Blog do Noblat

Ricardo Noblat: Os fatos teimam em contrariar Bolsonaro e Pazuello

Pandemia avança apesar da brigada da cloroquina

Na Sessão Mentiras das quintas-feiras no Facebook, o presidente Jair Bolsonaro voltou a bater de frente com a verdade ao negar que o governo tivesse encomendado à Fundação Oswaldo Cruz a produção de comprimidos de cloroquina para uso contra a Covid-19. Segundo ele, a cloroquina seria empregada no tratamento de outras doenças como malária e lúpus.

Acontece que a Folha de S. Paulo e a TV Globo tiveram acesso a documentos do Ministério da Saúde, de 29 de junho e de 6 de outubro do ano passado, que mostram a encomenda de 4 milhões de comprimidos de cloroquina, e também de fosfato de oseltamivir (o Tamiflu) a serem distribuídos entre infectados pelo vírus. Não há comprovação científica de que tais remédios sejam eficazes.

“Está uma polêmica muito grande sobre hidroxicloroquina, fabricou a mais, gastou, era dinheiro do Covid, não era”, disse Bolsonaro. “Pessoal, tem a Covid, outras doenças continuam. Não é só ela. A malária continua. O lúpus continua. Nós temos aqui, em média, 200 mil casos de malária no Brasil. Muita gente na Amazônia toma”. Manobra diversionista desmentida pelos fatos.

Outro documento do Ministério da Saúde, este enviado ao Ministério Público Federal no dia 4 de fevereiro, aponta a distribuição de cloroquina produzida pela Fundação Oswaldo Cruz a pacientes com Covid-19, e não dentro do programa nacional de controle da malária, como originalmente previsto. Para sustentar uma mentira, o governo é obrigado a dizer outra, e outra, e outra…

No Facebook, Bolsonaro fica à vontade porque fala sozinho, e o que quer. Os que aparecem ao seu lado estão ali para lhe dar razão e reforçar sua palavra. Entrevistas coletivas ele só concede a grupos de jornalistas e a emissoras de rádio e de televisão que compartilham suas ideias ou que estão sempre dispostos a ajudá-los. Esse, por sinal, é o sonho de consumo de todo governante.

Infelizmente para o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, nem sempre ele dispõe de ambientes tão pacíficos. Como há número suficiente de assinaturas para a instalação de uma CPI no Senado sobre a pandemia, Bolsonaro mandou que ele fosse até lá se explicar. O general foi e pouco ou nada convenceu. Se não houver CPI, Bolsonaro deverá mais um favor ao Centrão.

A certa altura da sua exposição sobre os acertos do governo no combate à pandemia, Pazuello foi aparteado pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) que reagiu sem disfarçar sua indignação:

– Senhor ministro, não está tudo bem, não está tudo certo e não foi feito tudo que poderia ser feito. Lá no início de dezembro, eu já dizia a vossa excelência que nós iríamos enfrentar uma onda no Amazonas muito grave. Lhe sugeri, inclusive, que assumisse uma unidade hospitalar no Amazonas diante da comprovação da ineficiência do governo do meu Estado quando da primeira onda.

Covardia de Bolsonaro expor seu ministro dessa maneira. Pazuello é especialista em logística militar. Teve a humildade de confessar que só soube o que é o Sistema Único de Saúde (SUS) depois de ter sentado na cadeira de ministro. E, uma vez ali, por melhores que sejam suas intenções, ele se ressente da falta de conhecimentos médicos e administrativos, e sua autonomia é quase nenhuma.

Fala o que os outros o orientam a falar – e, muitos dos que o orientam, são militares como ele, recém-chegados ao Ministério da Saúde. Profissionais da área técnica do ministério, os mais antigos e experientes, estão no freezer. Não são ouvidos pelo ministro e sua turma. E se tentam ser, acabam afastados ou simplesmente calados. Enquanto isso, a pandemia segue em frente.

Dos 5.570 municípios brasileiros, só 135 têm uma população maior do que o número de vidas perdidas para a Covid até agora, segundo a edição de ontem do Jornal Nacional. De quarta-feira dia 10 para a quinta-feira dia 11, foram registradas 1.452 mortes por Covid, o maior número desde 29 de julho. O Brasil tem 236.397 vítimas da Covid e quase 10 milhões de casos confirmados.


Ricardo Noblat: Livro de general é um alerta sobre a fragilidade da democracia

Para que a história não se repita

Com seu livro de memórias recém-lançado pela Fundação Getúlio Vargas, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército entre 2015 e 2019, atirou numa coisa e acertou em outra.

Se ele pretendeu reforçar a ideia de que as Forças Armadas não se metem em assuntos políticos pelo menos desde o fim da ditadura militar de 64, conseguiu exatamente o contrário.

Em abril de 2018, às vésperas de o Supremo Tribunal Federal aceitar ou não um pedido de habeas-corpus que poderia libertar Lula preso em Curitiba, Villas Bôas postou no Twitter:

“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”

À época foi dito que Villas Bôas apenas refletia o ânimo dos seus companheiros de farda. Antecipava-se a possíveis manifestações raivosas de subordinados. Não queria perder o controle da tropa.

Por isso ou por aquilo, intimidado, o Supremo negou o habeas-corpus por 6 votos contra 5 e manteve a prisão de réu condenado em segunda instância. Lula continuou encarcerado.

Foi o general, que é portador da ELA, doença degenerativa do sistema nervoso, que procurou a Fundação Getúlio Vargas interessado em dar seu depoimento para a posteridade.

E o fez ao longo de 13 horas, repartidas em cinco dias, em conversa amena conduzida pelo professor e pesquisador Celso de Castro, autor de diversos livros sobre a temática militar.

Castro deixou-o falar sem contestá-lo nenhuma vez e sem pedir maiores detalhes sobre os fatos relatados. É de supor, portanto, que o general só falou o que quis, conforme planejado.

Villas Bôas conta que a mensagem postada no Twitter de advertência ao Supremo não foi obra exclusivamente sua, mas também do Alto Comando do Exército.

“Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse”, diz Vilas Bôas. Não diz que “coisa” era, nem como ela poderia se manifestar. Uma rebelião? Uma tentativa de golpe?

Mas como, se o Exército e as demais armas são apolíticos como diz e repete o general ao longo do seu depoimento? Como, se são fielmente cumpridoras do papel que lhes reserva a Constituição?

A primeira versão da mensagem foi escrita por seu estafe e sob sua orientação, sendo submetida depois aos integrantes do Alto Comando do Exército residentes em Brasília.

Em seguida, ela foi transmitida aos demais comandantes de área para que a endossassem ou sugerissem ajustes. Recebidas as sugestões, a mensagem ganhou sua redação definitiva.

Jair Bolsonaro respirou aliviado quando leu a mensagem no Twitter. Era deputado federal e há pelo menos dois anos estava em campanha como aspirante a candidato a presidente

Neste governo, Villas Bôas, general da reserva, é assessor do Gabinete de Segurança Institucional da presidência da República. Ao empossá-lo, Bolsonaro emitiu todos os sinais de que lhe é grato.

Por quê? Talvez porque Villas Bôas respaldou sua candidatura à reboque de generais e de soldados que já o apoiavam. Cada quartel foi uma célula de Bolsonaro, e não será diferente em 2022.

O chefe das Forças Armadas, segundo a Constituição, é o presidente da República. É ele, e somente ele, quem em nome delas pode falar sobre temas políticos de repercussão geral.

Aos comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, cabe falar sobre assuntos administrativos e aqueles diretamente afeitos aos cargos que ocupam.

A fala de Villas Boas não foi a de um chefe que se dirige aos seus subordinados. Foi um pronunciamento em nome do Exército e a propósito do momento político que o país atravessava em 2018.

Não faltou provocação (“Quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras?”). Nem ameaça (O Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”).

Militar não é igual a civil. O que os distingue não é só a farda que um veste e o outro não. Militar tem acesso a armas pesadas, pilota brucutu, maneja tanques e é treinado para matar.

O que um deles fala, soa diferente do civil que diga o mesmo. Porque um tem a força capaz de pulverizar literalmente quem quer que seja. O outro, só a força da palavra.

Não é apenas a saúde dos brasileiros que está ameaçada pelo vírus que o governo Bolsonaro ignorou o quanto pôde. A saúde da democracia segue sob ameaça.


Ricardo Noblat: Como não pode demiti-lo, Bolsonaro cancela Mourão

À procura de um vice que diga apenas "sim, senhor"!

Sem poder demiti-lo porque foi eleito junto com ele, sem poder fazer de conta que ele simplesmente inexiste, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cancelar o vice-presidente Hamilton Mourão.

Faz tempo que já não conversa com ele, mas, ontem, foi muito além: excluiu-o de uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. Compareceram 22 ministros. O único que faltou estava viajando.

 “Não fui convidado, não fui chamado. Então, acredito que o presidente julgou que era desnecessária a minha presença”, disse o  general que faz parte do Conselho de Governo.

Mourão deixou passar algumas horas e deu o troco: embora convidado, não foi à cerimônia de lançamento de um programa destinado a atrair investimentos privados para a Amazônia.

A cerimônia contou com a presença de Bolsonaro e de outros ministros. Perguntando por que não foi, Mourão respondeu: “Estava trabalhando, tinha outras coisas para fazer”.

Mourão foi escolhido por Bolsonaro para ser vice na última hora. E mesmo assim porque outros nomes convidados para a função alegaram variados motivos para não ocupá-la.

Bolsonaro queria um vice que não lhe fizesse sombra. Mourão desejava ser um vice com atribuições executivas. Bolsonaro queria um vice que não falasse. Mourão não se faz de mudo.

O presidente é capaz de dizer os maiores absurdos do mundo, mesmo os que o prejudicam. Mourão tentou ser a voz da sensatez e, em alguns casos, o tradutor de Bolsonaro.

Apesar dos desencontros, fingiram dar-se bem até recentemente. Nada pior do que um vice decorativo. Bolsonaro nomeou Mourão para presidir o Conselho Nacional da Amazônia. Não adiantou.

A gota d’água que entornou o copo foi uma troca de mensagens entre um assessor de Mourão e um assessor de um deputado sobre um eventual processo de impeachment contra Bolsonaro.

Mourão só soube das mensagens pela imprensa. No mesmo dia, demitiu o assessor. Com mania de perseguição, Bolsonaro acha que o vice conspira contra ele, e ninguém o convence do contrário.

Daí o cancelamento de Mourão. Que poderá não ser definitivo porque Bolsonaro não tem compromisso com o que diz e faz. Não desqualificava as vacinas? Agora, não as recomenda?

Bolsonaro se comporta na presidência como se fosse um general dentro do quartel. Ninguém pode pensar diferente dele. Ordem dada é para ser cumprida sem maiores discussões.

Há militares que o servem, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria do Governo) e Eduardo Pazuello (Ministério da Saúde), que batem continência e dizem “sim, senhor”.

Mourão bate continência, mas nem sempre diz “sim, senhor”. É por isso que Bolsonaro procura um novo vice para a eleição do ano que vem. O Centrão topa indicar. O Centrão topa tudo.

Um general que se sente à vontade na companhia do Centrão

“Brasil acima de tudo” (grito de guerra da Infantaria Paraquedista)

Se o presidente Jair Bolsonaro está à procura de um vice que lhe diga amém, que em eventos eleitorais saiba manter-se à distância para não lhe fazer sombra, e que ainda por cima possa ajudá-lo a atrair apoios políticos, por que não o general Luiz Eduardo Ramos, atual ministro da Secretaria de Governo?

Ramos entende do riscado. Uma foto que mostrou Bolsonaro disparado, quase sem fôlego, em uma pista de corrida, mostrou também o general tentando imitá-lo, mas bem atrás, sem o risco de ultrapassá-lo. Ramos tem uma sincera admiração pelo presidente. Os dois foram paraquedistas e ainda são bons amigos.

De resto, ao contrário de muitos, militares ou não, que fazem cara feia para o Centrão, Ramos não faz, e orgulha-se de ter servido de ponte entre o grupo e Bolsonaro. Criticado por um general da reserva por andar com más companhias, Ramos respondeu: “Não me envergonho. Não tenho vergonha nenhuma”.

E justificou-se: “Tomei uma atitude coerente. Meu desprendimento de ter aberto mão da minha carreira no Exército mostra que estou a serviço do Brasil. O governo hoje é do Bolsonaro, mas é do Brasil”. Em 2018, Ramos foi uma voz isolada em defesa de Bolsonaro dentro do Estado Maior do Exército.

Até que todos, finalmente, acabaram lhe dando razão. Era preciso evitar a volta da esquerda ao poder. Brasil acima de tudo!


Ricardo Noblat: Bolsonaro, sem compromisso com o que diz e faz

A arte de enganar

De tanto ir e vir, dizer algo hoje e amanhã o seu oposto, o presidente Jair Bolsonaro criou as condições para escapar impune aos efeitos do seu comportamento errático. Salvo um bando cada vez menor de jornalistas incômodos, ninguém se espanta mais com o que ele diz ou faz. O país limita-se a observar entediado.

Normalizou-se o absurdo. Em novembro último, descobriu-se que um total de 7 milhões de testes da Covid-19 mofava em armazéns de Guarulhos, na Grande São Paulo, e que seu prazo de validade expiraria no final de dezembro. O que fez o Ministério da Saúde? Prorrogou o prazo para o final de abril próximo. Simples.

Agora, incapaz de aplicá-los em sua totalidade, decidiu doar parte dos testes ao Haiti. Um gesto humanitário de um governo que pouco se importa com a preservação de vidas, como cansou de demonstrar ao longo da pandemia. Dos 7 milhões de testes, os armazéns ainda acumulam 5 milhões. Melhor doá-los, pois.

Quem mais do que Bolsonaro pregou contra a vacinação e desqualificou as vacinas pondo em dúvida a sua eficácia? Quantos milhões de brasileiras não tomaram horror à vacina por acreditarem na palavra do presidente da República? Por que se vacinarem se Bolsonaro já disse e repetiu que não se vacinará?

Mas, em entrevista à Rede Bandeirantes de TV, Bolsonaro revelou que está sendo realizada uma votação entre seus irmãos para decidirem se vacinam ou não a mãe, Olinda Bonturi Bolsonaro, de 93 anos. E que ele votou a favor “mesmo com uma vacina que não está comprovada cientificamente”.

Se não há comprovação científica por que ele como presidente da República não se opôs à liberação de vacinas pelo Ministério da Saúde? E por que mesmo admitindo que drogas como a cloroquina e outras carecem de comprovação científica, no entanto as recomendou para tratamento precoce da doença?

No final de janeiro passado, Bolsonaro descartou a volta do pagamento do auxílio emergencial aos brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia “porque isso quebraria o país”. Na entrevista à Band, afirmou que a volta do pagamento do benefício “é para ontem”, embora possa trazer “problema” para a economia.

Nada demais. Está em linha com ele mesmo. Não jurou que se fosse eleito não governaria com o Centrão e nem lotearia cargos entre os partidos? Rendeu-se ao Centrão para ganhar o comando da Câmara e do Senado e tentar se reeleger. Prometeu combater a corrupção e acabou com a Lava Jato.

Pelos filhos encrencados com a Justiça, fará qualquer coisa. José Vicente Santini, amigo dos garotos, foi demitido por Bolsonaro em 28 de janeiro de 2020 de um cargo na Casa Civil por ter viajado sem necessidade para o exterior em um avião da FAB. Foi para dar exemplo de que o seu era e seria um governo austero.

– Inadmissível o que aconteceu, tá? Já está destituído da função. Decisão minha. O que ele fez não é ilegal. Mas é completamente imoral – decretou Bolsonaro à época.

No dia seguinte, a nomeação de Santini para outro cargo na Casa Civil foi publicada em edição extra do Diário Oficial. Como pegou mal para ele, Bolsonaro mandou anular a nomeação. Finalmente, ontem, Bolsonaro nomeou Santini para secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República. Que tal?

ACM Neto recusa paternidade do novo ministro da Cidadania

Para não dar razão a Rodrigo Maia

Estava tudo acertado entre o presidente Jair Bolsonaro e o presidente do DEM, ACM Neto. Uma vez que os candidatos de Bolsonaro às presidências da Câmara e do Senado fossem eleitos, o ex-chefe de gabinete de ACM Neto, João Roma, seria nomeado ministro da Cidadania no lugar de Onyx Lorenzoni.

Roma é baiano e filiado ao partido Republicanos, que apoiou ACM Neto duas vezes para prefeito de Salvador, e o apoiará ano que vem para o governo da Bahia. Ele e ACM Neto são amigos de longa data. Roma filiou-se ao Republicanos a conselho do ex-prefeito, que costuma distribuir amigos por vários partidos.

Ocorre que a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara provocou o rompimento entre o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) e ACM Neto. Maia acusa ACM Neto de ter entregado em uma bandeja sua cabeça a Bolsonaro, comprometendo a posição de independência do partido em relação ao governo.

O Republicanos quer Roma como ministro. Roma quer ser ministro. Bolsonaro aceitou nomeá-lo. Agora, é ACM Neto que não quer para não dar razão a Maia.


Ricardo Noblat: Pouco ou nada separa o MDB dos demais partidos do Centrão

As diferenças estão no passado

Por que ao falar do Centrão e nomearem-se os partidos que o integram costuma-se deixa de fora o MDB? Talvez em respeito ao seu passado de lutas contra a ditadura militar de 64.

Tempos arriscados aqueles quando uma palavra fora de lugar, uma imagem mais forte ou uma proposta infantil bastava para cassar o mandato do seu autor, condená-lo à prisão ou forçá-lo ao exílio.

Há menos de um mês, morreu o advogado e ex-deputado federal José Alencar Furtado. Em 1977, líder do MDB na Câmara, ele foi cassado por ter dito num programa de televisão:

“O MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em prantos. Filhos órfãos de pais vivos – quem sabe – mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe e do talvez”.

O ato de cassação foi assinado pelo então presidente da República, o general Ernesto Geisel, que dizia conduzir o país na direção de uma abertura política lenta, gradual e segura.

O deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ) acabou cassado por ter feito um discurso em setembro de 1968 que não chamou a atenção de ninguém nem mereceu uma linha nos jornais.

Propôs um “boicote” ao desfile de 7 de setembro e recomendou às moças que não dançassem com oficiais naquele dia. Foi o pretexto que a ditadura usou para tirar a máscara e se assumir como tal.

Por pouco, em 1975, Geisel não cassou o mandato do deputado Ulysses Guimarães (SP), presidente nacional do MDB, que o comparou a Idi Amin Dada, à época ditador de Uganda.

Do seu passado, o MDB, hoje, só guarda lembranças para desenterrá-las às vésperas de eleições e sepultá-las no dia a dia da desfaçatez e do fisiologismo compartilhado com o Centrão.

O presidente Fernando Henrique Cardoso aliou-se ao PFL, hoje DEM, para governar. Os presidentes Lula e Dilma aliaram-se ao PMDB, hoje MDB, com o mesmo propósito.

DEM, MDB e companhia ilimitada governaram quando Michel Temer, depois de muito conspirar, sucedeu a Dilma. Bolsonaro tem ministros do DEM e espera, em breve, ter também do MDB.

Se por ora ainda não dispõe de ministérios, o MDB desfruta de centenas de cargos nos terceiros e demais escalões do governo. Diz-se independente, como o DEM diz que é. Os dois mentem.

Contagem regressiva para o Dia D e a Hora H de Rodrigo Maia

Fica ou sai do DEM?

Convites não lhe faltam. O PSDB do governador João Doria (SP), o MDB de Michel Temer e Baleia Rossi (SP), o PSL de Luciano Bivar (PE), ex-aliado do presidente Jair Bolsonaro, e o CIDADANIA de Roberto Freire, possível abrigo de Luciano Huck caso ele seja candidato no ano que vem, abriram-lhe as portas.

Na semana passada, antes de ser derrotado por Artur Lira (PP-AL) que se elegeu presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia ameaçou deixar o DEM acusando ACM Neto, o poderoso chefe do partido, de traição. Consumada a derrota, Maia repetiu a ameaça dizendo que com ele levaria para onde fosse um monte de gente.

Eduardo Paes (DEM), prefeito do Rio, confirmou que o acompanhará junto com seu grupo. Deputados do DEM, sob a garantia de não terem seus nomes revelados, disseram que irão com Maia. Ao ex-presidente da Câmara, ACM Neto prometeu passe livre para sair desde já sem risco de perder o mandato.

No último fim de semana, Maia reafirmou que está com um pé fora do DEM e que não passará desta semana. Estava furioso com ACM Neto. Aberta, portanto, a contagem regressiva para que se saiba afinal se a palavra dada por Maia será cumprida, adiada ou simplesmente esquecida.


Cristovam Buarque: Desorientação dos terracubistas

Os partidos progressistas não sabem para onde ir

Em recente entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique disse temer que o PSDB esteja em decadência. Na verdade, seu partido está desorientado, tanto quanto os demais partidos democratas progressistas, de centro ou de esquerda. Eles não entendem, ou não aceitam, que suas ideias e propostas perderam prazo de validade diante das mudanças que ocorrem na história; ou tentam se adaptar de maneira incompleta.

Percebem que o Estado tem limitações de recursos, mas não sabem como atender às necessidades sociais sem gastar além dos limites responsáveis. Não sabem como colocar a solidariedade necessária dentro da aritmética possível.

Descobriram os limites ecológicos ao crescimento, mas não conseguem oferecer um tipo de bem-estar que substitua a ânsia pelo consumo. Não conseguem colocar o PIB dentro da ecologia.

Entendem que uma das causas de nosso atraso está no desprezo à educação de base com qualidade para todos. Mas não assumem que a educação de qualidade para todos é mais do que o direito de cada pessoa, é o vetor do progresso econômico e da justiça social. Não acreditam, nem sabem como fazer para que o Brasil tenha uma educação tão boa quanto às melhores do mundo e que o filho do mais pobre estude em escola com a qualidade do filho do mais rico.

Perceberam que os partidos já não existem e as siglas pouco significam, mas não sabem que tipo de organização colocar no lugar. Nem como fazer política nos tempos das comunicações de massa.

Se surpreendem que perdemos velocidade no ritmo de crescimento, mas não entendem ainda, ou se assustam, com a ideia de que o problema não é a velocidade do progresso, é do caminho escolhido para ele. O problema não está na saída da Ford, mas na opção pela indústria automobilística como carro chefe da economia.

Continuam nacionalistas em um tempo de globalismo, mas não sabem como tirar proveito da globalização e evitar os problemas do livre comércio sem cair no protecionismo.

Os partidos progressistas estão desorientados do ponto de vista filosófico e em consequência decadentes do ponto de vista político e eleitoral, seu progressismo tem a cara, a cor e o cheiro do passado. Não veem a realidade em toda sua complexidade esférica, global e dinâmica. São partidos terracubistas. Os conservadores levam vantagem, porque o passado e o reacionarismo é a “praia” deles. A nostalgia é uma qualidade no discurso da direita, que defende “grande outra vez”; mas a nostalgia é um pecado entre os progressistas, que deveriam propor “melhor em frente”. Os conservadores não se desorientam porque desejam ficar parados; os progressistas se desorientam porque desejam avançar, mas olhando para trás, sem bússola, sem estradas e no meio do terremoto civilizatório.

Os progressistas não aceitam a Terra Plana, mas ainda não têm propostas pela a Terra Global no tempo da crise ecológica, da robótica e do esgotamento do Estado. Felizmente, a percepção de que a decadência é uma desorientação, possibilita o surgimento de mapas para futuros progressistas.

*Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador


Ricardo Noblat: Vidas importam pouco para o governo de Jair Bolsonaro

Mais armas, menos radares, remédios que não curam

Há mais mortes em países onde armas de fogo estão ao alcance da maioria dos cidadãos. Pois o presidente Jair Bolsonaro quer facilitar ainda mais o acesso dos brasileiros a armas. Por aqui, cerca de um milhão de pessoas dispõem de armas legalizadas.

Não há comprovação científica de que a cloroquina e outras drogas curem as vítimas do coronavírus. Pois Bolsonaro insiste em defender “o tratamento precoce” que em nenhuma parte do mundo foi adotado por ser claramente ineficaz.

Só vacinas funcionam contra o vírus. Mas em sua live semanal no Facebook, Bolsonaro voltou a duvidar da eficiência delas, riu quando o diretor-geral da Agência Nacional de Vigilância Sanitária disse que se vacinará, e negou que fará o mesmo.

Por temer que os vídeos onde ele recomenda o uso da cloroquina sejam apagados, e outras provas destruídas, o Ministério Público Federal providenciou o download deles. Bolsonaro e o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, estão sendo investigados por isso.

Levantamento feito em 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo mostrou que a média de mortes nas estradas brasileiras caiu aproximadamente 22% nos trechos em que há radares de velocidade após a instalação dos equipamentos.

Naquele ano, o primeiro de Bolsonaro na presidência da República, ele tentou acabar com os radares, mas esbarrou na Justiça. Ontem, prometeu:

“Era uma festa no Brasil. Tínhamos mais de 8 mil pontos [de radares], conseguimos passar para 2 mil. Eu quero zerar isso daí, porque não deu certo”.

É ou não é o governo da morte?


Ricardo Noblat: A lista do faz de conta que o governo quer aprovar

Nenhuma menção a programas sociais

Era previsível. Um governo que se instalou sem dispor de um projeto para o país e que assim continua dois anos depois, não tem prioridades, e, por isso, nada pode propor ao Congresso que surpreenda. Foi o que mais uma vez ficou demonstrado.

Jair Bolsonaro entregou aos novos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados o que espera deles, eleitos com seu aval – uma lista com 35 medidas a serem votadas em breve ou quando der. São medidas demais para o conturbado tempo que lhe resta.

2020 foi o ano da pandemia, onde o vírus atrapalhou o funcionamento normal do Congresso. 2021 será o ano da vacinação que, na melhor das hipóteses, entrará pelo próximo ano. 2020 é o ano que não acabou, e 2021 o que acabou cancelado.

Os políticos já estão em 2022 quando terão de renovar seus mandatos ou disputar outros. Nada farão que possa lhes custar votos. Reforma tributária? É complicado demais. Administrativa? Bolsonaro não parece disposto a cortar privilégios.

Privatização de empresas estatais? A Eletrobras poderá ir à leilão como falsa prova de que esse é um governo liberal. Mas não se conte nessa área com um processo robusto de vendas de empresas. Bolsonaro compartilha o nacionalismo equivocado dos militares.

O que de fato interessa a ele é que o Congresso chancele o que mantenha coesa sua base tradicional de sustentação. Assim – quem sabe? – ela engula sem reclamar tanto sua aliança recente com o Centrão, algo que ele disse que jamais faria.

Em um país com cerca de 1 milhão de cidadãos armados, Bolsonaro quer mais facilidades para armar o maior número possível. Milícias e organizações criminosas agradecem. Quer o endurecimento de penas para crimes considerados hediondos.

Quer também o ensino em casa para crianças e adolescentes, longe da influência de professores esquerdistas e sob a desculpa de que só os pais sabem o que deve ser ensinado aos seus filhos. E quer ainda que a mineração em terras indígenas seja liberada.

Ficou de fora do pacote de medidas qualquer menção ao restabelecimento do auxílio emergencial pago aos brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia, e o eventual reforço do programa Bolsa Família que, se depender de Bolsonaro, mudará de nome.

Nada causou espanto na cena montada para que Bolsonaro prestigiasse a reabertura dos trabalhos do Congresso – nem as vaias, nem os gritos de “mito”, nem as imprecações de “fascista” e “genocida”. Sequer mais uma mentira pregada por ele.

Bolsonaro disse que concedeu até aqui mais títulos de terra do que os distribuídos nos últimos 14 anos. Foi para fustigar o PT que governou o país por quase 13 anos. Em 2019, ele concedeu apenas seis títulos. A média anterior foi de três mil títulos por ano.


Ricardo Noblat: Se gritar pegar Centrão, não fica um meu irmão!

Aliança para sempre enquanto dure

Jair Bolsonaro já pagou parte da dívida que tinha com o Centrão ao liberar mais de 3 bilhões de reais para obras em Estados e municípios indicados por deputados e senadores que elegeram Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidir a Câmara e o Senado pelos próximos dois anos.

Se depender de auxiliares de Bolsonaro, porém, a outra parte da dívida – a da entrega de ministérios e outros cargos importantes da administração pública – será resgatada em suaves prestações. É para poder avaliar melhor o quanto o Centrão de fato lhe será fiel. Portanto, nada de reforma ministerial ampla.

O recomendável é que ela aconteça a conta gotas, na medida em que o governo consiga aprovar no Congresso projetos do seu interesse. Eles são muitos, e esse é um dos problemas que Bolsonaro enfrenta porque ele nunca sabe quais deveriam ser prioritários, e emperra na hora de bancá-los e de ir à luta.

Todo cuidado com o Centrão, pois, é pouco. Para o Centrão, a recíproca também é verdadeira: todo cuidado com Bolsonaro é pouco. Um não confia no outro e tem motivos de sobra para não confiar. Como candidato, Bolsonaro desancou o Centrão e disse que jamais governaria na base do toma-lá-dá-cá.

Quando começou a dar foi disfarçadamente para não chocar nem ser malhado por seus seguidores que haviam acreditado em sua palavra. E, queixa-se o Centrão, embora ultimamente tenha sido mais generoso na distribuição de cargos, posições e dinheiro, ele ainda está muito longe de entregar tudo que já foi empenhado.

Quem aderiu a quem – o Centrão a Bolsonaro ou o contrário? A discussão não faz sentido. O Centrão está onde sempre esteve – na antessala de qualquer governo que careça de sua prestimosa ajuda. Tem sido assim desde que ele nasceu durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. E assim será para todo o sempre.

Bolsonaro é filhote do Centrão. Enquanto deputado federal, passou por sete partidos do Centrão e aprendeu com eles o que pôde. Ficou sem partido quando abandonou o PSL pelo qual se elegeu – queria controlá-lo junto com os seus filhos e acabou perdendo a parada. Quis criar um novo partido para chamar de seu – perdeu.

Uma vez que perdeu a parada de intimidar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal para tocar o país como um governante autoritário, restou-lhe dar meia volta e pedir socorro ao Centrão. Socorro para salvá-lo de um pedido de impeachment, salvar os filhos enrascados com a Justiça e salvar o sonho da reeleição.

Não foram Lira e Pacheco que pegaram carona com Bolsonaro para se eleger. Foi Bolsonaro que pegou carona com eles para sobreviver. Bolsonaro elogiou Baleia Rossi (MDB-SP), adversário de Lira, que sempre votou alinhado com o governo, mas afirmou que não o apoiaria porque ele era apoiado pela esquerda.

Ora, ora, ora… A esquerda apoiou Pacheco para presidente do Senado e Bolsonaro não deu um pio. Lira apoiou Lula, apoiou Dilma, apoiou Temer e agora diz que apoiará Bolsonaro. Amor que será eterno enquanto dure e for conveniente.

A Câmara faz por merecer Arthur Lira e Bia Kicis

Uma coisa puxa a outra

Alto lá! Por que a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) não pode presidir a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara? Só por que ela é bolsonarista de raiz?

Só por que ela é investigada pelo Supremo Tribunal Federal no inquérito que apura a distribuição de fake news e o financiamento de movimentos hostis à democracia?

Só por que ela já postou vídeos nas redes sociais ensinando a não usar máscaras contra a Covid-19? Só por que em dezembro último ela incitou os amazonenses a romperem o isolamento social?

A Comissão é a mais importante da Câmara. Cabe a ela analisar a legalidade e a constitucionalidade de todos os projetos que ali chegarem – entre eles, pedidos de impeachment.

É verdade que a presidência da Comissão sempre foi reservada para políticos de renome, de passado ilibado e com grande conhecimento jurídico. Ou então para ex-presidentes da Câmara.

Kicis não atende a tais pré-requisitos. Mas, e daí? A Câmara também não é mais o que foi até o final dos anos 90. Há seis anos, seu presidente, Eduardo Cunha (MDB-RJ), foi cassado e preso.

De resto, se o deputado Arthur Lira (PP-AL) pode presidir a Câmara, por que Kicis não pode presidir a Comissão? O passado de Lira depõe mais contra ele do que o de Kicis contra ela.

Só no Supremo Tribunal Federal, Lira responde a cinco inquéritos. Três sobre a eventual prática de corrupção ativa e passiva – incluindo aquele onde se tornou réu.

O quarto inquérito investiga crime de formação de quadrilha. No quinto, ele foi denunciado por crime de lavagem de dinheiro.

Há ainda uma investigação no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). A acusação, neste caso, é de crime contra a administração pública.

Lira é investigado no Tribunal de Justiça de Alagoas por crimes contra a honra. E tem contra si, ainda, uma acusação de agressão contra sua ex-mulher.

Presidente da Câmara é o segundo na linha de sucessão do presidente da República. Na ausência de Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão, Lira os substituiria.

Deverá ser impedido de fazê-lo porque é réu em ação penal no Supremo. Quem substituirá Bolsonaro e Mourão é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Se a Câmara entende que está em boas mãos com Lira, por que não estará também com Kicis na presidência da Comissão? Os dois se merecem – e a Câmara merece os dois.


Ricardo Noblat: Bolsonaro e o escafandrista do Leblon

A normalização que acolhe e a que implica em graves riscos

Conta a lenda que um escafandrista, nos anos 70, vestido com seu pesado equipamento de mergulho, entrou no Antonio’s, bar mítico do Leblon, na esquina das ruas Bartolomeu Mitre e Ataulfo de Paiva, sentou a uma mesa, tirou o capacete e pediu uma cerveja.

Depois de certo tempo, irritado com a indiferença dos frequentadores do lugar, o jornalista João Saldanha subiu numa cadeira, bateu palmas para chamar atenção e disse em voz alta para ser escutado por todo mundo:

– Pessoal, tem um homem aqui, um escafandrista, com capacete e tudo, tomando cerveja, e isso não é normal, não pode ser normal.

Ninguém deu bola para a fala irritada de Saldanha. Nem mesmo o pacato escafandrista que, depois de tomar três cervejas e servir-se de poucas iguarias, pediu a conta, pagou, repôs o capacete de metal que escondia todo o seu rosto e foi embora se arrastando.

Ah, os cariocas e seu ar blasé! Em janeiro de 1964, o Rio foi sacudido com a notícia de que Brigitte Bardot, uma das atrizes mais famosas do cinema, chegara sem aviso à cidade. Depois do assédio inicial, ela refugiou-se em Búzios com o namorado.

Ficou por lá sem ser incomodada durante quase um ano. Vez por outra surgia o boato: Brigitte voltou ao Rio. Os mais cariocas entre os cariocas já não se abalavam. Alguns se limitavam a comentar com desdém: “Quem, aquela chata? De novo?”

Ninguém parece mais estranhar quando o presidente Jair Bolsonaro diz palavrões em público. Nem mesmo quando os palavrões são usados como ariete para atingir a honra de pessoas ou de um conjunto delas. A ele tudo é permitido.

Os presidentes Lula e Dilma diziam palavrões, mas jamais em público. O país ficou chocado com a quantidade de palavrões que Bolsonaro disparou em abril último durante reunião ministerial que provocou a saída do governo do ex-juiz Sérgio Moro.

Depois disso, não mais. Assim, ele sentiu-se autorizado para na semana passada, em reação ao noticiário sobre gastos do governo com leite condensado, mandar os jornalistas “à puta que os pariu”. Na quarta-feira, numa churrascaria de Brasília, ele esbravejou:

“Vai para puta que o pariu. Imprensa de merda essa daí. É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, vocês da imprensa essa lata de leite condensado”.

No dia seguinte, em Propriá, cidade na divisa de Sergipe com Alagoas, Bolsonaro voltou ao tema, sendo apenas mais sucinto:

“É para enfiar no rabo de jornalista”.

Por pudor, por estar acostumada a ser agredida ou sabe-se lá por que, de uma maneira geral a imprensa preferiu não dar destaque a mais um despautério do presidente da República. Praticamente ignorou-o. As redes sociais se encarregaram da tarefa.

Nem o ex-presidente Donald Trump, o precursor universal dos ataques desmedidos à imprensa, ousou valer-se de linguagem tão agressiva e desrespeitosa com profissionais que eram obrigados a cobrir suas atividades como chefe de Estado.

Só quem ganha com a normalização do comportamento estúpido de Bolsonaro é ele. A malta que o tem como ídolo, também ganha e faz questão de imitá-lo. Cresce no país o número de casos de jornalistas hostilizados no desempenho de suas funções.

Atenção, Justiça! O que falta para que se dê um basta definitivo a isso? Que um jornalista seja morto?


Cristovam Buarque: Unidade e Transição

Para eleger um presidente que nos conduza ao futuro é preciso primeiro impedir um presidente que só vê o passado

Na véspera de iniciar nosso terceiro centenário, precisamos mais que nunca de um presidente capaz de inspirar coesão no presente e rumo para o futuro. Estamos divididos em grupos que não se reconhecem como partes de um mesmo povo, seja pela desigualdade na renda ou pelo sectarismo nas ideias. Estamos ficando para trás na história, sem sintonia com o mundo, por falta de base científica e tecnológica, de capacidade de produzir e poupar, falta de infraestrutura econômica, de solidariedade social e nacional, sobretudo de educação de qualidade para todos. Mas, apesar destes desafios para o terceiro milênio, nossa tarefa imediata é impedir a continuação do atual quadro de divisão sectária, negação da realidade, incompetência gerencial e falta de visão de futuro.

Em 1985, consciente da responsabilidade de impedir a continuação do regime militar, os democratas se uniram, desde os mais progressistas aos mais conservadores, com exceção do PT, que preferiu não votar em Tancredo Neves. A união permitiu cinco anos de democracia, com sucessivas eleições para escolher rumos conforme a proposta de cada candidato. Por nossos erros, nossas divisões, por prioridades e comportamentos equivocados, deixamos que forças autoritárias e retrógradas voltassem ao poder com o voto dos eleitores. Corremos o risco desta interrupção de nossa marcha ao futuro continuar, reeleita pelo eleitor.

Para eleger um presidente que nos conduza ao futuro é preciso primeiro impedir um presidente que só vê o passado e destrói o presente construído nos últimos 35 anos de democracia. Nossa tarefa imediata é impedir a continuação do retrocesso. Elegermos um presidente que permita retomar o debate democrático com bom senso, respeito à verdade e ao contraditório, e então ganharmos impulso para os anos adiante.

Entre 1985 e 1919 fomos capazes de construir uma democracia sob Constituição duradoura; estamos no mais longo período de estabilidade monetária, com uma única moeda; implantamos programas de solidariedade com transferência de renda para os pobres; colocamos quase todas nossas crianças em escolas; mais que dobramos o número de estudantes universitários; conseguimos presença internacional respeitada; demos substanciais avanços nos direitos humanos; mas estamos ameaçados de perder tudo isto.

Temos a obrigação de voltarmos a nos unir em 2022, para elegermos um presidente comprometido em recuperar as conquistas dos últimos 35 anos. Para enfrentar o presidente atual, precisamos apresentar um candidato único, desde o primeiro turno, com baixa rejeição entre os eleitores. Os atuais candidatos precisam deixar seus projetos, metas e interesses nacionais e pessoais para a eleição seguinte; se unirem agora em torno àquele que assuma o compromisso de manter os acertos da democracia e que tenha as melhores condições para atrair os eleitores, graças à menor rejeição ao seu nome, e assuma o compromisso de apenas um mandato. Os demais candidatos adiam suas disputas para 2026 ou assumem o risco de verem 2022 repetir 2018. Os candidatos naturais em 1985, grandes líderes, entenderam o que a história precisava e adiaram suas candidaturas para 1989, dentro do marco democrático. Fizeram unidade e garantiram transição.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Ricardo Noblat: Os fatos teimam em contrariar as falas do presidente

Diário do dia de ontem

O dia em que o presidente Jair Bolsonaro disse que “está fazendo a coisa certa e que não é fácil fazer a coisa certa “foi também o dia em que ele, em live no Facebook, reforçou o desejo de que as torcidas voltem a frequentar os estádios. Em suas palavras:

Temos que voltar a viver, pessoal. Sorrir, fazer piada, brincar. Voltar (o público) nos estádios de futebol o mais cedo possível, que seja com uma quantidade menor, 20%, 30% da capacidade do estádio.

Foi também o dia em que Bolsonaro aconselhou a um grupo de devotos admitido nos jardins do Palácio da Alvorada:

Se eu fosse um dos muitos de vocês, obrigados a ficar em casa, ver a esposa com três, quatro filhos, e eu não ter, como chefe do lar, como levar comida para a casa, eu me envergonharia. Sempre disse que a economia anda de mãos dadas com a vida.

E foi também o dia que em visita a Propriá, na divisa entre Sergipe e Alagoas, ele discursou para uma pequena multidão:

A Europa e alguns países aqui da América do Sul não têm vacina. Sabemos que a procura é grande. Nós assinamos convênios, fizemos contratos desde setembro do ano passado com vários laboratórios. As vacinas começaram a chegar. E vão chegar, para vacinar toda a população em um curto espaço de tempo.

Nesse dia, o Brasil registrou o terceiro maior número de novas mortes por covid-19 em um intervalo de 24 horas. Foram 1.439 óbitos e 60.301 novos casos da doença. No total são 221.676 óbitos até agora e 9.060.786 pessoas contaminadas.

E o Instituto Butantã revelou que tem 54 milhões da vacina Coronavac em estoque, mas que o governo federal não quer dizer se irá comprá-las ou não. Há Estados e países interessados em comprar, mas o silêncio do Ministério da Saúde é um empecilho.

E o Lowy Institute, centro de estudos baseado em Sydney, na Austrália, apontou em relatório que o Brasil foi o país que teve a pior gestão pública durante a pandemia. Ficou na última posição entre 98 governos avaliados.

Ainda nesse dia, recém-nomeado assessor especial do Ministério da Saúde, o general Ridauto Fernandes afirmou que Manaus tem quase 600 pacientes de Covid-19 na fila de atendimento e que, caso evoluam para quadros graves, “vão morrer na rua”.

Em reunião da comissão externa do coronavírus na Câmara dos Deputados, Fernandes enfatizou que o gargalo está na falta de oxigênio. “Abre o leito, bota o paciente e ele vai morrer asfixiado no leito. E aí, vai adiantar abrir o leito?”.

O alerta do general foi ampliado por Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, em entrevista à TV Cultura. Ao comentar a disseminação da nova variante do coronavírus detectada em Manaus, Mandetta previu:

Provavelmente, a gente vai plantar essa cepa em todos os territórios da federação e daqui a 60 dias a gente pode ter uma mega epidemia. 

Pergunta que não cala: a quem os militares devem obediência?

Pandemia é uma guerra

O presidente da República manda a imprensa enfiar latas de leite condensado (você sabe onde) e desce ao nível mais baixo da cadeia alimentar dos seres vivos. Para manter o mesmo diapasão: alguém aqui imaginou ver general e coronéis interventores do Ministério da Saúde fazendo c* doce para comprar mais vacinas do Butantan?

Logo as únicas que o país produz até agora no decorrer de uma pandemia que não para de piorar. Não passa pelo terreno baldio que eles carregam em cima do pescoço que, se demorar a comprar, a China e a Sinovac não terão mais insumos para fornecer este ano? E que a produção é limitada e todo o mundo corre atrás?

Existe corte marcial no Brasil, como em todos os países do mundo que têm forças armadas, para julgar crimes de guerra e contra a humanidade? Combater a pandemia é um tipo de guerra. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, disse que a pandemia é o pior evento enfrentado pela humanidade desde a Segunda Guerra.

O povo brasileiro ainda faz parte da humanidade? Os generais e coronéis do Ministério da Saúde não enfrentarão nenhum julgamento? Ou vamos, de novo, anistiar geral e criar outra Comissão Nacional da Verdade para expor seus crimes daqui a cinquenta anos em cima de uma montanha de cadáveres?

O pretexto da luta contra o comunismo absolveu no passado torturas e mortes. E agora? Alegar “obediência devida” a um superior hierárquico no limite da insanidade absolverá outra vez? O Exército acredita mesmo que está desvinculado do ministério militarizado da Saúde e comandado por um general da ativa?

Se o Brasil estivesse em um conflito bélico, e as vidas dos soldados corressem grave risco, os generais refugariam mais munição e armamento? Pediriam quatro meses para pensar a respeito? Os soldados ainda teriam uma vantagem sobre nós: poderiam desertar e sumir no mundo. Nós não temos para onde fugir.

As Forças Armadas brasileiras juram obediência à Constituição e lealdade ao povo ou a um indivíduo que, por palavras, exemplos e ações induz à morte os que o elegeram e também os que votaram contra ele?