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El País: Desmatamento na Amazônia dispara e atinge recorde em 12 anos

A maior floresta tropical do mundo perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores no ano passado, 9,5% a mais que no ano anterior

Naiara Galarraga Cortázar, El País

Más notícias para o planeta. O desmatamento na Amazônia ―a cifra anual com a qual o restante do mundo mede o desempenho do Brasil em meio ambiente― disparou no último ano e alcançou o nível mais alto dos últimos 12 anos. A maior floresta tropical do mundo, crucial para conter as mudanças climáticas, perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores, de acordo com o balanço anual divulgado nesta segunda-feira pelas autoridades. Esse aumento, de 9,5% em relação ao ano anterior, evidencia os graves efeitos da política do presidente Jair Bolsonaro de enfraquecer as fiscalizações do meio ambiente, encorajar a impunidade dos invasores de terras e desprezar os indígenas que querem preservar suas terras.

A Amazônia é tão vasta que o Greenpeace fez algumas contas para que seja mais fácil entender a dimensão da perda. São 626 milhões de árvores derrubadas. É como se a cada minuto do ano passado a Amazônia tivesse perdido o equivalente a três campos de futebol, até somar 1,58 milhão de estádios. A ONG sustenta em nota que “o desmantelamento de órgãos e das políticas ambientais nos levou a um índice quase três vezes superior à meta de redução do desmatamento para 2020 estabelecida por lei”.

Dois membros do Governo ―ambos militares da ala mais pragmática e menos ideológica do Gabinete― participaram da apresentação dos dados. No entanto, o ministro do Meio Ambiente não estava com eles. “Não estamos aqui para comemorar nada disso, porque isso não é para comemorar”, disse o vice-presidente, general Hamilton Mourão. Ao seu lado, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, o primeiro astronauta do Brasil. O vice-presidente tem incentivado os inspetores, com frequência fustigados por Bolsonaro, a continuar a fazer seu trabalho orientados pela ciência, a tecnologia e a lei.

A cifra divulgada nesta segunda-feira é resultado das medições feitas por satélites pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). É um balanço anual que abarca a superfície de árvores destruída entre agosto de 2019 e julho de 2020. Sua difusão sempre demora vários meses. E representa um balanço preliminar que só se consolida com os dados definitivos no primeiro semestre do ano.

O Governo Bolsonaro está perfeitamente ciente de que a política ambiental é crítica em suas relações exteriores, tanto com a União Europeia como com os Estados Unidos quando Joe Biden assumir a presidência em janeiro. A ecologia tem um peso enorme no processo de ratificação do acordo comercial UE-Mercosul.

O deslocamento de milhares de militares brasileiros para as áreas mais sensíveis e a criação do Conselho da Amazônia para coordenar todos os órgãos envolvidas no cuidado com o meio ambiente e o combate aos incêndios não reverteram o aumento do desmatamento que começou antes de Bolsonaro chegar ao poder e se acelerou nestes dois anos.

A destruição da Amazônia em 2004 ultrapassou 27.000 quilômetros quadrados (quase o triplo de agora). Foi o primeiro ano de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente. A partir de então, a derrubada anual de árvores diminuiu até chegar a 4.570 quilômetros quadrados em 2012 (o mínimo desde que há medições). E a partir daí, com Dilma Rousseff no poder, a alta recomeçou até atingir a cifra atual.

A WWF, uma organização não-governamental, destaca em um comunicado que o desmatamento registrado desde que Bolsonaro está no poder indica a desconexão do Governo dos desafios e oportunidades (também econômicas) que a Amazônia representa.

O INPE possui um outro sistema, que registra alertas todos os meses e serve para mobilizar os fiscais ambientais ou a polícia, que já havia sinalizado que o desmatamento continuava a aumentar. Em uma crítica, o Greenpeace afirma que, apesar disso, “a resposta do Governo federal ao aumento do desmatamento tem sido mascarar a realidade, militarizar cada vez mais a proteção ambiental e trabalhar para frear as ações da sociedade civil, prejudicando a nossa democracia”, segundo uma porta-voz.


Demétrio Magnoli: Luta de classes nos EUA

Progressistas decidiram falar exclusivamente à 'elite' das grandes cidades e às minorias negra e latina

Jeffrey Sachs, economista, foi o guru das reformas de mercado na Polônia dos anos 1990. Anthony Scaramucci, empresário das finanças oriundo de uma família de trabalhadores, é um republicano convicto que rompeu com Donald TrumpBarack Obama, presidente antes de Trump, é a principal voz do Partido Democrata. Os diagnósticos deles sobre a eleição americana formam um mosaico que ilumina a encruzilhada histórica que se apresenta diante dos progressistas.

Sachs: “A política nos EUA é basicamente uma luta entre os que têm ensino superior e os que têm ensino médio”. Os primeiros votaram nos democratas; os segundos, nos republicanos.

Trump perdeu, mas desmentiu a antiga lenda que associa a expansão da proporção de votantes a triunfos esmagadores do Partido Democrata. Na eleição com maior participação desde 1908, Trump obteve 10,5 milhões de votos a mais do que em 2016 e os republicanos ampliaram sua minoria na Câmara.

O “povo branco” —isto é, os brancos da classe trabalhadora— novamente escolheu Trump, apesar da pandemia e da recessão. Mais: Trump avançou entre os latinos e até entre os homens jovens negros, perdendo nesses setores por margens menores que quatro anos atrás. De certo modo, o Partido Republicano repaginado pelo nacionalismo de direita é o partido popular dos EUA. Há, nisso, um alerta para o Brasil.

Scaramucci: “Foi um voto de protesto contra a elite e a mídia que diz mais sobre os eleitores do que sobre Trump. Essas pessoas já não creem que o sistema serve a seus interesses”.

Não se deve confundir 73 milhões de americanos com um núcleo de fanáticos direitistas. A massa de eleitores de Trump não é formada por “deploráveis”, o rótulo empregado por Hillary Clinton, e não compartilha os trechos mais desprezíveis de seu discurso xenófobo, racista e autoritário.

Mas, sob o impacto da dissolução do “sonho americano”, eles votam contra o “sistema”. A lição vinda dos EUA ajuda a decifrar a popularidade de Jair Bolsonaro.

Obama: “A minha simples presença na Casa Branca desencadeou um pânico profundo: o sentimento de que a ordem natural foi despedaçada. Trump ofereceu, a milhões de americanos assustados pela visão de um homem negro na Casa Branca, um elixir para sua ansiedade racial.” É verdade —mas uma verdade que solicita contexto.

Nos EUA, entre os brancos, a divisão de classes refrata-se como cisão geográfica. A população com ensino superior vive nas principais cidades; os demais, nos núcleos interioranos.

As desigualdades sociais, acirradas nas últimas décadas, empurraram a universidade para fora do alcance de grande parcela da classe média. Um Everest de US$ 1,6 trilhão de dívidas estudantis pesa sobre as costas das famílias que, um dia, nutriram-se do sonho de ascensão social. Trump fala ao “americano esquecido” que desistiu de ouvir Obama.

O mapa eleitoral conta a história inconveniente. O Obama de 2008 triunfou nos estados decisivos do Meio-Oeste em declínio econômico: Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Minnesota e até Ohio e Iowa. O Trump de 2016 venceu em 5 dos 6.

A “ansiedade racial” só se manifestou após o duplo mandato do “homem negro na Casa Branca”. Biden recuperou três desses estados, mas por margens apertadas decorrentes da elevada participação das maiores cidades.

O Partido Democrata tornou-se o partido popular dos EUA por meio de duas rupturas fundamentais separadas por três décadas: Franklin Roosevelt e o New Deal conquistaram a classe trabalhadora do Meio-Oeste; Kennedy, Johnson e a Lei dos Direitos Civis conquistaram o voto negro.

Porém, nos últimos tempos, hipnotizados pelo multiculturalismo, os progressistas decidiram falar exclusivamente à “elite” das grandes cidades e às minorias negra e latina.

A opção asfaltou a estrada na qual transita a direita nacional-populista. Biden não assinala o fim da história.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Ruy Castro: O mundo que espere por Bolsonaro

E espere sentado porque, enquanto não for a hora certa, ele não cumprimentará Biden

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, declarou que Jair Bolsonaro irá cumprimentar o presidente eleito americano, Joe Biden, “na hora certa”. Significa que, para Mourão, os líderes mundiais que ignoraram o esperneio de mau perdedor de Donald Trump e reconheceram a vitória de Biden, como os representantes de Alemanha, França, Reino Unido, Canadá, Índia, Israel, Emirados Árabes, Irã, Iraque, Egito, Jordânia, Líbano, União Europeia, ONU, OMS, Otan e até nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Chile, fizeram isso na hora errada.

Para Mourão, especialista em dizer platitudes ao ser abordado em trânsito entre um gabinete vazio e outro desocupado, Bolsonaro faz bem em “esperar que termine esse imbróglio aí, de discussão, se tem voto falso, se não tem, para dar o posicionamento dele”. Deve imaginar que Biden e os países mais adultos e responsáveis estão esperando sentados, sem respirar, por Bolsonaro. E que, quando ele falar, as relações entre Brasil e EUA tomarão seu caráter institucional normal, como entre dois países com o mesmo peso.

Mas não é assim, claro, ou Bolsonaro e seus zeros não teriam dedicado os últimos dois anos a abjetos shows de subserviência diante de Trump —que, ao contrário do que eles pensam, não foram recebidos com apreço pelo clown americano, mas com o desprezo devido aos que rastejam diante do nhonhô. Se, como se diz, Trump chama seus próprios seguidores de “otários”, imagine sua opinião sobre Bolsonaro —se é que alguma vez este lhe veio à cabeça fora da agenda oficial.

Além disso, Trump tem mais com o que se preocupar neste momento do que com o apoio de remotos políticos bananeiros. Está consciente de que, assim que for evaporado da Casa Branca, uma chuva de processos o espera na dona Justa.

Recomenda-se a quem achar no lixo o boné de Eduardo Bolsonaro com os dizeres “Trump 2020” que o deixe lá. Pode ter sido ele que deu azar.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ricardo Noblat: Bolsonaro é a mais perfeita tradução do seu (des) governo

De volta à normalidade

Em dia de fúria, o presidente Jair Bolsonaro teve pelo menos um momento de argúcia. Foi quando desabafou, em cerimônia no Palácio do Planalto: “Não estou preocupado com a minha biografia. Se é que eu tenho biografia”. De fato, não está. Do contrário, não teria feito o que fez em um período de poucas horas.

Começou o dia celebrando o falso insucesso da vacina chinesa contra a Covid-19. Depois disse que o Brasil, temeroso do vírus, não passa de um país de maricas. Por fim, afirmou que se não houver entendimento com o futuro governo de Joe Biden em torno do futuro da Amazônia, chegará a hora de usar a pólvora.

Biden ameaça o Brasil com sanções econômicas se Bolsonaro não cuidar melhor da Amazônia, onde aumenta o desmatamento e multiplicam-se os focos de incêndio. Bolsonaro tenta vender aos brasileiros a ideia de que outros povos querem ocupar a Amazônia porque ela é muito rica em minérios. Daí a referência a guerra.

Foram os chineses que inventaram a pólvora. Segundo garantiu há oito anos o general Maynard Marques Santa Rosa, ex-secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa, as Forças Armadas do Brasil não possuem munição suficiente para sustentar uma hora de combate.

Bravata pura de Bolsonaro! Que mereceu, uma hora mais tarde, a resposta indireta do embaixador americano no Brasil. Viralizou nas redes sociais o vídeo postado pelo embaixador sobre a passagem de mais um aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Uma demonstração de força bem a propósito.

O saldo do dia em que Bolsonaro despiu a fantasia recém-vestida de presidente normal e reconciliou-se com o que sempre foi, é e será, pode ser resumido assim:

  • Aumentou a desconfiança em relação a uma vacina promissora como tantas outras que estão sendo testadas aqui e lá fora;
  • Aumentou também a desconfiança nas decisões técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, até aqui amplamente respeitada no exterior;
  • O Supremo Tribunal Federal sentiu-se obrigado a interferir na questão dando um prazo de 48 horas para que o governo explique por que suspendeu os testes com a Coronavac;
  • Outra vez, os governadores se uniram contra o presidente da República e o acusaram de politizar o combate à pandemia.

O que mais, além do medo de não se reeleger em 2022, levaria Bolsonaro a comportar-se da forma estúpida e amadora como se comportou criando uma uma nova crise? Não é possível que a derrota do seu ídolo Donald Trump o tenha afetado tão gravemente a ponto de ele perder o juízo.

Maior do que o medo de não se reeleger deve ser o medo de assistir ao colapso da carreira política do seu filho mais velho Flávio Bolsonaro, réu pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no esquema de desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio de Janeiro.

O presidente acidental eleito há dois anos transformou-se num presidente atormentado. Ruim para ele, pior para o país.

Para o livro dos pensamentos de um presidente atormentado

Medo de perder a cadeira e apelo para que deixem sua família em paz

  • “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o [governador João Doria] queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la”, escreveu o presidente como resposta. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.
  • “Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade, tem que deixar de ser um país de maricas”.

(Maricas, segundo os dicionários, quer dizer: que tem comportamentos tidos como femininos; efeminado; que é homossexual; gay; repleto de covardia e medo.)

  • “Começam a amedrontar o povo brasileiro com a segunda onda. […] O que faltou para nós não foi um líder, foi não deixar o líder trabalhar”.
  • “Vem uma turminha aí falar ‘queremos o centro’, nem ódio para cá nem ódio para lá. Ódio é coisa de maricas. Meu tempo de bullying na escola era porrada. Agora chamar um cara de gordo é bullying. Nós temos como mudar o destino do Brasil, não terão outra oportunidade”.
  • “Querem chegar lá [na presidência] não pelos seus próprios méritos. Não querem chegar pelos seus méritos, mas derrubar quem está lá. Se alguém acha que tenho ‘uma tesão’ por aquela cadeira lá está completamente enganado.”
  • “Não teremos um líder feito no Brasil de dois anos, não vai aparecer. A não ser montado na grana, comprando um tantão de coisa por aí, em especial os marqueteiros. Fora isso, não terão outros líderes num curto espaço de tempo”.
  • “O Brasil não pode ir para esse lado (da esquerda), meu Deus do céu. Minha cadeira está à disposição. [Vejo pessoas] criticando, falando mal, falando besteira, mentindo, provocando, caluniando, perseguindo meus familiares o tempo todo”.

Elio Gaspari: Diplomacia sem cloroquina

Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países

Donald Trump está oferecendo ao mundo uma cena de desequilíbrio explícito recusando-se a admitir sua derrota eleitoral. Problema dos americanos. O Brasil nada tem a ver com isso. Desde o fim da semana passada, criou-se uma saia justa porque o presidente Jair Bolsonaro não felicitou Joe Biden pela sua vitória. É um bom tema para alimentar conversas, mas sua relevância é igual à da cloroquina para a cura da Covid. Pode, no máximo, ser um silêncio descortês, mas, nesse negócio de reconhecimento indevido, a medalha está com a diplomacia americana, que, em 1964, reconheceu o deputado Ranieri Mazzilli como presidente, enquanto João Goulart ainda estava no Brasil. Pior, fizeram isso sem consultar o presidente Lyndon Johnson.

No dia 20 de janeiro, Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. No limite, Trump deixará a cidade antes disso. Tudo bem. Em 1801, John Adams foi-se embora e não participou da posse de Thomas Jefferson. Talvez Trump fique de cara fechada na limusine que o levará, ao lado de Biden, da Casa Branca ao Capitólio. Tudo bem de novo. Em 1953, o general Eisenhower e o presidente Truman mal trocaram algumas palavras durante o percurso. Malquerenças à parte, no dia seguinte Jefferson e Eisenhower governavam os Estados Unidos, e, a partir da tarde do dia 20, Joe Biden assinará seus primeiros papéis na Casa Branca.

Pitis são irrelevâncias nas relações entre os países. Bolsonaro e Biden têm opiniões diferentes em relação ao meio ambiente, uma ninharia se comparadas a divergências anteriores, como a do Acordo Nuclear que o Brasil assinou com a Alemanha, e o governo americano ostensivamente ajudou a detonar. Salvo a ação de agrotrogloditas nacionais e de suas milícias piromaníacas, há um imenso campo para o entendimento com os Estados Unidos e as grandes nações europeias em relação à floresta. Até há bem pouco tempo, o Brasil não era um pária. Se passou a sê-lo, com um chanceler que se orgulha disso, o problema é do atual governo. Assim foi com a agenda dos direitos humanos no século passado. Ela era um espinho no pé da ditadura, não de Pindorama. Nunca é demais lembrar que a famosa frase “o Brasil não é um país sério” jamais foi dita pelo presidente francês Charles De Gaulle. Seu autor foi o embaixador brasileiro em Paris.

Como perguntou o documento do Conselho Nacional da Amazônia Legal revelado pelo repórter Mateus Vargas: “Será que vale a pena a troca de provocações nas Relações Internacionais?”.

Joe Biden é um dos poucos presidentes eleitos americanos que estiveram no Brasil. Isso garante que ele não pensa que a capital do país seja Buenos Aires. George Bush não sabia que aqui há negros, e em 1945 Franklin Roosevelt achava que Getúlio Vargas fosse um general. Ao contrário de Trump, o presidente eleito dos Estados Unidos tem uma relação racional com o Departamento de Estado, e pode-se esperar que pratique uma diplomacia ouvindo os profissionais. Em 2015, ele cruzou com o venezuelano Nicolás Maduro numa reunião em Brasília. Tudo pronto para um piti, Biden cumprimentou-o e disse que, se tivesse a cabeleira do colega, seria presidente dos Estados Unidos. Mesmo com uns poucos fios transplantados, conseguiu.

Quem preferir algum tipo de diplomacia temperamental jogará para seu público interno.


Hélio Schwartsman: Democracia na América

Sistema eleitoral nos EUA é pouco republicano e ruim de apurar

Se fizéssemos um concurso para escolher o pior sistema eleitoral do planeta, teríamos dificuldades para projetar algum que superasse o americano. Ele é pouco republicano (os votos dos cidadãos não têm o mesmo peso), ruim de apurar e multiplica por 51 a probabilidade de resultados apertados que podem dar margem a contestações. Ainda assim, não vejo como se possa afirmar que os EUA não são uma democracia.

E isso nos leva ao tema da coluna de hoje: boas leis ajudam a criar um ambiente favorável à democracia e a outras virtudes públicas, mas é possível exercê-las mesmo se as leis não forem muito boas. Temos um justificado fetiche por protocolos e normas escritas que tanto nos facilitam a vida, mas eles são só a face mais visível da institucionalidade, que, ao fim e ao cabo, tem mais a ver com os comportamentos e atitudes adotados no mundo real do que com sua codificação.

Isso nem deveria ser uma surpresa. O Reino Unido e Israel são democracias mesmo sem dispor de uma constituição escrita. No polo oposto, a constituição soviética de 1936 era ótima no capítulo dos direitos e liberdades, o que não impediu a URSS de ser uma ditadura.

Nada disso era segredo para Tocqueville, que, em sua obra clássica, identificou nas atitudes da sociedade civil a força da democracia na América. Podemos ter visto uma demonstração disso na reação de cidadãos, empresas e instituições à tentativa de Trump de melar as apurações.

O presidente transpôs uma linha vermelha, porque até políticos aliados e órgãos de comunicação simpáticos ao magnata rejeitaram com veemência seu discurso delirante sobre fraudes. Redes de TV aberta chegaram a interromper a transmissão de sua fala. Algo parecido se deu nas redes sociais. Órgãos federais, como a FAA (agência federal de aviação) e o Serviço Secreto, em tese subordinadas a Trump, já começaram a proteção do virtual presidente eleito —sem perguntar nada para o chefe.


Merval Pereira: Perna curta

A decisão das três redes de televisão abertas dos Estados Unidos - ABC, CBS e NBC - de tirar do ar o pronunciamento do presidente Donald Trump na Casa Branca acusando a apuração da eleição presidencial de fraudulenta sem apresentar a menor prova foi drástica, mas com certeza já havia sido combinada entre as redes para o caso de uma declaração estapafúrdia colocar em risco a credibilidade da eleição. Aconteceu quando o presidente já era um “pato manco”, como se define um político em fim de mandato.

A drástica decisão tem uma explicação: o presidente Trump estava colocando em risco a segurança nacional e a dos cidadãos, ao dizer que estava sendo roubado, incentivando protestos de seus eleitores. O temor de vandalismo que levou diversas cidades dos Estados Unidos a proteger suas lojas e casas com tapumes, inclusive Washington com a Casa Branca, numa triste imagem espalhada pelo mundo, motivou a atitude das redes de televisão, assumindo um papel delicado, o de censurar a palavra de um presidente da República em pronunciamento oficial na Casa Branca.

Há uma série de erros a partir daí, a começar pelo fato de que Trump não poderia usar a Casa Branca para fazer proselitismo político em meio à apuração da eleição. Foi uma atitude clara de pressão sobre os estados em que perdia, além de passar adiante boatos e rumores que ganham ares de verdade saindo da boca do presidente da República.

Trump mentiu, como sempre, no pronunciamento que provocou a decisão polêmica das redes de televisão. Mas sempre foi assim, e a imprensa nunca tomou uma decisão tão definitiva como essa. Eu prefiro uma posição mais razoável, como a CNN Internacional ou a Fox fizeram: deixá-lo mentir, e, em seguida, denunciar a mentira. Mentira tem perna curta.

Não cabe aos meios de comunicação censurar o presidente da República, por mais baixo e vulgar que ele seja. No caso em questão, seria impossível não transmitir, pois, embora desconfiassem qual seria sua posição, nem os jornalistas nem os políticos tinham certeza de quão longe ele iria.

Aqui no Brasil, pôde-se tomar a decisão de parar de acompanhar as falas do presidente Bolsonaro na porta do Palácio do Planalto pelas manhãs porque ele assumiu uma atitude de menosprezo pelo trabalho dos jornalistas, jogando-os contra seus seguidores mais fanáticos que ali compareciam para pedir favores ou simplesmente tirar uma foto com ele. Bolsonaro segregou os jornalistas em um curral, e incentivava seus seguidores a criticá-los, o que deixou de ser um acompanhamento da atividade do presidente para se transformar em um circo político contra o jornalismo independente. Além do mais, não eram pronunciamentos oficiais, mas conversas informais com seus seguidores.

Os EUA não têm tribunais regionais, nem um tribunal superior para lidar com as questões das campanhas eleitorais, e mais uma vez os fatos demonstram que é melhor tê-los. O que parecia um exagero de nosso sistema judicial mostrou-se muito útil, sobretudo em situações como a que a apuração da corrida presidencial nos Estados Unidos chegou.

Como não há um órgão centralizador para organizar os recursos eleitorais, cada estado terá que lidar de maneira diferente com os recursos de Donald Trump em seu próprio sistema judicial. E cada estado tem legislação diferente sobre a eleição e seus desdobramentos. Depois de 2000, alguns estados decidiram recontar os votos automaticamente se a diferença for de menos de 1%. Outros recontam se a diferença for de 0,5%. Outros só recontam se a Justiça mandar.

Os recursos são encaminhados à justiça de primeira instância, e alguns podem subir até a Suprema Corte, dependendo da situação. Por isso, ainda vai demorar alguns dias para Joe Biden ser anunciado oficialmente como presidente dos Estados Unidos. A pressão sobre Trump já está muito grande, por parte de assessores mais corajosos e de políticos republicanos.

Tentam convencê-lo de que o Partido Republicano teve uma eleição vitoriosa, podendo manter a maioria do Senado e aumentando o número de votos, tudo isso devido à sua liderança política. O próprio Trump recebeu mais votos que Barack Obama quando foi eleito, aumentando sua votação em relação a 2016.

Mas, em vez de sair como um grande líder político e preparar o partido para retomar o poder em 2024, Trump pode perder força política interna depois das atitudes e declarações irresponsáveis, que andaram incomodando no interior do partido Republicano, embora mantenha a força popular.


Sérgio Abranches: EUA de volta ao futuro

A vitória de Joe Biden marca um novo momento político nos Estados Unidos. Em um sentido muito direto, ela repõe o país na trilha que havia sido aberta pela eleição de Barack Obama. É mais do que a eleição de Biden, um senior Democrata moderado, para presidente. A eleição de Kamala Harris é um marco em si e além do que Biden representa. É a primeira mulher, a primeira pessoa de origem em várias minorias, negra, latina, asiática, a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Esta vitória é resultado da formação de uma coalizão que uniu Democratas moderados e de esquerda, em torno dos dois. Uma nova coalizão progressista, que aposta no Green New Deal e repõe a diversidade americana no caminho da plena cidadania.

A eleição de 2008 foi um marco. Levou à Casa Branca, pela primeira vez na história, um presidente negro. Foi o resultado de uma longa luta, que começou, no plano institucional, com a aprovação da 14a Emenda à Constituição, em 1868, dando aos afroamericanos os direitos de cidadania política. Mas eleitores negros continuaram a ser barrados nos locais de votação e a supressão do voto negro continuou. Para enfrentar mais seriamente este bloqueio, a 15a Emenda à Constituição, aprovada em 1870, determinou mais claramente que o direito aos cidadãos dos Estados Unidos não podem ser negados ou reduzidos pelos Estados Unidos ou qualquer um dos estados, com base em raça, cor, ou situação prévia de servidão. Mas, a luta prosseguiu, penosa e sangrenta. Passou pelos anos 1960 e 1970, por Martin Luther King, seu sonho e seu assassinato, até chegar a 2008 e a eleição de Obama, filho do segundo casamento de um economista queniano e uma antropóloga de origem anglo-saxônica.

Mas, a luta não acabou. As vítimas negras da brutalidade policial, atravessaram o governo Obama e aumentaram com Donald Trump. O assassinato de George Floyd à luz do dia, por dois policiais brancos, tornou-se o leit motiv para o movimento Black Lives Matter, que globalizou. O retorno à trilha inaugurada por Obama, entretanto, é efetivo e relevante. Kamala Harris na Vice-Presidência dos Estados Unidos compartilha os símbolos do poder imperial da Presidência — ela terá a segurança, o avião e o helicóptero Air Force Two, o respeito e a deferência prestados aos governantes dos Estados Unidos. Esta mulher sintetiza, para além de Obama, a possibilidade de estar no poder do conjunto das minorias étnicas do país e das mulheres. Não é pouco, nem é trivial.

Este resultado é importante, também porque demonstra, inequivocamente, a incidentalidade de governantes como Donald Trump. Ele entrou numa eleição atípica, em 2016, e sai numa eleição atípica em 2020. Como eu disse ser a trajetória provável dos governantes incidentais em meu livro (O Tempo dos Governantes Incidentais, Companhia das Letras, 2020). Quando este tipo de governante obtém o segundo mandato, é muito perigoso, porque escala o ataque às instituições democráticas por dentro. Eleição atípica, no segundo caso, por duas razões. A primeira, a campanha desigual, com Biden respeitando as regras de segurança na pandemia, mesmo com prejuízo de sua presença em colégios eleitorais relevantes e da reunião de eleitores no seu entorno. Trump, ao contrário, manteve comícios em desprezo a qualquer protocolo de segurança sanitária e, nos últimos três dias, fez um rali de comícios, chegando a ir a dez estados por dia. E perdeu. A segunda, a quantidade inédita de votos antecipados e, principalmente, por e-mail. Estes votos foram esmagadoramente por Biden, porque ele e seus correligionários convocaram os eleitores a votar desta maneira, o voto era importante e a necessidade de votar de forma segura, sem aglomerações ou filas, também. Foi a vitória da responsabilidade contra a insensatez.

Politicamente, a eleição de Biden foi apoiada por uma ampla coalizão antiTrump e pela democracia, que uniu o centro e a centro-direita do partido à sua esquerda, buscou os independentes e atraiu personalidades republicanas. Uma ampla coalizão que alcançava também os representantes e os movimentos sociais das minorias. Esta amplitude e diversidade teve como representante Kamala Harris.

No plano geopolítico, a vitória de Biden/Harris, tem várias implicações importantes. É uma mensagem dizendo que os governantes incidentais, por mais poderosos que pareçam, podem ser derrotados. É, também, uma convocação para a luta contra a intolerância contra minorias étnicas, imigrantes e todas as demais minorias. Deve demarcar o início do processo de reconstrução do multilateralismo, em maior sintonia com os desafios existenciais desafiando a governança global, como a mudança climática, os refugiados, os imigrantes, a crise global e a vertiginosa transição estrutural e tecnológica.

Biden não mudará radicalmente a atitude internacional dos Estados Unidos. Não tenho a ingenuidade de imaginá-lo como um revolucionário, no plano doméstico ou internacional. Obama tampouco o foi. Mas são avanços significativos e devem ser considerados como tal. Joe Biden e Kamala Harris, presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, repõem os Estados Unidos de volta à trilha do futuro.

*Sérgio Abranches, cientista político


Merval Pereira: Bananas americanas

O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.

Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.

À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.

Restarão a ele exemplares raros, como o Aleksandr Lukashenko, da Bielorússia, que queria resolver a COVID-19 com vodka e sauna; o presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdimukhamedov, que proibiu a palavra coronavírus, o premier húngaro Viktor Orbán. Todos eles, e mais pequenos ditadores africanos e do Oriente Médio, têm em comum com o ainda presidente Donald Trump uma agenda conservadora que vai da negação da ciência, aí incluído o meio ambiente, à defesa hipócrita da pátria e dos valores da família.

A provável derrota de Trump não o retirará da política, pois já existe um movimento interno para fazê-lo candidato em 2024. Existe essa possibilidade porque a 22ª emenda da Constituição americana se refere apenas à impossibilidade de eleição para presidente por mais de dois mandatos.

A limitação foi aprovada depois que Franklin Roosevelt foi eleito por quatro mandatos. Tradicionalmente, um ex-presidente não exerce nenhum outro cargo, embora existam casos de ex-presidentes que voltaram ao Senado, como Andrew Johnson, ou William Howard Taft, que exerceu o cargo de Chefe de Justiça após sair da presidência. O único presidente que, não tendo sido reeleito, voltou à presidência depois foi Grover Cleveland, em 1892.

Nada indica que o presidente Trump aceite uma eventual derrota sem questiona-la na Justiça, tentando ir até mesmo à Corte Suprema, como reafirmou ontem. Não foi à toa que ele insistiu em nomear antes mesmo da eleição uma juíza para a vaga aberta. Com seis votos conservadores em nove, ele acredita que poderá ganhar no último recurso.

Talvez a principal razão para que Trump se entregue com tanto afinco a não aceitar uma derrota seja o receio das possíveis ações legais que teria que enfrentar em Nova York, onde está a maioria de seus negócios. Mais do que seu ego, que é outro grande obstáculo a uma posição razoável. Assessores e líderes republicanos não concordaram com a declaração de que havia fraude na eleição, mas Trump já disse que, “ganhar é fácil, perder é difícil”.

O ex-vice-presidente Biden tem se dedicado a marcar a diferença entre ele e Trump. Todos os seus pronunciamentos têm sido no sentido de unir o país, de pedir calma e paciência para que todos os votos sejam contados e garantir indiretamente que aceitará o resultado das urnas em caso de uma derrota que ele não vislumbra.

Já o presidente Trump dedica-se a mandar mensagens pelas redes sociais alertando contra supostas fraudes nunca comprovadas, e pedindo que as cédulas eleitorais chegadas pelo correio não sejam contadas. À noite, fez a mais sensacionalista declaração desde o início da apuração, reforçando, sem mostrar provas, a denúncia de que está havendo fraude na contabilização dos votos.

É um fato singular na história da democracia americana, que coloca o país no rol das repúblicas de banana, expressão criada pelos próprios americanos para definir pejorativamente países politicamente instáveis, submetidos a governantes autoritários.


Merval Pereira: Paradoxos da democracia

Esta eleição presidencial dos Estados Unidos está sendo paradoxal, com cerca de 157 milhões de americanos comparecendo às urnas sem serem obrigados a isso, a maior participação popular nos últimos cem anos, ao mesmo tempo que o presidente Trump, que tenta a reeleição, coloca em dúvida a lisura da apuração em estados como Wisconsin e Michigan, mas joga suas fichas numa vitória em alguns outros estados que ainda apuram para impedir que Biden seja declarado presidente.

Ou seja, Trump quer parar a apuração em estados em que está perdendo, e acelerar a apuração nos que acredita poder vencer. Mas ele tenta parar também a apuração em estados em que vence, como a Pensilvânia, mas teme perder ao final, pois considera suspeita a recuperação de Biden com os votos vindos pelo correio.

A diferença entre Biden e Trump em vários estados é muito pequena, e o presidente Trump já começa a pedir recontagem. Mas ele venceu Hilary em 2016 por uma margem muito apertada também em vários estados, e não houve apelação dos democratas. Os republicanos na era Trump passaram a fazer jogadas políticas muito mais desleais do que historicamente acontecia. Trump dominou o partido republicano e suas práticas. Como nomear uma ministra da Suprema Corte em processo rapidíssimo, poucos meses antes da eleição, quando impediram que o então presidente Obama nomeasse o substituto de Antonin Scalia quase um ano antes da eleição.

Não creio que tenham resultado positivo esses recursos, porque é tão obvia a falta de razão, tão claro que está com medo dos votos pelo correio, que qualquer ação sem provas cabais não será aceita. Depois do caso de 2000, em que Bush acabou vencendo Al Gore por excesso de recursos, que esgotaram o prazo legal para a recontagem, há mais cautela na Justiça americana.

Tudo demonstra que Trump está preparado para fazer o que puder para não perder a Casa Branca. Há possibilidade, cada vez menor, de que ganhe, mas se perder, vai tentar barrar a vitória de Biden na Justiça, o que só prejudica a democracia americana. O fato é que Trump mostrou enorme capacidade de convencer as pessoas, de ganhar votos, e a maneira de ele ver o mundo predomina em praticamente metade do eleitorado americano. O recurso da campanha de Trump à Suprema Corte para que seja derrubada uma decisão que permitiu à Pensilvânia receber até sexta-feira cédulas de votação enviadas pelo correio é sua terceira tentativa.

Os juízes já rejeitaram dois recursos semelhantes, mas haveria uma possibilidade de anular esses votos caso fossem decisivos para a definição da eleição. O problema para Trump é que tendo Biden vencido em Michigan, Wisconsin e Arizona, os democratas não precisam dos votos da Pensilvânia para vencer. Faltariam apenas seis delegados para alcançar os 270 votos necessários no Colégio Eleitoral, o que pode acontecer com a retomada da apuração em Nevada, onde Biden vence por uma estreita margem.

Os 157 milhões de eleitores que votaram para eleger o novo presidente representam 65,7% dos cidadãos com direito a voto, acima dos 60,1% registados nas eleições presidenciais de 2016, vencidas por Trump. O candidato democrata Joe Biden recebeu mais de 70 milhões de votos pessoais, a maior votação individual de um candidato na história dos Estados Unidos. Todos esses recordes demonstram que a democracia americana está em plena potência, apesar da polarização política que foi reafirmada nessa eleição.

A atuação de Trump, lançando acusações sem provas contra a apuração dos votos vindos pelo correio, e judicializando a eleição como estratégia política, mina a democracia, e coloca um país dividido diante de uma possibilidade de confrontações de grupos políticos. O candidato Joe Biden teve uma atuação de estadista quando foi a público fazer uma exigência mínima: vamos contar os votos até o final. Cada voto vale, e o que a apuração mostrar será a verdade das urnas, a verdade do eleitor americano. Não cantou vitória antes do tempo.


Míriam Leitão: O estadista e a assombração

O discurso de Joe Biden ontem à noite foi uma serena declaração de vitória, mesmo que ele tenha negado já ter vencido a eleição. Precisava confirmar seu lema de que “todo voto será contado”. Agiu e falou como um estadista tentando reunir o país após a eleição. No mesmo momento, o presidente Donald Trump queria parar a contagem dos votos. Trump continuará sendo forte após a derrota na eleição? Não. O que lhe deu força nos últimos quatro anos foi o extraordinário poder da presidência americana. Fora dela, será apenas o ex-presidente. Mas o país que sai das urnas está com fratura exposta, o que exigirá de Biden um enorme esforço para superar tão funda ferida.

O partido Republicano terá que fazer algum tipo de transição para uma liderança mais moderada para voltar a se comunicar com uma parte do eleitorado. Até por instinto de sobrevivência, precisará se afastar de Trump, o líder tóxico. O partido Democrata, mesmo vencendo a eleição, precisará de muita habilidade para governar. Primeiro, para costurar as diferenças das tendências internas, depois para governar sem o controle do Senado, e por fim, e mais importante, para reduzir a extrema tensão que dominou o país nos últimos anos.

O primeiro sinal de fraqueza foi dado por Trump quando cantou vitória na madrugada de quarta-feira, mas ameaçando ir à Suprema Corte, já falando em fraude. Era o seu melhor momento da apuração e Trump ameaçava. Deixou claro que na aparente calma com que falava e se declarava vitorioso, com tanto ainda a ser apurado, estava mais uma vez usando a estratégia de criar confusão. No final do dia de ontem ele exigia a recontagem dos votos em Wisconsin, uma tropa trumpista tumultuava um centro de apuração em Detroit, e ele falou em ir à Suprema Corte para parar de contar votos.

Confirmou-se desde o começo da apuração o cenário de um país dividido, em que uma parte do eleitorado é estimulada a não confiar nas regras do jogo, e no qual a eleição é decidida por pouco. O aumento da participação popular no processo eleitoral não trouxe a moderação, mas sim mostrou a profundidade da divisão do país. Na sociedade, isso indica conflitos e violência, e no sistema político, impasse e paralisia.

Para a economia é um cenário difícil. A recessão reduziu de intensidade no terceiro trimestre, mas os Estados Unidos ainda não recuperaram o que perderam. Como todos os países do mundo. A segunda onda da pandemia aprofundará a crise. A vitória de Biden fará com que nos próximos dois meses e meio um presidente lame duck (pato manco), que sempre negou a gravidade da pandemia, esteja ainda no comando do aparato governamental. O Congresso terá que encontrar caminhos para negociar o pacote de ajuda com o Congresso. E ontem até o líder trumpista no Senado, Mitch McConnell, disse que mais estímulos serão aprovados este ano.

Há problemas por todos os lados na sociedade americana, ela sai politraumatizada deste período de uma presidência conflituosa e que quebrou todos os protocolos. As velhas divisões raciais se somaram a uma radicalização religiosa e moralista. Donald Trump, como suas cópias no mundo, é pessoa totalmente distante dos valores de família e de religião que ele manipula. Também é apenas estratégia apostar na anticiência, nos delírios persecutórios, nas teorias da conspiração. Mas com isso ele conseguiu uma legião de eleitores. Suficiente para alimentar o discurso de descrédito das instituições, mas insuficiente para mantê-lo na Casa Branca.

Esses têm sido tempos de enorme desafio para a democracia, tempos que assombraram os corações das pessoas que sabem o que os extremistas de direita já fizeram contra a humanidade. No segundo mandato Trump iria escalar o trabalho de demolição da democracia americana. Ouvir palavras serenas de Joe Biden falando o que se espera de um vencedor, que se proponha a governar para todos, afastando a divisão entre estados azuis e vermelhos, é tranquilizador. “Foi uma campanha difícil, mas mais difícil para o país. É hora de baixar a temperatura, de ouvir um ao outro, de enxergar o outro, de respeitar e cuidar um do outro novamente. Unir, sarar e ficar juntos como uma Nação”, disse Biden. A realidade ainda trará as dificuldades e dores do tempo presente. Mas é esperança o que está diante de nós.


Luiz Carlos Azedo: A vitória de Biden

A gravidade do que Trump está fazendo, ao tentar melar as eleições, é a ruptura com a ordem democrática dos Estados Unidos, o regime republicano mais antigo e estável do planeta

Ao contrário do republicano Donald Trump, que se declarou reeleito e prometeu contestar o resultado da apuração das eleições à Presidência dos Estados Unidos na Suprema Corte, o candidato democrata Joe Biden não cantou vitória antes da hora. Aguarda a conclusão da apuração dos votos em todos os estados, embora Arizona, Nevada e Wisconsin, desde a tarde de ontem, e Michigan, no começo da noite, já sinalizassem a vitória democrata, que ainda podem virar o resultado na Pensilvânia e ampliar a margem sobre os republicanos. Trump, porém, não quer deixar a Casa Branca, está fazendo tudo para melar a apuração dos votos e pode levar os Estados Unidos à inédita crise institucional, o que torna o pleito ainda mais paradigmático.

O sistema eleitoral norte-americano é complicado, difere de todos os demais países democráticos. As eleições nacionais são para a Câmara dos Deputados, o Senado e a Presidência. Há um total de 435 representantes na chamada Câmara Baixa (House of Representatives) do Capitólio americano, com mandato de dois anos. A cada 10 anos, um censo é realizado para contabilizar a população e dividir essas cadeiras. No Senado, a Câmara Alta, cada estado tem dois representantes, independentemente do tamanho de sua população, totalizando 100 senadores, com mandato de seis anos.

Há somente dois partidos grandes, o Partido Republicano e o Partido Democrata; os pequenos só têm abrangência estadual ou local. O sistema eleitoral foi criado em 1787, pela Constituinte, fruto da Revolução Americana. O pacto da Independência firmado pelos estados e as colônias, que se relacionavam diretamente com a administração britânica — o nome já diz, Estados Unidos da América —, estabeleceu um sistema que lhes garantisse a maior autonomia possível em relação à União. Por isso, o presidente não é eleito pelo voto popular direto, como ocorre no Congresso (Câmara e Senado). A instituição que escolhe o presidente é o Colégio Eleitoral, que tem previsão constitucional, formado por delegados indicados pelos estados. Foi a maneira encontrada para manter a influência dos estados e, assim, mitigar a decisão da maioria dos eleitores.

Realinhamento
Por isso, é possível que um candidato ganhe pelo voto popular, mas perca no Colégio Eleitoral. Foi o que ocorreu nas eleições de 2016 com Hilary Clinton e Donald Trump, e em 2000, quando o democrata e então vice-presidente Al Gore perdeu as eleições para George W. Bush. Antes, isso só havia ocorrido em 1876 e 1888. A quantidade de delegados dos estados é igual ao número de senadores e deputados. A Califórnia tem 55 delegados no Colégio Eleitoral porque tem 53 representantes na Câmara mais dois senadores. Montana, Wyoming, North Dakota, South Dakota, Alasca têm três delegados, que incluem seu único representante na Câmara e os dois senadores. Washington, DC, tem três delegados, mesmo sem representantes no Congresso Nacional. Há 538 delegados no total, vence quem obtiver maioria simples: 270 votos. Com 70 milhões de votos, Biden tinha 248 delegados no momento em que Trump, que contabilizava 214 delegados, tentava paralisar a apuração.

O mundo acompanha as eleições norte-americanas porque sabe que os Estados Unidos são a principal potência mundial em termos econômicos, tecnológicos, científicos e militares. A política de Trump, nacionalista e reacionária, teve muito mais impacto nas democracias do Ocidente do que no Oriente, embora o eixo de sua confrontação fosse com a China, um regime comunista, e o Irã, um Estado teológico. A presença de Trump na Casa Branca foi disruptiva até mesmo em relação ao chamado “sonho americano”. A gravidade do que está fazendo agora, ao tentar melar as eleições, é a ruptura com a própria ordem democrática dos Estados Unidos; isso servirá de exemplo para outros governantes com mentalidade autoritária, em momentos de apuros eleitorais. Apesar do anacronismo do seu sistema de votação, a democracia americana é o regime republicano mais antigo e estável do planeta.

O presidente Jair Bolsonaro é sócio da derrota de Trump, no qual apostou suas fichas como um jogador compulsivo na política. O estrago pode ser ainda maior se insistir na narrativa de que houve fraude na apuração, porque isso significaria questionar a legitimidade do futuro presidente dos Estados Unidos. Com a vitória de Biden, haverá um grande realinhamento na política mundial, na qual estaremos na contramão. A não ser que o governo Bolsonaro faça uma revisão das políticas externa, ambiental e de direitos humanos.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-vitoria-de-biden/?fbclid=IwAR2K4Z3wgXS7ht1v6589GNmczT47Mp4CtSuRxXLKmPHchPXk4yPoGODQemU