, juridicamente. Segundo esse artigo, “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Apesar de não ser um texto preciso, como tantos outros produzidos pela Constituinte, o artigo 142 não diz, em momento algum, que as Forças Armadas têm a prerrogativa de um juízo singular que lhes permita avaliar eventuais tensões e conflitos entre os três Poderes e de intervir por conta própria, sob a justificativa de garantir a Constituição e preservar a lei e a ordem. Também não afirma que as Forças Armadas são a garantia da Constituição – esta, pelo artigo 103, deixa claro que o guardião da Carta é o STF.    

Ulisses Guimarães presidiu a Assembléia Constituinte que elaborou a Carta constitucional de 1988. Foto: Arquivo O Globo

Na verdade, o poder de chefia das Forças Armadas é limitado juridicamente e não há qualquer margem para interpretações que permitam sua utilização para conter “indevidas intromissões” no funcionamento dos outros Poderes, como afirmou o presidente da República em 2020. Ao contrário do que tenta induzir, o artigo 142 é o que define as funções das Forças Armadas – não são elas que definem o papel da Constituição. Por mais que esse artigo 142 estabeleça que o papel institucional dos militares é defender a Pátria, garantir os poderes constitucionais e assegurar a lei e a ordem, ele não acolhe a ideia de um poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O que aqueles que criticam os ministros do STF de se expressar por meio de “bolodórios de um doutor de faculdade” não sabem é que, no âmbito do direito positivo, não existe uma interpretação literal da Constituição e das leis – como se houvesse uma interpretação única e verdadeira. Qualquer calouro dos cursos jurídicos aprende, já no primeiro ano, que a interpretação literal é rejeitada desde os tempos do pensamento helênico. Entre os parlamentares bolsonaristas, como aquele que pede “um único movimento de tanque na sala dos ministros do STF”, certamente também haverá quem defenda uma técnica interpretativa dirigida à revelação da vontade do legislador, vinculada a critérios metodológicos consagrados pela jurisprudência e pela doutrina. E, entre os que conhecem um pouquinho de direito e fornecem pareceres de ocasião a generais, almirantes e brigadeiros, alguns poderão até falar em interpretações gramatical, lógica e sistemática. 

Embora essas concepções hermenêuticas sejam antigas, elas já não mais se adequam às sociedades complexas. Nelas, os juízes já não são vistos como agentes presos a um sistema lógico-formal de regras, mas encarados como profissionais cujas decisões resultam da ponderação entre suas visões jurídicas, morais e políticas e os aspectos factuais dos casos sob sua responsabilidade. Nessas sociedades, o sentido de uma norma jurídica não é algo objetivo que se encontra no texto da lei. É, isto sim, o resultado de um processo de leitura dessa norma condicionado pela experiência pessoal, profissional e cultural do intérprete.

Desse modo, quando o STF examina um texto legal, não há sentido único a ser extraído dele – o que há são sentidos contextualizados pelas circunstâncias que balizam a escrita e a comunicação dos legisladores e juízes. Se as normas não são linguisticamente unívocas, ao julgarem ações de inconstitucionalidade contra o uso abusivo de MPs e outras iniciativas do governo, os ministros do STF elegem, entre vários sentidos possíveis, o que melhor pode realizar a função estabilizadora do direito. Os ministros levam em conta os marcos normativos da Constituição como moldura solene, o que neutralizaria o arbítrio.

Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, dois ministros de STF em seção do Tribunal. Foto: STF

Nessa perspectiva, a linguagem das leis não é apenas um instrumento para descrever a realidade por elas regulada – ela também é edificadora da própria realidade. E, à medida que essa realidade vai se tornando mais intrincada, para regular os casos difíceis o legislador tende a optar por conceitos principiológicos – ou seja, abertos e indeterminados. Conceitos como moralidade pública, defesa da pátria e da Bandeira e garantia dos poderes constitucionais nada mais são do que técnicas de catalização de expectativas dos diferentes setores da sociedade.

Conceitos como esses são, também, fatores de estabilização da ordem legal e preservação de sua identidade sistêmica. São, ainda, instrumentos usados pelo legislador para assegurar alto grau de respeitabilidade dessa ordem junto à população. E, como não são autoexecutáveis, os conceitos abertos pressupõem a transferência da responsabilidade por seu fechamento e implementação aos tribunais. Por isso, quando recorrem a princípios como esses para fundamentar uma decisão, os juízes – da primeira à última instância – legislam no caso concreto.  

O caráter polissêmico desses conceitos é um fator revelador de que não há interpretação mecânica ou neutra das leis – fato esse que os acusadores do STF e de seu decano parecem não compreender. Se por um lado a interpretação das normas é condicionada pela experiência pessoal e intelectual do intérprete, por outro, quanto mais principiológico é um texto legal, maior é a discricionariedade dos juízes. Mesmo que as decisões estejam escritas na linguagem da lógica jurídica, elas encerram juízos de valor que podem conflitar entre si. Como dizia o justice Oliver Wendell Holmes Jr., antigo presidente da Suprema Corte americana e docente de Harvard, processos são “campos de batalha” nos quais a sentença é preferência de um determinado juiz de um determinado lugar num determinado momento histórico.

No limite, textos legais com conceitos mais abertos – como defesa da Pátria e da Bandeira e garantia dos Poderes constitucionais – encerram dois riscos. Por um lado, o excesso de princípios pode inviabilizar o direito positivo como técnica. Por outro, confere aos responsáveis por sua aplicação um amplo poder político e institucional. Decorre daí a porosidade da fronteira entre a criação do direito, de competência do legislador, e sua aplicação, de competência do juiz. Também decorre daí a crescente judicialização da vida política e a subsequente politização da Justiça. Decorrem daí, ainda, a jurisprudência criativa dos tribunais, a multiplicação de decisões com fundamentos extrajurídicos e o intervencionismo em políticas públicas. 

Imagem da Justiça na frente do STF em Brasília. Foto: STF

Com seus rompantes, confundindo “autoridade suprema” com poder absoluto, como é o caso de Bolsonaro e seu entorno militar e político, os bolsonaristas críticos do STF – a começar pelo próprio presidente – agiriam melhor se ficassem calados, pois assim não revelariam o grau de sua ignorância jurídica. Como abriram a boca, mostraram não ter competência para discutir problemas atuais mais importantes em matéria de aplicação e de interpretação do direito. 

Como mudar um cenário em que as decisões judiciais tendem a ser mais uma criação dos juízes do que o resultado da aplicação dedutiva de normas jurídicas? Há limites à recriação da ordem legal por meio de interpretações judiciais? É possível evitar que o controle da constitucionalidade das leis se converta numa atividade inovadora de sentido, mesmo sob a justificativa de atualizar um pacto constitucional que, por princípio, é fruto de um processo de decisão coletiva destinado a garantir ao máximo sua universalidade e consenso? Se muitos textos legais contemporâneos são amoldáveis para a atribuição de qualquer sentido por um juiz, como fica a segurança do direito?

Em suma, ao redigir o artigo 142, os constituintes talvez tenham cedido demais, no plano simbólico, para as Forças Armadas. E o fato é que agora, 33 anos depois, uma parte dela – ignara, anacrônica e de vocação autocrática – parece almejar mais do que a tutela simbólica. Ou seja: o poder efetivo. Nesse sentido, ao insistir que esse artigo confere às Forças Armadas um poder moderador, perante um grupo de generais, dois dias após o patético desfile de tanques sucateados pela esplanada dos ministérios, em Brasília, Bolsonaro nada mais faz do que amplificar o desapreço pelas liberdades públicas.

Com isso, negou a Constituição que jurou cumprir. E agora, ao acusar os ministros do STF de “extrapolarem de suas prerrogativas”, quando na prática eles estão apenas exigindo respeito à ordem constitucional, ainda deu mais um triste passo, cujas consequências são imprevisíveis, que tende a tornar o País menor perante o mundo civilizado e as nações com democracia consolidada.

(Publicado simultaneamente em Estado da Arte em 15 de agosto de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-poder-moderador-ffaa-142/)


Fonte: Blog Horizontes Democráticos / O Estado de S. Paulo
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-artigo-142-da-constituicao-as-forcas-armadas-e-o-poder-moderador/
https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-poder-moderador-ffaa-142/


Horizontes Democráticos: O presente como história

Já se disse que a História não é o que passou, mas o que, no presente, permanece do que passou, desafiando a consciência que se pode ter sobre o tempo e o mundo dos contemporâneos. É por isso que muitos historiadores são convocados a emitirem suas opiniões sobre os fatos do presente. Não há, portanto, nenhuma contradição nessa convocação. O conhecimento e a reflexão historiográfica parecem ser cada vez mais reconhecidos como parte da inteligência especializada em refletir sobre permanências, muitas vezes ocultas – não só para o homem comum –, que sustentam e dão base aos embates e conflitos que nos envolvem cotidianamente.


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Para além dessa dimensão pontual, está cancelada, da mesma forma, a possibilidade de o pensar historiográfico estar afastado da investigação sobre as formações culturais comumente entendidas como alicerces do mundo, desde aquelas que possibilitaram que se projetasse um futuro melhor – mais progressista ou simplesmente fazendo par com a ideia de progresso – até aquelas, contrario sensu, que, uma vez cristalizadas, condenam pessoas ou gerações inteiras a viverem como se o tempo não se alterasse ou os fatos, mesmo os moleculares, não fossem capazes de mudar a vida.

Reconhecer no passado uma instância permanente do nosso presente é entender que os tempos humanos são estruturas fundantes da nossa cultura, no sentido lato do termo. Assim, pensar em como se lida com a História e fazer com que ela seja útil, científica ou mesmo moralmente, é o que move os historiadores do nosso tempo. Como parte disso, a História que produzimos no Brasil, por historiadores de profissão ou não, deve ser vista como uma das expressões particulares do métier historiográfico que vai da produção desse conhecimento até a função social que desempenha. E uma das dimensões essenciais desse conhecimento especializado, compartilhado por historiografias que se desenvolvem em outras latitudes, é a perspectiva de atualização constante. Assim, cada vez mais o que é entendido como interdependência em outras dimensões da atividade humana invade da mesma maneira o campo da História. Isso é notável no percurso da historiografia que hoje se produz e não poderia deixar de estar presente na reiterada proposta dos capítulos desse livro, a saber, repensar o presente brasileiro a partir de critérios que superem demarcações restritivas, notadamente as ideológicas, e possibilitem novas visões sobre o passado que insiste em demarcar sua presença nas estruturas da nossa sociedade.

No livro que o leitor tem em mãos, o mundo das narrativas, aparentemente inevitável no nosso tempo, é submetido, capítulo a capítulo, a uma operação que visa estabelecer um inventário amplo e diversificado daquilo que coloniza o território das ciências humanas e sociais, com destaque especial para a reflexão historiográfica. Essa operação é muitas vezes ampliada no sentido de incorporar também a essa reflexão o complexo de narrativas intelectuais que a vida cultural assimilou como o mainstream da opinião pública. Ambas dimensões – para mencionarmos apenas duas delas – estão aqui seletivamente recrutadas em agudos diálogos, todos pertinentemente compostos em análises rigorosas e estimulantes.

Caio Prado Jr (1907-1990)

Cada capítulo deste livro é dedicado, conforme o tema e a abordagem, tanto a sondar o que há de mais atual no debate intelectual a respeito de questões decisivas relativas às teorias e metodologias que orientam a produção do conhecimento histórico quanto a problemas análogos referentes à História do Brasil, selecionando para o debate as narrativas que, em seu tempo, ajudaram a construir as visões que temos sobre o país. Muitas delas, enfatiza o autor, contribuíram enormemente para encobrir uma visão mais complexa e plural da realidade brasileira, obstaculizando uma perspectiva política e cultural ampla e renovada que hoje a imensa crise que vivenciamos se encarrega de evidenciar com notável eloquência.

Em meio a tantas narrativas que brotam no terreno da nossa historiografia, duas merecem ser mencionadas. A primeira é de caráter metodológico e convida o leitor a ultrapassar uma visão modelar que por décadas gerou um apego a explicações e hipóteses calcadas no antagonismo como elemento explicativo da história do país. Como reafirma criticamente o autor, “lamentavelmente para muitos, quando a História não se encaixa no modelo, errada está a história, não o modelo. Assim, continuamos a reproduzir tal modelo e nele ‘encaixar’ tudo o que queremos saber. Inclusive aquilo que ele, o modelo, não é capaz de explicar”. Nesse momento do livro se faz uma crítica clara à sobrevivência de muitos equívocos da abordagem de Caio Prado Jr. a respeito da nossa história, mesmo relevando seus inúmeros acertos, mas, tal apreciação tem caráter mais geral e deve ser entendida como uma referência crítica a outras temáticas e/ou autores. A ênfase no caso mencionado se reporta ao fato de que a abordagem sistêmica com base na oposição metrópole/colônia como determinante explicativo não possibilitou uma leitura mais acurada de processos específicos de desenvolvimento que o país vivenciou, chamando atenção para sua diferenciação regional ou mesmo local, o que nos leva à segunda dimensão que queremos destacar.

Brasilia, capital do Brasil

Trata-se da perspectiva de ver na hipertrofia do Estado na história brasileira não um modelo de afirmação ou condenação, mas uma história eivada de ambiguidade ou mesmo um paradoxo que acabou gerando um labirinto para as forças políticas que buscam estabelecer projetos de futuro para o país. Acertadamente, Vinicius Müller aponta para o fato de que a centralização do Estado que marca a história brasileira desde o Império passou a ser entendida até hoje como responsável pela má distribuição dos recursos e consequentemente dos determinantes do desenvolvimento regional”. O paradoxo é que esta narrativa imagina que apenas um Estado altamente centralizado seria capaz de inverter esta tendência. Ela trabalha com a noção de que há “uma dívida histórica creditada ao Estado central, dada sua culpa em ter criado as desigualdades regionais a partir de seu arbitrário comportamento em relaçãà distribuição dos recursos e incentivos públicos. Müller nos alerta para o fato de que alguns trabalhos começam a chamar a atenção para o fato de que os descaminhos e entraves do nosso desenvolvimento residem também no modo como os poderes locais se comportam frente aquilo que a eles cabia ou lhes cabe hoje, ou seja, a oferta, a qualidade e o alcance de bens públicos que são transferidos para seu gerenciamento e aplicação. O que envolve analisar dimensões políticas e administrativas locais e regionais nem sempre relevadas como importantes ou mesmo como elementos explicativos para nossos problemas de desenvolvimento.

Haveria muito mais a explorar a respeito destes e de outros pontos apresentados nesta coletânea. Em cada um dos pequenos ensaios que a compõe há o grande mérito de buscar, por meio do debate intelectual, compreender as incompletudes e os déficits da nossa formação nacional. Não é sem razão que aqui se convoca o passado para pensar o nosso presente como História.

(Publicado originalmente como Prefácio ao livro de Vinícius Müller, A História como Presente – 46 pequenos ensaios sobre a História, seus caminhos e meios. Brasília: FAP, 2020)


Blog Horizontes Democráticos

https://horizontesdemocraticos.com.br/o-presente-como-historia/

Eric Hobsbawm: Uma história em carne e osso

Vinicius Müller / Blog Horizontes Democráticos

Já avançava por mais de 200 páginas do caudaloso livro do acadêmico inglês Richard J. Evans quando fui atropelado por um trecho: “Em junho (de 1950), Muriel admitiu que tinha um amante; mas nem assim Eric se sentiu magoado; ficou mais preocupado pelo homem não ser membro do Partido Comunista do que com o adultério da esposa”. O marido traído é Eric Hobsbawm, um dos mais influentes intelectuais do século XX e dono de uma trajetória tão fascinante que quase não cabe na biografia escrita por Evans. Eric Hobsbawm – Uma Vida na História retrata a longa jornada humana – o intelectual morreu em 2012, aos 95 anos – de uma personalidade genial envolta por grandes eventos do século passado. Uma existência também marcada, porém, por fragorosos enganos.

Eric Hobsbawm (1917-2012)

Nascido no Egito em 1917, Hobsbawm viveu com sua família judia em Viena antes de mudar-se para Berlim. Encantou-se pelo comunismo em meio à ascensão nazista. E nunca mais abandonou suas convicções marxistas, substituindo a errática identidade familiar pelo aconchego promovido pelos companheiros de partido. Também transformou algumas de suas características pessoais, reveladas pelo título de um dos capítulos (“Feio como o pecado, mas que cabeça”), em algo charmoso. Como se nos dissesse que a pobreza da infância e sua pouco apreciada aparência foram sublimadas por sua erudição comunista.

E foi nisso, um intelectual comunista, que Hobsbawm se transformou quando se instalou na Inglaterra, onde se formou em História por Cambridge, serviu ao Exército durante a II Guerra e construiu uma vasta e respeitada obra. Ainda foi fundador de duas das mais importantes revistas acadêmicas de todos os tempos, a Past & Present e a New Left Review, por onde passaram autores fundamentais da historiografia marxista britânica, como Edward Thompson e Christopher Hill.
Boa parte dessa história é conhecida.

A novidade apresentada por Evans é o modo como Hobsbawm se equilibrou entre os inúmeros galhos que formavam sua vida (aliás, Hobsbawm significa ‘árvore frutífera’). Tal qual um pêndulo, o autor do clássico A Era das Revoluções oscilou entre a singularidade e a generalização capaz de lhe oferecer algum sentido de pertencimento. Assim, o judaísmo, em princípio pouco relevante, foi fundamental para sua oposição ao nazismo. Do mesmo modo, sua fidelidade ao Partido Comunista foi relativizada quando os horrores do stalinismo foram revelados. Mas também justificou e condenou, concomitantemente, os crimes soviéticos nas invasões da então Tchecoslováquia e Hungria.

Ou seja: Hobsbwam buscava por um difícil equilíbrio entre a fidelidade às posições ditadas pelo Partido Comunista e o apego às suas idiossincrasias. Condenava os caminhos que alguns intelectuais marxistas tomavam nos anos 60, como Herbert Marcuse e sua aproximação entre Psicanálise e revolução. Buscou, por outro lado, formas originais de abordar as noções de classe e os novos agentes desta mesma utopia revolucionária. Ficou entusiasmado com o fenômeno do “banditismo social”, o que talvez explique porque gostava tanto do Brasil.

Revolta na Hungria em 1956 contra o domínio soviético

Hobsbawm enxergava na América Latina um local privilegiado para a ascensão de uma nova consciência de classe, antessala para a transformação social por meio da revolução. Ele esteve por aqui em muitas ocasiões e ainda exerce fascínio sobre brasileiros com alguma erudição. Era amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e uma rápida olhada na bibliografia de cursos de História, do ensino médio ao superior, comprova sua condição de ídolo pop entre nós. Mesmo em seu cabotinismo, o ex-presidente Lula, na apresentação que faz no livro, nos revela esta popularidade.
Hobsbawm se manteve ambíguo também em questões pessoais. Sentia-se cidadão britânico, assim como seu pai. Mas, ao escrever em seu diário, o fazia em alemão, língua da mãe. Até o jazz, paixão relacionada à fase de sua vida composta por breves amores regados por muito álcool, foi tema de inúmeros artigos escritos sob o pseudônimo de Francis Newton. Dessa racionalização nasceu o brilhante A História Social do Jazz, livro dos mais conhecidos de seu vasto catálogo.

Afinal, era inteligente e viveu o suficiente para perceber que suas previsões amparadas no marxismo eram derivadas muito mais de desejo que de seus estudos. Talvez como John Lennon – cujo sucesso Hobsbawm achava que seria efêmero -, em certo momento da vida virou herói da classe trabalhadora. A biografia de Hobsbawm prova que é possível ter uma obra significativa e uma vida brilhante mesmo estando quase sempre errado.

A ambiguidade revela-se, ainda, pela reação inusitada à traição da primeira esposa: sua vida amorosa subordinada à posição ideológica, ainda que tenha levado anos para superar a separação. Tempos depois, casou-se com Marlene Schwarz e teve um casal de filhos. Foi nesse período de estabilidade familiar que viveu seus dias mais produtivos e lucrativos. Trabalhou nos EUA financiado pela Fundação Rockefeller, comprou uma ampla casa em Londres e contratou um advogado para fazer seu testamento. Tudo bem burguês.

(Publicado originalmente em Veja, em 25 de junho de 2021; https://veja.abril.com.br/cultura/biografia-examina-vida-do-historiador-eric-hobsbawm-idolo-da-esquerda/; o titulo desta publicação é de Horizontes Democráticos)


Marcus Oliveira: A política do moderno, de Marx a Gramsci

Em razão da alteração das experiências temporais, a modernidade possibilitou novas percepções em torno da política e da história. Como afirmou o historiador alemão Reinhart Koselleck, essa nova configuração temporal é estruturada em torno da expectativa de um afastamento radical entre o passado e o futuro. Fruto da modernidade, o pensamento de Marx elege a revolução como esse corte entre passado e futuro capaz de anunciar o horizonte de uma sociedade sem classes marcada pela emancipação do homem.

Iconografia – Marx e Engels na escritura do Manifesto Comunista de 1848

Apesar de ser um autor pouco sistemático e com uma obra bastante diversa, é possível observar que a revolução e a emancipação humana aparecem como preocupações constantes ao longo do trabalho de Marx. Em seus escritos, a discussão em torno da emancipação humana aponta para a incompletude dos processos revolucionários burgueses. A revolução francesa, ao encerrar o Antigo Regime, permitiu a construção dos direitos do homem, que, limitados pelo individualismo burguês, não perseguem a emancipação humana.

Para conduzir o processo revolucionário rumo a emancipação humana, Marx busca um sujeito universal capaz de superar os limites do individualismo burguês. O proletariado, na leitura de Marx, emerge como esse sujeito universal na medida em que, submetido a uma exploração total, é também o responsável pela recuperação total da humanidade.

Por meio das ações desse sujeito universal, a concepção de política elaborada por Marx aparece vinculada à possibilidade de recuperar a humanidade perdida ao longo da história. Nesses termos, a política aparece no horizonte de expectativa marxiano como um dos caminhos para o reencontro da humanidade consigo mesma. Todavia, essa perspectiva, aliada a essa dimensão histórica universal do proletariado, termina por enfraquecer essa concepção de política.

Embora fundamental para consecução de seu projeto emancipatório, a política é limitada pela leitura em torno da estrutura de classes do capitalismo. A garantia da ordem burguesa por meio da ação violenta do Estado impossibilita, em parte dos escritos marxianos, um desfecho político para a revolução. Nessa perspectiva, o avanço do proletariado acirra os conflitos de classe e se desdobra em um conflito violento, de modo que a política se encerra em uma guerra de classes.

Como apontou Carlos Nelson Coutinho, há alguns acenos de Marx em relação a uma perspectiva democrática e reformista para a obtenção de direitos e melhorias na vida dos operários. Todavia, tal perspectiva não foi inteiramente desenvolvida e, em boa medida, aparece submetida ao horizonte revolucionário.

Lenin discursa em São Petersburgo

Na transição para o século XX, as propostas reformistas, marcadas por uma visão teleológica e mecânica do marxismo, ganham espaço no movimento operário, nos partidos socialdemocratas e na II Internacional. No contexto da Revolução Bolchevique, Lenin, mais que criticar o que considerava os desvios reformistas do marxismo, reacende o horizonte revolucionário.

Contudo, a concepção política de Lenin incorre em problemas semelhantes aos de Marx. Ao retomar a concepção do Estado como aparato responsável para garantir violentamente a ordem burguesa, o voluntarismo de Lenin aposta na revolução como tomada do Estado e utilização desse mesmo aparato violento para a realização da ditadura do proletariado e da sociedade sem classes. Nesses termos, a necessidade da violência revolucionária anunciada por Marx é radicalizada por Lenin.

Após a revolução, em razão dos dilemas enfrentados na transição para o socialismo, Lenin produz algumas alterações em sua concepção política anterior, marcando a necessidade de um trabalho político no interior da ordem burguesa e também de uma crítica ao radicalismo esquerdista. Nessas reflexões, também não inteiramente desenvolvidas em virtude da sua morte, a possibilidade reformista aparece, ainda que subordinada a revolução.

No interior da tradição marxista, ao desenvolver leituras radicalmente inovadoras acerca da história e da política, Gramsci será capaz de solucionar essas tensões presentes em Marx e Lenin. Partindo do diagnóstico histórico de uma transformação morfológica no contexto histórico-político europeu, Gramsci afirma o cancelamento das revoluções. Esse cancelamento ocorre porque, na modernidade europeia, o fortalecimento da sociedade civil desloca a centralidade do poder estatal.

Antonio Gramsci na capa da edição brasileira dos “Cadernos do Cárcere”

Canceladas as expectativas revolucionárias de assalto frontal ao poder do Estado, Gramsci busca a teoria da hegemonia como forma de compreensão e ação política na modernidade ocidental. Para tornar-se hegemônico qualquer grupo social precisa trabalhar politicamente para a construção de um consenso na sociedade civil, antes mesmo de alcançar o aparato estatal. Na leitura gramsciana, desenvolvida ao longo dos Cadernos do Cárcere, a construção dessa hegemonia ocorre a partir das disputas políticas entre os diversos grupos sociais. Realizar a hegemonia e exercer o poder na sociedade, mais que um exercício de força, implica uma ação política virtuosa no sentido atribuído por Maquiavel.

Com a elaboração da teoria da hegemonia, Gramsci resolve, concomitantemente, as tensões entre reforma e revolução presentes em Marx e Lenin, propondo uma concepção de política para além da revolução e da violência. Nesse sentido, a expectativa basilar do marxismo acerca da necessidade de emancipação humana é mantida em Gramsci. Todavia, liberada de um horizonte revolucionário, a realização dessa expectativa ocorre por meio da disputa política da hegemonia, dentro de uma moldura democrática. Para Gramsci, diferentemente de Marx e Lenin, é possível produzir grandes transformações históricas, mesmo que em durações mais ou menos longas, a partir de uma política democrática. Portanto, em razão dessa concepção forte de política, as contribuições de Gramsci para a contemporaneidade ultrapassam aquelas oferecidas por Marx e Lenin e permitem a formulação de projetos políticos para a contemporaneidade.

 

Fonte:

Blog Horizontes Democráticos

https://horizontesdemocraticos.com.br/a-politica-do-moderno-de-marx-a-gramsci/

 


Alberto Aggio: A teoria pura da revolução

“O dever de todo revolucionário é fazer a revolução”. Essa máxima tautológica, atribuída a Ernesto Che Guevara, tornou-se a senha para diversas gerações de militantes políticos que fizeram parte do que muitos chamam de “revolucionarismo” latino-americano. Nas palavras do historiador chileno Alfredo Riquelme, uma manifestação da “imaginação revolucionária” que incendiou as inúmeras correntes e grupos que emergiram nos “longos anos sessenta”[1], que se iniciam com a Revolução Cubana de 1959 e se prolongam até a derrubada de Salvador Allende no Chile em 1973.

Che Guevara e Fidel Castro

Também identificado como “ultraesquerda”, o revolucionarismo se antagonizou dura e permanentemente com todas as correntes de esquerda ou de centro-esquerda (ainda que tal terminologia não existisse na época) que buscavam patrocinar ou apoiar reformas que modernizassem ou tornassem menos desiguais as sociedades latino-americanas. Tais grupos assumiram a luta armada como ação política ou como perspectiva estratégica de seus programas revolucionários. Instalaram no seio da esquerda latino-americana uma “muralha chinesa” entre reforma e revolução, caracterizando os partidos políticos que não seguissem suas orientações como “tradicionais” ou simplesmente “reformistas”, mesmo que as reformas fossem projetadas dentro de uma perspectiva de “revolução processual” voltadas para o socialismo. Esse vigor antagonista era expressão de uma atitude reativa à esquerda latino-americana, especialmente aquela que se pautava pelo marxismo originário da Revolução bolchevique, ou seja, os Partidos Comunistas orientados por Moscou e que buscavam se atualizar em função das variações táticas de lá emanadas e “traduzidas” para seus países.

Apesar dessa busca incessante de apartação da esquerda prévia a ele, o revolucionarismo não conseguiu se desvencilhar dos pressupostos de orientação geral que marcaram historicamente o comunismo no século XX. Como anotou José Rodriguez Elisondo[2], era nítido o apelo à fórmula  da “classe contra classe”, que se acoplava a outras noções, tais como, (1) o caráter do Estado burguês como simples aparelho de dominação de classe; (2) a validade da “ditadura do proletariado” e a fusão entre partido e Estado; (3) o caráter de “destacamento avançado” do partido revolucionário, composto por revolucionários profissionais; e, por fim, (4) a militância como “forma de vida” e a “vigilância revolucionária” como conduta permanente. Evidentemente, são pressupostos seletivamente assumidos. Não à toa deixa de aqui comparecer o Lenin crítico ao vanguardismo e à pequena-burguesia radicalizada.

Mas há no revolucionarismo uma espécie de sincretismo de ênfases e orientações que formam um mosaico, assumido caso a caso, no qual se prega a luta contra o “cerco capitalista” e a denúncia do “reformismo burguês” como “ala moderada do fascismo”; recusa-se o etapismo, afirmando o caráter internacional da revolução socialista; defende-se a tese de Mao Tse-Tung de que o centro da revolução mundial havia se deslocado para Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que se critica o “aburguesamento” da então União Soviética e sua política de “coexistência pacífica”; por fim, last but not least, sob a influência da chamada “nova esquerda” da década de 1960 (H. Marcuse e Wright Mills) adota-se o ódio à “sociedade de consumo” e se sugere que os intelectuais passem a compor uma “nova formação revolucionária” que tivesse como base a aliança entre intelectuais, estudantes e setores marginalizados, em geral.

É mais do que evidente que o revolucionarismo latino-americano se expandiu a partir de uma leitura mitológica da Revolução Cubana. Dela emerge um “modelo” de revolução concebido como único para o continente. Nele estão algumas fórmulas que se tornaram verdades insofismáveis, a começar pela visão geral de que a revolução foi impulsionada por “um punhado de homens decididos e audaciosos” que abriram passagem para o “povo” se constituir na força motriz da revolução. Esse “punhado de homens” se constituiu na direção política da revolução, substituindo o partido operário-socialista, e, acima deles, emerge a figura carismática do líder revolucionário. Contestando fortemente os pilares do comunismo soviético, a pedra de toque dessa leitura se fixava na ênfase de que a base guerrilheira e logística da revolução é camponesa e não uma organização partidária operária e popular. Soldando essas formulações, cria-se o axioma de que a revolução cubana nasce do “atraso”, mas assume seu caráter anti-imperialista e se coloca a tarefa da construção do socialismo. É, portanto, uma revolução que realiza o chamado “salto” do capitalismo, superando a tese da necessidade de uma etapa “democrático-burguesa”. Por tudo isso, o socialismo cubano seria uma “criação heroica”, única e desafiadora para o mundo intelectual vinculado ao marxismo anterior a ela.

As derivações da leitura mitológica da revolução cubana para as teses gerais que fundamentaram o revolucionarismo latino-americano podem ser sintetizadas, de acordo com José Rodriguez Elizondo, em seis pontos: 1. a revolução latino-americana é continental; 2. seu caráter é socialista pois o desenvolvimento capitalista no continente é obstaculizado pela dependência que cancela a possibilidade de a burguesia nacional liderar uma revolução democrático-burguesa; 3. a forma e o método é o da luta armada, concebida como “uma forma superior de luta”; 4. em função da defasagem do proletariado latino-americano em relação aos países mais avançados, a pequena-burguesia assume o papel dirigente da revolução; 5. a revolução pede alianças entre frentes e polos revolucionários – e não alianças entre classes – para confrontar tanto o inimigo estratégico, o imperialismo, quanto o inimigo tático, a burguesia local; 6. os partidos comunistas latino-americanos não são instrumentos revolucionários válidos porque se burocratizaram, são etapistas, privilegiam as diferenças entre os países latino-americanos ao invés da sua homogeneidade, negam o caráter socialista da revolução, adotam condutas pacifistas e se submetem a frentes políticas amplas[3].

A partir desta visão formou-se no continente o que se pode chamar de uma “militância da revolução cubana” que teve muita influência por toda a década de 1960. Entretanto, depois de um primeiro momento de acumulação de forças, o “partido da revolução cubana” se enfraqueceu, golpeado pelo impacto da morte de Che Guevara, na Bolívia, em outubro de 1967, a derrota da revolta de maio de 1968, em Paris, e, por fim, a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em agosto do mesmo ano. Estes acontecimentos exacerbaram os sentimentos anticomunistas da ultra-esquerda latino-americana. No tocante ao Che, pela suposta “traição” do PC boliviano. Em relação ao maio parisiense, pela generalização da avaliação de que “os comunistas têm medo da revolução”. E, quanto a Checoslováquia, passou a pesar a qualificação da URSS como uma potência imperialista, que encobria este caráter com a retórica revolucionária.

Capa do Caderno Especial de análises sobre a visita de Fidel Castro ao Chile de Allende

Quando Fidel Castro visitou Salvador Allende no Chile, no final de 1971, permanecendo no país por 24 dias[4], o cenário mundial era bastante diferente daquele no qual a revolução trinfou em Cuba. A revolução era, por certo, uma retórica compartilhada, mas a obsessão do revolucionarismo havia se deslocado para o tema do socialismo. Por esse entendimento, é explicável que Fidel tenha admitido, em parte e apenas publicamente, a “insólita” existência de uma via chilena ao socialismo como uma “via política ao socialismo” (Allende), embora discordasse inteiramente dela. Aliás, naquele momento, Cuba já havia alterado sua orientação, aliando-se incondicionalmente a URSS e julgava que o fundamental era manter o poder conquistado, arrefecendo a ênfase anterior de promover outras revoluções a todo custo. De fato, anos mais tarde, numa entrevista a Newsweek, em 09 de janeiro de1984, Fidel esclareceria que a estratégia guerrilheira na América Latina era uma das muitas variáveis de defesa do regime revolucionário cubano, ao contrário do que se havia afirmado na década de 1960 de que a revolução na América Latina “caia de madura”. Nas palavras de Fidel: “Nem ao menos oculto o fato de que, quando um grupo de países latino-americanos, sob a direção e inspiração de Washington, não apenas buscou isolar Cuba politicamente, mas a bloqueou e patrocinou ações contrarrevolucionárias (…) nós respondemos, num ato de legítima defesa, ajudando a todos aqueles que queriam combater contra esses governos”[5].

Os pressupostos da teoria pura da revolução acabaram se cristalizando e diversas gerações os assumiram e os vivenciaram sem espírito crítico. Mesmo admitindo que, com o tempo eles sofreram ajustes, alterações ou mesmo supressões, é importante estabelecer uma avaliação rigorosa a respeito das orientações que sustentavam o chamado “processo revolucionário latino-americano” que aquela “teoria” supunha. Isso é ainda mais importante porque ela ainda influencia significativas parcelas da esquerda latino-americana além de inúmeros intelectuais que trabalham em diversos campos do conhecimento na área de Humanidades.

Expressando claramente o caldo de cultura de abstracionismo existente na época, o mito da revolução vitoriosa acabou por sustentar a construção de um modelo que, ao ser tomado como “universal”, se voltou contra a História. Cultuou-se um modelo alternativista que via a política a como jogo de soma zero, evitando funcionar dentro de um sistema político que obrigava os atores a partilharem um consenso mínimo; produziu-se um modelo de antipolítica, essencialmente. Essas posições tinham correspondência com uma postura confrontacionista no plano internacional, que compreendia a América Latina como vanguarda do Terceiro Mundo e tratava como inevitável o confronto com os EUA. Che Guevara qualificava os EUA como a “mais bárbara nação do mundo”, o “grande inimigo do gênero humano”. Isso contrastava, por exemplo, com a postura do Vietnam que preferiu atuar dentro dos EUA, explorando as suas divisões internas. No plano nacional, como não poderia ser diferente, o modelo supôs a existência de dicotomias excludentes: o Estado é o aparelho de coerção que precisa ser tomado; o Exército é a versão concentrada do Estado como expressão da violência contra as classes dominadas; o Direito sublima as relações de força e institucionaliza a exploração das maiorias; as classes sociais são a representação de explorados e exploradores; os partidos políticos fazem apenas o jogo das classes dominantes e estão destinados a desaparecer.

Não há como eludir o resultado de que toda essa formulação só poderia redundar numa nova ditadura de classe, flagrantemente autoritária. A democracia e a liberdade se tornam, aqui, categorias subjetivamente instrumentais: a democracia dos exploradores não é, em nenhum aspecto, a dos explorados e as liberdades de alguns são derivadas das carências de outros, sem uma área intermediária. Em síntese, democracia e liberdade devem ser revolucionárias e isto significa que devem servir para garantir a implantação de uma nova ditadura. É inexplicável como poderá nascer daí uma sociedade nova, um “homem novo”.

Reunião da Tricontinental em Havana

Assim, mais que interpretar ou revolucionar o mundo, a teoria pura da revolução serve para afastar da reflexão a complexidade da realidade. Ela é simplesmente “falsa consciência”, pura ideologia. Sua imaginação funciona para eludir um jogo intelectual de tipo circular, exercitado nos seguintes termos: a impaciência revolucionária se justifica pelo “atraso histórico”, levando à busca de um atalho revolucionário que permita, por sua vez, recuperar o tempo perdido … que justifica, uma vez mais, a impaciência revolucionária.

Mirando historicamente, o resultado não é outro senão o fracasso: não se implantou uma “nova sociedade”, nem em termos revolucionários, nem em termos reformadores. Nesse sentido, perdeu tanto a reforma como a revolução. Nenhum dos teatros de operação da região serviu como suporte para levantar e sustentar uma “segunda Cuba”. Tampouco para consolidar aquelas transformações estruturais que alguns governos reformadores vinham colocando em prática.

Ao contrário da imagem europeia que qualifica a década de sessenta como uma “década prodigiosa”, na América Latina ela foi, antes de tudo, “uma década perdida”, especialmente para aquela esquerda que aderiu à teoria pura da revolução. Foi preciso atravessarmos o século e o milênio para vermos emergir, em traços ainda bastante rudimentares, uma esquerda ainda sem nome próprio, que ainda coqueteia como aqueles paradigmas e claudica em se conformar como um ator distinto do que foi no passado e do que é na atualidade.


[1] RIQUELME S. Alfredo, “La vía chilena al socialismo y las paradojas de la imaginación revolucionaria”. In Araucaria. Revista ibero-americana de Filosofia, Política y Humanidades, año 17, n. 34, segundo semestre de 2015, p. 203-230.

[2] RODRIGUEZ ELIZONDO, J. Crisis y renovación de las izquierdas – de la revolución cubana a Chiapas, pasando por “el caso chileno”. Santiago: Andres Bello, 1995, pp.131-167. A expressão que dá título e que inspira diversas passagens desse artigo é de José Rodriguez Elizondo.

[3] RODRIGUEZ ELIZONDO, J., 1995.

[4] AGGIO, A. “Uma insólita viagem: Fidel Castro no Chile de Allende” In AGGIO, A. “Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana. Brasília: Fundacão Astrojildo Pereira, 2ª. Edição, 2019, p. 121-136.

[5] RODRÍGUEZ ELIZONDO, J. “El invierno del Messías”. La Tercera. Santiago, 28 de octubre de 2001. p. 9 (Cuaderno Reportajes intitulado El invitado que saboteo a Allende).

 

Fonte:

Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/a-teoria-pura-da-revolucao/

(Artigo publicado simultaneamente em Estado da Arte, 08 de maio de 2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/teoria-pura-revolucao-aggio-hd/)


José Eduardo Faria: A "sinalização do povo"

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Bolsonaro em manifestação de cunho golpista em Brasília. Foto: PR

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Bolsonaro fala a apoiadores na saída do Palácio. Foto: PR

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Carl Schmitt, à direita, na Paris ocupada, 1941. Foto: Reprodução

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.


Fabiana de Souza Fredigo: A história vai ao cinema

No Houaiss, transitar é verbo bitransitivo. Se percorro um caminho, se o atravesso como um visitante extasiado, há a disposição de observá-lo, de sorvê-lo, de examiná-lo, mas não de modificá-lo. Simplesmente, encontro-me de acordo com o que ele oferece. Numa paráfrase da percepção oriental, o caminho me modifica, antes que seja eu a intervir nele. É isso que parece dar significado ao ditado “o caminho se faz ao caminhar”. Curta e popular, a máxima abriga o desejo de liberdade e presença. Isso porque a concentração absoluta no caminho nos poupa da ansiedade e da expectativa. O caminho (se) sabe. Nessa forma de encarar o trânsito, concentro-me no ato de passar por uma experiência, de flanar. Noutro significado, transitar implicará a busca de uma mudança, que, além de constituir uma expectativa, é previamente valorada, sobretudo, para aqueles que a vivenciam no enquanto.

Seja a valoração capturada ou não, importa menos. Fato é que ela comporá a expectativa e a imagem da mudança. Por isso, nos idos dos anos noventa, ouvi de um chileno que a demora da transição em seu país se devia ao fato de que o processo não se preocupou apenas com o futuro da democracia, mas com o modelo de sociedade que implantaria, sobretudo, pela tradição da esquerda e porque o golpe fora contra a esquerda. Registrar a ligação entre valoração, expectativa e imaginação me parece fundamental porque a temporalidade chilena, que explica a permanente divisão política da sociedade civil, absorve e costura passados e futuros: o Chile allendista, o da ditadura, o da Concertación e, por fim, o dos novíssimos movimentos sociais, emergentes da capilaridade necessária a uma sociedade que teve o Estado sequestrado pela tecnocracia neoliberal. Com as ruas tomadas pela demanda de uma Assembleia Constituinte, o Chile pré-pandemia parecia fazer frente ao cidadão Credicard, o “sujeito” neoliberal despolitizado e desprovido de laços comunitários. Enfileirados, os passados e presentes manifestam uma constrangida certeza: a cultura política chilena, pese a mitologia envolvida, busca a fórmula da mudança, mesmo quando esbarra (ou resulta) na permanência. O caminho do país da Cordilheira é dado a extremos, da retórica revolucionária aos projetos fundacionais, numa acidentada busca pela sociedade moderna e civilizada que deslumbra seus cidadãos. É uma esfinge e um paradoxo, simultaneamente.  

Atrelado à instabilidade transicional está o conflito entre a democratização desejada e a possívelPara a geração adulta dos anos de 1980, lidar com o déficit democrático dependeu de um recalque coletivo, que, no entanto, não produziu exatamente o esquecimento. É essencial notar a distância e a distinção: oque parecia esquecimento era latência à espera de elaboração; e, nesse caso, a prisão de Pinochet (1998) e, depois, sua morte (2006) expuseram a urgência da elaboração. Recalque espera o tempo de seu retorno, visto que não pode ser sublimado. Depois de vinte anos de Concertación, a pergunta era: por que denominar democracia uma ordem que resguardava o fundamento econômico (e, portanto, o custo social) do regime militar? O cansaço com a democracia tutelada e com a memória impedida tornou-se tema atualíssimo para a literatura e o cinema chilenos. A primeira e parcial conclusão é: outras gerações – cujas experiências com o golpe militar e com a ditadura estiveram marcadas pela infância e forjadas pelo incômodo com um não saber – tiveram de refazer caminhos para esclarecer a insidiosa relação temporal anunciada anteriormente.       

Estudantes de economia chilenos em Chicago: ficariam conhecidos como Chicago Boys na ditadura de Pinochet

O documentário intitulado Chicago Boys, dirigido pelos cineastas Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano, foi lançado no Chile em 2015. No Brasil, o filme circulou graças ao Festival Internacional de Documentários, É tudo verdade. Numa das entrevistas de divulgação, Carola Fuentes declara: “para saber para onde queremos ir, é fundamental saber de onde viemos. Uma das coisas que a ditadura fez muito bem foi turvar o interesse dos chilenos por sua própria história”[1]. Ela e Valdeavellano documentaram a aventurosa narrativa dos então estudantes que, desde a década de 1950, apostavam em poder transformar profundamente seu país – que, antes de Pinochet, era “un pais de mierda”, segundo diz, entredentes, mais de uma vez, Ernesto Fontaine, economista da primeira geração dos Chicago Boys. Na mesma entrevista, Carola acrescenta que não dirigira um filme sobre economia, mas, sim, sobre pessoas e seus valores. E é essa a delicadeza, e a crueza, do cinema que leva a história para suas (hoje saudosas) salas de projeção: o documentário amplia nossos horizontes, visibiliza os atores históricos e faz desfilar tempos que também são os da memória. Ao documentário cabe “filmar o que não se vê”, na sugestão do reconhecidíssimo cineasta Patricio Guzmán. Embora nem todos tenhamos olhos de documentarista, nada nos impede de dialogar com as suas “realidades filmadas”.

Sigo então duas pistas. A primeira, o ano do lançamento do documentário em questão: 2015. As manifestações estudantis tomavam as ruas de Santiago, demandando o aprofundamento da reforma educacional encaminhada por Michelle Bachelet. É emblemático que o filme Chicago Boys recue no tempo para contar a história de outros estudantes que, fortuitamente, puderam ter à disposição valiosas oportunidades. Isso dito, não é casual que o filme comece e termine com a câmera filmando pés, depois de um sobrevoo pela metrópole moderníssima, Santiago. O nosso olhar é conduzido do firmamento ao chão, dos prédios de vidro que espelham a cidade aos pés em marcha, com calçados de todo tipo e gosto. O presente demarca a retrospectiva, a informa: a manifestação é colheita da aplicação da receita econômica dos Chicago Boys, mas também é epílogo porque a história permanece em aberto. Os diretores abrem a câmera às incertezas dos passos que tomam as alamedas.

Milton Friedman reunido com Augusto Pinochet em Santiago

A segunda indicação refere-se ao ponto de vista que ordena a realidade em movimento. No documentário, pequenos cortes suprimem imagens e nomeiam as partes que integrarão a narrativa, são elas: a semente, o tijolo (el Ladrillo, uma alusão ao plano econômico entregue à Junta Militar), a colheita, o epílogo. Como anunciado, o documentário franqueia a história, não se sabe por onde caminharão os manifestantes. Sabe-se, entretanto, que eles exigem “menos Friedman e mais Keynes”, como imperativamente conclama um dos cartazes que salta à vista.

O documentário vai deixando a cargo dos entrevistados a narrativa, assim nos parece, à primeira vista. As testemunhas que desfiam suas histórias, no governo e fora dele; riem, ficam saudosos das festas e das descobertas, comuns aos anos de formação. A trilha sonora que acompanha os primeiros tempos do grupo evoca entusiasmo e ambienta as décadas de 1950 e 1960. A escolha foi certeira. Não há dúvida de que as variadas edições cuidaram de estabelecer o ponto de vista dos cineastas. Contudo, para o espectador, o impacto é acrescido pela ausência de mediação visível, conforme se desenrolam as narrativas de Sergio de Castro, Ernesto Fontaine, Carlos Massad, Rolf Lüders, Ricardo Ffrench-Davis – e o mentor do grupo, “Alito”, o professor Arnold Harberger, que acolheu os chilenos na Universidade de Chicago.

Não se deve atribuir o impacto ao poder hipnótico das histórias, mas à rica imagem das testemunhas de um tempo – e de seu cotidiano, registrado em fotografias e filmes caseiros de oito milímetros – que nos obriga a enfrentar a crença tecnocrática. O dogma acossa o espectador, afinal, escandaliza ser confrontado pelo mantra the market knows. As imagens também provocam ebulição: ora vemos jovens alegres, ora senhores sisudos, raivosos e indiferentes, ora críticos moderados. Em todas as situações, no entanto, se experimenta um aturdimento com a orientação tecnocrática. Esse aturdimento alcança o clímax quando vídeos do programa televisivo comandado por Milton Friedman, o Free to choose, intercalam-se à narrativa dos economistas, por meio de cortes muito bem realizados.       

O famoso documento dos Chicago Boys que alicerçou a política econômica da ditadura de Pinochet

O documentário não escamoteia a heterogeneidade do grupo. A máfia, como alguns dos depoentes se intitulam, possui seus críticos. Não obstante, Sergio de Castro, Rolf Lüders e Ernesto Fontaine mostram-se absolutamente convictos, a despeito da passagem do tempo e das idiossincrasias testemunhais. Com estilos distintos, esse trio advoga (1) a despolitização e neutralidade da economia; (2) a incompreensão dos protestos em face de um Chile que, no presente, se credencia com a melhor taxa de investimento da América Latina; (3) o desconhecimento do abuso aos Direitos Humanos ou, ainda, a intenção de colaborar com o regime militar de igual maneira, havendo ciência dos atos à época, em nome de um ideal de país. Ressalvo: como cinema se trata de imagem em movimento, o impacto não advém só do que advogam, mas de como o advogam, ou seja, dos gestos que capturam nosso olhar.   

E qual é esse ideal de país? É Sergio de Castro quem responde: “o ideal do Ladrillo, liberdade, obviamente, a maior liberdade possível. O menor Estado possível”. Na parte um, a “semente”, os rapazes eram os alegres e estudiosos latino-americanos, extasiados pela modernidade estadunidense, com suas camisas villelas e seus bares abertos noite adentro. Na terceira parte, a “colheita”, o tema que surge é o da violação dos Direitos Humanos. Embora em nenhuma das narrativas houvesse justificativa explicita à prática de tortura, morte e desaparecimento, as respostas importam pela síntese que o documentário produz, em concordância com a historiografia: não há problema em admitir que o choque neoliberal não poderia, de modo algum, ser aplicado em democracia.

A ditadura, portanto, não foi uma conveniência, mas uma essência – Paulo Guedes devia assistir ao Chicago Boys, embora conheça muito bem essa história e seus resultados. A conclusão que fusiona regime autoritário e liberdade econômica (para que e para quem?) margeia o discurso dos críticos e dos convictos. A ausência de oposição política ou social e o apoio inconteste da Junta, especialmente de Merino e de um Pinochet convertido e disposto a usar a força, permitiram que a política econômica fosse radicalmente aplicada. Essa narrativa-síntese une as pontas do documentário: o regime militar chileno criou e estabeleceu a política monetária que lhe garantiu longeva sobrevivência, sendo os Direitos Humanos assunto secundário, em razão da ênfase no projeto de modernização do país. “A máfia, em matéria técnica, se sente sólida e se orgulha da contribuição ao desenvolvimento do país” – o grifo é meu, mas o comentário é de Álvaro Donoso, que discursou na cerimônia fúnebre a Ernesto Fontaine, em 2014. Na ocasião, não passam despercebidas presenças ilustres, como a de Sebastian Piñera. O documentário suscita outras polêmicas, mas seguem derradeiros e sucintos comentários.

Os caminhos traçados pelos Chicago Boys qualificaram uma (e não qualquer) intervenção política, a despeito da pretensa e mitológica neutralidade ortodoxa. Nessa rota, o custo social foi fato, como afirmaram eles próprios; orgulhosamente, inclusive. Ontem e hoje, os tecnocratas aceitam a desigualdade assim como rejeitam a dívida pública. Resta, por fim, convidar o leitor a uma sessão de cinema. Assim, em companhia da história, quem sabe, reorientemos nossas escolhas e apuremos o olhar, do firmamento ao chão, e vice-versa.   


[1] Essa entrevista, que conta com a presença dos dois diretores, está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w6GlaTDQwIg&t=39s&ab_channel=CooperativaFM.