Belo Horizonte
José Roberto de Toledo: Caçando o voto inútil
Quem anula ou vota em branco pode, sem saber, ajudar o candidato mais votado.
Para 16 milhões de brasileiros, o voto se tornou inútil. No domingo passado, eles votaram em branco ou anularam, propositalmente ou não. É a maior ocorrência de votos inválidos em ao menos 20 anos: 13,7%. Mas, para ser compreendido, o fenômeno precisa ser escrutinado, sopesado, dividido. O diabo eleitoral é detalhista, nada tem de genérico. Não adianta procurar, o eleitor médio não existe. Se existisse, teria um seio e um testículo.
Antes de mais nada é preciso separar abstenção de brancos e nulos. Abstenção é um problema eminentemente cadastral. A Justiça Eleitoral não atualiza a listagem de eleitores como deveria. Ela está repleta de fantasmas e dados desatualizados sobre quem deveria votar - do endereço dos pais à escolaridade que o eleitor tinha aos 16 anos quando tirou seu título.
Tanto é assim que nos municípios onde houve recadastramento recente, como em Manaus, a abstenção foi menos da metade da média brasileira e quase um terço da verificada em cidades onde os cadastros não são atualizados há 30 anos, como São Paulo.
Só 8% dos eleitores manauaras não deram as caras, contra 22% dos paulistanos. É porque o cadastro eleitoral não tira a urna funerária da urna eletrônica em São Paulo. Mais idosos têm a zona eleitoral, como as do centro, mais abstenção. Quando os mortos se abstêm não há problema. Problema é quando eles votam.
À medida que mais localidades implantarem o sistema biométrico, mais viva e atualizada ficará a listagem de eleitores, porque o recadastramento é obrigatório. O problema é a falta de manutenção, porém. Cidades que recadastraram eleitores há mais tempo registraram taxas crescentes de abstenção no domingo.
Incompetência burocrática à parte, o problema para a democracia são os votos brancos e nulos. Porque eles indicam indiferença, revelam que para milhões e milhões tanto faz quem for eleito - porque, pensam eles, vai continuar tudo na mesma, sem solução.
Mas mesmo entre os votos nulos há que se separar os de protesto daqueles provocados pela Justiça Eleitoral ao anular a votação de candidatos cujos nomes estavam na urna eletrônica. Os nulos por impugnação somam 3,3 milhões de votos. Ocorreram em cidades como Matão, no interior de São Paulo, onde por causa do indeferimento da candidatura de Cidinho PT, seus 4.720 votos foram anulados, e o vencedor, Edinardo Esquetine (PSB), ficou com 100% dos votos válidos. O voto para prefeito desses 3,3 milhões acabou sendo inútil, mas não por vontade deles. Foi obra da Justiça Eleitoral.
Brancos e nulos de protesto (fazendo de conta que ninguém digitou número errado) somaram quase 13 milhões, ou 11% dos 119 milhões de eleitores que compareceram à sua seção de votação. É indiferença à beça, mais do que a população de Portugal, da Grécia ou da Bolívia. Mas os indiferentes não estão distribuídos uniformemente - nem pelo País nem dentro das cidades.
Já descontados os anulados pela Justiça, os brancos e nulos foram muito mais importantes em Belo Horizonte (21,5%) do que em Rio Branco (6,3%), gritaram mais alto no Rio (18,3%) do que em São Luís (7,4%), foram mais decisivos em São Paulo (16,6%) do que em Belém (8%). Decisivos? Voto nulo decisivo?
Decisivo, sim. Quem anula ou vota em branco pode achar que está apenas protestando, mas, sem saber, pode ajudar o mais votado. Aconteceu em São Paulo.
Os votos nulos e brancos apareceram proporcionalmente três vezes mais na periferia pobre do que no centro rico paulistano. Se dependesse das áreas pobres, a eleição teria dois turnos. Mas como até 20% de seus eleitores invalidaram seus votos, o peso da periferia diminuiu no total. E a vontade esmagadora do centro decidiu a eleição no primeiro turno. O voto inútil para uns foi útil para outros. Sorte de João Doria (PSDB).
Fonte: politica.estadao.com.br
Luiz Werneck Vianna*: Retomar o moderno, retomar a modernização
Não sairemos desta barafunda infernal com os apertados nós que nos atam ao passado
O denso nevoeiro que até há pouco tempo embaçava a linha do horizonte e nos interditava prever o dia de amanhã começa a desanuviar. Passada a borrasca já se podem contar os perdidos e os salvados, mesmo que os mais estropiados dentre esses não devam esperar uma sobrevida sem sobressaltos. A Olimpíada está conosco e espanta os maus presságios com a festa de confraternização entre povos, que traz consigo o espírito de concórdia de que tanto estamos precisados.
O processo eleitoral se anuncia – esse santo remédio de eficácia comprovada em nossas crises políticas –, e com ele o retorno da política, da discussão sobre que rumos devem ser empreendidos na administração de nossas cidades, que valores e princípios queremos para nortear nossa vida em comum, hora da persuasão de eleitores e de alianças entre os afins. E, quando couber, até entre contrários, do que a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados consistiu num auspicioso primeiro sinal.
Velhos timoneiros de volta a seus postos de comando entoam o velho lema de que navegar é preciso e, lentamente, ainda com destino incerto, tateia-se em busca de uma saída desta barafunda infernal em que fomos envolvidos. Não sairemos dela, contudo, enquanto estivermos prisioneiros dos apertados nós que nos atam ao passado.
O mundo mudou e nós mudamos com ele, e não há caminho fácil pela frente neste século 21 que resiste em começar, como neste episódio regressivo do Brexit, com a maré montante da direita e a ressurgência dos temas da xenofobia, do nacionalismo autárquico e a candidatura presidencial de Donald Trump nos EUA no surrado estilo populista de um Mussolini, inventário de horrores que nos vem do que houve de pior no século passado.
Para o começo do alívio desses nós torna-se necessário reafirmar a velha lição de que somos parte do Ocidente, um outro Ocidente, na caracterização de José Guilherme Merquior em belo ensaio esquecido (Revista Presença, n.º 15, 1988), e de que não devemos cultivar ressentimentos em razão do nosso atraso porque seríamos, de fato, “uma modificação e uma modulação original e vasta da cultura ocidental”. Uma das marcas da nossa originalidade residiria no fato de não termos compartilhado com os europeus o etos da antimodernidade quando a História moderna foi vista como um pesadelo por muitos dos seus intelectuais. Ao contrário, segundo Merquior, o modernismo brasileiro foi percebido em chave otimista, longe da Kulturpessimismus europeia, como um “modernismo da modernização”, tal como presente em Mario de Andrade e confirmada com a ascensão de Juscelino Kubitschek – da prefeitura de Belo Horizonte com a obra da Pampulha à Presidência da República com a criação de Brasília –, quando as agendas do moderno e da modernização caminharam juntas.
O golpe militar interrompeu esse processo benfazejo. Com o novo regime a modernização apartou-se do moderno, que passou a ser reprimido com a intensificação da tutela estatal sobre os sindicatos, com o abafamento das tendências que se vinham acumulando em favor da auto-organização da vida social e com as severas limitações impostas à criação cultural e artística no País, cujos altos preços ainda pagamos. A democratização do País, consolidada com a Carta de 88, concedeu alento ao moderno, mas, a essa altura sem o embalo dos trilhos que antes percorria, ele não teria como se reencontrar com a modernização em razão da pesada herança de desacertos econômicos deixada pelo regime militar.
Sanear a economia foi obra do Plano Real e caberia ao governo do PT levar à frente a agenda do moderno presente nas suas lutas de fundação, respaldadas por importantes intelectuais críticos da modernização autoritária com que se tinha imposto o capitalismo no País, como, entre tantos, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Florestan Fernandes. Partido com origem na moderna sociedade civil brasileira, ao se tornar governo, de modo surpreendente e sem apresentar suas razões, o PT logo se converteu em partido de Estado.
Essa conversão coincidiu com a adoção da obra do marxista italiano Antonio Gramsci – desde os anos 1960, influente em círculos da esquerda – como referência por alguns dos seus quadros dirigentes, embora numa versão antípoda das suas concepções originais, ironicamente caracterizada pelo sociólogo Francisco de Oliveira como hegemonia às avessas. Ao invés de os partidos e movimentos sociais dos seres subalternos buscarem a conquista da hegemonia na sociedade civil em nome de suas concepções políticas e ético-morais, credenciando-se assim ao exercício de papéis dirigentes, pela prática levada a efeito pelas lideranças do PT caberia ao Estado (às avessas) instituí-la por cima.
Nessa reviravolta, mais do que abdicar da agenda do moderno, que pressupõe a autonomia dos seres sociais e de suas organizações, o PT alinhou-se sem alarde à tradição da modernização pelo alto que nos vinha da era Vargas, reanimada pelo ciclo do regime militar, em especial sob o governo Geisel, com as escoras do tipo de presidencialismo de coalizão bastarda que praticava e de suas políticas de cooptação dos movimentos sociais.
Sob a presidência de Dilma Rousseff, menos por sua imperícia nas coisas da política, mais pela exaustão da modelagem herdada do seu antecessor, tanto a agenda do moderno se rebelou contra ela – como se constatou nas manifestações massivas de junho de 2013 em favor da autonomia do social – como se lhe escapou das mãos a da modernização com a economia do País parando de crescer.
Estamos não num fim de caminho, mas no da sua retomada. Se o direito ao moderno não pode mais ser arrebatado da animosa sociedade brasileira de hoje, temos também um compromisso inarredável com a modernização que faz parte do nosso DNA.
*Luiz Werneck Vianna: *SOCIÓLOGO, PUC-RIO
Fonte: estadao.com.br