Blog do Noblat
Ricardo Noblat: Mais uma bravata de quem não governa o país, só é candidato
Veto de mentirinha à vacina chinesa
Boa notícia: o presidente Bolsonaro passou a acreditar na Ciência. Se até outro dia recomendava o uso da cloroquina para os infectados pela Covid-19, agora diz que a vacina chinesa contra o mal não será aplicada porque carece de aprovação científica.
Ou ele fala sério ou dança em cima dos cadáveres de 156 mil brasileiros vítimas do vírus até aqui. Como Bolsonaro é um homem honrado, deve falar sério porque jamais trairia os que o elegeram e poderão reelegê-lo daqui a dois anos.
A situação é tão ruim para os que gostariam de vê-lo derrotado que a oposição comemora a aprovação pelo Senado do novo ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo presidente, e sai em socorro do ministro da Saúde, ameaçado pelo presidente.
A oposição sente saudade dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, forçados por Bolsonaro a desembarcarem do governo. E a essa altura, seria capaz até de votar para presidente no general Santos Cruz, escorraçado do governo pelos três zeros.
Que falta faz Gustavo Bebianno, um dos mais fanáticos adoradores de Bolsonaro, o primeiro ministro a ser demitido por ele. Desgostoso, morreu. Se pelo menos fosse possível resgatar o conteúdo do seu celular desaparecido, lamenta a oposição…
Bolsonaro autorizou o general Eduardo Pazuello a anunciar, como ele fez anteontem, que “a vacina do Butantan será a vacina brasileira. Com isso, o registro vem pela Anvisa e não pela Anvisa chinesa. E isso nos dá mais segurança e margem de manobra”.
Mas ontem cedo, como costuma fazer diariamente, ao entrar nas redes sociais para avaliar o humor dos seus seguidores, deparou-se com a reação negativa deles à vacina chinesa. Então disse que também se sentia traído e que a vacina não será comprada.
O que se passou ao longo do dia foi o de sempre: alguns assessores presidenciais queriam ver Pazuello ardendo em praça pública, a maioria tentando apagar o fogo. À noite, mais calmo, Bolsonaro ditou sua mais recente posição em entrevista à CNN:
– O ministro Pazuello não vai sair do governo. O que aconteceu foi um mal-entendido, mas isso não vai envenenar o nosso ambiente. Pazuello é meu amigo particular e ele é um dos melhores ministros da Saúde que o Brasil já teve.
Reafirmou, é claro, que a decisão de não comprar a vacina chinesa é “definitiva porque não há vacina pronta.” Deixou aberta a porta para comprá-la quando estiver pronta e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária der seu ok. Nenhuma vacina está pronta.
Mais uma fanfarronice de um presidente que não governa e que só é candidato a desgovernar o país por mais quatro anos.
Ricardo Noblat: Na reta final, Trump une-se aos democratas contra os republicanos
Coisas da política americana
Imagine a seguinte situação. A poucos dias do segundo turno da eleição de 2022, ameaçado de não se reeleger, Jair Bolsonaro, aconselhado por assessores, concorda em negociar com a oposição um pacote de socorro aos brasileiros que mais sofreram com os efeitos da pandemia do coronavírus.
A oposição no Congresso quer um pacote o mais generoso possível. Bolsonaro está de acordo porque seria uma chance de não ser derrotado. Mas, o conjunto de partidos que apoia o governo é contra. Alega que suas bases eleitorais, predominantemente conservadoras, acham o pacote um exagero. Questão de ideologia.
Essa é a situação que vive neste momento o presidente Donald Trump. Ele e o Partido Democrata negociam um pacote que poderá injetar na economia algo como pouco mais de dois trilhões de dólares além do que já foi gasto até aqui com os americanos mais afetados pelo Covid-19. O Partido Republicano discorda.
Segundo o jornal The New York Times, o senador Mitch McConnell, líder dos republicanos, disse ontem a seus colegas que havia alertado a Casa Branca para não chegar a um acordo pré-eleitoral com a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, a democrata Nancy Pelosi.
Pelosi e o Secretário do Tesouro, autorizado por Trump, já ultrapassaram a casa dos 1,8 trilhão de dólares na discussão sobre o tamanho da ajuda. Trump quer mais. McConnell garante que o máximo que os republicanos poderiam tolerar seria um pacote de 500 bilhões. Sem os votos dos democratas, não haverá pacote.
Em outra frente, Trump pressiona o Secretário de Justiça William Barr a abrir uma investigação sobre um novo e suposto escândalo que envolveria Joe Biden, candidato do Partido Democrata a presidente, e o laptop de seu filho Hunter. “Temos de fazer o Secretário de Justiça agir”, disse Trump à Fox News.
Um e-mail encontrado em um laptop que Hunter Biden teria deixado em uma assistência técnica daria conta que ele marcara uma reunião entre seu pai, à época vice-presidente de Barack Obama, e um funcionário da Burisma, empresa ucraniana de energia que pagava para ter Hunter no seu conselho de acionistas.
O jornal New York Post publicou a história cuja fonte original é Rudy Giuliani, advogado de Trump. O FBI investiga se o material entregue ao jornal está ligado a um esforço de desinformação russo. Biden afirma que o encontro nunca ocorreu. Trump abordará o assunto no debate de amanhã com Biden, o último.
Para Trump, na reta final da campanha, vale tudo para dar a volta por cima. As pesquisas de intenção de voto apontam Biden como favorito.
Ricardo Noblat: A saída imoral para salvar o senador do dinheiro na cueca
E não atrapalhar a reeleição de Alcolumbre
O senador Jayme Campos (MT), presidente do Conselho de ética do Senado, sugeriu, ontem, que seu colega Chico Rodrigues (RR), flagrado com 33 mil reais escondidos na cueca, metade entre as nádegas, peça licença do mandato por 120 dias.
A sugestão tem duas razões de ser. A primeira: deixar que o caso esfrie para que Rodrigues salve o mandato. A segunda: tirar Rodrigues de circulação para evitar que seu caso atrapalhe a reeleição para presidente do Senado de Davi Alcolumbre (AP).
Campos, Rodrigues e Alcolumbre são do mesmo partido, o DEM. A eleição do próximo presidente do Senado será na primeira semana de fevereiro de 2021. Se Alcolumbre conseguir driblar a Constituição, se reelegerá com Rodrigues ainda de licença.
Sabe quanto custa um senador por mês? Salário bruto: 33.763 reais. Mais: de 30 mil a 45 mil reais a título de cota para o exercício da atividade parlamentar. Ou seja: para que trabalhe. Mais: apartamento funcional ou auxílio moradia de 5.500.
Chega? Não. Tem mais: ressarcimento integral de todas as despesas médicas, não só as dele, mas do cônjuge e dependentes com até 21 anos de idade, ou até 24 se forem universitários. E mais: 80 mil de verba para gastos com pessoal.
Em resumo: um senador custa mensalmente aos cofres públicos cerca de 170 mil reais. O dinheiro dos impostos pagos por cada um de nós alimenta os cofres públicos. Você concorda que Rodrigues ganhe 680 mil por quatro meses de pernas para o ar?
Por que o Conselho de Ética não se reúne à distância e cassa o mandato de Rodrigues? O Senado não se reúne à distância e aprova até mudanças na Constituição?
Ricardo Noblat: Supremo confirmará a decisão de Fux que suspendeu a de Mello
Traficante solto fugiu para o exterior
O autor da lambança foi o Congresso que, no ano passado, ao aprovar o pacote anticrime que o governo lhe remeteu, deu nova redação ao artigo 316 do Código de Processo Penal incluindo a exigência da revisão de prisão preventiva a cada 90 dias. Antes não havia prazo para isso.
O coautor da lambança foi o presidente Jair Bolsonaro. À época, a Procuradoria-Geral da República pediu à Casa Civil da Presidência o veto ao artigo em sua nova redação. Alertou para a impossibilidade da revisão em prazo tão curto. O então ministro da Justiça, Sérgio Moro, também pediu que Bolsonaro vetasse.
Mas o presidente sancionou o pacote tal como o recebeu do Congresso. No mesmo dia, nas redes sociais, justificou-se: “Na elaboração de leis quem dá a última palavra sempre é o Congresso. Não posso sempre dizer não ao Parlamento, pois estaria fechando as portas para qualquer entendimento”.
Conversa fiada. Não poucas vezes, Bolsonaro vetou no todo ou em parte projetos aprovados pelo Congresso. Tem esse direito. E não poucas vezes, o Congresso derrubou seus vetos. A última palavra, de fato, é do Congresso. Que em muitas ocasiões se conforma e mantém os vetos do presidente. É assim que as coisas funcionam.
Ao aceitar o habeas corpus para soltar André do Rap, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que o traficante, com duas condenações, estava preso, sem culpa formada, desde o fim de 2019. E que de lá para cá não houve a revisão de sua prisão preventiva como manda a lei.
Mello leu a lei ao pé da letra, como costuma fazer. Há uma corrente de juízes que acha que deve ser assim. Mas há outra que acha que cabe ao juiz interpretar a lei e aplicá-la levando em conta as circunstâncias, não só o que ela diz. Foi por isso que o ministro Luiz Fux, presidente do tribunal, suspendeu a decisão de Mello.
O plenário do Supremo, por larga maioria de votos, confirmará a decisão de Fux, revogando a de Mello. É a tendência. Mello não esquentará a cabeça porque perderá outra vez. Com frequência, vota na contramão dos demais ministros e não esconde o prazer que sente com isso. Mello se aposenta em julho do próximo ano.
Até lá, terá outras oportunidades de fazer o que mais gosta – marcar posição, causando polêmica e atraindo os holofotes para si. Dele, no passado remoto, um mordaz ex-ministro do Supremo já disse que é um jurista notável e com uma grande vantagem: confia cegamente na sensatez dos seus colegas de tribunal.
O “Efeito Bolsonaro” aumentou o número de casos da Covid-19
Onde ele foi mais votado, a pandemia foi pior
Bolsonaro jamais ameaçou beijar os seus devotos, como fez o presidente Donald Trump em comício, ontem à noite, na Flórida. “Eu me sinto tão poderoso”, disse Trump, sem máscara, depois de ter sido infectado pelo coronavírus. “Vou beijar todo mundo. Vou beijar os caras e as mulheres lindas. Dar um grande beijo”.
Mas, também sem máscara, Bolsonaro abraçou, carregou crianças, posou para fotos e provocou aglomerações, antes e também depois de ter sido infectado. E seu exemplo, e também a maneira como tratou o coronavírus que não passaria de uma gripezinha, ajudou a aumentar a pandemia no Brasil.
Foi o que concluiu um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro em parceria com o Instituto de Radioproteção e Dosimetria. O levantamento cruzou os dados de expansão da doença com o resultado da votação em primeiro turno nas eleições presidenciais de 2018 nos 5.570 municípios do país.
Conclusão: há uma correlação entre a preferência por Bolsonaro e a expansão da Covid-19. Para cada 10 pontos percentuais a mais de votos para Bolsonaro há um acréscimo de 11% no número de casos de vírus e de 12% no número de mortos, segundo a Folha de S. Paulo. O texto da pesquisa destaca:
– O estudo mostrou que a Covid-19 causa mais estragos nos municípios mais favoráveis ao presidente Bolsonaro. Podemos pensar que o discurso ambíguo do presidente [e a sua postura] induz seus partidários a adotarem com mais frequência comportamentos de risco e a sofrer as consequências.
Outro estudo da Universidade Federal do ABC, Fundação Getúlio Vargas e Universidade de São Paulo chegou à mesma conclusão. Nas ocasiões em que Bolsonaro minimizou a pandemia, o isolamento social diminuiu – e mais pessoas se contaminaram e morreram nos locais em que ele foi mais votado.
Ricardo Noblat: Na raiz do conflito entre ministros, a chaga dos presos provisórios
O que diz a lei não vale para todos
Não convidem para dividir a mesma mesa os ministros Marco Aurélio Mello e Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal. Nem Fux e os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Jamais os ministros Gilmar e Marco Aurélio. Gilmar e Marco Aurélio, por querelas antigas que quase resultaram em troca de socos.
Fux detestou o acordo feito pelo presidente Jair Bolsonaro com Gilmar e Toffoli em torno da indicação do desembargador Kassio Nunes Marques para a vaga no Supremo aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Falta ao “nosso Kassio” envergadura para tal, ou mesmo currículo confiável.
O troco veio rápido. Para evitar que Kassio chegue ao tribunal com essa bola toda e blindar a Lava Jato contra seus futuros votos, Fux sugeriu devolver ao plenário o poder de julgar ações penais que era repartido entre a Primeira e a Segunda Turma, cada uma delas formada por cinco ministros. Sugestão dada, sugestão aceita.
No último fim de semana, explodiu o conflito entre Marco Aurélio e Fux por causa de uma decisão do primeiro revogada em tempo recorde pelo segundo. Marco Aurélio mandou soltar o traficante André do Rap, um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Fuz revogou a ordem do colega.
Quem tem razão? Marco Aurélio e Fux têm razão, a levarem-se em conta os argumentos esgrimidos para justificar uma e a outra coisa, e esse é o nó da questão. Marco Aurélio baseou-se em novo trecho do artigo 316 do Código de Processo Penal, incluído após a aprovação do pacote anticrime aprovado no Congresso em 2019.
O novo trecho diz que o juiz precisa reavaliar a prisão preventiva a cada 90 dias – antes não havia prazo. Como isso não foi feito no caso de André do Rap, e sua defesa bateu às portas do Supremo, Marco Aurélio libertou-o. Desconfia a polícia paulista que o traficante fugiu para o Paraguai e que será difícil recapturá-lo.
Fux entendeu que o traficante deveria continuar preso porque é de “comprovada e altíssima periculosidade, com dupla condenação em segundo grau por tráfico transnacional de drogas, investigado por participação de alto nível hierárquico em organização criminosa e com histórico de foragido por mais de 5 anos”.
Marco Aurélio partiu para cima de Fux: “Ele assumiu a postura de censor. Eu não sou superior a ele, mas também não sou inferior”, disse. “Atuo segundo o direito posto pelo Congresso Nacional e nada mais. Evidentemente não poderia olhar a capa do processo e aí adotar um critério estranho a um critério legal”.
Presidente do Supremo há menos de um mês, Fux não quis polemizar com Marco Aurélio. Mas disse a pessoas que com ele, ontem, conversaram que viu “perigo” na tese do seu colega que beneficiou o traficante, pois se ela vingasse, “inúmeros réus perigosos acabariam sendo soltos”. Sobrou para quem?
Para o Congresso. Em sua defesa, saiu Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Ele não descartou revisão na lei que amparou a decisão de Marco Aurélio, mas afirmou que a falha foi do Ministério Público que deveria ter renovado o pedido de prisão preventiva do traficante em um prazo de 90 dias, e não o fez.
O Brasil tem mais de 773 mil presos provisórios, informou em fevereiro deste ano o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Preso provisório é aquele cuja prisão foi decretada com o intuito de garantir que o acusado passe por um processo penal com amplo direito de defesa antes de ser sentenciado em definitivo.
São quase todos jovens, pobres, negros e mulatos. Somam algo como 40% do total de encarcerados em 2,6 mil cadeias de presídios e delegacias. A maioria está trancada há pelo menos quatro anos à espera da assinatura de um juiz que decida seu destino. Muitos, desde antes da sentença de primeira instância.
A Constituição assegura “a todos” o direito à “razoável duração do processo” e “a celeridade de sua tramitação”. Na vida real, a história é outra. Ministério Público, juízes e parlamentares sabem disso. A discussão pega fogo quando acontece um caso como o do traficante famoso, mas depois o fogo baixa e tudo fica como está.
Ricardo Noblat: No “debate da mosca”, a vice de Biden engole o vice de Trump
Pesquisa confere vitória a Kamala
A senadora Kamala Harris, a vice na chapa de Joe Biden, candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos, é uma jiboia: pega sua presa, prende, aperta, se enrosca nela e a tritura até o último osso. Foi o que fez, ontem à noite, com Mike Pence, o vice de Donald Trump e candidato à reeleição.
Foi por uma diferença de sete pontos percentuais que Biden venceu Trump no primeiro debate entre os dois. O segundo e último debate será travado na próxima semana se Trump puder comparecer, uma vez que se recupera do vírus que o infectou. Pegar o vírus, segundo ele, foi “uma benção de Deus”.
Divulgada pela rede de televisão CNN no início desta madrugada, a primeira pesquisa sobre o debate entre Kamala e Pence apontou uma vitória da senadora pelo elástico placar de 59% contra 38% de Pence – diferença de 21 pontos percentuais. Se não foi um massacre, foi quase isso, e nada teve a ver com a mosca.
Por pouco mais de dois minutos, uma mosca, certamente de origem chinesa, passeou sobre os cabelos brancos de Pence que não passou recibo – por não tê-la visto ou porque fingiu não vê-la. Como os americanos têm mania de dar nome a tudo, certamente esse será conhecido no futuro como o “debate da mosca”.
Acima de tudo, foi um debate bem educado, à moda antiga, nada que lembrasse o quase não debate entre Trump e Biden marcado pela estupidez do presidente que interrompeu por mais de cem vezes, durante uma hora e meia, a fala do seu adversário, e a do mediador que tentava pôr ordem à discussão.
Pence jogou para os eleitores cativos de Trump. Kamala, para os eleitores ainda indecisos. Houve momentos, principalmente quando a Economia estava em cena, que Pence foi melhor. Mas no resto, Kamala dominou o debate. Ela é carismática, Pence não. Ela fala com a boca e o corpo, ele parece um robô programado.
A senadora teve o cuidado de não ser agressiva, pois entre os eleitores brancos são muitos os que acusam as mulheres negras de serem agressivas. Mas usou palavras duras para criticar Trump e seu vice. Acusou-os de racismo e de subestimar a pandemia que matou mais de 200 mil pessoas nos Estados Unidos.
E repetiu duas vezes, de olho na câmera, a frase que pode ter ficado na memória de muitos que assistiram ao debate:
– Eles sabiam o que estava acontecendo e não lhe contaram.
Bolsonaro detona a Lava Jato e Fux sai em socorro dela
Quem mandou acreditar no ex-capitão…
E agora que Jair Bolsonaro decretou o fim da Lava Jato, o que dirão os que votaram nele por acreditar que em seu governo a Lava Jato seguiria em frente, para o alto, e cada vez mais forte?
Opinião é direito de todo mundo, mas fato é fato. Bolsonaro se elegeu pegando carona na Lava Jato. Fez de Sérgio Moro, o líder da Lava Jato, seu ministro da Justiça (fato).
Até desentender-se com ele por tentar intervir na Polícia Federal, sempre falou bem da Lava Jato. Para ontem, finalmente, anunciar que acabou com a Lava Jato (fato).
Não lhe cabe acabar com a Lava Jato. Quem pode fazê-lo é a Procuradoria-Geral da República. Assim, o anúncio trai sua intenção de ver a Lava Jato no buraco, mas não passa disso.
A Procuradoria virou um puxadinho do Planalto (opinião, embora compartilhada por grande parte dos procuradores). Augusto Aras, seu chefe, quer extinguir a Lava Jato.
Por que Bolsonaro virou um inimigo da Lava Jato? Porque virou um inimigo de Moro e teme que ele possa atrapalhar sua reeleição (fato). Mas não só por isso. Tem mais.
Bolsonaro nasceu para a política dentro do Centrão, cresceu dentro do Centrão, trocou oito vezes de partidos, todos eles do Centrão, e chamou o Centrão para ajudá-lo a governar. São fatos.
É fato: o Centrão está repleto de deputados e senadores denunciados pela Lava Jato. Os que não foram, a detestam. Bolsonaro agrada o Centrão em troca de votos.
Quanto ao que afirmou, que não precisa da Lava Jato porque o seu é um governo sem corrupção, não é fato. É fake – no caso, para ver se diminui a insatisfação dos bolsonaristas órfãos de Moro.
Trump não teve o descaramento de proclamar nas últimas horas que contraiu o Covid-19 de tanto se expor a ele em defesa da saúde dos norte-americanos? Charlatanice pura!
Bolsonaro copia Trump. Mente sem receio. Falsifica fatos. Nega o impossível, porque aposta que sempre haverá uma parcela de público disposta a lhe dar crédito. E haverá, sim.
Sob nova administração, a do ministro Luiz Fux que sucedeu na presidência a Dias Toffoli, aliado de Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal decidiu dar mais um respiro à Lava Jato.
Doravante, caberá ao plenário, formado por 11 ministros, julgar as ações da Lava Jato, não mais à Segunda Turma composta por apenas cinco ministros. Em Fux, Moro sempre confiou.
Celso de Mello, o ministro que sai, faz parte da Segunda Turma, o endereço mais provável do novo ministro que chegará ali para votar como Bolsonaro quiser, e depois ir beber tubaína com ele.
Fux deu um chega pra lá em Bolsonaro, nos seus colegas Gilmar Mendes e Toffoli, padrinhos do ministro que Bolsonaro escolheu, e fixou limites ao aparelhamento do tribunal.
No final de maio último, Bolsonaro quis fechar o Supremo. Agora, quer dominá-lo.
Ricardo Noblat: Bolsonaro infecta o Supremo com a nomeação de Kassio Nunes
Os danos colaterais serão enormes
Algumas perguntas a respeito da surpreendente nomeação do desembargador Kassio Nunes Marques para ministro do Supremo Tribunal Federal já havia sido respondidas. Como o nome dele chegou ao presidente Jair Bolsonaro? Foi levado pelo advogado Frederick Wassef, aquele que escondeu Fabrício Queiroz em sua casa de Atibaia, e avalizado pelo senador Flávio Bolsonaro.
Quem conduziu Kassio pela mão para audiência no Palácio da Alvorada com Bolsonaro? Foi o senador Ciro Nogueira, presidente do Partido Progressista, um dos líderes do Centrão, e alvo de ações da Lava Jato. Kassio apresentou-se como candidato a uma vaga de ministro no Superior Tribunal de Justiça, que é o que ele era. Bolsonaro gostou da conversa e decidiu: “Vai para o Supremo”.
Faltava resposta pelo menos a uma pergunta: por que a pressa de Bolsonaro em nomear Kassio se a vaga do ministro Celso de Mello, o decano do Supremo, se ele só se aposentará na próxima semana? Seria uma descortesia, mas não só. Seria romper com a praxe seguida pelos presidentes anteriores de gastar algum tempo para refletir melhor sobre os nomes de aspirantes à vaga.
Com a descoberta, ontem, de que o currículo de Kassio está impregnado de falsos títulos acadêmicos e de alguns duvidosos, a resposta à pergunta sobre o motivo de tanta pressa parece evidente. Era preciso correr contra o tempo para que o teste do currículo do desembargador não desse positivo para mentiras. A dar, que isso só ocorresse depois de sua aprovação pelo Senado.
Além de Bolsonaro, a operação “Acelera, Kassio!” envolveu dois ministros do Supremo, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, líderes do Centrão como Nogueira, e David Alcolumbre (DEM) presidente do Senado. Gilmar e Toffoli talvez não soubessem dos furos no currículo do seu futuro colega. Avaliaram que ele seria mais um aliado das teses que defendem dentro do Supremo.
Nogueira é conterrâneo de Kassio, ambos do Piauí, e seu amigo. Interessado em cargos onde quer que eles estejam, o Centrão uniu-se a Bolsonaro e compartilha também o seu propósito de desmanchar a Lava Jato. Para tal, a presença de Kassio no tribunal seria mais um voto certo. Alcolumbre… Bem, esse quer se reeleger presidente do Senado e faz o que Bolsonaro lhe pede.
Ainda está por vir muita coisa capaz de criar dificuldades para a nomeação de Kassio. Se não pôde fechar o Supremo como cogitou no final de maio último, sem encontrar apoio nem mesmo entre os militares que o vigiam de perto, Bolsonaro conseguiu infectá-lo com o poderoso vírus da banalização. O que antes era só desprestígio do tribunal agora é de todo o Poder Judiciário.
E com severos danos colaterais a serem registrados no exterior, afinal, Kassio pôs no currículo cursos e títulos fantasmas de universidades de boa reputação. Não se espere, porém, nenhuma reação do Supremo em legítima defesa de sua imagem conspurcada. Falta fibra à boa parte dos seus integrantes, coragem para se insurgir, e sobram receios.
Ah, as fraquezas humanas! Quem não as tem? Dos 11 ministros do Supremo, um cometeu o mesmo pecado de Kassio; outro deve sua indicação à mulher do presidente que o nomeou; outro contou com a colaboração de uma empresa para ser aprovado pelo Senado; outro foi reprovado em concursos para juiz; e outro agradeceu de joelhos à mulher do governador que o ajudou a chegar lá.
Por que Kassio Nunes não pode ser ministro do Supremo
O que a Constituição exige
O desembargador Kassio Nunes Marques, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro para ministro do Supremo Tribunal Federal, disse ontem a um grupo de senadores, em conversa reservada, que já sabe como driblar os efeitos deletérios da descoberta de que seu currículo está repleto de falsos títulos.
Segundo ele, a Constituição não exige do indicado que seja formado em Direito. Basta que tenha mais de 35 anos, menos de 75, e reputação ilibada. Usará desse argumento para defender-se nos próximos dias. Esqueceu-se de dizer que a Constituição exige também “notável saber jurídico”. E aí está o nó. Ou deveria estar.
“Notável”, segundo os dicionários, é toda pessoa renomada, destacada e famosa por suas obras ou seus feitos. Uma pessoa insigne. Sem a produção de obras ou feitos relevantes ou as duas coisas, não há notabilidade em termos técnicos e jurídicos. Assim entenderam os autores da Constituição em vigor desde 1988.
José Afonso da Silva, o professor de Direito Constitucional mais citado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal em seus votos, ensina em um dos seus muitos livros:
“[…] não bastam, porém, a graduação científica e a competência presumida do diploma; se é notável o saber jurídico que se requer, por seu sentido excepcional, é porque o candidato deve ser portador de notoriedade, relevo, renome, fama, e sua competência ser digna de nota, notória, reconhecida pelo consenso geral da opinião jurídica do país e adequada à função”.
Kassio não tem esse perfil. Ou porque é muito jovem, 48 anos apenas, ou porque se formou muito tarde, a acreditar-se no que ele diz. Ou simplesmente porque não escreveu livros nem é autor de feitos relevantes. Decididamente, sua competência não é reconhecida “pelo consenso geral da opinião jurídica do país”.
De resto, seus poucos e ralos títulos estão sendo contestados pelas entidades que supostamente os conferiram. Precisa mais?
Ricardo Noblat: Receita de coronavírus à italiana
Sem perder o medo
Mesmo que o assunto os aborreça, prezados leitores, sinto-me obrigado por razão de consciência a lembrar que a pandemia da Covid-19 ainda não foi debelada, talvez não seja tão cedo, se é que um dia será debelada. Nem mesmo o surgimento de vacinas a serem lançadas em breve garante imunização para sempre.
Celebremos o fato de que o pior já passou, pelo menos é o que parece. A primeira morte por coronavírus no Brasil aconteceu em 12 de março. Foi de uma mulher de 57 anos, em São Paulo. Em 5 de agosto, o Ministério da Saúde informou que 1.437 pessoas haviam morrido nas últimas 24 horas e 57.152 infectadas.
A média móvel de mortes nos últimos 7 dias foi de 659. É o 13º dia seguido com essa média abaixo da casa dos 700. Mesmo assim o país registrou 398 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, o equivalente à lotação completa de dois Boeings 737-800. É de 146.773 o total de óbitos desde o começo da pandemia.
O fantasma da segunda onda do coronavírus já assombra a Europa. E a Itália, que viveu momentos trágicos no primeiro semestre do ano, é apontado como o país que aprendeu a lição e que está pronta para enfrentar o que virá. O primeiro ingrediente da receita italiana foi a rigidez do isolamento que, aqui, nunca foi para valer.
O segundo ingrediente, a gradual volta à normalidade, com grupos de atividade econômica divididos para que fossem criadas as regras de segurança de cada setor. O terceiro: o grande número de testes com rastreamento de casos. E o quarto: o período de quarentena obrigatória fixada em 14 dias, e não em sete.
Todo mundo usa máscara, e a multa é absurda para quem desrespeitar a ordem. Os estádios estão reabrindo aos poucos, assim como as escolas. Os concertos seguem proibidos. O maior aliado dos italianos é o medo.
Está tudo ficando numa boa para Bolsonaro
Um ano inesquecível para ele
Está tudo ficando numa boa para Bolsonaro, e a continuar assim, mesmo com pandemia, este ano terá sido melhor para ele do que foi 2019. Aquele abraço efusivo no ministro Dias Toffoli, seguido por generosas fatias de pizza regadas a vinho de boa marca, acabou por selar a paz entre o presidente e o Supremo Tribunal Federal.
Quem ouviu falar mais do inquérito das fake news aberto por Toffoli e conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes que fechara o cerco ao gabinete do ódio comandado de dentro do Palácio do Planalto pelo vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois? Nem do inquérito, nem do gabinete do ódio que, por enquanto, hiberna.
O presidente e o tribunal passaram o pano sobre a ocasião em que o país esteve à beira de uma crise institucional. Foi no final de maio último quando a Polícia Federal saiu à caça de bolsonaristas radicais, esculachou alguns e prendeu outros. Bolsonaro convocou sua tropa e ameaçou pôr o Supremo em recesso.
Ricardo Noblat: Bolsonaro antecipa votos do ministro que nomeou para o Supremo
Jamais se viu isso
Nunca antes na história deste país um presidente da República revelou com antecedência como deverá votar ministro indicado por ele para o Supremo Tribunal Federal. Pois foi o que fez, ontem à noite, Jair Bolsonaro a pretexto de defender o desembargador Kássio Nunes Marques, que não foi sequer sabatinado ainda no Senado como manda a lei. Sua nomeação depende disso.
Em sua conta no Facebook, Bolsonaro irritou-se com o comentário de um leitor insatisfeito com a escolha de Kássio: “Presidente, próxima indicação ao STF indica o Lula”. Primeiro, ele respondeu assim: “Ele tem mais de 65 anos. Estude e se informe antes de acusar as pessoas”. Em seguida, para alegria do Centrão, disse que a nomeação de Kássio “é completamente sem volta”.
Acrescentou: “Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja pautada). É pró-armas nos limites da lei (ele é CAC). Defende a família e as pautas econômicas (quem duvida que aguarde as votações). Resumindo, ele está 100% alinhado comigo”. A ADPF 442 é a ação que tramita no Supremo pedindo a descriminalização do aborto. CAC é colecionador de armas.
Faltou dizer como Kássio votará o pedido de suspeição de Sérgio Moro que, segundo a defesa de Lula, comportou-se de modo parcial no processo do tríplex do Guarujá; as ações contra a Lava Jato; e o caso do senador Flávio Bolsonaro denunciado pelo Ministério Público do Rio por lavagem de dinheiro, organização criminosa e expropriação do salário de servidores públicos.
Bolsonaro ocupou grande parte do seu domingo a oferecer explicações nas redes sociais para seus devotos que não engoliram a nomeação do novo ministro. Em maio do ano passado, o desembargador Kássio liberou uma licitação do Supremo para a compra de lagostas e vinhos caros, derrubando a decisão de uma juíza federal que a vetara. Um devoto escreveu:
– Péssima escolha. Está criando cobras que lhe darão o bote.
Bolsonaro retrucou: “Aguarde, outra mentira”. Outro devoto lembrou o voto de Kássio contra a extradição para a Itália do terrorista Cesare Battisti, acusado por quatro assassinatos e que agora cumpre prisão perpétua. Bolsonaro retrucou: “[Kássio] participou de julgamento que tratou exclusivamente de matéria processual e não emitiu opinião ou voto sobre a extradição”.
Foi lacônico quando outro dos seus seguidores perguntou por que no sábado à noite ele foi à casa do ministro Dias Toffoli, do Supremo, comer pizza e assistir ao jogo do Palmeiras contra o Ceará: “Preciso governar. Converso com todos em Brasília. Um abraço”. Parte do domingo de Toffoli também foi gasto com respostas à pergunta se fez certo em confraternizar com Bolsonaro.
“Eu sou um cara que gosta de unir as pessoas, que todo mundo se divirta. Confraternizar. Foi uma confraternização, ninguém falou de trabalho. Não estávamos aqui para discutir assunto sério”, disse o ministro. Nos bastidores, ele tem dito que é preciso manter a harmonia entre os Poderes e que não há nenhum prejuízo de que a cúpula deles se reúna com alguma frequência.
Quanto mais Toffoli tenta justificar a cena de promiscuidade explícita com Bolsonaro, mais escandalosa ela fica. Só grandes amigos se abraçam com tanto carinho. Isso nada tem a ver com harmonia entre os Poderes. Impensável que um ministro da mais alta Corte de justiça seja tão íntimo do presidente da República que pode justamente ser alvo de muitas de suas decisões.
Nada faltou na cena reveladora das entranhas do poder que serviu para reforçar a convicção de que a independência dos tribunais é coisa para inglês ver. Toffoli e Bolsonaro sem máscara em meio à pandemia; abraçados quando se recomenda o distanciamento; à porta da casa do ministro e não dos gabinetes oficiais de um ou do outro; observados por um policial sem máscara.
À tiracolo de Bolsonaro, Kássio, focado em conquistar a simpatia dos futuros colegas e o voto dos senadores que poderão lhe abrir as portas do tribunal. Presente ao regabofe, Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado. É ele que presidirá a sessão para aprovação do nome de Kássio. Empenhado em se reeleger, suplica ajuda a Bolsonaro e faz tudo para agradá-lo.
São favas contadas no Senado a aprovação de Kássio. A sabatina será mera formalidade. Desde sua fundação no século XIX, o Senado só recusou cinco indicações para ministro do Supremo, todas feitas por Floriano Peixoto, o segundo presidente da República do Brasil que passou à história como “o marechal de ferro”, tantas foram as revoltas que esmagou durante seu governo.
No final de maio último, um dia depois de o Supremo fechar o cerco contra o “gabinete do ódio” comandado pelo vereador Carlos, o Zero Dois, Bolsonaro perdeu as estribeiras e afirmou que “ordens absurdas não se cumprem”. Em tom exaltado, criticou a operação da Polícia Federal que atingiu seus aliados no âmbito do inquérito das fake news. Por fim, gritou: “Acabou, porra!”.
De lá para cá, trocou de arma. Descobriu que a melhor forma de vencer o Supremo é cooptar o maior número possível dos seus integrantes, expondo suas fraquezas. Está se dando bem até aqui.
Ricardo Noblat: Paulo Guedes tornou-se obsoleto
Bolsonaro não o mandará embora, nem o impedirá de sair
De repente, o governo ficou pequeno demais para abrigar ao mesmo tempo os ministros Paulo Guedes, da Economia, e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional. Uma dos dois acabará sobrando, e se depender do presidente Jair Bolsonaro, e dos militares que o cercam, não será Marinho.
Quem mais agrada um governante que só pensa em se reeleger? O ministro que diz: não pode gastar tanto assim ou o ministro que diz o contrário? Até quando Bolsonaro conseguirá se equilibrar entre Guedes e Marinho? Ou melhor: até quando conseguirá manter os dois no governo em meio a tanta turbulência?
Em conversa reservada, ontem, com investidores e economistas em São Paulo, Marinho criticou a política de Guedes e disse que ele foi o autor da proposta de dar um calote no pagamento de dívidas judiciais do governo para financiar o programa Renda Cidadã. Dias antes, Guedes negou que tivesse algo a ver com isso.
A reação de Guedes às críticas de Marinho foi imediata e dura. Mal desceu do carro à porta do seu ministério, Guedes foi logo dizendo que não acreditava que Marinho o tivesse criticado, mas se de fato o fizera, não passava de um “despreparado, desleal e fura-teto”. Se não acreditava porque atacou seu colega de governo?
Faltou o general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de governo, para puxar Guedes pelo braço e tirá-lo de cena como fez na semana passada. Marinho está para a reeleição de Bolsonaro como Guedes esteve para a eleição. Bolsonaro não mandará Guedes embora, mas não o impedirá de sair.
Resta saber se Guedes adotará a “receita Mandetta”. Ao concluir que seus dias como ministro estavam no fim, Henrique Mandetta decidiu que não pediria demissão. Se quisesse, que Bolsonaro o demitisse. Foi o que Bolsonaro acabou fazendo. Sérgio Moro, não, demitiu-se e aparentemente não se deu bem por ter agido assim.
As mil e uma utilidades do novo ministro do STF
Não é assim uma Brastemp, mas dará conta do recado
O chamado mercado financeiro, essa poderosa entidade sem rosto, sem sede própria, sem mandato obtido por meio do voto popular, mas capaz de dar as cartas no país, avisou ao presidente Jair Bolsonaro que não gostou nem um pouco da nomeação de Kássio Nunes Marques, “o nosso Kássio”, para ministro do Supremo Tribunal Federal na vaga de Celso de Mello.
Nada de pessoal contra ele. É porque o dito mercado se preocupa com Bolsonaro e aposta na sua reeleição. Por isso, teme que a escolha de Kássio, avalizada pelo senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, reforce a impressão de que o governo está aparelhando a mais alta corte de Justiça do país, e isso pode gerar maior insegurança jurídica, o que não é bom para os negócios.
Bolsonaro não está nem aí. A escolha relâmpago de alguém tão improvável como o desembargador piauiense não se deu apenas porque Bolsonaro é impulsivo. Teve muito cálculo político nisso. Era uma maneira de amarrar ainda mais o Centrão ao governo e de garantir a aprovação pelo Senado do nome do novo ministro. E de esterilizar a esquerda a quem Kássio já foi ligado.
Era também uma maneira de fustigar Celso, que detesta Bolsonaro e de quem se espera um duro discurso de despedida. E de não dar tempo ao ministro Luiz Fux para que sentasse na cadeira de presidente do Supremo e começasse a puxar as rédeas que o cargo lhe oferece. Por isso ele só ficou sabendo da nomeação de Kássio pela imprensa, e passou recibo do golpe que levou.
Fux e Bolsonaro não se bicam. No ano passado, aconselhado pelo ministro Dias Toffoli, Bolsonaro convidou Fux para um encontro. Fux agradeceu o convite, mas não foi. Bolsonaro compareceu em setembro último à cerimônia de posse de Fux que sucedeu Toffoli na presidência. Mas nem assim recebeu um tratamento especial. Fux é a favor da Lava Jato, Bolsonaro contra.
De resto, nas contas de Bolsonaro, quanto mais rápido o “nosso Kássio” possa envergar sua toga novinha em folha, mais se avizinhará a ocasião de Sérgio Moro, uma pedra no sapato dele, ter seu pedido de suspeição aceito pelo tribunal. Tudo indica que Kássio substituirá Celso na Segunda Turma, herdando todos os processos que a ele caberia julgar se não se aposentasse.
E ali, por ora, há dois votos a favor do pedido de suspeição de Moro no processo do tríplex do Guarujá que tornou Lula inelegível, e dois votos contra. Kássio poderá desempatar contra Moro – para satisfação de Lula e também de Bolsonaro. Condenado em outro processo, o do sítio de Atibaia, Lula dificilmente será candidato a presidente em 2022 como o PT quer.
Moro, candidato contra Bolsonaro, passaria a campanha tendo de explicar por que ganhou do Supremo o carimbo de juiz parcial. Quer carimbo pior? É com isso que sonha Bolsonaro. É para essas e outras cositas mais que o “nosso Kácio” foi nomeado. A sorte de Flávio, denunciado por lavagem de dinheiro e rachadinha, ao fim e ao cabo será decidida pelo Supremo. Acordão à vista.
Ricardo Noblat: Bolsonaro é desmentido em tempo quase real
Retratos de um desgoverno
Bolsonaro disse que estava proibida a discussão sobre o programa Renda Cidadã até o fim do seu governo. Depois anunciou que o programa será enviado em breve para votação no Congresso. Então o ministro Paulo Guedes, da Economia, vetou as fontes de financiamento do programa – dinheiro da Educação e calote no pagamento de precatórios.
Em menos de uma semana, descobriu-se que por enquanto não há como se lançar o programa e que é melhor deixar para fazê-lo depois das eleições ou em 2021 Quer retrato melhor do desgoverno Bolsonaro? Tem outro também que acabou de ser revelado. A Amazônia teve o segundo pior setembro de queimadas da última década, e o Pantanal o pior mês de sua história.
O presidente conseguiu ser desmentido quase que em tempo real. Na última quarta-feira, em vídeo destinado à Cúpula da Biodiversidade das Organizações das Nações Unidas, ele disse que não pode aceitar o que classifica de “informações falsas e irresponsáveis” que desconsideram “as importantes conquistas ambientais” alcançadas pelo Brasil em benefício do mundo.
Pois é. Quem nega realidade passa vergonha, mas ele não liga. Está acostumado.
Nosso Kássio virou um peão na mão dos seus patrocinadores
Bolsonaro é obrigado a defender-se nas redes sociais
Bom de faro, o senador Ciro Nogueira, presidente do Partido Progressista (PP) e um dos líderes do Centrão, aliado de todos os governos que passaram por ele e os que um dia ainda possam passar, conterrâneo e avalista número um do próximo ministro do Supremo Tribunal Federal, Kássio Nunes Marques.
Em junho do ano passado, quando Marques era vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, em Brasília, Nogueira profetizou durante uma solenidade:
– Nosso Kássio é uma figura respeitadíssima no mundo jurídico hoje. Tenho certeza de que vai chegar aos tribunais superiores. É uma figura muito querida.
“Nosso Kássio” virou senha para senador disposto de antemão a aprovar a indicação de Marques para a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta no próximo dia 13. A sabatina obrigatória será uma mera formalidade. Direita e esquerda votarão unidas com algumas raras exceções para não dar tanto na vista.
Só bolsonaristas de raiz, que acreditaram no conto do ministro “terrivelmente evangélico”, ainda resistem aos encantos do “nosso Kássio”, um católico de boa cepa. Ou às conveniências que ditaram a sua escolha. A esses, o presidente Jair Bolsonaro dedicou sua live das noites das quintas-feiras no Facebook.
“Todo mundo aqui ao longo de 14 anos de PT teve alguma ligação. Não é por isso que o cara é comunista, é socialista”, explicou Bolsonaro. “Vão desqualificar só porque ele deu uma liminar para retomar o cardápio do Supremo? Não tem nada demais comer lagosta. Qual é o problema? Quem pode, come.”
E disse mais: “Você quer que eu troque o Kássio pelo Sérgio Moro? Vocês querem o Sérgio Moro ministro do Supremo? Será que ele vai ser um ministro leal às nossas causas? Será que ele vai ser aprovado no Senado?”. Bolsonaro sabe que Moro poderia ser rejeitado pelo Senado, mas não foi por isso que se livrou dele.
As cobranças dos devotos e as respostas às pressões oferecidas pelo presidente da República mostram a que patamar baixou o processo de nomeação de um ministro da mais alta Corte de Justiça. O Brasil de Bolsonaro envergonha quem antes levava o país a sério. Um dos seus produtos: o Real foi a pior moeda global em 2020.
Se temos na presidência um paraquedista que nunca leu um livro, nem mesmo as memórias do coronel torturador Brilhante Ulstra; que foi afastado do Exército porque planejou jogar bombas em quartéis; que é ligado a milícias e suspeito de ter-se beneficiado de rachadinhas; nada mais pode causar estranheza.
No passado, o Supremo foi um templo de juristas consagrados que ali chegavam para coroar suas carreiras. Hoje, entra qualquer um – de Dias Toffoli, duas vezes reprovado em exames para juiz, ao “nosso Kássio” que batalhava por uma vaga no Superior Tribunal de Justiça e que se credenciou a beber tubaína com Bolsonaro.
Mas ele é “um garantista”, dizem a seu favor. Não tem maior empulhação do que essa história de juiz garantista e juiz não garantista. Garantista de quê? Do que manda a Constituição? Ora, diabos! Respeitar a Constituição não é pré-requisito para que alguém possa vestir a toga e ser respeitado como juiz?
Em editorial, o jornal O Estado de S. Paulo resgatou palavras dirigidas por Paulo Brossard ao então presidente Itamar Franco sobre o processo de escolha de seu substituto no Supremo:
“Pode ocorrer que surjam candidatos, mas é preciso não esquecer que ninguém, por mais eminente que seja, tem direito de postular o cargo, que não se pleiteia, e aquele que o fizer, a ele se descredencia”.
O “nosso Kássio” é o menos culpado pelo modo como se dará sua ascensão. Virou um peão nas mãos de Bolsonaro e dos seus demais patrocinadores.
Ricardo Noblat: A história exemplar da escolha de um ministro para o Supremo
Kássio atirou no que viu e acertou no que não viu
Bolsonaro desistiu da escolha de um ministro para o Supremo Tribunal Federal que atendesse seus convites para tomar cerveja. Uma vez que pode ir, de repente, a casa de um ministro para reunir-se com ele e com outro e, juntos, avaliarem a escolha que fez, por que se preocupar com cerveja? Bebe-se uísque.
Dias Toffoli foi advogado do PT e Advogado-Geral da União no governo Lula. Gilmar Mendes, Advogado-Geral da União no governo Fernando Henrique. Ora, por que Kássio Nunes Marques, um piauiense de 48 anos, não pode ser indicado pelo Centrão? Kássio nem é um Centrão puro sangue. É tudo misturado.
Em 2011, para ocupar uma vaga de desembargador no Tribunal Regional Federal (TRF1), em Brasília, Kássio contou com amplo apoio político. Wellington Dias, governador do Piauí eleito pelo PT, o apoiou. O governador anterior, do PSB, também. E mais Renan Calheiros (PMDB), à época presidente do Senado.
E o senador por Roraima Romero Jucá (PMDB). E o ex-presidente José Sarney (PMDB). E, naturalmente, o vice-presidente da República Michel Temer. Além da Ordem dos Advogados do Brasil. Então a presidente Dilma Rousseff o nomeou, e ele tratou de empregar sua mulher como funcionária do Senado.
Kássio estava em campanha para ser ministro do Superior Tribunal de Justiça, e foi nessa condição que no início desta semana conheceu Bolsonaro no Palácio da Alvorada, levado por seu conterrâneo, o senador Ciro Nogueira, presidente do PP, partido do Centrão que aderiu ao governo há poucos meses.
O papo agradou tanto a Bolsonaro que, a certa altura, ele disse:
– Você vai ser ministro do Supremo.
Kássio corrigiu-o, pensando que ele se enganara:
– Do Supremo, não, do STJ, presidente.
– Não, vai ser ministro do Supremo – decretou Bolsonaro.
Em seguida, passou a mão no celular, ligou para Davi Alcolumbre (DEM), presidente do Senado que luta para ser reeleito, embora a Constituição proíba, e orientou-o a providenciar às pressas uma reunião com os ministros Gilmar, Toffoli e Fábio Faria, das Comunicações. E na casa de Gilmar ficou tudo acertado.
A ficha de Kássio custou a cair. Bom de gogó, ele faz o gênero falso humilde, mas é muito esperto e sedutor. Mesmo assim, em alguns momentos da reunião, pareceu nervoso e meio apalermado. Não era para menos. Foi como se ganhasse, sozinho, o maior prêmio da Megasena acumulada há meses.
Diz-se, a seu favor, que a ir para o Supremo Jorge Oliveira, ministro da Secretaria do Governo e capacho de Bolsonaro, melhor que Kássio substitua Celso de Mello, obrigado a se aposentar em breve porque fará 75 anos. Só o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, passou recibo por não ter sido consultado.
Fux soube da nomeação de Kássio pela imprensa, um descuido de Bolsonaro, ou uma maldade. Fux sabe que Kássio se aliará à facção dos ministros do Supremo empenhados em pôr um ponto final na Operação Lava Jato. É o que mais interessa aos políticos em geral, e também a Bolsonaro à cata de votos para se reeleger.
No passado, o Supremo foi o templo dos juristas consagrados por suas obras de referência. Chegava-se ali com a biografia já escrita. A de Kássio, por sua pouca idade e à falta de títulos admiráveis, mal foi escrita. Ele terá os próximos 27 anos para escrevê-la, parte sob o olhar atento de Gilmar, o mais poderoso ministro do Supremo.