Blog do Noblat

Ricardo Noblat: O dilema de Pazuello e dos militares da ativa que servem ao governo

Ou voltam aos quartéis ou passam para a reserva

Hoje faz dois meses que o país está sem ministro da Saúde. Escolhido para ministro interino depois da queda de dois médicos que o antecederam no cargo, o general de brigada Eduardo Pazuello, especialista em logística, enfrenta dificuldades até mesmo para distribuir 46 milhões de testes do Covid-19.

Mais de 20 militares, todos da ativa, ocupam funções chaves no ministério. Mas nem eles, nem o general produziram até agora algo capaz de fazer diferença, a não ser para pior. Por ordem superior, tentaram esconder os números reais da pandemia que matou até ontem mais de 74 mil pessoas e infectou 1,9 milhão.

À falta de meios para enviar aos Estados remédios a tempo e a hora, o secretário-geral do ministério, um coronel, orientou governadores e secretários de Saúde a comprar o que lhes falta mesmo a preços superfaturados. Para não se encrencarem com a Justiça, aconselhou-os a denunciar os que lucraram com isso.

Genocídio parece uma palavra forte usada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, para denunciar um governo relapso que assiste, inerte, o que se dá quando um vírus tem passe livre para matar parte da população. Mas quando a inércia é deliberada, é de genocídio ou morticínio que se trata.

O presidente Jair Bolsonaro não expediu ordem alguma por escrito para que deixassem o vírus agir em paz. Mas Hitler também não expediu ordem alguma por escrito para que dessem início à chamada “Solução Final” – o extermínio em massa de judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias na Alemanha nazista.

O que pretendeu Bolsonaro ao vetar trechos do projeto de lei aprovado pelo Congresso que garantia aos índios e quilombolas água potável, material de higiene, leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, além de alimentação e auxílio emergencial durante a pandemia?

Pretendeu ajudá-los, negando-se a lhes garantir as mínimas condições de sobrevivência? Ou economizar a custa de sua extinção? Nem todos os judeus da Alemanha que se desejava ariana morreram nas câmaras de gás. Milhares morreram de fome e de doenças em guetos e campos de concentração.

É o risco que correm, hoje, os povos tradicionais do Brasil, ou o que resta deles. Mais de 500 índios já morreram vítimas do coronavírus e dos seus cúmplices. Em ato falho, o general Hamilton Mourão, vice-presidente, já admitiu: “Se nosso governo falhar, errar demais, essa conta irá para as Forças Armadas”.

Por que irá se as Forças Armadas são uma instituição de Estado e não de governo? Porque elas cometeram o erro irreparável de se confundirem com o governo de um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética. Um governo destinado a passar à História como perverso, belicoso e inoperante.

O general Pazuello está diante de um dilema que lhe foi proposto por seus companheiros de farda: passar à reserva e ser efetivado como ministro da Saúde, ou deixar o cargo e retornar à tropa. Com isso, os militares imaginam fortalecer a narrativa de que não são responsáveis pelos desacertos do governo Bolsonaro.

Ingênua pretensão. Entre os quase 3 mil militares empregados no governo, quantos ainda estão na ativa? Poderão permanecer na ativa? Por que os comandantes das Forças Armadas não os põem diante do mesmo dilema que atormenta Pazuello? Só assim terão condições de sustentar narrativa tão perecível e enganosa.

Uma narrativa, por favor, para tirar o governo das cordas

Sugestões para www.gov.br

Os militares são bons de narrativas, mas não somente eles, claro. Em meados dos anos 30 do século passado, um coronel de nome Olímpio Mourão Filho, integralista de carteirinha, escreveu uma peça de ficção sobre um complô comunista e judaico para tomar o poder no Brasil.

A peça tornou-se conhecida como O Plano Cohen. E serviu de pretexto para a instalação no país da ditadura militar do Estado Novo sob o comando do então presidente Getúlio Vargas que governava desde 1930. Governou até 1945, quando os militares o derrubaram.

O imaginativo Mourão Filho, já na condição de general, foi quem em 31 de março de 1964 comandou as tropas que desceram de Juiz de Fora sobre o Rio, deflagrando o golpe militar que deu ensejo a uma ditadura de 21 anos. Outra vez, para salvar a democracia ameaçada pelo comunismo.

À frente o general Hamilton Mourão(sem nenhum grau de parentesco com o Mourão que o antecedeu), os militares estão agora em busca de outra narrativa – essa, que possa salvá-los, e ao governo Bolsonaro, da culpa pelo crescimento acelerado da devastação da Amazônia, bem tão caro aos fardados.

Mourão, o vice, foi designado por Bolsonaro para descascar o abacaxi que poderá afugentar do país grandes investimentos internacionais. “O Brasil foi jogado nas cordas na questão ambiental”, admite Mourão. Só sairá das cordas, segundo ele, se apresentar resultados.

Por ora, Mourão ainda insiste em dizer que o Brasil “tem os melhores números” do planeta em matéria de preservação do meio ambiente (não cola, mas ele insiste). A culpa é governos passados pelo estágio atual da degradação da Amazônia (não cola também, mas ele insiste).

Quanto a Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, que perdeu a interlocução com os governos europeus, esse acabará sacrificado por falta de serventia. Salles não tem a mínima importância, nunca teve. Faz o que lhe mandam fazer. Deverá ser empregado em outro lugar.

Em breve, o governo terá de se preocupar com outra narrativa. O que dizer sobre seu fracasso no combate à pandemia? Atribuir o fracasso a governadores e prefeitos, não convence. À gripezinha, tampouco. Ao vírus chinês? A China é o maior parceiro comercial do Brasil. À esquerda? Ela está fora do poder.

Sugestões para o endereço acima.


Ricardo Noblat: Com quem as Forças Armadas preferem se associar

O que diz a Constituição é quase letra morta

Fica combinado assim: este é o governo que mais emprega militares da ativa e da reserva desde o fim da ditadura de 64, mas nem por isso as Forças Armadas o apoiam ou com ele se confundem. As Forças Armadas são uma instituição do Estado.

O fato de serem militares todos os ministros com gabinetes no Palácio do Planalto não quer dizer nada, tampouco que o presidente seja um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina, e o vice-presidente um general da reserva.

Há quase 3 mil militares em demais escalões da administração pública federal – só no Ministério da Saúde, comandado por um general de brigada, são mais de 20. Fez-se uma versão branda da reforma da Previdência só para beneficiar os militares. Mas, e daí?

Quer dizer nada. Como nada quer dizer um reajuste salarial que está sendo concedido aos oficiais das três armas no momento em que falta ao governo dinheiro para gastar com a pandemia que já matou quase 73 mil brasileiros e infectou mais de 1,8 milhão.

Por sinal, quando assumiu o Ministério da Saúde como ministro interino, o general Eduardo Pazuello, especialista em logística, herdou 14 mil mortos dos que o antecederam no cargo. Tentou esconder os números sobre mortos e contaminados.

Não se acanhou de regulamentar o uso da cloroquina no tratamento de doentes, embora no resto do mundo a droga tenha sido desprezada porque não serve para a cura do vírus. A remessa de remédios e equipamentos aos Estados também não funcionou.

Do contrário, o coronel, braço direito do general, não teria orientado governadores e secretários de Saúde a irem às compras mesmo pegando preços superfaturados. Aconselhou-os a pagarem o quanto for, denunciando depois os vendedores à justiça.

É por tais razões que as Forças Armadas reagiram com uma dura nota assinada por seus três comandantes, além do general que é ministro da Defesa, à crítica do ministro Gilmar Mendes de que o Exército associou-se ao genocídio do Covid-19.

“Comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação. É uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”, diz a nota.

Gilmar não atacou o Exército. Atacou o governo por associar sua imagem à imagem do Exército na política genocida de combate ao coronavírus. O Ministério da Defesa pedirá à Procuradoria-Geral da República “a adoção de medidas cabíveis” contra Gilmar.

Há poucos meses, os militares se revoltaram com a comparação feita pelo ministro Celso de Mello, colega de Gilmar no Supremo Tribunal Federal, entre o momento que o Brasil atravessa com o momento que antecedeu a ascensão do nazismo na Alemanha.

Se apenas o governo tivesse ficado furioso com a comparação feita por Celso e a crítica feita por Gilmar, seria compreensível. Mas por que as Forças Armadas reagiram tão mal às palavras dos dois ministros se elas nada têm a ver com o governo?

A continuarem a tomar as dores de um governo que não apoiam nem representam, reforçarão as suspeitas de que o apoiam, sim, de que com ele se identificam, e de que essa história de “instituições do Estado”, como está na Constituição, não passa de letra morta.

Sem vacina contra o coronavírus, adeus carnaval!

Doença ameaça a folia
Quem disse primeiro foi o prefeito Bruno Covas (PSDB), de São Paulo: carnaval vai depender do recuo da pandemia. Depois foi ACM Neto (DEM), prefeito de Salvador. Agora, Mangueira, Imperatriz Leopoldinense, Vila Isabel, São Clemente e Beija-Flor, escolas de samba do Rio, anunciaram: sem vacina, adeus desfile.

ACM Neto acha difícil esperar até agosto para que se tome uma decisão a respeito. “Antes disso, muitas ações de investimento terão que ser adotadas, bem como liberação de recursos para as agremiações”, explica. “E se o vírus não for detido? E se a Justiça, mais adiante, proibir o carnaval? O prejuízo será grande”.

No caso das escolas de samba do Rio e de São Paulo, elas dependem da mão de obra voluntária ou paga para a confecção das fantasias, adereços e carros alegóricos. São meses a fio com centenas de pessoas trancadas nos barracões. Não há como separá-las para evitar que se contaminem. E aí? O que fazer?

A José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, atribui-se a frase: “Existem no Brasil apenas duas coisas realmente organizadas: a desordem e o carnaval”. E morreu aos 66 anos de idade às vésperas do carnaval de 1902. O presidente Hermes da Fonseca transferiu a folia para o início de abril.

Foi o ano de dois carnavais. O primeiro depois da missa de sétimo dia de Rio Branco. O segundo, na nova data marcada pelo governo ainda de luto. Parecia impossível haver carnaval em 1919 porque no ano anterior a gripe espanhola dizimara 50 milhões de pessoas no mundo. No Rio, cadáveres foram recolhidos nas ruas.

Pois se brincou carnaval, sim, em 1919 – e que carnaval! Conta a história: “Os desfiles das grandes sociedades tiveram a doença como tema. Os Fenianos exibiram um carro com caveiras que representavam a “dançarina espanhola”, cercada de pierrôs, arlequins e colombinas”.

Marchinha que fez sucesso dizia: “Quem não morreu da espanhola, quem dela pôde escapar, não dá mais tratos à bola, toca a rir, toca a brincar”. Segundo o escritor Nelson Rodrigues, “a espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a sentir coisas inéditas e demoníacas”.


Ricardo Noblat: Vem por aí o Ministério do Grampo

A fissura de Bolsonaro por informações sigilosas

Está para nascer um novo ministério, e logo no governo do presidente da República que prometera enxugar a máquina pública. Naturalmente não se chamará Ministério do Grampo como extraoficialmente começa a ser chamado pelos que assistem de perto ao processo de parto que já começou.

Deverá chamar-se Ministério da Segurança Pública, como no passado. Foi criado pelo então presidente Michel Temer assim que ele decretou a intervenção militar no aparelho de segurança do Rio devido a mais um surto de violência urbana. Fundiu-se com o Ministério da Justiça por exigência do ex-juiz Sérgio Moro.

Pois do Ministério da Justiça será tirado para agradar à bancada da bala, um grupo de deputados federais evangélicos do Centrão que cobra a providência desde que Bolsonaro tomou posse. Mas não só por isso. O novo ministério agradará também aos policiais militares e bombeiros que votaram em peso em Bolsonaro.

E ao próprio Bolsonaro, fissurado em informações sigilosas sem as quais, segundo ele, é impossível governar. PMs e bombeiros formam um contingente de 470 mil homens que votaram em peso no presidente e a ele são leais. É mais do que o contingente de homens das Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica.

“Quem fez a campanha (para eleger Bolsonaro) foram os PMs e bombeiros. Na hora de virar chefe, viraram (ministros) os comandantes das Forças Armadas”, disse o líder do PSL no Senado, Major Olimpio (SP), em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Já passou da hora de Bolsonaro retribuir a ajuda.

É fato que as PMs são representadas no governo por um major da reserva, Jorge Oliveira, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, e ao menos 44 oficiais que ocupam cargos de confiança nos demais escalações da administração federal. Mas os representantes das Forças Armadas são em número muito maior.

O nome mais cotado para ministro da Segurança Pública é o do ex-deputado Alberto Fraga (DEM-DF), amigo há mais de 20 anos de Bolsonaro, e que costuma reunir-se com ele em quase todos os fins de semana. Ocorre que os ministros militares não gostam de Fraga justamente por causa de sua intimidade com o presidente.

Se o novo ministério de fato vier à luz, é possível que abrigue, entre outros órgãos, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal que o ministro André Mendonça, da Justiça, não gostaria de perder. Ele se empenha por mantê-las sob seu comando. Receia que a transferência, na prática, esvazie o seu ministério.

Um ministério para cuidar da segurança pública traria outra vantagem para Bolsonaro: acesso às informações do serviço secreto das PMs. Agência Brasileira de Inteligência + Polícia Federal + Polícia Rodoviária Federal + PMs, seria informação direta na veia e um aparelho formidável de intimidação.

Fala de Gilmar Mendes causa indigestão aos comandantes militares

Resposta do ministro da Defesa desagradou aos seus pares

Por ora, pelo menos, não convidem para a mesma mesa os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Se Gilmar não estivesse de férias em Portugal, até que ele o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa, poderiam sentar à mesma mesa.

Azevedo já trabalhou no Supremo Tribunal Federal como assessor do ministro Dias Toffoli por indicação do general Eduardo Villas Boas, então comandante do Exército. De resto, por seu temperamento, Azevedo é mais conciliador, jeitoso. Mas nem ele digeriu bem o que Gilmar andou dizendo no fim de semana.

Em palestra no último sábado, Gilmar disse ao comentar o fato de um general (Eduardo Pazuello) estar como ministro interino da Saúde há mais de 25 dias: “Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável”.

Azevedo respondeu de forma indireta e elegante, citando em detalhes todas as ações das Forças Armadas no combate ao Covid-19. Mas a resposta não agradou aos comandantes militares. Eles e Azevedo chegaram a redigir uma nova nota, essa em termos duros. Mas ainda não a divulgaram. Não se sabe se divulgarão.

Ontem, na sua conta no Twitter, Gilmar publicou duas mensagens. Na primeira, escreveu:

“No aniversário do projeto que leva o nome de Rondon, grande brasileiro notabilizado pela defesa dos povos indígenas, registro meu absoluto respeito e admiração pelas Forças Armadas Brasileiras e a sua fidelidade aos princípios democráticos da Carta de 88.”

Na segunda:

“Não me furto, porém, a criticar a opção de ocupar o Ministério da Saúde predominantemente com militares. A política pública de saúde deve ser pensada e planejada por especialistas, dentro dos marcos constitucionais. Que isso seja revisto, para o bem das FAs e da saúde do Brasil.”


Ricardo Noblat: Se Queiroz foi solto pra evitar o vírus, outros presos também deveriam ser

Salvo engano, a lei é para todos

Sabe, a Justiça tem lá suas esquisitices. E os juízes, um elenco sempre renovado de motivos para, com base em leis existentes e levando-se em conta as circunstâncias, justificarem suas decisões por mais contraditórias que possam soar aos ouvidos dos cidadãos. Esses, no mais das vezes, a tudo assistem petrificados.

Antes de conceder habeas corpus a Fabrício Queiroz, parceiro de Flávio Bolsonaro em desvio de dinheiro público, porque na prisão ele correria o risco de contrair o coronavírus, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio Noronha, pelo mesmo motivo, negou 7 outros pedidos de habeas corpus.

Um deles beneficiaria presos do Ceará que estão no grupo de risco da pandemia. Outro, um homem em São Paulo que teria apontado um canivete a um funcionário de uma padaria e saído do local com um energético que custava R$ 5,25. A polícia não encontrou o canivete. O tal homem não tem antecedentes criminais.

Noronha negou-se também a livrar da cadeia um homem acusado de roubo, outro acusado de receptação, um suspeito de tráfico de drogas, um homem acusado de traficar drogas e outro acusado de estupro. Ora, se Estado tem condições de promover o isolamento de presos do grupo de risco, faltou razão para libertar Queiroz.

A concessão do benefício a Queiroz se deu por meio de uma sentença considerada sigilosa, o que é raro. E o mais bizarro: o benefício alcançou Márcia Aguiar, a mulher de Queiroz, que para escapar da prisão fugiu com a ajuda de milicianos do Rio. Noronha aguarda que ela apareça para cuidar do marido.

Um pedido de habeas corpus coletivo foi impetrado, ontem, no STJ em favor de todas as pessoas que apresentam um risco maior de contrair coronavírus e estejam em prisão preventiva. É assinado por 14 advogados do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos. E diz assim a certa altura:

– Os fundamentos da concessão da ordem [que beneficiou Queiroz] assentam quase que exclusivamente na questão humanitária: o pertencimento a grupo de risco na pandemia de covid-19. […] Negar a presos em idêntica situação a mesma ordem é violar o direito à igualdade.

Como Noronha é o plantonista do STJ porque os demais ministros estão de férias, caberá a ele julgar o pedido. Se preferir, poderá esperar a volta dos seus pares e livrar-se de descascar sozinho o abacaxi. Afinal, sua missão foi cumprida e deixou feliz o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos.


Ricardo Noblat: No ar, a nova versão de Paulo Guedes redescobrindo o Brasil

Uma guinada e tanto…

Em entrevista, ontem à noite, à CNN Brasil, o ministro Paulo s anunciou uma radical mudança na política econômica do governo Jair Bolsonaro. Sai de cena o que chamou de “buraco negro fiscal”. No seu lugar entrarão emprego, renda e saúde. É uma guinada e tanto, a conferir nos próximos meses se será assim mesmo.

“Nossa preocupação essencial, hoje, não é mais o buraco negro fiscal como até um ano atrás, mas sim emprego, renda e saúde”, garantiu Guedes. Segundo ele, a pandemia de covid-19 desnudou a realidade “perversa” de 38 milhões de brasileiros na informalidade que ficaram sem dinheiro para suas necessidades básicas.

Em face disso, o Brasil terá de assistir ao aumento da dívida pública para ajudar empresas e pessoas físicas na fase atual da pandemia. O plano agora é criar uma “rampa de ascensão social” para a população mais vulnerável, de modo que ela consiga se reinserir no mercado de trabalho.

No fim de semana, Guedes foi mordido por um cão de sua família e obrigado a vacinar-se. Mas isso nada teve a ver com o seu novo modo de ver as coisas. Para quem, há três meses, ainda falava em aprovação de “reformas estruturantes” e achava que 5 bilhões de reais bastariam para atravessar a pandemia, é de louvar-se.

A caça ao quinto ministro da Educação em 18 meses de governo

Olavo de Carvalho e os três filhos zero querem ganhar mais essa

A levar-se em conta que o professor Carlos Decotelli foi nomeado e forçado a demitir-se antes de tomar posse, não será exagero dizer que o empresário Renato Feder, convidado por Jair Bolsonaro na última quinta-feira, foi o quarto ministro da Educação em um ano e meio de governo. Um recorde, salvo engano.

Bolsonaro disse a Feder que ele fora escolhido para suceder Decotelli, que por sua vez sucedeu a Abraham Weintraub, que sucedeu a Ricardo Vélez. Aproveitou o telefonema e combinou encontrá-lo em Brasília no início desta semana. Feder, que já fora cogitado para a vaga de Weintraub, comemorou pela segunda vez.

O que prova que ele punha mais fé em Bolsonaro do que Bolsonaro merecia. Para quem diz e repete que no governo é ele que manda e que a Constituição é ele, a nomeação abortada de Feder é mais uma prova em contrário. No mais das vezes, Bolsonaro não sabe o que fazer. Com frequência, é frouxo. Avança e recua.

Afrouxou no caso de Feder porque seus três filhos zero, e mais alguns líderes evangélicos do tipo Sila Malafaia, e mais o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho e sua turma se opuseram à indicação do atual Secretário de Educação do Paraná. Valeram-se das redes sociais para degradá-lo.

Aos olhos dessa gente, Feder não merecia confiança por ser ligado ao governador João Doria (PSDB) e a paulistas muito ricos. De resto, seus pontos de vista sobre o consumo de maconha e o sexo em geral não estavam em linha com o que Bolsonaro pensa. Não bastasse, o Centrão deitaria e rolaria com Feder ministro.

São argumentos de ocasião, alguns dos quais não correspondem à verdade. O que os órfãos de Weintraub querem mesmo é emplacar seu substituto à sua imagem e semelhança. O Ministério da Educação sempre foi coisa deles desde o início do governo, assim como o das Relações Exteriores, assim como o do Meio Ambiente.

Bolsonaro promete que não passará desta semana a escolha do seu quinto ministro da Educação. E enquanto ele se distrai com isso, o país ultrapassará hoje a marca dos 65 mil mortos pelo coronavírus e de 1. 605 mil contaminados.


Ricardo Noblat: A guerra particular de Bolsonaro contra o uso de máscaras

Na contramão do resto do mundo
Devido à pandemia, era para que as pessoas obrigatoriamente usassem máscaras em estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, unidades de ensino e demais locais fechados onde pudessem se aglomerar, segundo lei aprovada pelo Congresso em 9 de junho último.

Não é mais. O presidente Jair Bolsonaro, ao sancionar, ontem, a lei, vetou a obrigatoriedade do uso de máscaras em templos religiosos, nas escolas e no comércio.

A lei previa o pagamento de multa em caso de descumprimento das normas por ela estipuladas. Bolsonaro vetou o pagamento de multa.
Os estabelecimentos comerciais que não oferecessem álcool em gel em locais próximos a suas entradas, elevadores e escadas rolantes poderiam ser multados. Bolsonaro vetou o artigo.

Como vetou outro – o que obrigava estabelecimentos que funcionassem durante a pandemia a fornecer gratuitamente a seus trabalhadores as máscaras de proteção individual.

E não satisfeito, vetou mais outro artigo – o que obrigava órgãos públicos a fornecerem máscaras a funcionários e colaboradores.

Havia na lei um trecho que determinava a remoção, nos estabelecimentos comerciais e nos órgãos públicos, de pessoas sem máscara, sendo que, nesses casos, o equipamento de proteção deveria ser oferecido antes da ordem de saída do local.

Bolsonaro vetou o trecho, mas não ficou só por aí.

O poder público deveria fornecer máscaras às populações mais vulneráveis, dizia a lei. Foi dispensado por Bolsonaro de fornecer. Como foi dispensado também de veicular campanhas publicitárias para incentivar o uso de máscaras durante a pandemia.

Bolsonaro sabe que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que cabe aos Estados estabelecer regras sobre o uso de máscaras em seus territórios. E daí? Pouco liga.

No que depender dele, as pessoas ficarão desprotegidas e ao alcance mais fácil da gripezinha. Bolsonaro continua convencido de que o coronavírus só será detido depois que contaminar 70% da população. De onde ele tirou isso? Ninguém sabe.

Em breve, deputados e senadores decidirão se aceitam ou se derrubam os vetos de Bolsonaro. O mau exemplo dado por ele está sendo copiado por grande parcela dos brasileiros na contramão do resto do mundo.


Ricardo Noblat: Bolsonaro enfrenta uma crise de abstinência

O aperto de uma camisa de força

Acendeu a luz amarela no entorno do presidente Jair Bolsonaro. Ele está mais nervoso do que de costume, mais irritado, tanto ou mais explosivo do que sempre foi. Contraditoriamente, às vezes permanece calado quando dele se esperava uma palavra ou reação. Se antes já não dormia bem, agora dorme menos ainda. Por vezes, parece deprimido, desanimado.

São sintomas que caracterizam a síndrome de abstinência, uma vez interrompido de sopetão o consumo de determinado remédio ou droga do qual dependia o humor do paciente. No caso de Bolsonaro, sua droga era o palavrório. Ou melhor: a liberdade para dizer o que quisesse sem medir as consequências. Estava também acostumado com plateias à espera de ouvi-lo.

De repente, tudo isso lhe foi cortado. É como se tivesse perdido ao mesmo tempo dois direitos que sempre lhe foram especialmente caros: o de expressar sem medo o que pensava; e o de ir e vir livremente. Devotos no cercadinho à entrada do Palácio da Alvorada não há mais. Aparições de surpresa no comércio de Brasília, tampouco. Manifestações políticas de rua, só em sonhos.

E até quando ele suportará viver submetido a tão draconianas regras? Não que elas lhe tenham sido impostas sem a sua concordância. Sim, era necessário que parasse de esticar a corda que ameaçava romper-se – afinal, depois da saída de Mandetta e de Moro do governo e da aposta errada na “gripezinha”, Queiroz foi preso e apertou o cerco judicial aos seus três filhos zeros.

Bolsonaro sente-se como se estivesse metido numa camisa de força, e já disse. Ministros militares, atentos a sinais de perigo, registraram os primeiros e os transmitiram aos seus antigos chefes. Em pelo menos um ministério, às escondidas do seu titular, corre um bolão sobre o número de dias que Bolsonaro resistirá à tentação de atravessar a rua para pisar numa casca de banana.

Façam suas apostas.

Uma mão lava a outra e as duas podem ficar sujas

Ibaneis chama o Covid-19 de gripezinha e quer dinheiro

Uma coisa é uma coisa, outra é outra. Complicado muitas vezes é quando uma coisa é o oposto da outra e você é obrigado a se explicar. É a situação que vive o governador Ibaneis Rocha (PMDB) depois de ter decretado, na última segunda-feira, Estado de Calamidade no Distrito Federal, e anunciado no dia seguinte a reabertura de todas as atividades econômicas apesar da pandemia.

Ibaneis foi o primeiro governador do país a adotar medidas de isolamento para limitar a circulação de pessoas. No dia 28 de fevereiro, antes mesmo da confirmação do primeiro caso da doença, decretou emergência nos seus domínios. No dia 11 de março, suspendeu aulas e proibiu eventos. Foi elogiado por isso pelas autoridades médicas. O que deu nele agora?

O Estado de Calamidade facilita a obtenção de verbas que dependem do Ministério da Saúde. Ibaneis jantou com o general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, e defendeu sua efetivação no cargo. “Quem entende de guerra é general, e o que estamos travando é uma guerra contra o coronavírus”, afirmou. Quanto a acabar com o isolamento social e logo agora…

No final da semana passada, médicos advertiram que haveria um novo crescimento da doença no Distrito Federal e que mais de 90% dos leitos de UTIs da rede pública estavam ocupados. Sugeriram a Ibaneis decretar o fechamento total das atividades econômicas. O governador negou que houvesse risco de colapso do atendimento médico. O colapso aconteceu na terça-feira.

Sob a pressão do governo federal e de empresários para que ajudasse a salvar a economia, Ibaneis finalmente cedeu, jogando a culpa na população que teria desobedecido à sua ordem de ficar em casa. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, chegou a chamar o Covid-19 de “gripezinha” que, como tal, deveria ter sido tratada desde o início. E avisou aos seus eventuais críticos:

– Não adianta querer colocar nas minhas costas o sofrimento dos outros.

De resto, Ibaneis sente-se em dívida com o presidente porque mandou a polícia fechar acampamentos de bolsonaristas espalhados pelo Distrito Federal e proibiu manifestações de natureza antidemocrática na Esplanada dos Ministérios. De Bolsonaro, ele aguarda o reconhecimento, se possível em dinheiro, por ter procedido até aqui com a melhor das intenções.


Ricardo Noblat: O ministro que entrou no governo vestido e saiu nu

Decotelli, a fake news em pessoa

Deve-se ao governo de Jair Bolsonaro, o presidente acidental, a criação de uma nova categoria de servidores públicos – a “Quase”. O primeiro a inaugurá-la foi Carlos Decotelli, o quase ministro da Educação. Nomeado há 5 dias, caiu antes de ser empossado.

Decotelli entrou no governo como ex-oficial da Marinha, professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Saiu sem nada. Nu.

Um dia antes de ser forçado a pedir demissão, ele havia reescrito seu currículo pela quinta vez – desta, para acrescentar o título de ministro. O que fazer agora? Reescreve de novo ou deixa como está? Afinal, sua nomeação foi publicada no Diário Oficial.

Bolsonaro sentiu-se enganado por Decotelli e não disfarçou seu aborrecimento ao recebê-lo, ontem, no Palácio do Planalto. A audiência de despedida não durou 15 minutos. Bolsonaro sequer leu a carta de demissão para analisar se era de fato autêntica.

O encontro foi testemunhado por um só ministro – o general Braga Neto, da Casa Civil. Os demais generais com gabinetes ali e que patrocinaram a escolha de Decotelli, estavam ocupados à procura do quarto ministro da Educação em um ano e meio.

Um deles, Augusto Heleno, do Gabinete da Segurança Institucional, postou uma mensagem no Twitter onde disse que nada teve a ver com o fato de Decotelli apresentar-se como quem não era. Não lhe cabe checar currículo de candidatos a ministro.

A descoberta de que Decotelli era uma fake news em pessoa enfraquece, por ora, a ala militar do governo em sua marcha sobre cargos disponíveis na administração. As viúvas do ex-ministro Abraham Weintraub querem de volta o ministério que era delas.

Em sua nova versão de presidente moderado, Bolsonaro mandou logo dizer que o sucessor de Weintraub será um técnico, especialista em educação e, se possível, repleto de títulos… De preferência, verificados antes do anúncio.

Palácio do Planalto serve de cenário à despedida de um cachorro

Augusto Bolsonaro, ou melhor Zeus, volta para casa
Por 12 dias, Zeus, um cão da raça pastor-maremano, chamou-se Augusto Bolsonaro e desfrutou do raro privilégio de poder conviver na intimidade com a família presidencial brasileira. Foi visto nos fundos do Palácio do Planalto à procura de uma cadela no cio. E imediatamente adotado por Michelle, a primeira-dama.

Passou a morar no endereço mais exclusivo de Brasília – o Palácio da Alvorada. Ganhou uma página no Instagram. Posou para fotos com uma coleira que ostentava a bandeira nacional. E brilhou nas redes sociais passeando ao lado do deputado Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do presidente. Sua repentina fama foi seu mal.

Apareceu o dono de Zeus, um morador da Vila Planalto, a pouca distância do local em que ele fora achado. E pela primeira vez na história do Palácio do Planalto, sede do governo, armou-se uma cerimônia para marcar a despedida de um cachorro. O presidente compareceu sorridente. A primeira-dama chorou.

Zeus perdeu o nome recém-adquirido e foi devolvido ao dono. A propósito: quando os Bolsonaro devolverão o país aos seus verdadeiros donos?


Cristovam Buarque: Um vírus duradouro

Mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty

Ao longo de nossa história, o Itamaraty é um exemplo de sucesso ininterrupto, até mesmo durante regimes autoritários. Na ditadura Vargas, em plena II Guerra, o Itamaraty desempenhou suas funções com seriedade e competência. Alguns de nossos diplomatas são considerados heróis por terem salvado vidas de judeus. Com Oswaldo Aranha, nossa política externa foi determinante na criação da ONU. Apesar da pressão contrária dos Estados Unidos, fomos o primeiro país a reconhecer o governo independente e marxista de Angola; fizemos acordo nuclear com a Alemanha; reconhecemos o governo Comunista da China. Não devemos esquecer a ruptura com Cuba em 1964, mas com exceção da demissão arbitrária de alguns diplomatas, é preciso reconhecer que os 21 anos de ditadura não enfraqueceram nossas relações exteriores, nem desestruturaram o Itamaraty.

A democracia a partir de 1958 foi o grande momento de nossa política externa. O restabelecimento de relações com Cuba foi um dos primeiros atos do governo democrático de Sarney. Ele construiu a aliança com a Argentina e, junto com Raúl Alfonsín e Julio Sanguinetti, fez o Mercosul. Collor colocou o Brasil na liderança mundial da defesa do meio ambiente, quando isto ainda não era um tema palpitante. Fernando Henrique e Lula solidificaram nossa presença no mundo. O primeiro formou um time com Lampreia; o segundo formou quase uma instituição com Celso Amorim, a Lulamorim, no cenário mundial. Os dois presidentes e seus ministros colocaram a presença brasileira no ponto mais alto de nossa história. O primeiro foi tratado no nível dos presidentes de países ricos, o segundo conseguiu ser o líder dos presidentes dos países pobres, e com isto ganhar o respeito dos grandes do mundo. O primeiro criou a Bolsa Escola, reconhecida na autobiografia de Clinton, onde é citada em português em todos os idiomas em que foi traduzida; o segundo, com o nome de Bolsa Família, mostrou ao mundo uma política social inovadora. Nada disto seria possível sem a história de nossa política externa e sem o Instituto Rio Branco formando nossos diplomatas.

Fui professor e conferencista em diversas universidades, no Brasil e no exterior, em nenhuma tive um conjunto de alunos com o brilhantismo, a competência e o espírito público dos que encontrei e com os quais convivi naqueles dois anos no Instituto Rio Branco. Tenho orgulho de dizer que o atual ministro não foi meu aluno. Seu desempenho é uma tragédia que vai demorar mais do que a provocada pelo corona vírus. Está quebrando nossa fama e nosso prestígio de neutralidade, independência, solidariedade, eficiência e progressismo. O Itamaraty está contaminado por um vírus cuja consequência nefasta será mais duradoura porque ele infeccionou o Brasil, não apenas os brasileiros.

Ele está desarticulando a máquina do Ministério das Relações, fazendo o Brasil virar motivo de chacota no cenário internacional e na comunidade diplomática do mundo. Além de nos tirar das tradicionais posições de independência e conciliação, nos afasta das posições sintonizadas com os rumos da história, na ecologia, nos direitos humanos e na luta contra a tragédia da pobreza. Suas posições desastrosas pela oposição e preconceito em relação à China, Cuba, Argentina, estão levando ao isolamento e fazendo do Brasil um pária. Em relação à China, é além disto uma estupidez pro tudo que este país representa no cenário mundial e nas relações comerciais com o Brasil. Só um inimigo do Brasil seria capaz de provocar tantos problemas para o país.

Em fevereiro, ouvi de um diplomata estrangeiro que ele sentia mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty de Bolsonaro. Depois de respirar, ele disse: “E vocês já foram os melhores do mundo”. E lembrou os nomes dos chanceleres nos últimos anos: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe Lampreia, Celso Amorim, Antônio Patriota, José Serra, Aloysio Nunes.

O trabalho mais difícil no mundo hoje, depois de profissional da saúde, é ser diplomata brasileiro servindo no exterior. E já foi um dos trabalhos mais respeitados e admirados.

O grave é que o estrago feito pela incompetência da diplomacia levará décadas para ser recuperado. Este é um vírus duradouro.

Um dia, os defensores de Bolsonaro poderão alegar que no dia 1º de janeiro de 2019, educação, saúde, economia, finanças não estavam bem, mas terão de reconhecer que o desastre nas relações exteriores foi um crime de Bolsonaro contra o Brasil, sob a incompetência do chanceler que ele escolheu e sob a impotência de líderes civis.

*Cristovam foi senador e governador


Ricardo Noblat: A prisão de Queiroz pode ter feito muito bem a Bolsonaro

Um governo aparentemente normal até quando?

Um dia desses, pressionado por dívidas que atingiam a casa de 3 milhões de reais, Olavo de Carvalho, o guru da família Bolsonaro, queixou-se de ter sido abandonado pelos amigos. E escreveu na sua conta no Twitter que o presidente Jair Bolsonaro deveria enfiar naquele lugar a medalha que lhe conferiu no ano passado, durante viagem aos Estados Unidos. Dispensava a honraria.

Esse pode não ter sido o propósito de Bolsonaro, mas ao escolher Carlos Alberto Decotelli para ministro da Educação, ele enfiou goela abaixo do autoproclamado filósofo em apuros econômicos um nome que lhe é estranho. E logo no lugar que Olavo havia emplacado os dois últimos e desastrosos ministros – o colombiano Ricardo Vélez e o fugitivo Abraham Weintraub, de triste memória.

Ex-oficial da Marinha, professor da área de finanças na Fundação Getúlio Vargas, Dacotelli era o presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) quando o órgão publicou um edital de R$ 3 bilhões que foi suspenso pela Controladoria-Geral da União (CGU) por suspeitas de fraudes. História estranha, essa, que ninguém esclareceu até hoje.

O pregão previa a compra de computadores, notebooks, projetores e lousas digitais para alunos das redes públicas de ensino estaduais e municipais. Relatório de auditoria da CGU apontou que a licitação estimou um número desnecessário de computadores. Só para a Escola Municipal Laura Queiroz, em Minas, seriam 30.030 laptops educacionais. Detalhe: a escola só tinha 255 alunos.

O edital foi publicado no dia 21 de agosto do ano passado. Decotelli deixou o cargo uma semana depois. Foi substituído pelo advogado Rodrigo Sergio Dias, indicado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O episódio não manchou a biografia de Decotelli aos olhos dos ministros militares do governo. E foram eles que convenceram Bolsonaro a promovê-lo a ministro.

Duro golpe para a chamada “ala ideológica” do governo, como se fosse possível faltar ideologia às demais alas. Nas redes sociais, inspirados por Olavo e sempre obedientes a ordem de comando do vereador Carlos Bolsonaro, os bolsonaristas de raiz, os mais sinceros, são justamente os que defendem o presidente, faça o que ele o que fizer. Devem estar se sentindo traídos.

Mas não só por isso. Desde a reunião ministerial de abril último, célebre pelos rolos que produziu, Bolsonaro começou a marchar para trás com medo de não completar o mandato. O medo bateu no teto com a prisão de Fabrício Queiroz, parceiro do seu filho Flávio em negócios suspeitos. Finalmente, parece ter-se rendido aos conselhos dos generais para não criar mais turbulências.

Abandonou seus devotos no cercadinho do Palácio da Alvorada. Viajou ao Rio para o enterro de um paraquedista no domingo em que eles foram às ruas de Brasília para defender uma nova intervenção militar. Acelerou a entrega de cargos ao Centrão e a liberação de dinheiro para prefeituras controladas por deputados e senadores encantados com tanta generosidade.

Nunca mais acenou com um golpe. Deu para exaltar a harmonia entre os Poderes. E, na sua live de ontem no Facebook, lembrou os mortos pela pandemia pedindo ao sanfoneiro e presidente da Embratur, Gilson Machado, que cantasse a “Ave Maria”. É verdade que, no fim da apresentação, voltou a criticar as medidas de isolamento social. Ninguém é perfeito.

Bolsonaro reencarnado como presidente moderado antecipou-se ao Congresso e resolveu estender por mais três meses o auxílio emergencial para os brasileiros mais pobres. E concordou com a passagem para reserva do general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo. Foi mais uma exigência dos generais da ativa que preferem manter distância da política.

Em 1964, quando o regime militar ainda fingia não ser uma ditadura, o jornalista Millôr Fernandes escreveu:

– Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que as pessoas pensem por sua própria cabeça… corremos o risco de em breve cairmos numa democracia.”

Pois é. Se Bolsonaro não atacar mais a imprensa, se não ameaçar mais o Congresso e nem marchar sobre o prédio do Supremo Tribunal Federal, se desistir de enfraquecer a democracia e, principalmente, se mantiver a boca fechada… corremos o risco de em breve cairmos num governo normal.

Duvida? Eu também.

Quando a Justiça para de fingir que é cega

A vitória de Flávio Bolsonaro
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, uma vez acionado como será, corrija a decisão esdrúxula e suspeita da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio que, por 2 votos contra 1, recriou o foro privilegiado para quem o havia perdido – no caso, o atual senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um do presidente da República.

Mais do que um atentado à inteligência, a decisão foi uma afronta ao Supremo que em 1999 estabeleceu que foro privilegiado só vale em caso de crime cometido no exercício do cargo. Investigado por desvio de dinheiro público, à época do suposto crime Flávio era deputado estadual. Deixou de ser no final do ano passado.

“Não há a menor dúvida que a decisão do Tribunal de Justiça do Rio é diversa da decisão do Supremo”, disse o ministro Marco Aurélio Mello. “Isso é o Brasil! É o faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso. Cada cabeça uma sentença”. Ouvidos por este blog, mais dois ministros foram na mesma linha de Mello.

O autor do voto que transferiu da 1ª para a 2ª instância da Justiça o inquérito que envolve Flávio e Fabrício Queiroz foi o desembargador Paulo Rangel. Em livro que escreveu, Rangel desancou uma lei de 2002 que garantia o direito ao foro a autoridades que haviam deixado seus cargos. Contraditório? E daí?

Daí que seu voto foi decisivo para tirar do caso o juiz Flávio Itabaiana, da 1ª instância, que quebrou o sigilo fiscal do senador enrolado e mandou prender Queiroz. Itabaiana tem justa fama de juiz que come abelhas, de preferência as africanas. As decisões que ele tomou poderão ser anuladas por órgão especial do tribunal.

O Tribunal de Justiça do Rio é famoso, digamos assim, por sua generosidade com políticos de grosso calibre e pessoas afins. Não é o único. Em julgamento que durou 4 minutos e meio, o do Distrito Federal, anteontem, absolveu a empresária Maria Cristina Boner, condenada por pagamento de propina para obtenção de contratos.

Maria Cristina vem a ser a ex-mulher de Frederick Wassef. Que vem a ser o ex-advogado de Bolsonaro e de Flávio na casa do qual Queiroz foi preso. Wassef é chamado de homem-bomba por ministros de Bolsonaro. Eles temem que Wassef possa um dia contar tudo o que sabe sobre a família presidencial brasileira.


Ricardo Noblat: Governo Bolsonaro desce a escada saltando degraus

Mourão e o terno da posse

Ensinou o ex-presidente José Sarney quando há muitos anos lhe perguntei a respeito: “O primeiro compromisso de quem assume a presidência da República no Brasil é o de assegurar condições para completar seu mandato”. Cito a resposta de memória.

Leitor voraz de livros de história, com uma longa carreira como político, Sarney sabia que não seria fácil completar o mandato que herdara de Tancredo Neves, o presidente eleito em 1985 que morreu sem tomar posse depois de ser operado sete vezes.

Assistira de longe a ascensão de Getúlio Vargas em 1930, sua queda em 1945, a volta em 1950 e o suicídio em 1954; de perto, as rebeliões militares que ameaçaram o governo de Juscelino; a renúncia de Jânio em 1961; e a deposição de Goulart em 1964.

Era para Sarney ter governado por seis anos. A Constituinte de 1988 subtraiu-lhe um ano de mandato. Governaria só por quatro, não fosse o apoio que recebeu dos militares para que governasse cinco anos. Foi sucedido por Fernando Collor, deposto em 1992.

Aos 90 anos de idade, lúcido e em boa forma, acompanha a agonia do presidente Jair Bolsonaro que, a essa altura, se dará por feliz se conseguir governar pelo menos até 2022. Sarney, mas não só ele, acha que Bolsonaro já deu adeus ao sonho de se reeleger.

Bolsonaro começou a cair depois da reunião ministerial de 22 de abril quando anunciou sua decisão de intervir na Polícia Federal e perdeu a companhia do ministro Sérgio Moro, da Justiça. Generais que o cercam avisaram: mantenha Moro no governo.

Como antes o preveniram: em meio a uma pandemia que você faz questão de chamar de gripezinha, não é hora de demitir o ministro da Saúde. Deixe a pandemia passar para substitui-lo mais tarde. Bolsonaro demitiu Mandetta e provocou a saída do seu sucessor.

A fatídica reunião ministerial custou também a cabeça do ministro da Educação pelo o que ele disse sobre os ministros do Supremo Tribunal Federal, e acelerou o processo de enfraquecimento dos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores.

Mas a maior vítima da reunião foi o próprio Bolsonaro, exposto ao país em vídeo tal como é na intimidade. De lá para cá, ele desce a escada saltando, às vezes, mais de um degrau. Se antes emparedava os demais poderes, o emparedado, agora, é ele.

A prisão de Fabrício Queiroz, cujo paradeiro Bolsonaro conhecia, arrombou a porta para uma denúncia futura do Ministério Público sobre a cumplicidade da família presidencial com milicianos e o crime organizado no Rio. Haverá cenário pior para Bolsonaro?

Antes da metade do seu mandato, ele virou refém de um fugitivo encontrado, da família do fugitivo, de ex-funcionários do filho Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, da memória do celular do ex-ministro Gustavo Bebbiano e de um advogado pilhado.

É refém dos inquéritos que correm no Supremo Tribunal Federal sobre a máquina bolsonarista de produção de notícias falsas e o financiamento de manifestações de rua contra a democracia. Sem dispor de um partido para defendê-lo, é refém do Centrão.

Governar jamais foi seu forte. Imaginar que, de repente, será capaz de liderar o país nos meses que faltam para que a pandemia se esgote e a recessão econômica se agrave, é tão provável como ganhar sozinho o maior prêmio da Mega-Sena duas vezes seguidas.

O vice-presidente Hamilton Mourão não parecerá precipitado se começar a tirar desde já as medidas para o terno de posse. Tampouco desleal, longe disso. Vice não é nada até que passa a ser tudo. Está na Constituição que ele jurou respeitar.

Ponha a máscara, capitão!

Contra o vírus e a vergonha
A partir de hoje, a não ser que prefira pagar uma multa diária de 2 mil reais, o presidente Jair Bolsonaro estará obrigado a usar a máscara contra o Covid-19 quando circular em espaços públicos e estabelecimentos, comerciais, industriais e de serviços no Distrito Federal. Foi o que decidiu a Justiça Federal de Brasília.

Desde abril passado que o governo do Distrito Federal baixou um decreto onde disse que deveria ser assim. Bolsonaro simplesmente ignorou-o. O uso da máscara estaria na contramão do seu entendimento de que a pandemia não passa de uma gripezinha, e mancharia a imagem que vende de superatleta.

Bolsonaro ordenou à Advocacia Geral da União que recorra da decisão da Justiça. Ele não quer perder a condição de a maior autoridade do país a desafiar o vírus e a manter-se à margem da lei. Quando nada deveria render-se à máscara pela vergonha que passará quando tiver de ser ouvido pela Polícia Federal.

Em breve, como investigado, ele terá que responder a perguntas no inquérito que apura se ele tentou ou não intervir na Polícia Federal, o que provocou a saída do governo do ex-ministro Sérgio Moro. Na reunião ministerial de abril passado, Bolsonaro, furioso, disse em uma de suas falas:

– Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio oficialmente e não consegui. Eu não vou esperar foder minha família, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vou trocar. Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe, troca o ministro.

O responsável pela segurança pessoal de Bolsonaro no Rio foi promovido. Certamente não por falha. O ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, informou ontem que Bolsonaro nunca teve “óbices ou embaraços” para trocar nomes de sua segurança pessoal no Rio ou em outro local.

Melhor pôr a máscara!


Ricardo Noblat: Dez motivos para culpar Bolsonaro pelas mortes da Covid-19

Por que Bolsonaro não compareceu até hoje ao velório de uma única vítima do coronavírus?

No dia em que o Brasil superou a triste marca de 50.650 mortos e mais de 1 milhão de infectados pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro voou de Brasília ao Rio para participar do velório de um militar paraquedista. À tropa ali reunida, Bolsonaro disse que foi grande amigo do general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército durante o governo José Sarney.

Para variar, mentiu. Está em livros de história que o general fez tudo para punir Bolsonaro, acusado de ter planejado atentados à bomba a quarteis quando reivindicava melhores salários para soldados como ele. Em troca do título de capitão, Bolsonaro acabou concordando em ser afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, como consta de sua folha corrida.

Por que Bolsonaro não compareceu até hoje ao velório de uma única vítima do coronavírus? Não precisaria deslocar-se para outra cidade. Não se passa um dia sem que novos mortos sejam sepultados em cemitérios de Brasília e das cidades do seu entorno. No Paranoá, a pouca distância do Palácio do Planalto, de cada 100 pessoas testadas, 30 têm o vírus. É onde mais se morre.

O que fez Bolsonaro até agora desde que o primeiro brasileiro perdeu a vida para o Covid-19 no final de março último?

  1. Por ignorância ou, pior, maldade, subestimou a doença como se ela não passasse de uma “gripezinha.
  2. Por uma ou a outra razão, acreditou que a pandemia só seria contida depois que contaminasse 70% da população. Haveria mortes? É claro que sim, mas e daí? A morte é o destino de todos, como observou um dia.
  3. Por ignorância ou interesse monetário, apostou contra todas as evidências científicas que a cloroquina deteria o avanço do vírus, salvando vidas se receitada desde o início da doença. O Exército produziu a droga em larga escala, e ainda produz.
  4. Recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra as medidas de isolamento social baixadas por governadores e prefeitos a conselho da Organização Mundial da Saúde. Como o tribunal as manteve, passou a sabotá-las ostensivamente.
  5. Demitiu o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, em meio à pandemia. Provocou a demissão do sucessor dele, o médico Nelson Teich. Promoveu um general que só entende de logística a ministro interino da Saúde. Orientou-o a esconder o número de mortos. O general transformou o ministério em um cabide de emprego para militares da ativa e da reserva.
  6. Foi sob a pressão de Bolsonaro que alguns governadores e prefeitos afrouxaram a regra do isolamento social. Vidas importam, mas a economia importa mais. Em vários lugares onde o comércio reabriu, aumentou o número de mortos e de infectados. Tem dono de shopping que amarga prejuízo por tê-lo reaberto.

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  1. Se tivesse dependido somente dele e do ministro Paulo Guedes, da Economia, o auxílio aos brasileiros mais pobres seria de 200 reais por dois ou três meses. É de 600 reais graças ao Congresso.
  2. Bolsonaro deu o mau exemplo de circular em Brasília sem usar máscara. Contrariou as determinações médicas de não aproximar-se de pessoas desprotegidas e de não tocá-las. Uma vez, ao pé da rampa do Palácio do Planalto, tocou em 272.
  3. Politizou o combate ao coronavírus. Os momentos mais tensos do seu governo até aqui foram provocados por ele para tirar a atenção sobre a doença. Entrou em conflito com os demais Poderes e quase desatou uma grave crise institucional.
  4. Agora que o primeiro pico da doença se aproxima, está às voltas com a prisão de Fabrício Queiroz, operador financeiro do seu filho Flávio, acusado de desvio de dinheiro público. Entrega cargos do governo ao Centrão para driblar o risco de ser derrubado.

Haverá maior sócio do coronavírus do que Bolsonaro?