biografia

Sem o setor da indústria, a inovação no país fica capenga

História da Apple, em que a concepção dos produtos exigiu profundo conhecimento de materiais, eletrônica e hardware, nos aponta um caminho diferente, que poderia ser trilhado pelo Brasil

Evandro Milet / A Gazeta

Outro dia escutei uma palestra onde um economista defendia a ideia de que ter indústrias não seria importante para um país, visto que haveria uma tendência para que o setor de serviços tivesse maior relevância para os empregos e para o crescimento da economia.

A história da Apple contada na biografia de Steve Jobs de Walter Isaacson e no livro “Jony Ive, o gênio por trás dos grandes produtos da Apple'' nos dá uma impressão diferente.

A concepção dos produtos não foi algo que se fez apenas desenhando em um software. O trabalho envolveu um profundo conhecimento de materiais, eletrônica e hardware. Houve necessidade de desenvolver novos materiais que atendessem as especificações de tamanho e espessura preconizadas para atender o que Jobs e Ive perceberam como a necessidade que o mercado queria. Estudaram tudo sobre alumínio, aço, acrílico, titânio, vidro, plástico, circuitos, antenas, telas touch. Para implementar as facilidades do movimento de pinça e arrasto na tela descobriram e compraram uma pequena empresa em Delaware, chamada FingerWorks de pesquisadores que criaram a tecnologia. Para o vidro do iPhone foram buscar um novo desenvolvimento pioneiro com a Corning Glass, tradicional indústria de vidros. A quantidade de patentes geradas para cada produto Apple é imensa.

Para o projeto original do iPod os engenheiros casaram um disco da Toshiba com uma bateria de celular e uma tela da Sony; um conversor digital-analógico de uma pequena empresa escocesa, um controlador de interface FireWire da Texas Instruments; um chip de memória flash da Sharp Electronics; um chip de gestão de energia e carregamento da bateria da Linear Technologies Inc; e um chip controlador e decodificador de MP3 da PortalPlayer.

Quando Jony Ive decidiu que o iMac seria transparente, se deu conta que os componentes internos também teriam que ser projetados cuidadosamente, porque passariam a ser visíveis, o que implicava em uma proteção eletromagnética especial já que nos produtos opacos eles ficavam ocultos em uma caixa de metal grande e feiosa.

Jony pediu que os designers trouxessem as peças coloridas e transparentes que pudessem encontrar como inspiração. Trouxeram uma lanterna traseira de BMW, vários utensílios de cozinha, uma garrafa térmica de um azul profundo e brilhante. De fato, o iMac final pareceu um casamento entre a garrafa térmica e uma luz traseira de automóvel. A imaginação está acoplada com o pensamento industrial e não pode ficar distante do ambiente de produção.

A produção de muitos dos equipamentos da Apple é feita em outros países, muitos na China, não pela mão de obra barata, mas pela tecnologia mesmo de fabricação. Os engenheiros da Apple se deslocavam por semanas para as fábricas para acertar a produção. Porém se percebe, pela narrativa apresentada, a importância de conhecer profundamente os componentes e os processos industriais, sem o que ficaria impossível conceber adequadamente os produtos.

O exemplo da Embraer no Brasil mostra a importância do domínio da concepção dos produtos, mas também a capacidade de produção, mesmo que se use os melhores componentes do mundo. A engenharia é fundamental para que se aproveitem as oportunidades de inovação e participação nas cadeias globais de valor. Por exemplo, as novas exigências de sustentabilidade criam enormes possibilidades para quem é capaz de produzir automóveis elétricos ou equipamentos para energias alternativas. Ou empresas capazes de produzir dentro da bioeconomia ou da indústria farmacêutica. Tudo isso exige investimento em P&D, inovação, engenharia, patentes, formação de pessoal técnico e capacidade industrial, mesmo que não para todos os componentes de um produto.

Por que o Brasil não consegue ser relevante nas indústrias fornecedoras do agronegócio ou da mineração, onde domina boa parte das commodities no mundo? Essa história de ficar só concentrado em serviços não se sustenta.

Mas também não cabem mais reservas de mercados, subsídios infinitos, taxações enormes de importação e apoios irreais a pretensos campeões nacionais, normalmente alimentados por lobbies poderosos ou equívocos estratégicos. Os investidores anjo, os fundos de venture capital e private equity e as bolsas de valores estão ávidos por bons projetos capazes de competir no mundo, nos serviços, mas também muito na indústria, com sua enorme capacidade de gerar empregos de alto nível.


Fonte: A Gazeta
https://www.agazeta.com.br/colunas/evandro-milet/sem-o-setor-da-industria-a-inovacao-no-pais-fica-capenga-0821


RPD || Martin Cezar Feijó: Karl Marx, uma biografia para o século XXI

Em seu artigo, Martin Cezar Feijó faz uma análise contundente do novo livro de José Paulo Netto, fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo da obra marxiana

Marx está morto. Sim. Desde 1883.  Marx está vivo! O filósofo do materialismo histórico está mais vivo do que nunca. É o que demonstra um marxista “impenitente”: José Paulo Netto. E é de Marx que quero falar aqui, mais particularmente de uma biografia recém-lançada por ele escrita sobre um pensador combativo do século XIX e sua presença no quadro do século XXI: Karl Marx – uma biografia (Boitempo, 2020). 

Primeiro, quero falar do autor, que conheço bem. E devo muito. Quando eu cursava minha graduação no departamento de História (FFLCH-USP) na década de 1970, reclamávamos muito que não tínhamos Marx em nossos currículos.  

Puxa vida! A direita até hoje diz que a escola pública, principalmente a universidade pública, é um antro de comunistas, e nós não estudávamos o fundador do comunismo?!  

Mas foi por isso que um grupo de estudantes, do qual fiz parte, resolveu criar uma célula voltada à pesquisa: Associação dos Universitários para a Pesquisa em História do Brasil (AUPHIB). E sabíamos que o estudo de Marx seria importante em nossa formação intelectual. Foi por isso que no inicio da década de 1980 soubemos da volta do exílio, com a anistia, de um estudioso em Marx, José Paulo Netto, com quem organizamos um curso de introdução à Marx. O curso era ministrado em uma sala alugada na Galeria Metrópole no centro de São Paulo. Por vários sábados na parte da manhã assistíamos aquelas aulas entusiasmadas de um pesquisador sobre o tema.  

Desde então, sempre acompanhei a trajetória de “Zé Paulo” (daqui para frente, JPN) em seus estudos marxistas. Aliás, devo a ele uma das experiências profissionais mais decisivas em minha vida, a de ter sido convidado em 1985 para editar as páginas de cultura do semanário Voz da Unidade, onde fiquei até 1989. 

Então, não surpreende a publicação de um livro que já nasceu também clássico, com suas 815 páginas densas da mais refinada erudição e profundidade, que resenha nenhuma dará conta.  Principalmente de um resenhista que não esconde seu lado, nem sua admiração.   

Em Karl Marx – Uma biografia, ficamos sabendo sobre o biografado;  de sua origem, sua família, seus estudos, sua militância política, até sua vida privada. E, claro, seu amor por Jenny von Westphalen.  Uma vida difícil, com momentos de total carestia, como o período em que viveram em Londres. Não fosse a ajuda do amigo Engels (de quem se fala muito no livro), a fome seria ainda pior para a família toda, em um momento em que suas pesquisas dariam origem ao Capital.  

Mas os estímulos intelectuais de Marx foram os mais variados, principalmente, antes da economia política, seus interesses literários, principalmente por nomes como Homero, Shakespeare, Schiller e Goethe. Sem falar de sua atenção com o desenvolvimento da ciência, tendo lido e acompanhado as polêmicas envolvendo Darwin. O nome que marcou definitivamente sua formação foi o filósofo G.W.F. Hegel (1770-1831) e um contexto de dissolução da filosofia clássica alemã, que envolveu também Kant e Fichte. 

Depois de uma experiência rica, mesmo que curta, na imprensa como jornalista da Gazeta Renana (1841-1843), Marx sentiu, com a descoberta da economia, uma “necessidade urgente de qualificar-se teoricamente e compreender a vida social” (p.65).  Desse processo surgiram textos como Crítica da Filosofia do Direito em Hegel e Sobre a Questão Judaica, obras fundamentais e maduras para se entender a complexidade do pensamento de Marx.  

Mas é em Paris, segundo JPN, o aprofundamento da crítica a Hegel, e a “descoberta do mundo”. Marx passa a se dedicar ao “mundo do trabalho”, mas também a uma militância política que o levou ao exílio belga, um “exílio tranquilo”, onde formula em 1845 as famosas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo”.  

A vida intelectual se somou a uma intensa militância ao lado de Engels, figura decisiva, aderindo a uma prática revolucionária na Liga dos Comunistas, sobre a qual escreve com o amigo um dos textos mais influentes da história: o Manifesto do Partido Comunista. Em Londres, apesar da penúria, até miséria, entre 1849 e 1867, Marx atinge seu pleno apogeu intelectual, a plenitude de uma obra, cuja compreensão exige muito esforço e dedicação, o que faz JPN neste estudo voltado para o século XXI.  

Marx morreu no dia 14 de março de 1883, mas sua obra se tornou uma realidade no século XX, no plano teórico e na prática histórica, assim como um imenso desafio para o século XXI.  

E, para terminar com um spoiler, usando um termo da moda, o epílogo vira prólogo, com citações de Carlos Drummond de Andrade – A rosa do povo, “Cidade prevista” - e John Lennon – “Imagine”, assumindo um toque de poesia e um conhecimento nascido do rigor da filosofia e da ciência. Marx ainda nos faz pensar. Não só pensar, mas agir, ou como John Lennon, sonhar: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único”, politizando uma aspiração individual. 

*Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Folha de S. Paulo: Primeira biografia de Sueli Carneiro narra vida de lutas em prol da mulher negra

Obra de Bianca Santana sobre uma das maiores intelectuais brasileiras ganha data de lançamento

A Companhia das Letras marcou o lançamento da primeira grande biografia de Sueli Carneiro, uma das mais importantes ativistas do movimento de mulheres negras no Brasil. “Continuo Preta” sai daqui a um mês, em 11 de maio.

Escrita pela jornalista Bianca Santana, a obra mostra como a vida da intelectual, que é doutora em educação pela Universidade de São Paulo e fundadora do Geledés, o Instituto da Mulher Negra, se confunde com a história da luta contra o racismo e o machismo estrutural no país desde, pelo menos, os anos 1970.

Santana conta que, se dependesse de Carneiro, o livro seria todo sobre o ativismo político e a produção intelectual da época “e não falaria nada sobre ela”. “Além de não ter vaidade, a Sueli preza muito por dizer que tudo é coletivo, que mudanças só acontecem de forma coletiva, e que uma visão personalista reforçaria uma perspectiva neoliberal que não nos interessa.”

Em tom de brincadeira, Carneiro definia sua vida à biógrafa da seguinte forma —“entre uma luta e outra, eu comia um pouco, bebia um pouco...”. Mas prevaleceu a ideia de que narrar a própria existência é construir a memória e, conforme argumenta Santana, um meio de combater o racismo.

Afinal, a biógrafa acabou gravando mais de 160 horas de depoimento de Carneiro e ouviu companheiros e familiares da ativista para desenterrar histórias que ela insistia em guardar —como de quando passou anos abrigando um casal que fugia clandestinamente da ditadura.

RENASCIMENTO NEGRO
E a editora Escureceu, criada em novembro passado com projetos de financiamento coletivo para resgatar clássicos de autores negros, já tem confirmados seus dois primeiros lançamentos. Em maio, sai a primeira edição brasileira de “Não Tão Branca”, obra da americana Jessie Redmon Fauset escrita em 1928.

O TRISTE VISIONÁRIO
No mesmo mês, sai uma edição especial de “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto, com capa dura e textos de apoio da crítica Fernanda Silva e Sousa, doutoranda em teoria literária e literatura na Universidade de São Paulo. Ao longo deste ano, a editora planeja ainda uma antologia de fábulas e lendas africanas e outras traduções do movimento conhecido como “Renascimento do Harlem”, do qual Jessie Fauset faz parte.