Blog do Noblat

Ricardo Noblat: A volta em grande estilo da Velha Política em socorro ao capitão

Estelionato eleitoral à vista

Onde se leu: Jair Bolsonaro diz que no seu governo jamais loteará cargos públicos em troca do apoio de partidos, leia-se: para prevenir-se contra um pedido de impeachment que possa custar-lhe o mandato, o presidente Jair Bolsonaro passou a oferecer cargos públicos a partidos em troca de votos no Congresso.

Que perdoe o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo, que acumula o Ministério das Boas Notícias e reclama da imprensa que, segundo ele, só parece enxergar as notícias más. A compra de apoio por Bolsonaro não é uma notícia nem má nem boa. É simplesmente notícia e não pode ser ignorada.

Um devoto do presidente, ontem, no cercadinho do Palácio da Alvorada, perguntou-se se era verdade que ele está oferecendo os cargos que prometera reservar só para pessoas de sua inteira confiança. Bolsonaro irritou-se com a pergunta e deu uma resposta malcriada. Sim, ele anda bastante nervoso ultimamente.

Foi obra dos ministros militares que o cercam convencê-lo de que o governo de cooptação não é tão mal assim. E que sem partido desde que abandonou o PSL pelo qual se elegeu, sem votos para aprovar seus projetos no Congresso, seria recomendável que procedesse como os presidentes que o antecederam.

Os bolsonaristas sinceros, porém radicais, ficarão furiosos, é certo. Mas por sinceros e radicais, serão obrigados a continuar a defende-lo à falta de opção. Os bolsonaristas móveis ou em trânsito, esses não são confiáveis e já estão em trânsito, embora ainda não saibam para onde. Poderão retornar ao regaço de Bolsonaro.

O chamado governo de coligação funcionou à época dos presidentes Itamar e Fernando Henrique. À época de Lula, funcionou, mas deu na Lava Jato. À época de Dilma, não foi suficiente para que ela completasse o segundo mandato. À época de Temer, sustentou-o, mas não o impediu de ser preso depois.

Bolsonaro, e mais ninguém, é que sabe onde lhe apertam os calos e, no momento, a dor que deveras sente empurra-o na direção que jurou nunca ser capaz de trilhar. A Velha Política, essa está assanhadíssima e pronta a jurar-lhe fidelidade enquanto dure o amor e não se apague a chama.

Taokey, Jair Bolsonaro, você venceu. Batatas fritas!

Daqui a uma semana, o ministro Nelson Teich, da Saúde, divulgará seu plano de desmonte do isolamento social adotado como meio de combate à pandemia do coronavírus. Caberá então a governadores e prefeitos pô-lo ou não em prática, como decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal. A responsabilidade será deles.

Mas, na prática, o isolamento já começou a acabar sob a pressão do presidente Bolsonaro e de empresários preocupados em salvar a Economia. Bolsonaro é a favor do passe livre para o vírus. Quanto mais brasileiros forem contaminados, menos restarão para ser. Se a Economia for para o brejo, levará junto o governo e a reeleição.

A marca de três mil mortos deverá ser ultrapassada hoje. Nas últimas 24 horas, o vírus matou por aqui mais 165 pessoas. Foram quase sete por hora, uma morte a cada nove minutos. O total oficial de mortos, de fevereiro para cá, é de 2.906. E de contaminados, 45.757. Os números estão bem aquém da realidade.

O pico da primeira onda da doença deverá se abater sobre o país entre meados e final de maio. Haverá uma segunda onda. Os Estados Unidos trabalham com a hipótese de haver uma terceira. Nem por isso as medidas restritivas serão mantidas aqui e lá. Bolsonaro reza pela cartilha de Trump, candidato à reeleição.

Em Santa Catarina, ontem, os shoppings reabriram e foram registradas grandes aglomerações de pessoas. Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) anunciou que parte do comércio poderá reabrir suas portas a partir do próximo dia 11. Hoje, o governo do Rio deverá decidir algo parecido.

No Rio Grande do Sul, a volta parcial à normalidade começará em breve. A princípio, a volta às aulas no Distrito Federal está marcada para o dia 18. Pelo menos mais oito Estados avançam na mesma direção. Naturalmente, falta combinar com o vírus que já matou no mundo quase 180 mil pessoas e contaminou 2,6 milhões.

Um governo incapaz de fazer chegar com rapidez 600 reais mensais às mãos dos mais vulneráveis não é capaz de mais nada – a não ser fabricar crises, perseguir adversários e segurar em alça de caixão. É isso o que acontece. O adiantamento previsto da segunda parcela da ajuda de 600 reais foi cancelado por falta de dinheiro.

Sem o aval do Ministério da Economia, o ministro Braga Neto, chefe da Casa Civil da presidência, antecipou o lançamento de um plano de recuperação econômica pós-covid 19 que prevê aumento dos gastos com investimentos públicos para os próximos anos. O plano é vago e carece de recursos para ser executado.

Por ora, o governo bate cabeça e dá sinais de que está perdidinho da silva.


Ricardo Noblat: A chance desperdiçada por Bolsonaro

Onde você estava e o que fez no ano do coronavírus

Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, prestaria um grande favor ao presidente Jair Bolsonaro se aceitasse em breve um dos muitos pedidos de impeachment contra ele que guarda na gaveta. Seria um político amador se o fizesse. E Maia, apesar da juventude, tem se revelado um político ajuizado e esperto.

Por mais que Bolsonaro o pressione e ataque como tem feito, Maia não cairá na armadilha. O deputado diz que está acostumado com pressões desde antes de nascer. No útero da mãe, foi pressionado pela irmã gêmea. Depois de nascido, aprendeu com o pai, Cesar Maia, ex-prefeito do Rio, como lidar com situações difíceis.

A presidência da Câmara por três mandatos consecutivos foi a melhor escola que Maia poderia ter-se matriculado para neste momento encarar com sensatez o presidente mais belicoso que pôs os pés no Palácio do Planalto desde a redemocratização do país em 1985. O temperamento irritado de Maia é coisa do passado.

Se Bolsonaro o desafia dizendo que ele quer derrubá-lo, não é um patriota, nem tem “um coração verde amarelo”, Maia responde: “Enquanto o presidente joga pedras no Congresso, o Congresso lhe manda flores”. Bolsonaro teme a abertura de um processo de impeachment no próximo ano – por isso deseja antecipá-lo.

Não se tira presidente em meio a uma pandemia justo quando se pede às pessoas que fiquem em casa. Pode-se tirar depois que a epidemia passe e que as pessoas voltem às ruas. Mesmo assim, a tirá-lo, é preferível que fique onde está sob a tutela do Congresso e da Justiça. Impeachment é sempre um processo traumático.

Impeachment, já, não teria a menor possibilidade de ser aprovado. Nem o PT o apoiaria. Maia sabe disso, Bolsonaro também e, por isso, o quer. Sabe que o impeachment terá melhores condições de avançar quando se puder fazer um balanço de casos e de mortes provocados pelo coronavírus, e do papel do presidente nisso tudo.

Onde você estava? – foi a pergunta que correu o mundo depois do assassinato do presidente norte-americano John Kennedy em 1963. Até hoje, muita gente se lembra de onde estava. Repete-se a pergunta a propósito do 11 de setembro de 2001 quando o terrorismo matou quase três mil pessoas nos Estados Unidos.

Antes da pandemia, Bolsonaro contava com a recuperação da economia para, em 2022, candidato à reeleição, apresentá-la como seu cartão de visita. A recuperação entrou por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato. Na eleição se perguntará: Onde você estava e o que fez quando o coronavírus matou tanta gente?

Bolsonaro desperdiçou a chance de poder responder que estava na presidência e que liderou o país na penosa luta contra o maior flagelo que se abateu sobre a humanidade neste início de século.

O mau exemplo da Ilha da Fantasia

O reino do presidente não é deste mundo
Nunca, como ontem, Brasília mereceu a zombaria de ser chamada de Ilha da Fantasia. Brasília, não, porque ela não responde pelos malfeitos dos seus habitantes.

De volta ao início: nunca, como ontem, o Palácio do Planalto, local de despacho do presidente da República, mereceu a zombaria de ser chamado de Ilha da Fantasia.

Qualquer cidadão confinado em casa para escapar ao coronavírus teria o direito de perguntar ao ver as imagens da cerimônia de posse do novo ministro da Saúde: em que país vive essa gente?

Sem máscaras, a não ser as da hipocrisia, sem obedecer às regras do distanciamento social que só parecem valer para os brasileiros comuns, mais de 50 autoridades se abraçaram e apertaram as mãos.

Ao fim da cerimônia, parte da assistência fez questão de cumprimentar o presidente Jair Bolsonaro, parabenizar o ministro empossado e despedir-se do ministro demitido.

Na véspera, Henrique Mandetta, que ensinou o país a como se comportar em tempos de epidemia, despediu-se dos funcionários do Ministério da Saúde aos beijos e abraços. Ensaiou passos de dança.

Bolsonaro foi o mais coerente de todos. Aliado do vírus, capaz de sacar o revólver se ouvir falar em quarentena, não negou afago a quem o procurou. Seu reino não é deste mundo.


Ricardo Noblat: Mandetta abre espaço para que Bolsonaro se divirta sozinho

Enquanto não chega a primeira grande onda do Covid-19

Depois de muito refletir, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, decidiu não mais bater de frente com o presidente Jair Bolsonaro. É por isso que tem aparecido menos nas entrevistas coletivas de fim de tarde. É por isso também que passou a recusar convites para participar de lives de cantores famosos.

Foi aconselhado a proceder assim por ministros militares lotados em gabinetes do Palácio do Planalto que há muito ganhou ares de quartel. O recuo de Mandetta abriu espaço para que Bolsonaro recobrasse o protagonismo político que o cargo confere ao seu ocupante e do qual ele jamais admitiu abrir mão.

Sem que ninguém lhe faça sombra, Bolsonaro sente-se seguro para passear por onde quiser, dizer o que quiser, sem medo de ser confrontado por Mandetta. Levou-o, ontem, para a inauguração de um hospital de campanha em Goiás. Enquanto confraternizava com seus devotos, Mandetta só observava, calado.

À custa de muita provocação dos jornalistas, o ministro, sopesando as palavras, limitou-se a comentar: “Posso recomendar, não posso viver a vida das pessoas. Pessoas que fazem uma atitude dessas hoje daqui a pouco serão as mesmas que estarão lamentando”. Frisou que não se referia naturalmente ao presidente.

Coube, mais tarde, a Wanderson de Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde, repetir em entrevista o que Mandetta sempre disse desde que começou a falar sobre a ameaça do coronavírus: que o distanciamento social deve ser observado para impedir o colapso do sistema médico. Que a situação deverá agravar-se.

As embaixadas no Brasil da França, Alemanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos emitiram comunicados onde pedem que seus cidadãos de passagem por aqui retornem imediatamente aos seus países. Por lá, o vírus mata e esfola, mas no Brasil as embaixadas temem que a pandemia possa causar maiores estragos.

Manaus, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo são as cidades que mais preocupam os técnicos do Ministério da Saúde. A contaminação por vírus nesses lugares tem sido maior, bem como o número de mortes. Em razão disso, os hospitais estão quase todos lotados e em breve começarão a recusar pacientes.

Bolsonaro segue se divertindo enquanto isso. Ao desembarcar do helicóptero para a inauguração do hospital de campanha em Goiás, levantou os braços em saudação à multidão que imaginava encontrar. Seu gesto foi filmado e apreciado nas redes sociais. Só que não havia multidão e quase ninguém ali. Era pura encenação.


Ricardo Noblat: Bolsonaro, o exterminador do futuro de muita gente

E o vírus mal começou a matar no Brasil...

Em que parte do mundo já se viu um chefe de Estado sair a passear em plena pandemia de um vírus desconhecido que mata a roldo? Em que parte se viu um abraçar pessoas podendo ser contaminado por elas ou então contaminá-las?

Onde já se viu um chefe de Estado desacreditar medidas de restrição social baixadas por governadores e prefeitos e endossadas pelo Ministério da Saúde do seu próprio governo? Os poucos que tentaram recuaram logo em seguida.

Pois é o que tem feito o presidente Jair Bolsonaro desde que voltou dos Estados Unidos há pouco mais de um mês trazendo uma dezena de acompanhantes infectados pelo coronavírus e que, uma vez no Brasil, infectaram uma dezena ou mais de pessoas.

Em um país onde o presidente da República manda muito, embora nem tanto quanto desejaria, ele é a primeira referência dos governados. Natural que seja. O que diz é ouvido e repetido, e o que faz libera a população para que faça também.

Bolsonaro sabe disso, mas quando é conveniente finge não saber e banca o inocente. Se estimula os brasileiros a abandonarem o confinamento e a retornarem às ruas, parte deles o segue. Não é possível que ignore os efeitos perversos de sua atitude.

Hás mais de um mês que o ministro Luiz Henrique Mandetta rendeu-se à orientação da Organização Mundial da Saúde acolhida por todos os países assolados pelo vírus: fique em casa. Circule o mínimo possível. Deixe para depois tudo o que possa.

O chefe de Mandetta faz o contrário. No último dia 15, recepcionou em frente ao Palácio do Planalto manifestantes ali reunidos para pedir o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Tocou com as mãos em mais de 250 deles.

Anteontem, foi a uma padaria de Brasília tomar um refrigerante e comer um doce. Bem recebido por uns, hostilizado por outros, provocou aglomerações, apertou a mão de admiradores e foi embora assim que bateram as primeiras panelas.

Fez pior ontem. Depois de uma escala no Hospital das Forças Armadas, saiu direto para uma farmácia, atraindo gente. Visitou um dos filhos que aniversariava. E ao sair do prédio com o nariz escorrendo, limpou-o com o braço e apertou mãos.

O que pretende com isso? É uma pergunta que ele não responde, e quando o faz tergiversa. O que ele consegue com isso? Que as pessoas, e não só as que o cumprimentam, se exponham ao risco de se contaminar e de morrer.

Age como uma espécie de exterminador do futuro de milhões de brasileiros. Não é muito diferente do pastor americano James Warren “Jim Jones”, fundador e líder da seita Templo dos Povos, que em novembro de 1978 promoveu um suicídio em massa.

No início dos anos 60 do século passado, Jim Jones esteve no Brasil porque julgava Belo Horizonte um dos lugares mais seguros do mundo se houvesse uma guerra nuclear. Mudou-se mais tarde para o Rio onde trabalhou durante alguns anos com favelados.

Mas foi em Jonestown, capital da Guiana, que se sentindo ameaçado, convenceu seus devotos a se matarem. Primeiro os pais mataram os filhos, envenenando-os com cianureto. Depois beberam o veneno. Ao todo, morreram 918 pessoas.

Bolsonaro ainda não mandou que ninguém tomasse veneno. Manda que não levem a sério um vírus que já matou até ontem mais de mil brasileiros e infectou quase 20 mil. No mundo, em 100 dias, matou 100 mil pessoas. E, por aqui, o estrago mal começou…


Ricardo Noblat: Quem pagará a conta da desgraça do coronavírus

À espera de semanas duríssimas

Jair Messias Bolsonaro, o comandante em chefe da luta contra o coronavírus, foi ontem tomar refrigerante em uma panificadora da Asa Norte, em Brasília. Juntou gente, nem tanto porque metade dos habitantes da cidade respeita o confinamento decretado pelo governador Ibaneis Rocha (PMDB), do Distrito Federal.

Apertou a mão dos que o cumprimentaram e se disseram seus devotos. Posou com alguns deles para fotos. Mas não demorou muito por ali porque, de repente, começou a ouvir o tilintar de panelas e os gritos de “fora, Bolsonaro”. Saiu de cara fechada. Em 2018, a Asa Norte lhe deu 51% dos seus votos no segundo turno.

O presidente, à noite, fez sua tradicional live das quintas-feiras no Facebook. É o momento da semana onde sente-se mais à vontade. Não tem jornalistas à vista para incomodá-lo com perguntas embaraçosas. Fala o que quer e ninguém o contesta. Seus acompanhantes de ocasião sorriem de todas as suas tiradas.

Embora com ar sério, estava particularmente debochado. Sem citá-lo, debochou do ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, que costuma repetir que médico não abandona paciente. Quer dizer com isso que em meio a uma pandemia, por mais que seja hostilizado por Bolsonaro, não pedirá demissão.

A pretexto de defender mais uma vez o uso da cloroquina contra o coronavírus, Bolsonaro disse que “médico não abandona paciente, mas paciente troca de médico”. Touché! Mandetta preferiu responder à gravação de uma conversa onde o ministro Onyx Lorenzoni e o ex-ministro Osmar Terra defendem sua demissão.

“Lavoro, lavoro, só lavoro”, comentou Mandeta. Lavoro é trabalho em italiano. É o que não falta ao ministro na medida em que o coronavírus multiplica o número de brasileiros infectados e mortos. Hoje, um novo recorde será estabelecido quando o número de mortos ultrapassar a casa dos mil.

De volta à live de Bolsonaro. Com o mesmo ar de seriedade com que deu uma estocada em Mandetta, ele debochou também da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que o proibiu de revogar as medidas de restrição dos governadores para deter o avanço do coronavírus.

Valeu-se da decisão ainda em caráter de liminar para dizer que ela prova que ele, Bolsonaro, nada tem a ver com tais medidas. Até porque sempre se opôs a elas por considerá-las prejudiciais às pessoas que precisam circular e por fazerem mal à Economia. Se dependesse somente dele, nunca teriam sido adotadas.

Com a corrida às farmácias para a compra de cloroquina e o aumento de carros e de pessoas nas ruas das maiores cidades do país, pode-se afirmar tudo – menos que Bolsonaro esteja em isolamento social. Uma larga fatia do país, seja por ouvi-lo, seja por outras razões, está fazendo exatamente o que ele prescreveu.

Ah, mas o Congresso não quer mais conversa com ele! Ah, mas o tempo fechou para ele na Justiça! Esta semana, vários líderes e presidentes de partidos conversaram às escondidas com Bolsonaro no Palácio do Planalto. O clima na Justiça está pesado para o lado dele, mas nenhum togado recusaria um convite para conversar.

Mandetta… Mandetta não perde por esperar. A hora de Bolsonaro mandá-lo embora chegará a partir do instante em que o vírus comece a perder sua força – daqui a dois meses, talvez. Mandetta irá lavorar, lavorar para quem quiser, mas longe da Esplanada dos Ministérios, e sem horário gratuito de propaganda eleitoral.

O acerto final de contas de Bolsonaro com o país se dará quando for possível fazer um balanço do número de vidas ceifadas pelo vírus que ele chamou de “gripezinha”. Se for demasiado grande, se por aqui se repetirem cenas como as que chocaram a Itália e outros países, não haverá mais conversa que possa salvá-lo.

Voo no escuro e sem instrumentos

Seja o que Deus quiser
O Ministério da Saúde continua voando no escuro à caça do coronavírus e sem auxílio dos instrumentos necessários. A falta de testes em massa o impede de saber ao certo quantos brasileiros foram infectados, quantos morreram e quantos poderão morrer.

Outro dia, o ministro Luiz Henrique Mandetta anunciou a compra de 22,9 milhões de kits de testes. Até agora, apenas 904.872 foram entregues, segundo o jornal O Globo (4% do total). E desses, menos de 63 mil foram aplicados.

Só em julho, o país deverá alcançar a marca de 40% do montante previsto. Numa lista de 15 países, o Brasil é o lanterninha na aplicação de testes. Enquanto faz 297 testes por cada um milhão de habitantes, o Irá faz 2.755 e os Estados Unidos, 7.1091

O país campeão em número de testes aplicados é a Alemanha – 15.730 por cada um milhão de habitantes.


Ricardo Noblat: É só uma questão de tempo para que Bolsonaro demita Mandetta

Caneta cheia de tinta à espera do melhor momento

Atribuir aos militares a permanência de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde seria supor que, se contrariados, eles derrubariam o presidente Jair Bolsonaro ou o abandonariam. Não fariam nem uma coisa nem outra.

Mandetta ficou porque as forças que queriam que ele ficasse foram por ora superiores às forças que queriam vê-lo decaído. A não ser que se acomode à situação, em parte alguma presidente da República vira Rainha da Inglaterra.

Bolsonaro não se acomodará. Não dá sinais disso. É o maior fabricante de crises que já vestiu a faixa presidencial. E assim continuará até o último dos seus dias na cadeira que é demasiada larga para ele. O prazo de validade de Mandetta acabou.

E daí que ele seja o mais popular dos ministros e que sua aprovação na pesquisa Datafolha (76%) tenha ultrapassado de longe a de Bolsonaro? E daí que apenas 18% dos brasileiros sejam contra a política de confinamento total defendida por Mandetta?

Bobagem imaginar que secou a tinta da caneta de Bolsonaro. Ou que o tsunami de mensagens postadas nas redes sociais a favor do ministro fará Bolsonaro recuar da decisão de mandá-lo embora. Assim como não se governa governador, não se preside presidente.

Bolsonaro pode ter-se transformado em um estorvo para o país, mas o ministro da Saúde tornou-se um estorvo para ele. Bolsonaro tem mandato de quatro anos, e sonha com outro de mais quatro. Mandetta não tem mandato. Um sopro de Bolsonaro o derruba.

Há muitas razões para que o derrube. A principal: Bolsonaro está convencido de que o coronavírus matará quem tiver de morrer, e que só a recuperação da Economia salvará suas chances de reeleição. Mandetta, antes de tudo, quer salvar vidas.

Bolsonaro sofre de complexo de inferioridade e não é de hoje. É desde os seus tempos como militar, agravado com o afastamento forçado do Exército por indisciplina e conduta antiética. A família Bolsonaro foi proibida de frequentar clubes e escolas militares.

Mandetta recusa-se a obedecer às ordens de Bolsonaro. E seu desempenho na luta contra o coronavírus promoveu-o à condição de o administrador e político mais admirado pelo país. O contraste com Bolsonaro é amplamente desfavorável ao presidente.

Acrescente-se a paranoia, talvez o traço mais forte e negativo da personalidade de Bolsonaro. Ele enxerga um adversário em cada esquina – adversário, não, inimigo. Só confia nos filhos e em mais ninguém. Só dá ouvido a eles e a alguns poucos amigos.

E se Mandetta for um agente do deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, infiltrado no governo para criar problemas a Bolsonaro? Maia e Mandetta são do mesmo partido, o DEM. O presidente do Senado, David Alcolumbre, também é.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal? Ricardo Lewandowski é petista. Dias Toffoli, por mais que finja que não, é petista. Quem foi petista nunca mais deixa de ser. Edson Fachin é petista. Gilmar Mendes, tucano de carteirinha. Marco Aurélio Mello é ele mesmo.

Está tudo armado entre o Congresso e o Supremo para tentar apear Bolsonaro do poder. A ele só resta precaver-se mantendo sua tropa unida, paparicando os militares, mas não a ponto de se deixar tutelar, e bem dizendo a Deus para alegria dos evangélicos.

Assessores de Mandetta não só limparam, ontem, suas gavetas como limparam as do ministro. A portaria de Bolsonaro demitindo Mandetta estava pronta para ser publicada no Diário Oficial. Para poupar trabalho, recomenda-se que as gavetas continuem limpas.

O nome e o sobrenome de quem será o culpado pelo pior

Aposta errada
Garotos aprendem nos seus primeiros meses de bancos escolares que não se deve brigar com o garoto mais forte, mais bonito e mais popular da escola. O melhor é aliar-se a ele, fazer parte de sua turma e desfrutar de sua proteção. Ou então manter distância.

Se o enfrentamento for inevitável, há que se esperar o momento propício quando os ventos estiverem soprando em desfavor dele. Nada de precipitação. É aconselhável acumular forças atraindo outros garotos que também desgostam do garoto mais forte.

Foco, planejamento, organização, como ensina o ministro Henrique Mandetta, da Saúde. Mas a essa aula faltou o presidente Jair Bolsonaro que foi um aluno medíocre quando era apenas estudante. Destacava-se no aprendizado de educação física.

Seus anos na Câmara dos Deputados de pouco lhe serviram devido à sua limitada capacidade de aprender observando, uma vez que ler, estudar e fazer cursos nunca foi sua praia. Ali foi apresentado a esperteza barata de tentar tirar vantagem do que fosse possível.

A hora escolhida por Bolsonaro para livrar-se de Mandetta não poderia ter sido pior. Mandetta é o garoto mais forte, mais bonito e mais popular da escolinha da Esplanada dos Ministérios. Servidores o tratam como o herói que venceu mais uma batalha.

Se, lá atrás, Bolsonaro tivesse se aliado a ele, não estaria ladeira a baixo. Mas fez a aposta errada ao preferir salvar a Economia ao invés de salvar vidas, ao eleger governadores como seus inimigos, e ao encantar-se com uma poção mágica capaz de derrotar o vírus.

Se desse errado a política de confinação total, de exames, exames e exames e de socorro à Economia com a injeção de muito dinheiro, não seria culpado. Parte da culpa recairia em Mandetta e nos governadores. Bolsonaro escaparia ileso ou quase.

Agora é tarde. Se o coronavírus não provocar por aqui a mortandade que tanto se teme, o mérito será dos governadores e de Mandetta, mesmo que o ministro já não seja ele. Se provocar, o culpado tem nome e sobrenome: Jair Messias Bolsonaro.


Ricardo Noblat: Bolsonaro rompe o cordão sanitário montado para contê-lo

Tudo como dantes no quartel de Abrantes

Em versão light de fim de semana (do mais recente porque nem sempre é assim), o presidente Jair Bolsonaro repetiu sem levantar a voz tudo o que vinha dizendo até que os ministros militares que o vigiam de perto, mas que não conseguem domá-lo, riscaram uma linha que ele não deveria ultrapassar, mas que ultrapassou.

O presidente usou um encontro com devotos evangélicos nos fundos do Palácio do Planalto para voltar a atacar governadores, “mas não todos” como fez questão de sublinhar, a imprensa que não perde uma chance de malhá-lo e, indiretamente, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, sua mais nova obsessão.

Enquanto ouviu o que ele dizia, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, passou a mão na cabeça mais de uma vez como se pensasse que aquele não era o script combinado. Se não foi por isso, pode ter sido pelo vento que soprava na direção de suas costas despenteando sua rala cabeleira.

A recaída de Bolsonaro desatou uma série de manifestações dos que rezam por sua cartilha ou fazem sua cabeça. Abraham Weintraub, ministro da (des)Educação, entrevistado ao vivo no Facebook pelo deputado Eduardo Bolsonaro, retomou os ataques da ala ideológica do governo à China. Disparou ao seu modo tosco:

“Eles têm contato com um monte de bicho que não é pra comer. E comem. E têm muito contato com porco e frango. Nos próximos 10 anos virá outro vírus desses da China? Probabilidade é alta”.

O autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho valeu-se das redes sociais para novamente a bater sem piedade no general Hamilton Mourão: “Lembro-me de haver promovido, na modesta medida das minhas possibilidades, a escolha do general Mourão para vice-presidente. Mais uma cagada numa vida já tão repleta delas”.

Não ficou só nisso. Sobrou ainda para Mandetta, os militares e até Bolsonaro:

“O Punhetta é o exemplo típico do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros “critérios técnicos”, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica. O que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica. Os militares de 1964 fizeram exatamente essa cagada”.

Para seu desgosto recém-filiado ao PT e ao PSOL, uma vez que tornou público os números de sua carteira de identidade e CPF e os engraçadinhos logo disso se aproveitaram, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, atirou no governador do Maranhão e acertou no próprio pé. Disse:

“Flávio Dino, governador do Maranhão, creditou ao presidente Bolsonaro os 300 óbitos do Covid-21. Sempre acreditei, pelo passado histórico, que comunistas são seres alienados, sonsos, insensíveis e insensatos. Atitudes como essa confirmam esse perfil”.

Após cerca de duas horas no ar, tempo necessário para ser copiado pelos interessados, o comentário foi apagado. Dino (PC do B) não creditou morte alguma a Bolsonaro. E o Covid em questão é o 19, não o 21. Salvo se o general, responsável pelo setor de inteligência do governo, saiba de algo que prefira esconder por enquanto.

Foi um fim de semana e tanto no âmbito e nas cercanias de um governo que parece não ter mais o que fazer a não ser chamar a atenção para a sua inutilidade e sabotar os esforços dos que enfrentam a mais grave pandemia dos últimos cem anos. Os próximos 10 dias se encarregarão de demonstrar isso.

Aviso aos navegantes da Era do Coronavírus

Arrependimento tardio não dará jeito
Quem sai de casa sem precisar é porque acredita no que o presidente Jair Bolsonaro diz – salvemos a Economia porque a morte de velhinhos “são coisas de vida”. Pode até não gostar de Bolsonaro, mas pensa como ele. Pode até mesmo não saber que ele manda as pessoas saírem de casa e circular, mas faz o que ele manda.

Mais adiante, se virem caminhões do Exército transportando caixões para cemitérios à falta de carros funerários suficientes, se não puderem se despedir de parentes e de amigos que morreram contaminados pelo vírus, não se surpreendam. Não digam que não foram avisados. Não joguem a culpa apenas em Bolsonaro.

Ninguém poderá dizer: “Eu não sabia”. Poderá dizer: “Eu não quis acreditar”. Mas aí será tarde demais.


Ricardo Noblat: Bolsonaro ignora a lição de que as consequências vêm depois

Péssimo aluno de História, mas não só

Façam suas apostas: quanto tempo mais levará o presidente Jair Bolsonaro para detonar uma nova confusão capaz de alvoraçar seus devotos cativos em número cada vez menor, e despertar os instintos mais rudes dos seus desafetos que só fazem crescer?

Se não acordar, hoje, de maus bofes, caso continue a ouvir a opinião dos militares que o detém, Bolsonaro completará três dias de silêncio externo e de fúria represada no Palácio do Planalto onde dá expediente e no Palácio da Alvorada onde mora.

Ah, se as paredes falassem. Elas contariam sobre a paranoia de Bolsonaro que só fez se agigantar desde que o coronavírus desembarcou no país. Por que chegou tão rápido e com qual intenção? Quem garante que fará o mal alardeado?

Em grupo de WhatsApp, Bolsonaro referiu-se ao Covid-19 como “o vírus chinês”. O filho Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, copiou o pai e desatou uma crise diplomática para lá de dersastrosas com a China logo na hora que o Brasil mais precisa da sua ajuda.

Nem por isso desagradou ao pai. Bolsonaro não tira da cabeça que o vírus faz parte de uma grande conspiração para abreviar seu atual mandato. Conspiradores são todos os que o criticam aberta ou veladamente, e até mesmo alguns dos que o aconselham.

O general Braga Neto, chefe da Casa Civil, está no comando das ações contra o coronavírus. Paulo Guedes, ministro da Economia, parece ter acordado para o que lhe cabia fazer. Mandetta, ministro da Saúde, ainda está nos cascos – mas até quando?

Bolsonaro finge que governa, mas por ora está sendo governado. Dentro de mais duas ou três semanas, a crista da primeira grande onda do vírus estará à vista de todos. O sistema de saúde entrará em colapso. E aí… Aí seja o que Deus quiser.

Só então cairá a ficha dos que fizeram ouvidos moucos ao isolamento social decretado por governadores e prefeitos, recomendado pelas principais autoridades médicas do país e sabotado pelo presidente em conluio com pastores evangélicos.

Quando as avozinhas passarem a morrer nas áreas faveladas de grandes cidades, virá a baixo, ali, o atual modelo de organização e de funcionamento da vida econômica e social. São elas que criam os netos para que os pais possam trabalhar ou fazer bico.

A etapa seguinte será a da procura dos culpados por uma situação que nem em sonhos acreditou-se que seria possível. Sobrará para muitos. Sobrará menos para os que se anteciparam à desgraça. Sobrará preferencialmente para os que desdenharam dela.

Apresente-se, Bolsonaro! O senhor não disse que, salvo os idosos, os demais deveriam voltar a trabalhar para que a Economia não parasse? Não disse que o calor dos trópicos mataria o vírus? Não o chamou de uma “gripezinha”, “um resfriadinho”? E agora?

Agora, aguente as consequências. E reze para que seu governo ou desgoverno não desmorone antes do tempo.


Ricardo Noblat: Está por um fio a convivência de Bolsonaro com Mandetta

Um manda, o outro não obedece

Quem um dia imaginou ver um ministro ameaçado de demissão por excesso de apoio popular; um presidente da República que governa orientado pelos filhos e divulga vídeos falsos; e um país às vésperas de um ataque de nervos ao pressentir que logo atravessará um dos períodos mais sombrios de sua história…

O presidente Jair Bolsonaro não seria culpado pela recessão econômica que virá, o aumento do desemprego, o buraco nas contas públicas se tivesse se comportado à altura do cargo. Como não se comportou, toda a desgraça provocada pelo vírus lhe será atribuída – e, em boa parte com razão.

A situação do ministro Mandetta, da Saúde é inversa. Se a desgraça produzida pelo vírus for pequena, mérito dele. Se for grande, não teve culpa. Como poderia se sair melhor sem meios para isso e sabotado o tempo todo pelo presidente da República? Mandetta irá para o céu. O destino de Bolsonaro será outro.

Que governo esquisito, esse. Tem três ministros indemissíveis no momento – Mandetta, Sérgio Moro, da Justiça e da Segurança Pública, e Paulo Guedes, da Economia, o ex-Posto Ipiranga que sofreu um apagão, mas que ainda está aí, embora parecendo perdido. E um presidente perfeitamente demissível.

Mal militar no passado quando foi expurgado do Exército por indisciplina e conduta antiética, tornou-se o pior presidente da história recente do país com o apoio das Forças Armadas. Para Bolsonaro, isso não fará a menor diferença. Ele quer é rosetar. Mas para a imagem das Forças Armadas será um desastre.

“Ele tem um raciocínio de que tem todos os poderes na mão, não é assim. Acho que é uma visão um pouco tosca do que seja a função de um presidente”, observa Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República. Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda no combate ao vírus, segundo pesquisa Datafolha.

De ontem para hoje, o país foi dormir sob o forte impacto da revelação de que há confirmasdos mais de 9 mil casos de coronavírus, com 359 mortos até o momento. É como se dois Airbus 320, lotados, o avião mais usado pela LATAM, tivessem caído nos últimos 15 dias matando todos os seus passageiros.

Mandetta disse que médico não abandona paciente. Foi isso que ele aprendeu. Mas para cuidar do Brasil, faltam-lhe os equipamentos médicos necessários, kits para milhões de testes e a confiança do presidente que prefere ouvir Jacaré a ouvi-lo. Jacaré é o amigo de Bolsonaro que lhe repassou um vídeo falso.

A convivência entre Bolsonaro e Mandetta está por um fio que poderá romper-se a qualquer instante. Bolsonaro, que nem para prestar primeiros socorros serve, insiste em dizer tudo ao contrário do que Mandetta diz. O ministro, por sua vez, desautoriza o presidente toda vez que fala. Não tem como isso dar certo.

Por dever de obediência, no governo com mais militares por metro quadrado, ministros de Estado batem continência para Bolsonaro. Mas por dever de consciência e em legítima defesa das próprias vidas, escutam Mandetta e fazem o que ele manda, com o devido cuidado de não melindrar um chefe tão sensível e desatinado.

Essa situação não poderá durar até que o vírus esgote sua colheita de vidas e de dores.


Ricardo Noblat: O plano de Bolsonaro para acabar com o confinamento social

Para salvar a Economia e a reeleição

Se tudo sair como deseja o presidente Jair Bolsonaro e admitiu, ontem à noite, em entrevista à Rádio Jovem Pan, será assim: neste domingo, seus devotos promoverão uma jornada nacional de jejum e de orações sob o estímulo e a benção de pastores evangélicos.

E ele, a partir da segunda-feira, poderá a qualquer momento assinar uma Medida Provisória para acabar na prática com o confinamento social decretado por governadores e prefeitos e apoiado por seus principais ministros. Esse é seu plano. Simples.

É fato que o sistema federalista adotado no Brasil concede autonomia administrativa para estados e municípios em áreas como saúde, educação e comércio, o que restringiria a possibilidade de interferência de Bolsonaro. Só que…

Só que Estados e municípios não podem contrariar decreto presidencial que defina como atividades essenciais as que, a juízo de Bolsonaro, devam funcionar. À Justiça, provocada mais tarde, caberá a última palavra. Nesse meio tempo…

Nesse meio tempo boa parte dos brasileiros se sentirá autorizada a voltar a circular, pois o presidente não mandou? O confinamento sofrerá duro abalo. E Bolsonaro terá alcançado seu objetivo. Mas por que, se dependesse dele, jamais teria havido confinamento?

O confinamento enfraquece a Economia, e do sucesso dela depende a reeleição de Bolsonaro em 2022. Não há o que fazer contra o coronavírus, disse Bolsonaro à Jovem Pan. Melhor que o vírus contamine logo cerca de 70% da população, como se estima.

Morrerá muita gente? Morrerá. Morrerão principalmente idosos que já sofrem de outras doenças e estão condenados a morrer mais dia menos dia. Coisas da vida. Tudo passa, passará. Sem eles, a pressão sobre a Previdência será menor. E a Economia, salva.

O The New York Times, o mais importante jornal do mundo, contou que o presidente Donald Trump ouviu de banqueiros e de empresários que deveria permitir que o vírus seguisse seu curso natural, infectando e matando quem tivesse de morrer.

Por isso, até a última sexta-feira, Trump tratou a pandemia como se fosse uma “gripezinha”. Afinal convencido de que estava errado, pediu aos norte-americanos: “Fiquem em casa”. Pediu ajuda à China e à Rússia. E foi à luta. Está perdendo feio a parada.

Bolsonaro também está perdendo feio – no seu caso porque ficou isolado. Isolado dentro do governo, isolado dentro do Congresso, isolado dentro dos tribunais superiores e isolado nas ruas que ficaram vazias. Daí o desespero que não consegue disfarçar.

Quem, em público, ousa lhe dar razão? Apenas os devotos de raiz nas redes sociais e os pastores aflitos com a queda de arrecadação nas suas igrejas, fábricas de dinheiro. Banqueiros e empresários até que lhe dão razão, mas só às escondidas. E em voz baixa.

Bolsonaro virou um pária. Está para a política como o coronavírus está para a Saúde e a Economia – ambos são tóxicos e letais. Na próxima eleição, antes de digitar na urna o nome do seu candidato, lave bem as mãos com álcool gel para votar melhor.


Ricardo Noblat: Trump aplica uma rasteira em Bolsonaro e o joga no chão

Como fazer o dinheiro chegar a quem precisa

Adianta ter dinheiro para gastar? – queixou-se, ontem, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, em seu desabafo diário na sessão fim de tarde. Adianta fechar contratos de importação, fixar multa caso não sejam cumpridos, se alguém com muito dinheiro vai às compras e paga por elas o que lhe cobrarem?

O presidente Donald Trump, a quem Jair Bolsonaro imita e reverencia como ídolo, foi às compras, pagou mais caro e arrebatou tudo o que o governo brasileiro esperava receber da China em matéria de equipamentos essenciais para a proteção dos profissionais da saúde e o combate ao coronavírus.

Foi uma razia. Trump mandou 23 grandes aviões militares se entupirem na China de tudo que estivesse à venda. Mais de 240 mil americanos poderão ser mortos pelo vírus a se confirmarem as piores previsões. No momento, 187 mil estão infectados e há 4.600 mortos. Nos atentados de 11 de setembro, morreram 2.977.

Até a semana passada, Trump ainda se referia ao coronavírus como “uma gripezinha”. Entendeu por que Bolsonaro repetia gripezinha? Trump, depois, admitiu que o coronavírus seria um caso sério, como está vendo. Aqui, anteontem, Bolsonaro concedeu ao vírus a patente de “o maior desafio da nossa geração”.

Os dois conversaram por telefone. Trump informou a Bolsonaro que “o Brasil está parando”. Nada que Bolsonaro não soubesse. Dizem assessores de Bolsonaro que ele ofereceu ajuda. A maior ajuda seria não ter comprado o que o Brasil já comprara. Mas América em primeiro lugar! E a situação está feia em todo canto.

Se morrerem apenas 110 mil americanos, o numero será maior do que a soma de todos os que morreram nas guerras da Coreia (40 mil), do Vietnam (58 mil) e do Iraque e Afeganistão (6,6 mil). O ano nos Estados Unidos é de eleição presidencial. Trump já teve a reeleição garantida. Agora teme o que possa acontecer.

Como Bolsonaro também teme – no seu caso, não a reeleição, mas a sorte do atual mandato. O número de brasileiros infectados é muito maior do que o reconhecido oficialmente – 6.836. O de mortos, idem – 241. O próprio Mandetta advertiu para o crescimento de tais cifras a partir de hoje.

São Paulo e Rio de Janeiro estão no epicentro da pandemia. Nos dois Estados, 250 mortos esperam o resultado dos seus exames. Decepcionaram-se em poucas horas os que esperaram que a fala à Nação de anteontem significasse uma mudança de comportamento de Bolsonaro. Saíra de cena o radical. Entrara o moderado.

Qual o quê! Bolsonaro amanheceu postando nas redes sociais outra fakenews – desta vez o vídeo de um homem sobre desabastecimento em Belo Horizonte. Deu tempo para que seus devotos o copiassem e reproduzissem. Então apagou o vídeo e pediu desculpas. No fim da tarde, aprontou novamente.

Voltou a criticar os governadores que adotaram medidas restritivas em seus Estados, e defendeu que os mais necessitados fossem trabalhar para garantir o sustento. Não se sabe como o dinheiro prometido a essas pessoas pelo governo chegará às suas mãos. Por enquanto, nem o governo parece saber.

E pensar que tudo só está começando, e começando mal desse jeito… A coincidência de epidemias (coronavírus, dengue, influenza e bolsonarismo) ameaça fazer muito mal ao Brasil.


Ricardo Noblat: Uma data para ser lembrada como a do estupro da democracia

31 de março de 1964, nunca mais

A ditadura militar de 1964 durou 21 longos anos – parte deles tenebrosos, com a morte e o desaparecimento de 434 pessoas e o envolvimento de 377 outras, direta ou indiretamente, em práticas de tortura e assassinato. A tortura a presos políticos e a eventuais inocentes foi adotada como política de Estado.

A liberdade e o respeito aos direitos humanos foram suprimidos no país por largo tempo. As garantias individuais, também. A Constituição foi rasgada e deu lugar a periódicos atos institucionais, o mais célebre deles o AI-5, que garantiram a continuidade do regime autoritário até ele se desmanchar.

Há dois dias, o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, disse que o golpe de 64, que ele não chama de golpe, é um fato que “pertence à História”. Se o reconhecesse como um fato positivo o teria dito com todas as letras, como no passado já disse. Mas seus ex-colegas de farda insistem em exaltar o feito.

Ordem do dia assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica a propósito do 56 anos do golpe completados hoje, confirma que os militares nunca engoliram e talvez jamais venham a engolir o fato de terem rompido com a legalidade e implantado no país uma ditadura.

Custa a crer, mas a ordem que será lida e distribuídas em todos os quarteis afirma que o golpe foi um movimento que representou “um marco para a democracia”. Como um marco? Marco de quê? Da destruição dos princípios e valores que distinguem entre um país democrático e outro que não é? Nesse caso faria sentido.

Faltou um bom redator para dar um trato à nota? Ou o ministro da Defesa e os comandantes das três armas querem mesmo dizer que um dos marcos da democracia entre nós foi a intervenção armada que depôs um presidente eleito pelo povo, substituindo-o por sucessivos generais “eleitos” por um Congresso emasculado?

Diz a nota que “o Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”. Uma das utilidades do papel é que ele serve para que se escreva qualquer coisa… Que Brasil reagiu? As chamadas “forças produtoras”, a imprensa e parte da classe média assustada, como de hábito, apoiaram o golpe.

Mas daí generalizar e apresentá-las como se falassem pelo país… O povo, como em outras ocasiões históricas, uma delas a da Proclamação da República, a tudo assistiu bestificado. Povo! Como se usa seu santo nome em vão. Como a palavra povo serve para legitimar medidas que seriam para o seu próprio bem.

Não há um só líder político, em democracia ou ditadura, que não encha a boca para dizer que fala em nome do povo. Os mais modestos, se há algum modesto, diz que fala em nome dos seus eleitores. O presidente Jair Bolsonaro usa as duas formas de acordo com as conveniências do momento. Pura enganação.

O ex-presidente Tancredo Neves ensinava que político depois de eleições não tem mais voto – teve. Passou. A cada dia deveria se lembrar disso. Se lembrasse, cuidaria melhor do povo para reconquistar os votos que perdeu desde que o resultado da eleição foi proclamado. Bolsonaro parece não se dar conta disso.

Da ordem do dia sobre o golpe que inventou o falso “milagre econômico brasileiro”, um período que na verdade beneficiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres, só é aproveitável o trecho que reafirma que as Forças Armadas estão “submetidas ao regramento democrático”. No que não fazem nenhum favor.