Blog do Noblat

Ricardo Noblat: Bolsonaro deve ser detido para não fazer tanto mal ao país

Aposta no quanto pior, melhor

Sabe Deus o que se passa na cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou nem Deus sabe, talvez só o dono da cabeça. No último sábado, autorizado por Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, apareceu na televisão e disse que o isolamento social deve ser mantido enquanto não passar a pior fase da pandemia.

Ontem, menos de 12 horas depois, Bolsonaro desfilou por galerias e ruas de Taguatinha, Ceilândia e Sobradinho, cidades do entorno de Brasília, atraiu gente, posou para fotos com seus admiradores e até com crianças, apertou mãos, e anunciou que cogita de um decreto mandando todo mundo trabalhar.

Que ordem valerá? A dada por Mandetta? Ou a que Bolsonaro poderá tomar? Qual será a reação das pessoas país a fora? Se o presidente volta a circular e diz que o coronavírus não é tão feio como parece, é razoável que muitos acreditem nele. E que o imitem. Consequências? Mais infectados, mais aspirantes à morte.

É fato que de 10 dias para cá, os brasileiros vem tapando os ouvidos ao que ele diz. No fim de semana dos dias 14 e 15, as praias do Rio, a Avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, estiveram atulhadas de gente. Foi no dia 15 que Bolsonaro recepcionou seus devotos à entrada do Palácio do Planalto.

De lá para cá, na contramão dos seus equivalentes no resto do mundo, Bolsonaro tornou-se um grave problema sanitário para o país. Chefes de Estado, que a princípio vacilaram diante de um inimigo desconhecido contra o qual carecem de armas, aos poucos foram se ajustando à realidade. Até Donald Trump.

Sem essa de que o tempo foi curto para perceberem o que estava por vir. No dia 31 de dezembro último, jornais chineses publicaram que um novo tipo de pneumonia fora identificado em Wuan, a sétima cidade mais populosa daquele país, com cerca de 11 milhões de habitantes. O avanço da doença foi rápido.

Dali a 17 dias, o governo chinês informava que o vírus já contaminara 62 pessoas, matando duas. No dia 19 de janeiro, o número de casos de infecção saltara para 198, com quatro mortes. Um jornal francês publicou que havia cerca de 1.7 mil pessoas na China com sintomas da doença, e duas na Tailândia.

No dia 20 de janeiro, 291 chineses contaminados e seis mortos. Três dias depois, os moradores de Wuan acordaram com o comunicado de que ninguém sairia mais da cidade nem entraria. Confinamento geral e obrigatório. Exército nas ruas. Médicos de prontidão. Só funcionariam os serviços essenciais.

Aqui, estávamos a um mês do carnaval, esquentando os tamborins, lubrificando as engrenagens dos trios elétricos e costurando as últimas fantasias. Os sambas-enredo, escolhidos há três meses, eram cantados por dançarinos e torcidas. Bolsonaro já aprontava. Dava bananas para a imprensa. Mas quem ligava? Evoé, Momo!

Apronta desde o primeiro dia no cargo. Seu discurso de posse contém todas as sementes do ódio que germinava dentro dele e dos filhos e que ele desejava inocular na maior quantidade possível de brasileiros para garantir sua reeleição em 2022. Ele, agora, luta para que não se disperse o núcleo mais resistente do seu bloco.

Daqui para frente, como será? Bolsonaro dobrará sua aposta, triplicará, com a esperança de que o coronavírus mate menos brasileiros do que indicam os cálculos do Ministério da Saúde e os estudos de duas universidades britânicas. O sistema de saúde do país poderá entrar em colapso em meados de abril.

A melhor arma de combate ao coronavírus é testar, testar, testar o maior número de pessoas. Foi o que aconselhou há algum tempo a Organização Mundial de Saúde. Mandetta discordou. Na semana passada, cedeu e anunciou a compra de 22 milhões de kits de teste que levarão dias para estarem disponíveis.

“Todos nós morreremos um dia”, saliva Bolsonaro. Ele que morra se quiser – os outros, não.

No esforço de guerra contra o coronavírus faltam os militares

E as Forças Armadas, hein? Onde estão no momento em que o país se arma com atraso para sobreviver à primeira grande onda do coronavírus? O poderoso Pentágono, sede em Washington, do Estado de Defesa norte-americano, trabalha com a hipótese de que o mundo será atingido por três ondas a intervalos regulares.

Os militares estão sendo vistos nas principais cidades dos países mais devastados pela pandemia. Patrulham ruas, aplicam as ordens de confinamento, transportam caixões com mortos. Espera-se que por aqui nada disso seja necessário. Mas quem garante? E enquanto não se souber, o que eles poderiam fazer?

Não poderiam estar sendo empregados em ações de prevenção à doença – como? Eles sabem como. Falta uma ordem do alto? Do ministro da Defesa? Ele espera uma ordem mais do alto? Do presidente Jair Bolsonaro? Mas esse não parece interessado em dar. Do ministro da Saúde? Ele não dá ordens aos militares.

Em sua recente, moderada e neutra ordem do dia, o comandante do Exército elogiou médicos e enfermeiras aos quais chamou de guerreiros da linha de frente no combate ao coronavírus. Os militares não poderiam formar linhas de trás? Eles são bem treinados para agir em situações ainda piores.


Ricardo Noblat: Por ora, Mandetta garante lugar na galeria dos indemissíveis

Daqui a pouco só restarão Mourão e Moro

Luiz Henrique Mandetta entrou para a restrita galeria dos indemissíveis do governo. E mais: contra a vontade do presidente Jair Bolsonaro. Da galeria fazem parte o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, que Bolsonaro há dois dias chamou de “tosco”, o ministro Sergio Moro, da Justiça e da Segurança Pública, e o general Braga Neto, chefe da Casa Civil.

Não, Paulo Guedes, ministro da Economia, não faz parte da galeria. Fez no começo do governo. Mas com o pibinho de 1.1%, pisadas na bola do tipo anunciar o fim da “festa danada” das domésticas na Disney, e temperamento belicoso tal qual o de Bolsonaro, poderá deixar o governo de uma hora para a outra. Ou então ficar até o fim engolindo sapos indigestos.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete da Segurança Institucional? Indemissível? Só porque foi posto no governo por seus companheiros de farda para controlar Bolsonaro e desinflar todas as crises que ele pudesse criar? Não. Não faz parte da galeria. Deram-lhe uma missão impossível. Virou um acompanhante de luxo de Bolsonaro e tornou-se tão tóxico quanto ele.

Literalmente mais tóxico. Para desmentir a notícia de que participara de uma reunião no Palácio do Planalto depois de ter contraído o vírus, o general distribuiu uma nota onde disse que a história era mentirosa, mas em seguida admitiu que participara, sim, da reunião com a presença de Bolsonaro, Mourão e metade dos ministros. Alguns deles, em seguida, adoeceram.

Por ora, Braga Netto é indemissível porque assumiu o cargo outro dia. Bolsonaro trombaria de vez com os militares se mandasse Braga embora. De resto, ele foi paraquedista como Bolsonaro e como o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Braga está seguro – sabe-se lá até quando. Embora sue a camisa para manter-se no cargo, Ramos já se sentiu mais seguro.

Mandetta entrou, ontem, no Palácio do Planalto com um pé fora do governo e saiu com os dois dentro. Disse a Bolsonaro coisas que ele detestou ouvir, a ponto de ameaçar demiti-lo. Depois, em entrevista, repetiu várias delas. Como Bolsonaro poderia livrar-se de Mandetta em meio à crise que o país atravessa – primeiro por culpa do vírus, depois… Você sabe por culpa de quem.

“Estamos preparados para ver caminhões do Exército transportando corpos?” – indagou Mandetta a Bolsonaro no pior momento do encontro. Correção: num dos piores momentos. Não foi o único. Mandetta defendeu o isolamento social, o entendimento com os governadores e sugeriu a Bolsonaro que abandonasse a ideia de que “o Brasil não pode parar”. Pode.

Na entrevista, Mandetta afirmou ser contra a realização de carreatas, algumas delas marcadas para hoje por bolsonaristas que cobram a volta dos demais brasileiros às ruas, mas que não estão dispostos a saírem dos seus carros, nem de suas casas. Seria perigoso demais para a saúde. Quanto à saúde dos pobres, essa “gente simples que trabalha para nos alimentar e nos distrair”…

É de autoria do ex-Posto Ipiranga a definição do que são os pobres brasileiros. Está vendo só por que ele não faz parte da galeria dos indemissíveis? Se Bolsonaro insistir em proceder do jeito que procedeu até aqui, que se cuide para não acabar excluído da galeria. Restaria, além de Moro, Mourão, que está na moita, só piruando. Indemissível hoje, indemissível até 2022. Aço! Selva!


Ricardo Noblat: Mourão começa a dar as cartas

Bolsonaro em seu labirinto

Que líder político de peso saiu em defesa do presidente Jair Bolsonaro depois do que ele disse e fez nas últimas 48 horas? Que economista capaz de ser ouvido com atenção pelo país? Que médico de referência? Que religioso reconhecidamente digno de sua condição? Ninguém saiu. Só os estúpidos de sempre. E a massa cada vez menor dos enganados por ingenuidade ou oportunismo.

O vazio das ruas país afora foi a manifestação mais contundente da divergência entre os brasileiros e o seu presidente. Ninguém achou prudente suspender o confinamento só porque Bolsonaro considerou-o desnecessário, um exagero, que prejudicará a economia. E porque outra vez chamou os governadores que baixaram a medida de “destruidores de empregos”.

Todos os governadores adotaram a medida. Nenhum ficou de fora. Os chefes de Estado de quase 60 países adotaram a medida. O modelo de quarentena varia de acordo com a gravidade da situação em cada um deles. Com o início da quarentena na Índia, há ao menos 2,8 bilhões de pessoas vivendo sob algum tipo de restrição. Isso significa um de cada três habitantes do planeta.

Em três meses, o coronavírus infectou mais de 420 mil pessoas e matou pouco mais de 20 mil. No Brasil, até ontem, havia 2.555 casos confirmados e 59 mortos. A pandemia só começará a perder sua força quando mais de 50% da população mundial tiver sido contaminada. Levará muito tempo. De resto, o vírus se espalhará em ondas. Essa é apenas a primeira onda.

Confinamento serve para impedir que o vírus se dissemine veloz, o que provocaria em todos os países alcançados por ele o colapso relâmpago do sistema médico de atendimento a vítimas. Colapso haverá como se vê na Espanha, com 3.434 mortos, e na Itália com 7.503. A Espanha ultrapassou a China em número de mortos. A França prorrogou o confinamento por mais três semanas.

Uma simulação feita pela BBC, corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido e famosa por sua credibilidade, mostrou que, ao reduzir em 50% o seu contato social, uma pessoa infectada pelo coronavírus reduziria seu potencial de contágio de 406 pessoas em um mês para apenas 15 pessoas. Fácil de entender, não? Até Bolsonaro seria capaz de entender.

O problema dele é outro. Subestimou o vírus, como outros chefes de Estado o fizeram, inclusive o presidente Donald Trump que agora caiu na real. Ao invés de dar ouvidos aos médicos, deu a Paulo Guedes, ministro da Economia, que de saúde não saca nada, entende de números e é ruim de projeções. Quando se viu sem chão, Bolsonaro resolveu pôr a culpa nos outros.

O isolamento político não o preocupa. Nunca o preocupou. Como deputado durante 28 anos, viveu confinado na Câmara. Era da bancada dos irrelevantes. Acostumou-se com isso. Jamais imaginou que chegaria onde está. Passará à História como o presidente mais irrelevante do Brasil desde, pelo menos, os anos 30 do século passado. Mas quer um segundo mandato, ora vejam.

Contente-se com um. E torça para que possa completá-lo. Seu vice está aí para sucedê-lo antes da hora se for preciso. Vice existe para isso. E de 1985 para cá, três vices completaram o mandato de presidentes impedidos de fazê-lo – José Sarney porque Tancredo Neves morreu, Itamar Franco porque Fernando Collor foi derrubado, Michel Temer porque Dilma Rousseff também foi.

Calado até ontem, posto por Bolsonaro à margem da crise, o general Hamilton Mourão, ao reaparecer, o fez em grande estilo. Revelou seu incômodo com a maneira como Bolsonaro bateu boca com o governador João Doria (PSDB), de São Paulo. E, mais tarde, perguntado sobre o pronunciamento de Bolsonaro à Nação na última quarta-feira, respondeu sem receio de corrigi-lo:

“A posição do governo por enquanto é uma só. A posição do governo é o isolamento e o distanciamento social. Está sendo discutido e ontem o presidente buscou colocar, pode ser que tenha se expressado de uma forma que não foi a melhor, mas o que ele buscou colocar é a preocupação que todos nós temos com a segunda onda. Temos a primeira onda, que é a saúde, e a segunda que é a questão econômica”.

Valeu, Mourão! Aço! Selva!

Estado de Calamidade sob as rédeas curtas do Congresso

O que está por vir
Um projeto de decreto legislativo regulamentando o Estado de Calamidade, decretado na semana passada a pedido do Executivo, começou a circular, ontem, entre líderes de partidos na Câmara dos Deputados e no Senado.

A minuta, já em seu artigo primeiro, prevê que a União, ou seja, o governo federal deverá partilhar com os estados e os municípios o comando das ações frente à crise. A redação é esta:

“O enfrentamento da calamidade pública decorrente da pandemia do Covid-19 é responsabilidade solidária da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.”

Mais adiante, segundo o relatório TAG REPORT, das jornalistas Helena Chagas e Lydia Medeiros, o decreto estabelece que:

“[…] mediante atuação em caráter nacional, transparente e fiscalmente proporcional ao máximo de recursos disponíveis, os entes federativos ficam obrigados aos deveres de coordenação continuada e consecução tempestiva de esforços para o atendimento das demandas sanitárias, econômicas e sociais diretamente vinculadas à pandemia do Covid-19, durante o prazo de vigência da Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020”.

Os parlamentares que articulam a aprovação do decreto querem apressar sua tramitação. Do ponto de vista político, acreditam que caberá agora ao Congresso fazer a mediação dos conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores.


Ricardo Noblat: Bolsonaro cava sua própria sepultura

Ele de um lado, o povo do outro

O presidente Jair Bolsonaro ficará rouco de tanto repetir que ele está do lado do povo. O que acontece, segundo a mais recente pesquisa do instituto Datafolha, é que o povo não está do lado dele.

A pesquisa feita por telefone em todas as capitais e no Distrito Federal mostra que 55% dos brasileiros consideram ótimo ou bom o desempenho do ministro da Saúde.

O desempenho dos governadores no combate ao coronavírus é muito parecido – 54%. Quanto ao presidente que arrisca a própria viva em defesa do povo, só 35% aprovam a sua conduta.

Quase 70% dos entrevistados reprovaram o gesto de Bolsonaro de recepcionar seus devotos na rampa do Palácio do Planalto. Foi durante a manifestação convocada contra o Congresso e a Justiça.

Ali, Bolsonaro foi duplamente irresponsável. Primeiro porque participou de um ato que ele mesmo desaconselhara. Segundo porque pôs em risco a vida dos manifestantes.

Ele acabara de voltar dos Estados Unidos. Trouxera na sua comitiva um auxiliar contaminado. Mais de um. Até aqui, foram 27 contaminados. E tocou em 272 pessoas. Que tal?

A primeira parte da pesquisa, publicada, ontem, pela Folha de São Paulo, mostrara que Bolsonaro está na contramão dos brasileiros ao se preocupar com mais com a economia do que com vidas.

92% das pessoas concordam com a suspensão de aulas, 94% aprovam a proibição de viagens internacionais e 92% apoiam o fechamento de fronteiras. Bolsonaro era contra tudo isso.

Em entrevista, nesse domingo, à TV Record, nervoso, gaguejando muito, Bolsonaro afirmou que julga “exagerados” os números sobre a pandemia divulgados pelo Ministério da Saúde.

Ora, ele não havia feito questão de dizer que seu time “está ganhando” por governar bem? E de lembrar que o técnico do time era ele? Suplicava por reconhecimento.

Numa hora dessas, como ele ousa pôr em dúvida o que anuncia um ministro escolhido por ele mesmo? Se o que informa Luiz Henrique Medetta não merece fé, por que Bolsonaro não o demite?

Não manda Mandetta embora porque ele não seria tão maluco a esse ponto. Mas o ministro está convencido de que será mandado embora antes do fim do ano. Não se incomodará se for.

Pesquisa IBOPE, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, quis saber quanto valeria o apoio de Bolsonaro e de outros líderes políticos a um candidato a prefeito da capital paulista.

O apoio de Bolsonaro diminuiria em 41% a vontade do eleitor em votar no candidato que ele apoiasse. O apoio de Lula, em 36%. O de João Doria, em 40%. E o de Geraldo Alckmin em 34%.

O apoio de Bolsonaro aumentaria em 17% a vontade do eleitor em votar no candidato dele. No caso do apoio de Lula, aumentaria em 26%. No de Doria, 9%. No de Alckmin, 10%.

Pesquisa XP-Ipesp, da última sexta-feira, conferiu que a popularidade de Bolsonaro recuou quatro pontos percentuais se comparada com a pesquisa de fevereiro último.

O processo de derretimento da imagem do presidente da República está correndo mais rápido do que ele próprio imaginara. Daí o seu pânico.

Só se aprende a votar votando muito

Problema para o Congresso resolver
Adiamento das eleições é possível. Transferência para 2022 das eleições municipais marcadas para outubro próximo, improvável. Uma hipótese remota. Porque implicaria na prorrogação dos mandatos dos atuais prefeitos e vereadores, mas não só.

Quem ganharia com a transferência? Pela ordem: Jair Bolsonaro, que não formou seu partido a tempo de disputá-las. De novo Bolsonaro, que driblaria o risco de se tornar o alvo principal das críticas da maioria dos candidatos.

Perderiam também os aspirantes a candidato a prefeito e vereador porque teriam de esperar mais dois anos. Perguntem se eles concordam… Portanto, além de Bolsonaro, só os atuais prefeitos e vereadores ganhariam com isso. Nem pensar.

O que deverá acontecer? Se o coronavírus inviabilizar as eleições este ano, elas acontecerão no próximo, e o mais cedo possível. A legislação encurtou o prazo das campanhas. A Justiça Eleitoral está nos cascos para garantir que elas ocorram.

Embora diga que o problema é do Congresso, o ministro Luiz Roberto Barroso, que em maio assumirá a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, é contra deixar as eleições para 2022. O povo, segundo ele, só aprende a votar votando. E muito.

(Aviso de utilidade pública: Na próxima eleição presidencial, antes de digitar na urna o número do seu candidato, passe álcool gel nas mãos. E vote melhor.)


Ricardo Noblat: Porque ontem foi sábado, e Bolsonaro é assim todo dia

Passe álcool gel nas mãos antes de votar

À falta das obrigações que o cargo lhe impõe em dias úteis, confinado no Palácio da Alvorada onde comemorou 65 anos de idade na companhia da mulher e dos filhos, o presidente Jair Bolsonaro dedicou-se, ontem, a fazer o que melhor sabe: fustigar adversários, cutucar aliados e dissertar sobre o que não entende.

Logo na semana em que os profissionais da saúde começaram uma campanha onde pedem: “Nós estamos aqui por vocês, por favor fiquem em casa por nós”; Bolsonaro disse não ver razão para que se impeça a livre circulação de pessoas sadias que possam trabalhar. Reclamou do fechamento de shoppings e de templos.

A Constituição garante a realização de cultos, citou. “Tem gente que quer fechar as igrejas, o último refúgio das pessoas”, irritou-se. “Lógico que o pastor vai saber conduzir seu trabalho, vai ter consciência, vai decidir lá”. O Conselho Mundial das Igrejas sugeriu o fechamento dos templos neste fim de semana.

De bermuda, camiseta da Seleção e chinelos, dirigido por seus três filhos mais velhos (Flávio, Carlos e Eduardo) que se encarregaram da tarefa, Bolsonaro gravou um vídeo postado nas redes sociais para anunciar que o Exército fabricará o Reuquinol, remédio que “poderá evitar um contágio mais rápido do coronavírus”.

Perdeu mais uma oportunidade de ficar calado. Obrigou o número dois do Ministério da Saúde a repetir na televisão que não existe ainda nenhum fundamento científico de que o Reuquinol impeça o contágio da doença. O remédio desapareceu de muitas farmácias brasileiras desde que Donald Trump falou a seu respeito.

Apenas pessoas com receita para tratamento de enfermidades como malária, lúpus e artrite reumatoide podem comprar o Reuquinol. “Ninguém vai poder guardar esse remédio pensando no coronavírus”, apressou-se a explicar João Gabbardo dos Reis, secretário-executivo do Ministério da Saúde.

Bolsonaro fechou o dia atacando os governadores de São Paulo e do Rio em entrevista à CNN Brasil. Para ele, os governadores que decretaram quarentena extrapolam dando “dose excessiva do remédio e que o remédio em excesso se torna um veneno.” Bem, essa é a sua opinião, mas não a dos especialistas no assunto.

Empenhado em politizar a discussão sobre o coronavírus, aproveitou para chamar de “lunático” o governador João Doria (PSDB-SP). Queixou-se de que Doria usou o nome dele para se eleger “e está se aproveitando para crescer politicamente”. Sobrou, naturalmente, para Wilson Witzel (PSC), governador do Rio.

Bolsonaro não se arrependeu de ter chamado o coronavírus de “gripezinha. Garantiu que sobre 60% dos brasileiros a Covid-19 “não terá efeito algum”. Negou que exista uma crise entre ele e o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde. E assim contou o que de fato estaria se passando:

– Não existe atrito, mas uma conversa entre nós. Mandetta sabe que uma população em depressão perde imunidade e fica mais propensa a doenças.

Quanto ao impacto da doença na economia, foi vago. Recusou-se a comentar sobre o mini pibinho previsto para este ano de 0,02%, embora “alguns economistas falem de crescimento negativo”. E arrematou: “Minha preocupação é com a vida das pessoas e com o desemprego criado por esses governadores irresponsáveis”.

Aviso de utilidade pública: Na próxima eleição presidencial, antes de digitar na urna o número do seu candidato, passe álcool gel nas mãos. E vote melhor.


Ricardo Noblat: Se não quiser cair mais cedo, melhor que Bolsonaro feche a boca

Ameaças mortais

No dia em que se convenceu em definitivo que o coronavírus passou como uma retroescavadeira sobre a política do ministro Paulo Guedes, o governo foi de uma precisão espantosa ao anunciar o que está por vir, e o presidente Jair Bolsonaro outra vez terrivelmente irresponsável no combate que trava com a realidade.

Está por vir, este ano, um crescimento do PIB estimado em 0,02%, capaz de provocar saudade do pibinho de 1.1% de 2019, que, por sua vez, deu saudade do PIB de 1,3% legado a Bolsonaro pelo ex-presidente Michel Temer. Por que um crescimento de 0,02% e não de 0,03% ou de 0,01%? Pergunte ao Guedes.

Melhor, não. O ex-Posto Ipiranga havia perdido parte do seu brilho desde que assumira o cargo. O coronavírus encarregou-se de apagá-lo. São coisas que acontecem. A culpa não é dele. Guedes tinha o sonho de passar à História como o autor da proeza de ter reformado o Estado como nenhum dos seus antecessores o fizera.

Bolsonaro atrapalhou parte do seu sonho. O vírus, o que restava. Nem pensar que pedirá demissão de novo. Pediu três vezes. Há controvérsia a respeito: dizem que foram quatro. Mas essa não é a hora de pedir de novo. Soaria a deserção com medo do tsunami que se avizinha. O mar recuou. Vem onda gigante.

Só não vê quem não quer ou é cego. Economia não é uma ciência, embora os economistas se comportem como se fossem cientistas. Há previsões para todos os gostos sobre o tamanho do PIB ao final do ano e uma única certeza: ele afundará. 2020 será mais um ano perdido, e tudo indica que o próximo também.

À parte sua admirável ignorância quando se trata de economia e da maioria dos assuntos, deve ser por isso que Bolsonaro insiste em continuar brigando com moinhos de vento. Parecia ter dado um passo adiante ao admitir que a situação é grave. Deu outro atrás ao desmerecer o coronavírus, rebaixando-o à condição de gripezinha.

O ex-presidente chinês Mao Tse-Tung ensinou que se deve dar dois passos a frente para, se fosse o caso, dar um atrás. Bolsonaro aprendeu a marchar, ora para a direita, ora à esquerda, ao gosto do comandante. E a considerar cumprida a ordem sem que tivera tempo de executá-la. Soldado de chumbo, cabeça de papel.

No momento em que o país mais precisa de um presidente pulso forte, inspirado e condutor seguro dos que governa, é justamente quando não tem. E por tudo que Bolsonaro já demonstrou, não terá até o final do seu mandato. Donald Trump criou um personagem, mas sabe se afastar dele quando necessário

Bolsonaro, não. Ele se apresenta do jeito que é, que sempre foi. A reeleição de Trump subiu no telhado e, de lá, poderá cair ou descer em novembro. A reeleição de Bolsonaro daqui a dois anos começou a escalar a parede da casa. Tomara que tudo isso passe logo – coronavírus e Bolsonaro. Os dois são mortais.

Na próxima eleição presidencial, antes de digitar na urna o número do seu candidato, passe álcool gel nas mãos. E vote melhor.


Ricardo Noblat: De volta ao futuro abortado pelo regime que se esgotou em 1985

Nada demais que conservadores, patriotas e demais ramificações da direita extremada convoquem manifestações de rua para aclamar seu ídolo, um ex-capitão que o Exército afastou dos seus quadros por indisciplina e conduta antiética. O dito capitão até atentados terroristas planejou contra quartéis, além de ter complementado seu soldo bamburrando umas pedrinhas em garimpo no Mato Grosso.

Nada demais também que pretendam pedir o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. A seu juízo, uma ditadura seria melhor para o país do que a democracia que ainda temos. É uma questão de ponto de vista. E por mais absurdo que pareça, em uma democracia é, sim, possível pedir a sua extinção. Se o presidente da República, sem que nada lhe aconteça, defende a tortura… Tudo o mais pode.

Intolerável e criminoso é o comportamento de um presidente, que jurou respeitar a Constituição sob a qual foi eleito, unir-se aos que pregam o golpe repassando a seus seguidores uma mensagem golpista. Porque é disso que se trata o vídeo disseminado por Bolsonaro e, ao seu pé, assinado pelo “general Augusto Heleno e o capitão Bolsonaro”. Como se os dois o apoiassem na condição de militares que foram um dia.

Em mensagem postada na sua conta no Twitter, o general Santos Cruz, ministro de Bolsonaro até trombar com os filhos dele, já havia alertado para o desatino de se chamar uma manifestação de rua utilizando-se de uma foto de quatro generais – um deles, o vice-presidente da República. Como se o Exército chancelasse a iniciativa. E sem que os quatro generais retratados tivessem se pronunciado até então.

Exército é instituição do Estado, de governo não é. Governos passam, as Forças Armadas são permanentes. Misturar a farda com os ternos do governo, de qualquer governo, poderá fazer bem ao governo, mas só fará mal à farda. Um presidente acidental como Bolsonaro, que no passado destacou-se como um malsucedido sindicalista militar, apelou à caserna para governar sabe-se lá com qual propósito. Ou sabe-se.

Nem por isso, sob o risco de degradar-se, a caserna deveria permitir-se docilmente ser usada. No passado, eram as vivandeiras de quartéis que seguiam as tropas em marcha levando ou vendendo mantimentos. Por mais que os chefes militares rejeitem a ideia, a equação foi invertida. As tropas passaram a seguir as vivandeiras, aquelas que hoje lhes oferecem emprego, casa, roupa lavada e outros privilégios.

Os militares nunca se conformaram com o fato de terem largado o poder depois da ditadura que se esgotou e da maneira como se esgotou em 1985 – aos gritos de fora, de eleições diretas para presidente, de democracia já. E sem que tivessem devolvido aos civis o país que haviam prometido – em franco crescimento, sem inflação e menos corrupto. A eleição de Bolsonaro foi a hora da revanche tão esperada.

Eles estão de volta, por mais que neguem. E jamais desejarão que a volta se esgote no curto prazo de quatro anos. Ou de oito. Visceralmente de direita dada à sua formação, tudo farão para que Bolsonaro suceda a ele mesmo, e para que em seguida ao Bolsonaro reprise suceda o Bolsonaro vale a pena ver de novo – se necessário, apenas menos brucutu. Mas igualmente confiável e farda dependente.

Isso não quer dizer que estejam dispostos a romper com a legalidade. A Guerra Fria já acabou. Quer dizer que dentro dela, contribuindo ou não para enfraquecer seus contrapesos, não renunciaram e não renunciarão ao projeto de construir o país dos seus sonhos escolares. Se antes se valeram de armas, agora talvez possam empregá-las apenas como instrumentos de ostentação para meter medo e convencer.

Os constituintes de 1988 não revolveram o que fazer com as Forças Armadas. Não souberam ou não quiseram deixar claro quais seriam suas atribuições. A anistia de 1979 beneficiou mais os militares que foram à guerra contra a esquerda do que à esquerda que pegou em armas para derrubar o regime. Aos que discordam dessa volta ao futuro anunciada desde a ascensão ao poder de um ex-capitão tosco, só resta resistir.


Ricardo Noblat: Recado do general Santos Cruz aos seus colegas e a quem interesse

Sobre o papel do Exército

Ex-chefe da Secretaria de Governo da presidência da República, demitido por Jair Bolsonaro a pedido dos seus filhos, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, criticou, ontem, o uso do Exército para uma convocação de atos de rua contra o Congresso.

Circula nas redes sociais de bolsonaristas um cartaz com a foto de quatro militares do governo e a frase: “Fora Maia e Alcolumbre”. Maia é Rodrigo (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. Alcolumbre, David (DEM-AP), o presidente do Senado.

Embaixo da foto, onde aparecem, entre outros, os generais Hamilton Mourão, o vice, e Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, está escrito: “Vamos às ruas em massa. Os generais aguardam as ordens do povo”.

Como os retratados e ninguém pelo Exército se pronunciaram sobre o cartaz assinado pelos Movimentos Patriotas e Conservadores do Brasil”, Santos Cruz decidiu fazê-lo. E ensinou na sua conta no Twitter a quem interessar, possa:

“IRRESPONSABILIDADE
Exército Brasileiro – instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população.”

Duas horas depois, trocou a mensagem anterior por esta:

MONTAGEM IRRESPONSÁVEL

Exército – instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Não confundir o Exército com alguns assuntos temporários. O uso de imagens de generais é grotesco. Manifestações dentro da lei são válidas.”

O que se passou entre uma mensagem e outra, só Santos Cruz sabe.

Moro, um ministro e aplicado leitor do Manual da Pós-Verdade

Enquadrar Lula na Lei de Segurança Nacional foi só “uma confusão”

Ensina o Manual da Pós-Verdade no artigo 22º (ou no 48º, ou no 101º ou em outro qualquer): se lhe atribuem algo prejudicial que disse ou que fez, negue. Não importa que tenha dito ou feito. Simplesmente negue e seja enfático ao negar. Se de todo, porém, for impossível, diga que foi mal interpretado ou que retiraram de contexto o que disse.

O ministro Sérgio Moro, da Justiça e da Segurança Pública, é um leitor aplicado do manual desde que largou a toga para servir ao presidente Jair Bolsonaro. Como juiz, já era um bom leitor. Mas como poucos, fora os eventuais acusados por crimes, ousavam contestar seu comportamento e suas decisões à época, não precisou valer-se do manual com assiduidade.

Seu atual chefe, não. É um caso especial. Bolsonaro enriquece o manual diariamente com pensamentos, palavras e obras, e por sua culpa, sua máxima e exclusiva culpa. O ministro Paulo Guedes, da Economia, está no estágio incial: aprende mais com o manual do que se aproveita dele. Moro não pode se queixar: aprende célere e sua popularidade segue intacta.

Ante o estupor do mundo jurídico ao saber que ele invocara um artigo da Lei da Segurança Nacional, antigo instrumento da ditadura militar de 64, para mandar investigar declarações ofensivas feitas por Lula contra Bolsonaro, Moro acabou recuando. Recuando, não. Disse que não invocara a lei e que tudo não passara de “confusão”. Jogou a culpa no seu ministério.

Vamos aos fatos. Em 11 de novembro último, Lula disse, entre outras coisas, que o Brasil não poderia ser governado por um presidente miliciano ou a eles ligado. No dia 22, Moro pediu à Polícia Federal a abertura de inquérito para apurar se o que dissera Lula poderia configurar crime contra a honra de Bolsonaro. “Em especial”, escreveu Moro, Lula havia caluniado o presidente.

No dia 26, “considerando” o pedido de Moro, o inquérito foi aberto “para apurar possível ocorrência do delito de calúnia/difamação previsto no artigo 26 da lei 7170/83”, informou a Polícia Federal. A dita ganhou o nome de Lei da Segurança Nacional ao ser baixada em dezembro de 1983 pelo último presidente do ciclo de generais da ditadura, João Batista Figueiredo.

Um instrumento tão infame, usado para perseguir, calar e encarcerar os que lutavam pela liberdade, continua em vigor, embora os governos da redemocratização para cá evitem acioná-la. Se, como insiste em dizer Moro, ele não a acionou, ficou sabendo que a Polícia Federal a acionara, sim. Poderia ter dito então: “Por aí, não”. Não disse. Preferiu o silêncio.

No último dia 19, após Lula ter sido ouvido pela Polícia Federal, o Ministério da Justiça, em nota, informou que a fala dele contra Bolsonaro “pode ter configurado os crimes previstos no artigo 138 do Código Penal e no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional”. Ambos tratam de crimes de calúnia e difamação. Moro levou 10 dias para só agora dizer que foi tudo uma confusão.

Na semana passada, finalmente, o inquérito foi enviado à Justiça. Segundo a Polícia Federal, não faz menção à Lei de Segurança Nacional. O que concluiu o inquérito? A saber-se mais adiante. O que concluir do desempenho de Moro no caso? Ora, concluam o que quiserem. Moro está numa boa. Foi a Fortaleza e voltou de lá dizendo que não viu desordens. Tributo ao manual.


Ricardo Noblat: No Sambódromo e nas ruas, o carnaval do “cala a boca já morreu”

Censura nunca mais

Melhor que os seguidores fieis da família Bolsonaro deixem para lá, não estrilem e nada comentem. Melhor já irem se acostumando. Porque nem na ditadura militar os governantes conseguiram tapar a boca dos que gritavam nas ruas durante o carnaval.

O medo em diversas fases da ditadura inibiu o que muitos brasileiros pareciam dispostos a expressar – e por medo não o fizeram. Mas a crônica da época não guarda lembrança de censura bem-sucedida, ou de prisões, ou de cancelamentos.

“Abra a porta desse armário
Que não tem censura pra me segurar
Abra a porta desse armário
Que alegria cura, venha me beijar” (Daniela Mercury)

Os episódios mais notáveis de tentativa malsucedida de intervenção no carnaval aconteceram no final do século XIX e no início do seguinte. Em 1892, por causa de um surto de febre amarela, o carnaval foi proibido. Aconteceu assim mesmo.

Em 1912, um gênio do governo teve a ideia de adiar o carnaval devido à morte do Barão do Rio Branco, o papa da diplomacia brasileira. Os cariocas pularam o carnaval na data prevista e, meses depois, também na data marcada pelo governo.

Carnaval é irreverência, anarquia, liberdade. E tais coisas nunca são a favor de tudo o que está aí. Sempre foi assim e assim será. Tanto mais quando o país atravessa “tempos estranhos”, segundo o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo.

“Cala a boca já morreu”, decretou a ministra Cármen Lúcia, também ministra do Supremo, no julgamento da ação sobre a inconstitucionalidade de autorização prévia para biografias. Morreu, embora muitos não se conformem com isso.

Outra vez morreu quando as escolas de samba abriram, ontem à noite, o desfile na Marques de Sapucaí, no Rio. A primeira, a Estácio de Sá, criticou a destruição do meio ambiente para extrair minérios, tema sensível ao governo.

“Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem Messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão” (Samba da Mangueira)

A segunda, Unidos do Viradouro, empolgou as arquibancadas ao exaltar o empoderamento feminino e homenagear as mulheres que lutaram para construir o Brasil. Seu samba enredo foi o mais bonito e o mais cantado nas arquibancadas.

A Mangueira, a terceira a desfilar, apresentou o enredo mais politizado até aqui. Pode ter feito pensar. Pelos critérios do politicamente correto, até seria capaz de ter deixado a Sapucaí aos gritos de “campeã”, como ocorreu no ano passado.

Mas foram poucos os gritos. O samba-enredo contou a história de Jesus, ora homem, ora mulher, ora branco, ora negro, ora menino de rua vítima de muitos tiros, o Jesus que ressuscitaria depois na favela que cobre o morro da Mangueira.

A foto da menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta no ano passado durante uma ação policial no Complexo do Alemão, estampou o manto do Dom Sebastião dos Pobres do figurinista Leonardo Diniz levado à avenida para Paraíso do Tuiuti.

O último carro da escola homenageou vítimas da violência e do descaso do governo do Rio com a segurança pública. A Acadêmicos da Grande Rio cantou: “Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé, eu respeito seu amém, você o meu axé”.

A União da Ilha do Governador foi no mesmo embalo: “A voz do rancor não cala meu povo, não! Sou mãe! Dignidade é meu destino”. E a Portela, a maior colecionadora de títulos, amanheceu advertindo:

“Índio pede paz mas é de guerra
Nossa aldeia é sem partido ou facção
Não tem “bispo”, nem se curva a “capitão”
Quando a vida nos ensina
Não devemos mais errar
Com a ira de Monã
Aprendi a respeitar a natureza, o bem viver
Pro imenso azul do céu
Nunca mais escurecer”.

Hoje tem mais.


Ricardo Noblat: A sensatez do Major Olímpio e a anarquia dos policiais amotinados

O líder do PSL no Senado elogia governador do PT

Assustado, com o quadro de “quebra de hierarquia absoluta”, o senador Major Olímpio (PSL-SP) voltou do Ceará onde esteve em missão de paz batendo duro nos policiais travestidos de milicianos rebelados e elogiando o governador do PT Camilo Pena.

Tem dessas coisas. Até para certos aliados do presidente Jair Bolsonaro, mas não para ele, há limites para tudo. Quanto mais no caso de limites fixados pela Constituição. Forças de segurança armadas não podem fazer greves, diz a lei. Ponto final.

O major foi um dos muitos políticos federais das tendências mais variadas que desembarcaram em Fortaleza recentemente na tentativa de pôr fim à sedição. Conversou com o governador. Reuniu-se com os sublevados. Foi embora pessimista.

Os policiais mascarados que celebram Bolsonaro aos gritos de “Mito! Mito” sempre que o nome dele é citado em assembleias, não concordam em negociar a pacificação dos quartéis sem terem antes garantia de que serão depois anistiados. É o costume.

Há décadas que eles se rebelam em nome de melhores salários e condições de trabalho, deixam populações inteiramente desprotegidas, assistem ao aumento violento do número de roubos, assaltos e homicídios e, mais tarde, acabam perdoados.

No início dos anos 60 do século passado, policiais militares cercaram a sede do governo paulista exigindo um aumento de salário. O general que comandava a 2ª Divisão de Infantaria ameaçou dissolver o movimento à bala e fez 500 prisões.

Chamava-se Arthur da Costa e Silva, o general. Foi Ministro da Guerra do primeiro governo da ditadura militar de 64. Em seguida, foi o segundo presidente da República do golpe. Seu passatempo era fazer palavras cruzadas. Adoeceu e não completou o mandato.

Segundo o Major Olimpio, há interesses políticos não declarados por trás da greve no Ceará. E nomeia alguns dos políticos que se aproveitam disso: Eduardo Girão (PROS-CE) Capitão Wagner (PROS-CE), Sargento Ailton (Solidariedade-CE).

Com um orçamento de R$ 239 bilhões, o Estado de São Paulo paga R$ 3.180 a um soldado. O do Ceará, R$ 4.500. O governo cearense já reservou R$ 600 milhões para reajustar os salários. Os grevistas querem algo como R$ 2 bilhões.

Presidente da Associação Nacional dos Praças, o deputado estadual Soldado Prisco (PSC) estimula movimentos como o do Ceará em outros Estados. O Major Olímpio não vê a menor chance de o Congresso aprovar uma anistia para criminosos assumidos.

Anistia para encapuzados e armados que mais “pareciam o Hezbollah [partido e grupo paramilitar libanês”]? – se indaga Olímpio. Para policial que tocou fogo no carro de uma mulher que reclamou da greve? Para atos típicos de terroristas?

O que Bolsonaro pensa a respeito disso? Se por acaso pensa alguma coisa, não diz. Para não escandalizar o país. Ou por medo de perder os votos da caserna. Como deputado federal, ele defendeu rebeliões como essa que evita condenar como presidente.

E os militares que o cercam a tudo assistem bestificados, mas em silêncio. Alegam ocupar todos os gabinetes do Palácio do Planalto e milhares de cargos no governo só para impedir tresloucados atos do ex-sindicalista alçado pelo destino à condição de chefe deles.

Dá para acreditar nisso?


Mary Zaidan: Nada cheira bem

Bolsonaro protagoniza um carnaval de conflitos

Há algo estranho no ar. Um indisfarçável cheiro de perigo, perceptível até por aqueles que se inebriaram com as promessas de novos aromas. Às narinas que pretendiam enterrar a podridão do petismo, o governo do presidente Jair Bolsonaro tem ofertado outro tipo de droga, também com efeitos devastadores.

O governo derrapa, quase não anda. Não raro move-se para trás – a fila de 1,3 milhão do INSS e de 3,5 milhões à espera do Bolsa Família que o digam -, e achincalha aqueles que poderiam ajudá-lo a seguir para frente.

O comportamento do presidente segue um padrão. Faz de desentendido quando convém – quem não se lembra do inocente “o que é golden shower?” depois de divulgar um vídeo da cena como se fosse prática carnavalesca. E adora a persona do “sincerão”, não raro associada a agressões à imprensa, para delírio da claque no gramado externo do Palácio do Alvorada.

Além de ultrajar a instituição da Presidência da República com sua avalanche cotidiana de impropérios, Bolsonaro autoriza e estimula a incivilidade. Algo já grave na pauta de costumes, por reforçar toda sorte de preconceitos, que se torna gravíssimo ao encorajar guerras institucionais, desobediência civil, o caos.

A tomada de partido pró-motim de parte da polícia do estado do Ceará é um exemplo dessa insanidade. Diante da ação tresloucada e criminosa do ex-governador e senador Cid Gomes, baleado ao tentar entrar com uma retroescavadeira em uma unidade tomada por PMs grevistas, Bolsonaro não condenou ambos os lados, como caberia a um presidente. Deu razão aos amotinados – posição replicada pelo filho Flávio nas redes –, acendendo o rastilho de bombas prestes a estourar em outros 11 estados nos quais as polícias reivindicam reajustes salariais.

Aplaudiu métodos que desafiam a Constituição, a hierarquia das polícias e a autoridade dos governadores, tão legitimados pelo voto quanto o presidente. Misturou-se ainda mais com as milícias ao aprovar policiais mascarados que obrigam fechamento de comércio, sequestram e incendeiam carros. Sem meias palavras, incita o caos.

Deliberadamente, Bolsonaro protagoniza um carnaval de conflitos. Tal como lança-perfume, pode até extasiar muitos, mas é incapaz de produzir fragrância duradoura.

No plano institucional, o governo asperge fedor. Faz questão de cultivar inimigos.

Captado por microfones do canal governista, o general Augusto Heleno, ministro do GSI, acusou o Congresso de fazer chantagem, disparando um “foda-se”, rapidamente transformado em mote para convocar bolsonaristas para um ato no dia 15 de março. Isso depois de a assessoria do presidente ter plantado que Bolsonaro havia demovido Heleno da ideia de chamar o povo às ruas contra o Parlamento.

Maior protagonista da aprovação da reforma da Previdência, a única que o governo conseguiu lograr a despeito do esforço zero do presidente, a Câmara é acusada de querer controlar o orçamento. Não dizem que o quinhão fora previamente acordado com o governo que, depois de negociar, voltou atrás.

Pode-se criticar os valores, mas o sistema de emendas impositivas aprovado pelos parlamentares é o mais eficaz para acabar de vez com a prática do toma lá dá cá. Com ele, nem deputados podem vender votos para liberar verbas nem o governo pode oferecer recursos em troca de votos. Em suma, reduz o poder de barganha de ambos. Mas o Executivo, acostumado a ser o dono único da bola, perde mais – e grita.

À rixa com o Congresso somam-se os disparates de Bolsonaro contra os governadores, os inimigos da vez. Primeiro, o capitão mirou nos nordestinos, os “paraíbas”, depois nos da região amazônica, excluídos do novo Conselho da Amazônia. Não satisfeito, atacou genericamente todos os governantes estaduais ao desafiá-los a reduzir impostos sobre a gasolina. Em seguida, culpou o governador da Bahia, o petista Rui Costa, pela morte do miliciano Adriano da Nóbrega, caso que parece perturbar em demasia o chefe da nação e sua prole.

Difícil crer que nada há por trás da “coincidência” de jogar governadores na fogueira ao mesmo tempo que dá incentivo incendiário a corporações armadas.

Nada cheira bem.

*Mary Zaidan é jornalista


Ricardo Noblat: O que assombra os Bolsonaro e o que pode derrotá-los

Uma família da pesada

O que fez Jair Bolsonaro mudar de opinião? E logo ele que sempre pregou: “Bandido bom é bandido morto”?

O país estava acostumado a ver seu presidente sair em defesa de policial que matasse bandido.

Agora, pela primeira vez, vê-se Bolsonaro preocupado com um bandido que pode ter sido executado pela polícia baiana.

O Natal mudou ou foi Bolsonaro? Estamos diante do que tantos esperavam – a normalização do antes tosco capitão?

Devagar com o andor. Bolsonaro não mudou um tantinho assim. E se mudou foi para pior.

Onde já se viu um presidente da República agredir uma jornalista com grosseiras insinuações sexuais?

Donal Trump, o ídolo de Bolsonaro, foi gravado dizendo baixarias sobre as mulheres e seu órgão genital.

Mas Trump não sabia que fora gravado. A gravação era antiga. Ele não seria louco de dizer o que disse diante de câmeras de TV.

O aprendiz superou o mestre. Achou que com o ataque à jornalista distrairia a atenção do público do caso do miliciano.

Milícia, miliciano, Marielle Franco, Queiroz e rachadinhas são fantasmas que assombram Bolsonaro e seus filhos.

O miliciano Adriano da Nóbrega, morto a tiros ou executado na Bahia, já foi defendido por Bolsonaro em discurso na Câmara.

Na época, era suspeito de assassinato. Isso não impediu Bolsonaro de tratá-lo como um herói.

Dois anos depois, Bolsonaro compareceu ao julgamento de Nóbrega e auxiliou com conselhos seus advogados de defesa.

Partiu de Bolsonaro a orientação para que seu filho Flávio, então deputado estadual, homenageasse Nóbrega duas vezes.

A primeira, por “relevantes serviços prestados” à Polícia Militar do Rio de Janeiro. Os serviços jamais foram nominados.

Em 2005, preso e acusado de homicídio, Nóbrega foi condecorado com a “Medalha Tiradentes”, a mais alta honraria da Assembleia.

Nóbrega já era um dos líderes do Escritório do Crime quando Flávio empregou no seu gabinete a mãe e a irmã dele.

Mais tarde, para engordar a rachadinha de Queiroz e Flávio, as duas devolveram 203 mil reais do dinheiro que haviam ganhado.

Milicianos e os Bolsonaro sempre se deram bem. Renanzinho, o Zero 4, namorou uma filha de Ronni Lessa. Que vem a ser…

Lessa foi o miliciano, vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, que matou a vereadora Marielle Franco.

Bolsonaro é réu no Supremo Tribunal Federal por apologia ao estupro. O processo foi suspenso porque ele se elegeu.

Nada lhe causa mais horror do que a possibilidade de ser apontado como cúmplice de matadores de aluguel.

Seus filhos padecem do mesmo horror. Acusá-los por tomarem parte dos salários de funcionários, não lhes mete tanto medo.

Pegaram carona no combate à corrupção por mero oportunismo político. O assunto já lhes rendeu o que tinha de render.

O maior inimigo da família é ela mesma. Hoje, os Bolsonaro só perderiam para os Bolsonaro. O pai parece se esforçar para isso.