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BBC Brasil: Por que grandes empresas decidiram boicotar o Facebook
A marca de sorvetes Ben & Jerry's se juntou a uma lista crescente de empresas que, durante o mês de julho, decidiram retirar sua publicidade das plataformas comandadas pelo Facebook.
Além do próprio Facebook, a empresa que Mark Zuckerberg administra é dona do Instagram e do WhatsApp — o conglomerado também soma 80 outras empresas menos conhecidas.
Esse boicote faz parte da campanha Stop Hate For Profit (Pare de lucrar com o ódio, em tradução livre), que exige que o Facebook tome medidas mais rígidas contra a disseminação do ódio e de conteúdos racistas.
O Facebook tem uma receita anual de US$ 70 bilhões (cerca de R$ 371 bilhões) apenas em publicidade.
A campanha acusa a rede social de "amplificar as mensagens dos supremacistas brancos" e de "permitir mensagens que incitam violência".
A Ben & Jerry's, de propriedade da gigante britânica Unilever, tuitou que "vai parar de anunciar no Facebook e no Instagram nos Estados Unidos".
Outras marcas
No início desta semana, as marcas de equipamentos para atividades ao ar livre The North Face, Patagonia e REI se juntaram à campanha.
"Das eleições seguras à pandemia global e à justiça racial, os riscos são altos demais para que a empresa (Facebook) continue sendo cúmplice na disseminação da desinformação e no fomento ao medo e ao ódio", escreveu a empresa Patagonia no Twitter.
A Ben & Jerry's disse que concorda com a campanha. "Todo mundo pediu ao Facebook para tomar medidas mais rigorosas para impedir que suas plataformas de mídia social sejam usadas para dividir nossa nação, anular os eleitores, incentivar e alimentar o racismo e a violência e minar nossa democracia", escreveu a marca.
Após a morte de George Floyd por policiais brancos, em maio, o CEO da Ben & Jerry, Matthew McCarthy, disse que "as empresas precisam ser responsáveis" e implementou planos para aumentar a diversidade na companhia.
No início desta semana, a plataforma de trabalho independente Upwork e o desenvolvedor de software de código aberto Mozilla também se juntaram à campanha.
Por outro lado, o Facebook prometeu "promover a equidade e a justiça racial".
"Estamos tomando medidas para revisar nossas políticas, garantir diversidade e transparência ao tomar decisões sobre como aplicamos nossas políticas, além de promover a justiça racial e a participação dos eleitores em nossa plataforma", afirmou a rede social neste domingo.
A declaração também descreveu os padrões comunitários da empresa, que incluem o reconhecimento da importância da plataforma como um "lugar onde as pessoas podem se comunicar".
"Levamos nosso papel a sério para evitar abusos de nosso serviço."
'Não ao ódio'
A campanha Stop Hate for Profit foi lançada na semana passada por grupos de defesa dos direitos civis dos Estados Unidos, como a Liga AntiDifamação, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor e a organização Color Of Change.
O movimento afirma que a campanha é "uma resposta à longa história do Facebook de permitir que conteúdos racistas, violentos e falsos sejam disseminados em sua plataforma".
O Stop Hate for Profit pediu aos anunciantes que pressionem a empresa a tomar medidas mais rígidas contra o conteúdos de ódio e de racismo em suas plataformas, retirando o investimento em publicidade durante o mês de julho.
Segundo a empresa de consultoria eMarketer, o Facebook é a segunda maior plataforma de anúncios digitais nos Estados Unidos, atrás apenas do Google.
O Facebook e seu CEO, Mark Zuckerberg, são frequentemente criticados ao lidar com questões controversas.
Neste mês, os funcionários da empresa se manifestaram contra a decisão da gigante da tecnologia de não remover ou marcar uma publicação do presidente Donald Trump.
No Twitter, a mesma mensagem de Trump foi classificada com uma etiqueta que alertava que o post "incentivava a violência".
A Unilever, empresa controladora da Ben & Jerry's, não respondeu aos questionamentos da BBC.
O mistério sobre Werner Heisenberg, o físico que ganhou o Nobel pela mecânica quântica
Dalia Ventura, Da BBC News Mundo
"Agora já estamos todos mortos, é verdade, e o mundo só se lembra de mim por duas coisas: o princípio da incerteza e por uma misteriosa visita a Niels Bohr em Copenhague em 1941. Todos entendem do que se trata a incerteza. Ou acreditam que sim. Ninguém entende por que fui a Copenhague."
Com essas palavras entra em cena Werner Heisenberg na aclamada obra Copenhague, do dramaturgo inglês Michael Frayn, que imagina o que pode ter acontecido em um dos encontros mais controversos da história da ciência.
Sabemos a data e o lugar. Era setembro de 1941, quando a Alemanha estava em um ponto alto de sua ofensiva militar, com a maior parte da Europa ocupada, a França derrotada, o Exército britânico expulso da Europa continental e os Estados Unidos tecnicamente neutros.
O lugar era a capital dinamarquesa sob ocupação nazista. Os personagens eram dois físicos que haviam mapeado e explorado o universo quântico dentro do átomo e que, juntos, haviam revolucionado o mundo da física.
Ambos com prêmio Nobel de Física. Bohr, em 1922, "em reconhecimento por seu trabalho sobre a estrutura dos átomos". Heisenberg, em 1932, "pela criação da mecânica quântica".
O dinamarquês de ascendência judia e o luterano alemão tinham 16 anos de diferença de idade e vidas profundamente entrelaçadas nos âmbitos pessoal, intelectual e profissional, até aquele dia de 1941.
Sabemos que o encontro se encerrou abruptamente, e que Bohr ficou enfurecido.
Heisenberg foi um físico que deixou o mundo com o princípio da incerteza, mas também um mundo de incertezas sobre seus princípios.
A principal delas é: ele era um vilão que queria tirar proveito de seu relacionamento próximo com o dinamarquês em prol do projeto de bomba atômica nazista ou um herói que queria impedir que tanto os Aliados quanto os países do Eixo obtivessem uma arma desse porte?
O princípio
Niels Bohr habitou um mundo idílico da ciência no início do século 20, quando ideias fluíam sem fronteiras em uma missão conjunta de superar os limites do conhecimento.
Era uma atmosfera repleta de luminares. Estavam ali o pai da física nuclear, Ernest Rutherford, o criador da teoria quântica, Max Planck, e a maior estrela, Albert Einstein.
O ambiente foi sacodido na Primeira Guerra Mundial, quando a ciência serviu como uma arma. Mas não se desfez e até durou um pouco mais. Um exemplo mais notório foi o contrabando de cópias do artigo sobre a teoria geral da relatividade que Einstein apresentou em 1915 em Berlim a cientistas aliados. E o fato de que, para testar a teoria do cientista alemão, o governo britânico financiou durante a guerra uma expedição para fotografar um eclipse solar em 1919, a pedido do astrônomo Arthur Eddington.
Em 1924, Heinsenberg aceita o convite de Bohr para trabalhar em Copenhague e herda os benefícios dessa atmosfera, com um relacionamento entre a dupla que ia além da ligação entre um mentor e um aluno talentosos.
No âmbito pessoal, o aluno foi se transformando em parte da família do professor.
No plano profissional, ainda que tenham feito descobertas importantes em separado, o trabalho conjunto foi imprescindível para o sucesso deles.
Os princípios
O resultado foi brilhante. Em 1927, Heisenberg publica seu "Princípio da Incerteza", que afirma que a posição exata de um elétron dentro do núcleo atômico em um dado momento não poderia ser determinada com certeza, mas apenas ser calculada estatisticamente dentro de uma certa probabilidade.
Sua descoberta foi fundamental para a física quântica.
Naquele momento, Bohr havia desenvolvido seu princípio de complementaridade, no qual incorporou a física de Heisenberg à sua, e propôs que o aparente caos do mundo quântico e a ordem do universo baseado na física clássica não eram mutuamente exclusivos, mas complementares entre si de uma maneira que ainda teríamos que compreender e explicar.
Na opinião do físico teórico americano John Wheeler, este foi o "conceito científico mais revolucionário deste século". Mas nem todos viam desta maneira.
Como lembrou o físico alemão Max Born em seu discurso de aceitação do prêmio Nobel de Física em 1954, houve uma dramática divisão entre famosos físicos quânticos, alguns em profunda divergência.
"O próprio Max Planck estava entre os céticos até sua morte, e Albert Einstein (Nobel de Física de 1921), Louis-Victor de Broglie (Nobel de Física de 1929) e Erwin Schrödinger (Nobel de Física de 1933) não deixaram de ressaltar aspectos insatisfatórios da teoria."
A discordância não dizia respeito apenas ao princípio da complementariedade, mas também ao da incerteza formulado por Heisenberg.
Diante da descrição do mundo quântico em que certezas foram substituídas por probabilidades, Einstein proferiu sua famosa frase: "Deus não joga dados". E Bohr, uma menos famosa: "Einstein, pare de dizer a Deus o que fazer".
Uma disputa entre titãs que, no início do século 20, virou o universo, mostrando-o primeiro como algo relativo e depois como algo confuso.
Seus princípios
Mas enquanto no universo intelectual os ataques que põem teorias à prova são necessários, os golpes em ideias por razões políticas raramente têm consequências positivas.
O princípio da incerteza de Heisenberg sobreviveu às críticas e acabou sendo adotado por quase todos membros da comunidade de físicos.
No entanto, a ascensão do nazista Adolf Hitler na Alemanha provocou uma chocante supressão da pesquisa e do conhecimento científicos.
Mesmo antes de chegar ao poder, a "nova física", a da relatividade e da incerteza, estava ligada à impureza e ao judaísmo, e os cientistas alemães hostis a ela exigiam uma física "ariana".
Como explica o Bohr imaginado pelo dramaturgo Michael Frayn. "Os alemães se opuseram sistematicamente à física teórica. Por quê? porque a maioria dos que trabalhavam nesse campo eram judeus. E por que eram tantos judeus? Porque a física teórica, a física que interessava a Einstein, Schrödinger, Pauli e nós dois sempre foi considerava inferior à física experimental na Alemanha, e as cátedras teóricas eram as únicas as quais os judeus podiam acessar."
De fato, o antissemitismo europeu não começou com Hitler, nem esperou que ele se manifestasse no mundo científico, mas quando ele começou a acumular poder e, ainda mais, quando o alcançou, em 1933, aproveitou um terreno já arado.
Os nazistas logo proibiram todos os judeus de trabalhar para o Estado alemão ou em funções como professores universitários, causando um êxodo do maior talento científico do mundo para nações que estavam de braços abertos, como os Estados Unidos.
Heisenberg não se juntou ao partido nazista e foi inicialmente considerado simpatizante dos judeus por sua adesão à "física judaica" de Einstein e Bohr.
Mas ele era um nacionalista alemão dedicado e participou dos exercícios militares de sua unidade de reserva. Patriótico, se apegou à ideia de que poderia ajudar sua terra natal e acreditava que Hitler poderia não ser tão ruim quanto parecia.
Por isso, ele se recusou a deixar a Alemanha como um protesto simbólico contra o regime nazista e sua atitude em relação à pesquisa científica, ignorando apelos de colegas internacionais.
O fim
Ironicamente, com deflagração da Segunda Guerra Mundial, o regime nazista começou a valorizar os possíveis usos da física teórica que tanto desprezou por questões ideológicas e racistas.
Lise Meitner, uma das judias que tivera fugir dos nazistas, continuou a colaborar à distância com o químico Otto Hahn, que lhe enviava informações sobre experimentos com urânio.
No Natal de 1938, na Suécia, Meitner e o sobrinho Otto Frisch analisaram os dados e confirmaram a ocorrência de uma fissão nuclear.
A informação foi divulgada a Bohr, que a trouxe para os Estados Unidos e, em janeiro de 1939, em uma conferência de física na Universidade George Washington, foi anunciada publicamente que a possibilidade de dividir o átomo e liberar quantidades incontáveis de energia por meio da fissão nuclear estava agora ao nosso alcance.
Teoricamente, era possível construir uma bomba atômica.
Em abril de 1939, se estabeleceu o primeiro "Uranverein", ou Clube do Urânio em alemão. Cinco meses depois, na invasão da Polônia, o Escritório de Artilharia do Exército Alemão assumiu o programa de energia nuclear a fim de explorar possíveis usos militares.
O segundo Uranverein era um segredo estatal e militar, cujo principal teórico era Heisenberg. Ele ainda era quando visitou Bohr em 1941 na Dinamarca.
O desfecho dessa história é algo que físicos e historiadores continuam a debater até hoje, apesar das milhares de páginas escritas sobre o assunto.
Durante muitos anos, uma carta de Heisenberg para o autor Robert Jungk era tida como uma das melhores fontes. Fragmentos da correspondência aparecem no livro Mais brilhante do que mil sóis: uma história pessoal dos cientistas atômicos.
Nela, Heisenberg explica que sua intenção era convencer os cientistas nucleares de ambos os lados da guerra a impedir o desenvolvimento de uma bomba atômica afirmando aos dirigentes de seus países que dificuldades técnicas e econômicas tornavam essa tarefa impossível no futuro imediato.
O físico alemão afirmou que pretendia informar a Bohr que os nazistas sabiam que a fissão nuclear era possível, mas que ele estava em uma posição de convencê-los do contrário. E que queria que Bohr convencesse os cientistas aliados a fazer o mesmo.
Com um acordo tácito, a comunidade internacional de física poderia cooperar para salvar o mundo dessa arma horrível.
Bohr sempre refutou essa versão da reunião.
E em 2002, em resposta a uma nova rodada de debates acadêmicos sobre o misterioso encontro desencadeado pela apresentação da peça do dramaturgo Frayn em 1998, a família de Bohr divulgou diversas cartas que ele havia escrito a Heisenberg, mas não chegou a enviar.
Nelas, Bohr descreve uma história diferente: durante a visita de Heisenberg, ele sentiu que o jovem se gabava não apenas da próxima vitória da Alemanha mas também de sua capacidade de construir uma bomba atômica em um futuro próximo.
Segundo Bohr, a intenção de Heisenberg era convencê-lo a ajudar os alemães, enfatizando a probabilidade de vitória alemã. E pior ainda, ele tentara desonrá-lo, tentando fazê-lo repassar informações sobre o esforço nuclear dos Aliados.
Uma versão descreve Heisenberg como um herói que tentou salvar o mundo do pesadelo atômico; a outro, um vilão que queria tirar vantagem de um amigo para garantir a vitória da Alemanha de Hitler.
Bohr entendeu errado Heisenberg? Ou Heisenberg cometeu um erro grave e depois mentiu para se redimir?
Será que os nazistas não conseguiram fabricar uma bomba atômica porque Heisenberg deliberadamente frustrou o projeto ou simplesmente porque, apesar de seus esforços, não sabia como fabricá-la?
Nunca saberemos.
BBC Brasil: 'Descendentes precisam saber que história da África é tão bonita quanto a da Grécia'
Segundo o acadêmico Alberto da Costa e Silva, Brasil precisa mudar olhar em estudo da África
Fernanda da Escóssia
Do Rio de Janeiro para a BBC Brasil
Quando começou a se interessar pela história da África, o poeta, diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva ouviu: "Por que você, um diplomata, um homem tão letrado, não vai estudar a Grécia?"
Justamente porque todo mundo estudava a Grécia, explica, ele resolveu estudar a África. Hoje, é o principal africanólogo brasileiro, autor de clássicos como A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses e A Manilha e o Libambo: a África e a Escravidão, de 1500 a 1700. E, aos 84 anos, prepara um novo livro para completar sua trilogia sobre história africana.
Formado em 1957 pelo Instituto Rio Branco, Costa e Silva serviu em vários países e foi embaixador na Nigéria. É membro da Academia Brasileira de Letras, autor e organizador de mais de 30 livros. Por sua obra, recebeu em 2014 o Prêmio Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa.
Filho do poeta piauiense Antônio Francisco da Costa e Silva, nasceu em São Paulo e viveu no Ceará até aos 12 anos, quando mudou-se para o Rio de Janeiro. Cresceu entre livros e costuma dizer que, como no verso do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), seu berço "ao pé da biblioteca se estendia".
Foi entre livros, quadros e esculturas, no apartamento em que guarda lembranças de vários lugares do Brasil e do mundo, que ele recebeu a BBC Brasil às vésperas do Dia da Consciência Negra para falar da história do continente pelo qual se apaixonou.
BBC Brasil: Como o Brasil aprendeu a história da África?
Alberto da Costa e Silva: A história da África durante muito tempo foi uma espécie de capítulo de antropologia e etnografia do continente africano. Eram livros que árabes e europeus escreveram sobre suas viagens. Data do fim da Segunda Guerra Mundial a consolidação a história da África como disciplina à parte, semelhante à história da Idade Média europeia, ou à história da China.
Entre 1945 e 1960 seu estudo começa a ganhar grandes voos, tanto na África quanto na Europa, sobretudo Inglaterra e França. Curiosamente o Brasil esteve ausente disso. Os historiadores brasileiros sempre viam a história das relações Brasil-África com a África figurando como fornecedora de mão de obra escrava para o Brasil, como se o africano que era trazido à força nascesse num navio negreiro.
Era como se o negro surgisse no Brasil, como se fosse carente de história. Nenhum povo é carente de história. E a história da África é uma história extremamente rica e que teve grande importância na história do Brasil, da mesma maneira que a história europeia.
De maneira geral, quando se estuda a história do Brasil, o negro aparece como mão de obra cativa, com certas exceções de grandes figuras, mulatos ou negros que pontuam a nossa história. O negro não aparece como o que ele realmente foi, um criador, um povoador do Brasil, um introdutor de técnicas importantes de produção agrícola e de mineração do ouro.
BBC Brasil: O senhor poderia citar alguns exemplos?
Costa e Silva: Os primeiros fornos de mineração de ferro em Minas Gerais eram africanos. Fizemos uma história de escravidão que foi violentíssima, atroz, das mais violentas das Américas, uma grande ignomínia e motivo de remorso. Começamos agora a ter a noção do que devemos ao escravo como criador e civilizador do Brasil.
Quando o ouro é descoberto em Minas Gerais, o governador de Minas escreve uma carta pedindo que mandassem negros da Costa da Mina, na África, porque "esses negros têm muita sorte, descobrem ouro com facilidade". Os negros da Costa da Mina não tinham propriamente sorte: eles sabiam, tinham a tradição milenar de exploração de ouro, tanto do ouro de bateia dos rios quanto da escavação de minas e corredores subterrâneos. Boa parte da ourivesaria brasileira tem raízes africanas.
Tenho a impressão de que todos temos dentro de cada um de nós um africano. Podemos não ter consciência disso, mas é permanente.
Temos de estudar o continente africano não como um capítulo à parte, um gueto. A história da África está incorporada à história do mundo, porque ela foi parte e é parte da história do mundo. Que a história do negro no Brasil não seja isolada, como se o negro tivesse sido um marginal. O negro foi essencial na formação do Brasil.
BBC Brasil: Qual a importância de um personagem como Zumbi?
Costa e Silva: Havia um suplemento juvenil do jornal A Noite, sobre grandes nomes da história, e eu me lembro perfeitamente de um caderno sobre Zumbi. Zumbi está aliado de tal maneira à ideia de liberdade que é difícil escrever sobre ele sem ser apaixonado.
Zumbi não é um nome, é um título da etnia ambundo, significa rei, chefe. Palmares era como um Estado africano recriado no Brasil. Na África era muito comum isso. Em torno de um núcleo de poder forte se aglomeravam vários povos e formavam um novo povo. Isso é uma hipótese.
BBC Brasil: O senhor vê um aumento do interesse dos brasileiros pela questão negra?
Costa e Silva: Tenho a impressão de que todos temos dentro de cada um de nós um africano. Podemos não ter consciência disso, mas é permanente. Há naturalmente hoje em dia uma percepção mais nítida do que é a África, a escola começa a dar uma visão mais clara.
Mas ainda apresenta visões distorcidas. Uma vez uma professora veio me dizer que era absurdo que apresentássemos Cleópatra como uma moça branca, quando ela era negra. É um equívoco isso. Cleópatra não era negra nem mulata. Era grega. Os Ptolomeus, uma dinastia grega, governavam o Egito e não se misturavam.
BBC Brasil: Na África também havia escravos, não?
Costa e Silva: Escravidão houve em todas as culturas no mundo. Todos nós somos descendentes de escravos. Houve escravidão em toda a Europa, na Indonésia, entre os índios americanos, na Inglaterra. Na África havia todos os tipos de escravidão, e até hoje em certas regiões africanas os descendentes de escravos são discriminados. Quase toda a África teve escravidão.
A escravidão transatlântica, da África para as Américas, a nossa, tem uma diferença básica: pela primeira vez era uma escravidão racial. Era um especial aspecto da perversidade dela. No início não, mas a partir de certo momento, passa a ser exclusivamente negra. Foi o maior deslocamento forçado de gente de uma área para outra que a história já conheceu, e o mais feroz.
Acho que tem de haver cota em tudo. Se você vai se candidatar a um cargo de atendente de hotel de primeira classe, se você for negro, você tem dificuldade.
O Brasil foi o último país das Américas e do Ocidente a abolir a escravidão. O último do mundo foi a Mauritânia (na África), em 1981.
BBC Brasil: Como analisa o racismo hoje no Brasil?
Costa e Silva: Existe racismo, e muitíssimo. No nosso racismo, não temos um partido racista, mas temos repetidas manifestações de racismo no seio da sociedade. É dificílimo, para um negro, ascender socialmente. A discriminação se exerce de forma muitas vezes dissimulada, mas que os marca muito. Mas está mudando. Sinto mudanças.
É importante que os descendentes de africanos saibam que eles têm uma história tão bonita quanto a história da Grécia. Que eles não eram bárbaros, que não são descendentes de escravos. São descendentes de africanos que foram escravizados.
Para mim o importante não é que haja cota na universidade. Acho que tem de haver cota em tudo. Se você vai se candidatar a um cargo de atendente de hotel de primeira classe, se você for negro, você tem dificuldade. O preconceito é discriminatório. Ele não impede você de usar o mesmo banheiro, o mesmo bebedouro, mas dificulta o acesso (do negro) às camadas das classes média e alta.
BBC Brasil: 100 anos do fascismo - 'O perigo atual é que democracia vire repressão com apoio popular', diz historiador
Existe o perigo de um retorno do fascismo no mundo?
Quando questionado sobre o assunto, o historiador Emilio Gentile, considerado na Itália o maior especialista vivo sobre o fascismo, dá uma resposta contundente: "Absolutamente, não".
No entanto, nos últimos tempos, os presidentes dos Estados Unidos, Rússia, Brasil, Hungria e muitos outros líderes políticos das Américas e da Europa foram rotulados como fascistas por suas políticas de imigração ou por seu nacionalismo. Mas é correto definí-los assim?
- O que é o fascismo? Perguntamos a pensadores da Itália, berço do movimento
- O nazismo era um movimento de esquerda ou de direita?
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Gentile conhece profundamente o fascismo, porque dedicou toda sua vida acadêmica a analisá-lo.
Este movimento político nasceu oficialmente na noite de 23 de março de 1919, quando Benito Mussolini (1883-1945) fundou em Milão o grupo Fasci Italiani di combattimento.
O grupo reuniu ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, um conflito que deixou a Itália, como quase toda a Europa, mergulhada em uma profunda crise política, econômica e social.
Depois de alguns anos, Mussolini chegou ao poder graças ao apoio do rei Victor Emmanuel 3º, de grandes empresários e do Vaticano, bem como por meio do uso da violência.
Em 1925, ele assumiu o controle de todos os poderes do Estado e transformou um regime parlamentar e democrático em um Estado totalitário regido pela total falta de liberdades individuais, políticas, organizacionais e de pensamento.
Mas isso não significou a derrota do fascismo como ideologia política, que permanece viva em muitos movimentos da extrema direita. Mas o que é exatamente o fascismo?
O historiador Stanley G. Payne afirmou em um de seus vários estudos sobre o assunto que "continua sendo o mais indefinido dos termos políticos mais importantes". Cem anos após sua aparição na história, conversamos com Gentile sobre o tema.
BBC News Mundo - Sobre o que falamos quando falamos de "fascismo"?
Emilio Gentile - Devemos distinguir entre o fascismo histórico, que é o regime que, a partir da Itália, marcou a história do século 20 e se estendeu à Alemanha e a outros países europeus no período entre as duas guerras mundiais, e o que é freqüentemente chamado de fascismo depois de 1945, que se refere a todos aqueles que usam da violência em movimentos de extrema direita.
BBC News Mundo - Quais são as diferenças entre as duas definições?
Gentile - Há uma diferença substancial, porque vários movimentos de extrema direita já existiram antes do fascismo e não geraram um regime totalitário.
BBC News Mundo - O que se entende por "extrema direita"?
Gentile - Qualquer movimento que se oponha aos princípios da Revolução Francesa de igualdade e liberdade, que afirma a primazia da nação, mas sem necessariamente ter uma organização totalitária ou uma ambição de expansão imperialista. Sem o regime totalitário, sem a submissão da sociedade em um sistema hierárquico militarizado, não é possível falar de fascismo.
BBC News Mundo - Então, quando se pode falar de "fascismo"?
Gentile - Podemos falar de fascismo ao nos referir ao fascismo histórico, quando um movimento de massas organizado militarmente tomou o poder e transformou o regime parlamentar em um Estado totalitário, ou seja, em um Estado com um partido único que procurou transformar, regenerar ou até criar uma nova raça em nome de seus objetivos imperialistas e de conquista.
BBC News Mundo - Isto é, somente quando nos referimos a esta experiência específica?
Gentile - Sim, para o período histórico entre as duas guerras mundiais, quando ainda havia a vontade de conquistar e se expandir imperialmente por meio da guerra. Se estas características ainda estivessem presentes hoje, poderíamos falar em fascismo. Mas me parece completamente impossível. Mesmo aqueles países que aspiram a ter um papel hegemônico procuram fazer isso por meio da economia, e não da conquista armada.
BBC News Mundo - O senhor acha que existe o perigo de um retorno do fascismo?
Gentile - Não, absolutamente, porque na história nada volta, nem de um jeito diferente. O que existe hoje é o perigo de uma democracia, em nome da soberania popular, assumir características racistas, antissemitas e xenófobas. Mas em nome da vontade popular e da democracia soberana, que é absolutamente o oposto do fascismo, porque o fascismo nega totalmente a soberania popular. Esses movimentos, no entanto, se definem como uma expressão da vontade popular, mas negam que este direito possa ser estendido a todos os cidadãos, sem discriminações entre os que pertencem à comunidade nacional e aqueles que não.
BBC News Mundo - Donald Trump, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e outros líderes políticos foram chamados de fascistas por suas políticas de imigração ou seu nacionalismo. É correto defini-los assim?
Gentile - Se afirmamos isso, poderíamos dizer então que todos são homens e brancos. Mas, ao mesmo tempo, não entenderíamos a novidade destes fenômenos. Não se trata de aplicar o termo "fascista" para todos os contextos, mas de entender quais são as causas que geraram e fizeram proliferar estes fenômenos. Em todos esses países, esses movimentos extremistas se afirmaram com base no voto popular.
BBC News Mundo - O senhor acha então que a palavra "fascismo" está sendo abusada para definir estes governos?
Gentile - Na minha opinião, é um grande erro, porque não nos permite compreender a verdadeira novidade destes fenômenos e o perigo que eles representam. E o perigo é que a democracia possa se tornar uma forma de repressão com o consentimento popular. A democracia em si não é necessariamente boa. Só é boa se realiza seu ideal democrático, isto é, a criação de uma sociedade onde não há discriminação e na qual todos podem desenvolver sua personalidade livremente, algo que o fascismo nega completamente. Então, o problema hoje não é o retorno do fascismo, mas quais são os perigos que a democracia pode gerar por si só, quando a maioria da população - ao menos, a maioria dos que votam - elege democraticamente líderes nacionalistas, racistas ou antissemitas.
BBC Brasil: 'Esse governo vai provocar o que parecia impossível. Piorar a educação', afirma Cristovam Buarque
O ex-ministro da Educação e ex-senador Cristovam Buarque (PPS) acompanhou pela televisão os protestos que tomaram as ruas do país contra os cortes no orçamento das universidades realizado pelo governo de Jair Bolsonaro com um misto de entusiasmo e frustração. À BBC News Brasil, ele se disse "feliz com o despertar das universidades", mas "triste" pela ausência da Educação Básica no centro das manifestações.
Mariana Schreiber, Da BBC News Brasil em Brasília
Enquanto estudantes protestavam em quase 200 cidades do país, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, justificava os cortes em audiência no Congresso devido à crise fiscal herdada do governo Dilma Rousseff e dizia que a prioridade da gestão Bolsonaro é ensino básico, fundamental e técnico.
A promessa, porém, não convence Cristovam Buarque, para quem a agenda do ministro Weintraub de combate ao "marxismo cultural" em escolas e universidades é de causar "arrepios".
"Eu não vejo (o governo) com condições de fazer nada pela educação. Eu nunca pensei que um dia pudesse ter um governo que provocasse um retrocesso numa coisa tão atrasada como a educação brasileira. Mas o governo que está aí vai provocar um retrocesso, na educação de base e na universidade também", critica.
Cristovam Buarque, que foi ministro da Educação no primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003) e saiu após ser demitido por telefone, tem como principal agenda a defesa da federalização do ensino básico, hoje competência dos municípios.
"E por que fez isso? Por razões eleitoreiras, porque a universidade dá voto, a educação de base não dá voto. O Lula conseguiu vender a ideia do consumo do diploma", afirma.
"As pessoas entram na universidade para ter um diploma, não para ter conhecimento. O Lula conseguiu fazer isso, porque ele usou como uma ascensão (social), não como uma alavanca do progresso. Minha maior frustração foi essa", reforça.
Buarque, que não conseguiu renovar seu mandato de senador pelo Distrito Federal na eleição de 2018, conversou com a BBC News Brasil de Recife, sua cidade natal, onde passa alguns dias entre palestras e um retiro na praia para escrever. Pretende lançar dois livros, um com diagnósticos sobre os erros dos governos "democráticos progressistas" e outro sobre o quer para o futuro do país.
Diz que está "achando a vida ótima", mas conta que sente saudade dos debates no Congresso. "Outro dia recebi novos parlamentares na minha casa, disse que me senti um passarinho com saudade da gaiola. Eu saí tão feliz da gaiola que era o Senado, mas, quando vejo essa crise, penso que podia estar falando lá".
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - O presidente disse que os manifestantes que foram às ruas contra os cortes nas universidades são "massa de manobra" e "idiotas úteis". Qual sua avaliação dos protestos?
Cristovam Buarque - Com todo respeito, essa fala do presidente não merece comentário. Quanto às manifestações em si, eu fico muito feliz em ver a universidade despertando, mas, ao mesmo tempo, fico triste que não estejam despertando para um o contingenciamento tão ou mais grave do que o contingenciamento financeiro (das universidades), que é o contingenciamento estrutural por causa da má qualidade da educação básica.
Eu não vi pela televisão um cartaz contra a existência ainda de analfabetismo de adultos no Brasil, não vi um cartaz pedindo a federalização da educação de base, não vi pedindo o aumento do piso salarial do professor da educação de base, não vi pedindo que se consiga aumentar o número de jovens que terminam o ensino médio com qualidade.
Eu fico alegre com o despertar, mas fico triste que só se desperte na hora do (contingenciamento do) ensino superior.
BBC News Brasil - Por que o ensino superior mobiliza mais que a educação básica?
Buarque - Primeiro, porque nenhum governo quis até aqui trazer o assunto da educação de base para o governo federal. Não existe Ministério da Educação de Base no Brasil. O Ministério da Educação, na verdade, é o Ministério do Ensino Superior. A educação de base é deixada para os municípios.
BBC News Brasil - Mas o Ministério da Educação não tem um papel de coordenação?
Buarque - Tem teoricamente, mas não consegue. Como coordenar sem executar? Os professores são municipais, os recursos são municipais e estaduais. A única contribuição do governo federal para a educação de base são os livros didáticos, a merenda e o Fundeb (um fundo que repassa recursos a Estados e municípios), mas o salário dos professores vem dos municípios, coitados, que não podem pagar mais que os R$ 2 mil do piso salarial, e centenas nem estão conseguindo cumprir o piso.
Então, eu fico feliz com as manifestações, e triste que a pauta se limita ao ensino superior. O gargalo está na educação de base e a gente não consegue mobilizar a sociedade para bater nesse ministro por causa da educação de base. E não consegue porque ele vai dizer que essa é uma questão dos prefeitos. Nós precisamos ter um ministério para a educação de base.
BBC News Brasil - O governo diz que não tem recursos. Como poderia federalizar o ensino básico em meio à crise fiscal?
Buarque - Tem que ser gradual. Não tem dinheiro para fazer no Brasil inteiro, mas dá para fazer primeiro em cem cidades, depois 200 (o país tem 5.570 municípios). Até porque a federalização que eu defendo não é o governo federal assumir o sistema municipal que está aí. Não vai adiantar nada.
A minha proposta é começar a implementação de um novo sistema federal, que vá substituindo o municipal ao longo de 30 anos, pagando R$ 15 mil de salário para novos professores, com turmas de 30 alunos. A minha proposta é começar a implementação de um novo sistema federal, que vá substituindo o municipal ao longo de 30 anos, pagando R$ 15 mil de salário para novos professores, com turmas de 30 alunos
Se a economia crescer em média 2% ao ano, após 30 anos, o novo sistema custaria 6,5% do PIB. É muito dinheiro, por isso eu eu falo em 30 anos, porque tem que ser com responsabilidade fiscal. Sem isso, por mais dinheiro que você ponha na educação, se vier inflação, a educação piora, porque os professores vão ter que parar a cada três meses para pedir aumento de salário. Então, não vai dar resultado.
A Coreia do Sul, que hoje tem uma das melhores educações do mundo, levou 40 anos.
BBC News Brasil - O processo de melhorar a educação básica é longo. Como vê a capacidade e o interesse desse governo em iniciar esse processo?
Buarque - Eu não vejo com condições de fazer nada pela educação. Esse governo vai provocar algo que parecia impossível: um retrocesso.
Eu sempre lutei minha vida toda contra o estado atrasado da educação. Eu nunca pensei que um dia pudesse ter um governo que provocasse um retrocesso numa coisa tão atrasada como a educação brasileira. Mas o governo que está aí vai provocar um retrocesso.
Eu já tive uma grande frustração com o nosso governo, dos democratas progressistas, Lula, Dilma. Com esse governo aí eu não tenho nem frustração, porque eu não esperava nada dele.
BBC News Brasil - O senhor está preocupado com a possibilidade de piorar o que já é ruim?
Buarque - Exatamente. O que era perto de zero, vai ficar quase zero. Vai ter um retrocesso na educação de base e na universidade também.
Agora, o Bolsonaro é passageiro. O problema é que no Brasil nós temos dois problemas fundamentais. Uma é que nós brasileiros não acreditamos plenamente que o Brasil pode ser campeão mundial de educação, que podemos ter dez prêmios Nobel em 30 anos. Na mente do brasileiro, somos bons para o futebol, não para a cabeça.
E, segundo, é que está entranhado no Brasil que filho de pobre não estuda na mesma escola que filho de rico. Do mesmo jeito que durante 350 anos a mente brasileira não acreditava que brancos e negros tinham o mesmo direito. Foi preciso 300 anos de aceitação, 50 anos de luta abolicionista, até que um dia a população percebeu que era uma vergonha ter escravidão.
Mas a população não descobriu ainda que é uma vergonha ter escola para rico diferente de escola para pobre.
BBC News Brasil - Qual foi sua principal frustração na Educação com o governo do PT?
Buarque - Concentrar os esforços no ensino superior e abandonar a educação de base. E por que fez isso? Por razões eleitoreiras, porque a universidade dá voto, a educação de base não dá voto. O Lula conseguiu vender a ideia do consumo do diploma.
As pessoas entram na universidade para ter um diploma, não para ter conhecimento. E de fato, uma família que tem um filho com diploma na parede, mesmo que não traga conhecimento que lhe permita um emprego bom, essa família fica muito feliz. O Lula conseguiu fazer isso, porque ele usou como uma ascensão (social), não como uma alavanca do progresso. Minha maior frustração foi essa.
BBC News Brasil - Voltando aos protestos, o governo justifica o contingenciamento dizendo que não há recursos suficientes. Os cortes são inevitáveis?
Buarque - É provável que falte dinheiro, mas está sobrando em outro canto. Tire de outro lugar. Não justifica tirar dinheiro da educação por causa da crise num país que, apesar da recessão, ainda tem um PIB de mais de R$ 6 trilhões.
O ministro da Fazenda deu uma ideia interessante: usar o dinheiro recuperado da Petrobras (R$ 2,5 bilhões) para as universidades. Aquele dinheiro que o (procurador da Lava Jato Deltan) Dallagnol criou um fundo, por que não ir para as universidades?
Eu apoio os protestos, mas eu estou frustrado também porque ainda não é luta. As pessoas não estão indo para a rua lutar, elas estão indo reivindicar. A diferença é que ao reivindicar você pede mais dinheiro e ao lutar você pede mais dinheiro dizendo de onde deve tirar.
Eu não vi uma faixa dizendo para que o dinheiro que foi recuperado da corrupção fosse para a educação. Eu não vi uma faixa sugerindo acabar com subsídios e isenções para a indústria automobilística. São R$ 300 bilhões! O corte das universidades é na casa de R$ 2 bilhões. O governo abriu mão de R$ 300 bilhões, e não foi esse não, foi o governo da Dilma.
BBC News Brasil - Diante da crise, o senhor acha que seria correto instituir mensalidade?
Buarque - A cobrança de mensalidade não vai reduzir o rombo das universidades. O número dos que podem pagar um custo de uma universidade é tão pequeno que eles vão deixar de ir para a universidade. Em todo o lugar do mundo que a universidade é paga ela é financiada por bolsas de estudo. Alguém tem que pagar (as bolsas), tem que aumentar imposto de alguém, fazer com que os empresários ofereçam bolsa.
BBC News Brasil - O governo Bolsonaro considera que as universidades estão dominadas por um espectro ideológico de esquerda. Segundo o ministro da Educação, é preciso expurgar o marxismo cultural dessas instituições. O senhor vê uma unidade ideológica dentro das universidades?
Buarque - Não tem (unidade). É uma babaquice desses caras. Ninguém falava em (Karl) Marx mais. Bolsonaro despertou Marx, que estava dormindo. O marxismo é uma das teorias sociais mais belas que teve no mundo, mas ficou superada pela realidade. A robótica, a inteligência artificial, a globalização, a crise ecológica aposentaram o marxismo.
Eles são contra também o marxismo cultural nas escolas. Nossas escolas não ensinam nada, como é que podem ensinar marxismo cultural, se é que existe isso. Eu confesso que já estudei muito Marx, sei o que é marxismo, mas não sei o que é marxismo cultural. Para mim Marx era um filósofo da economia.
Chega a dar arrepio um país que não tem escola ver os seus dirigentes preocupados com ensino de marxismo cultural. Nossas escolas, na maior parte das cidades do interior, não são escolas, são restaurantes mirins, as crianças vão por causa da merenda.
Mas o Bolsonaro não dura mais que 4, 8, 12 anos, é um fenômeno passageiro. A gente tem que pensar é o pós Bolsonaro. E aí me preocupo. Felizmente, estou vendo resistências, mas não estou vendo nas oposições propostas alternativas.
BBC News Brasil - Como tem sido a vida sem mandato político?
Buarque - Maravilhosa. Tenho feito palestras, escrito muito. Vou ficar agora cinco dias na praia, mas escrevendo, porque eu não gosto de areia (risos). Estou com dois livros concluídos: O Brasil que eu quero, um dicionário amoroso com 90 palavras do que eu quero para o Brasil, e Onde foi que nós erramos?, nós os democratas progressistas, de Itamar (Franco) a (Michel) Temer.
Então, estou achando a vida ótima. Outro dia recebi novos parlamentares na minha casa, a Tabata Amaral (PDT-SP) e mais alguns. Ouvindo eles falar eu disse: "estou me sentindo um passarinho com saudade da gaiola". Eu saí tão feliz da gaiola que era o Senado, mas, quando vejo essa crise, penso que podia estar falando lá. Que bom que você me ligou.
BBC Brasil: Governo Bolsonaro é pior do que eu imaginava porque 'não vi nada' até agora, diz FHC
Ingrid Fagundez e Ligia Guimarães / BBC News Brasil
SÃO PAULO - No fim de 2018, quando perguntado sobre suas expectativas em relação ao governo de Jair Bolsonaro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era cauteloso: dizia preferir esperar as ações do líder recém-eleito para avaliar se seus "temores" se confirmariam.
Hoje, há três meses sob a nova administração, o tucano é mais taxativo. Bolsonaro, diz, é pior do que ele esperava. Quase cem dias depois da posse, o sociólogo de 87 anos afirma não ter visto "nada" do governo.
"Por que ele foi eleito? Ele falou temas que sensibilizaram: violência e corrupção, basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse 'eu vou fazer um Brasil de tal a qual modo'. Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai mudar o quê?", diz, em entrevista à BBC News Brasil na sede do Instituto FHC, no centro de São Paulo.
Para o ex-presidente, a nova gestão está sem rumo. As falhas, na sua análise, são muitas: falta projeto para o país, falta aprender a se relacionar com o Congresso, falta até se comunicar com a população para explicar medidas consideradas fundamentais pelo governo, como a reforma da Previdência.
Ele cita a experiência do Plano Real, quando, como ministro, liderou a articulação em prol da aprovação da proposta. "Não tinha medo de bicho papão. Fui falar do Plano Real até no programa Silvio Santos", diz. "Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase presidente."
Guedes sem sessão da CCJ, da Câmara; para FHC, ele age como professor com os parlamentares, não como político
Mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi duas vezes ao Congresso tratar da reforma da Previdência, esbarra no tom de "professor" ao falar com os parlamentares, diz FHC.
"Fui ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa, né?
Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia 'mas não é meu terreno'.
Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo."
Distante das atividades do PSDB desde que deixou a Presidência ("nem sei onde fica o diretório"), mantém contato com alguns de seus pares na sigla. Os mais frequentes, diz, são o ex-governador Geraldo Alckmin e os senadores Tasso Jereissati e José Serra. "E o (governador João) Doria, mais raramente..."
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Em seu último livro, o senhor fala bastante sobre seu exílio durante a ditadura, período em que perdeu seu pai, e foi aposentado compulsoriamente da USP. Como viu a divulgação do vídeo em defesa do golpe militar pelo Planalto?
Fernando Henrique Cardoso - É uma coisa historicamente inconsequente, né? E era também uma vontade que corresponde a esse tipo de coisa do [Donald] Trump, de idealizar o passado. Dizer "não foi assim, foi diferente". Quem passou pela época sabe. Começa pela imprensa.
Olha, trabalhei num jornal chamado Opinião, da imprensa nanica. Como é que se fazia? Você escrevia um artigo e às vezes vinha o redator-chefe e dizia "olha, essa frase não passa". Quantas vezes no jornal não saíam poesias, que era a maneira de dizer "fui censurado"?
Então você dizer hoje que não houve ditadura, que não houve um movimento de controle da liberdade, é completamente desassisado. Por que se diz? Porque a política não é feita por historiadores, é feita por personagens ativos, incentivando o medo.
BBC News Brasil - O senhor fica mais preocupado quando isso vem institucionalizado, quando vem do Planalto?
FHC - Sim, claro que preocupa. Mas se você comparar com o que aconteceu em 1964... Em 1964, havia Guerra Fria. Era uma realidade, não era uma invenção. Havia um alinhamento político ora para um lado, ora para o outro. Hoje não tem essa realidade. Mesmo que venha do Planalto, como você vai assentar essas coisas que o Planalto quer colocar como verdade? No passado, tinha [uma forma], porque de fato havia briga, havia União Soviética, hoje não tem.
Você vai dizer o quê? O perigo vem da China? A China está preocupada em vender o que produz.
BBC News Brasil - Ao falar sobre as novas versões históricas a respeito do golpe de 1964, o senhor disse que elas são prejudiciais para o futuro do país. Muito se discute hoje sobre ameaças à democracia brasileira. Vê esse risco?
FHC - Sobre o Brasil, quando as pessoas dizem o que você acabou de me perguntar, querem dizer o seguinte: há o perigo de um regime sem liberdade. Sempre há, você tem que prestar atenção. Mas não acho que possamos comparar com 64 porque em 64 havia um confronto real entre concepções do mundo ancoradas em Estados, simbolicamente a União Soviética e os Estados Unidos. Você tem diferenças no mundo hoje, mas não tem mais ideologias ancoradas só num Estado. É mais difuso.
Por outro lado, no passado, os partidos de esquerda e de direita tinham não só uma ideologia como se organizavam. Eles queriam representar interesses de classe. Não há isso no Brasil de hoje. Estive recentemente na Europa e era uma dificuldade, porque os jornalistas me perguntavam na pressuposição de que isso existia. E não há.
Quem votou por A, B ou C no Brasil, não votou numa concepção orgânica, votou numa pessoa que emitiu sinais que captaram um sentimento.
BBC News Brasil - O senhor está falando de Bolsonaro?
FHC - É. Ou de outro qualquer. Quem votou no Bolsonaro, por exemplo. Por que ele foi eleito? Ele falou de temas que sensibilizaram: violência e corrupção, basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse "eu vou fazer um Brasil de tal a qual modo". Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai mudar o quê?
BBC News Brasil - Logo depois que o presidente Bolsonaro foi eleito, o senhor falou que as ações dele iriam desmentir ou confirmar os temores despertados no senhor na época. E hoje?
FHC - Meu temor não é só sobre o Brasil. Como eu disse, está difícil [em todo o mundo] a noção de representatividade e democracia. Aqui meu temor hoje é outro, é a falta de qualquer coerência.
BBC News Brasil - No governo?
FHC - No governo. Não estou com temor de que acabe a liberdade de imprensa. Não tem força para isso. Claro que vai depender da reação da sociedade, sempre. Não se pode fechar os olhos e dizer "deixa então". Tem que se opor, porque se não se opuser, as coisas vão se organizando.
Vamos falar em coisas concretas. Você tem uma enorme quantidade de militares no governo, em geral da reserva. Mas não tem um Exército, uma força armada no governo. Não houve uma tentativa de uma corporação tomar conta e dar um certo rumo. Não é a mesma coisa. Em 1964, houve uma ocupação com uma ideologia, tinha uma cabeça. O general Golbery [do Couto e Silva, um dos principais articuladores da ditadura militar] não era nenhum desinformado, ele tinha uma linha. Aqui não tem, é uma coisa mais precária.
Não acho que estejamos na ameaça concreta de uma força organizada tomar conta do poder. O que não quer dizer que não seja um risco, porque você precisa ter alguém para apontar um caminho. Com muita confusão, as coisas ficam difíceis, porque o mundo está avançando.
Qual é a briga dos Estados Unidos com a China hoje? Não é só comunismo e democracia. É quem domina melhor a tecnologia, o que faço com ela.
presidente diz que esperava "um caminho" do governo Bolsonaro, algo que não viu até agora
BBC News Brasil - Em seu último livro, o senhor fala que o Brasil sempre teme perder oportunidades. Estamos perdendo?
FHC - Estamos perdendo oportunidades. Num mundo difícil, confuso, você tem que ter algum objetivo e estratégia. Se nos perdermos no que se chama de "curto-prazismo", não acontece nada. O que vai ser daqui a dez anos? Daqui a vinte? O que eu quero fazer? Quero mandar o homem para Lua? Eu quero fazer o quê? [...] Alguma coisa mais concreta para que você possa orientar o sentimento e o comportamento das pessoas em uma certa direção.
BBC News Brasil - Mas em relação aos temores que o senhor mencionou, esses três meses foram melhores ou piores do que tinha imaginado?
FHC - Acho que piorou no seguinte sentido: não vi nada.
BBC News Brasil - É pior do que o senhor esperava?
FHC - É.
BBC News Brasil - O que o senhor esperava?
FHC - Um caminho. Vamos pegar uma coisa concreta. O setor econômico do governo parece ter um caminho, posso concordar ou não, mas é um caminho. Só que não vi esse caminho se transformar numa realidade congressual. E vivemos numa democracia, não adianta eu saber. Tem que fazer com que os outros estejam de acordo e votem do meu lado. Não vejo organização no Congresso para isso.
Fui ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa, né? Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia "mas não é meu terreno". Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo. Só se transforma num processo quando você atua sobre os outros e tem o consentimento, a adesão dos outros.
Nos outros setores, [fora o econômico] você não vê nada. Você uma coisa idílica... Escola Sem Partido. Não tem que ter partido em escola mesmo, não cabe, mas traduzem isso de uma maneira antiquada. Todo mundo tem ideologia mesmo, de um jeito ou de outro. Você influencia o aluno queira ou não queira, mas você não pode organizadamente inculcar uma ideia no aluno. Sou contra isso aí. Mas a ideia do Escola Sem Partido é outro partido. Então, você vai tirar o evolucionismo e botar o criacionismo... Tenha paciência.
BBC News Brasil - O senhor citou recentemente a possibilidade de queda de um presidente que não entende como se articula o Congresso. O senhor está falando de Bolsonaro? Vê risco de queda?
FHC - Sempre existe. Sempre fui, pessoalmente, muito renitente à ideia de impeachment. Lembro-me do caso do presidente Lula, por causa do mensalão. Quando o tema veio à baila, eu era contrário. Não porque tivesse dúvida quanto ao mau procedimento e ao combate do mensalão, mas digo "meu Deus, vamos colocar para fora da Presidência um homem que foi líder sindical, ganhou as eleições, que tem enraizamento popular"? Isso deixa uma marca na história.
Na minha cabeça, naquela época, eu comparava com Getúlio Vargas. Eu era menino no tempo do Getúlio, quando derrubaram o Getúlio. Vocês não imaginam a tensão que havia na política brasileira, na vida brasileira, entre Getúlio e anti-Getúlio, nas famílias, era uma coisa insuportável. Eu disse "bom, vamos repetir isso aqui?". Historicamente não é bom.
No caso da Dilma Rousseff, nunca fui fanático pelo impeachment, embora houvesse elementos, como havia no caso do Lula. Porque você tem que pensar que é uma coisa complicada. Depois da Constituição de 88, eleitos pelo voto direto foram o Collor, que sofreu impeachment; eu, que consegui (concluir dois mandatos); o Lula, que conseguiu, mas está na cadeia. A Dilma sofreu impeachment. E agora o Bolsonaro.
É uma coisa complicada do ponto de vista nacional. Por que alguns conseguiram? Eu fiquei oito anos, na verdade fiquei dez porque no tempo do Itamar eu tinha muito controle. O Lula ficou mais que oito, porque no tempo da Dilma ele tinha controle. Por quê? Porque, de maneiras diferentes, tanto eu como o Lula conhecíamos as forças da sociedade. Se você não entender a diversidade e necessidade de ter apoio, você perde a força. E quando é o impeachment? Quando não tem apoio.
BBC News Brasil - Apoio que se consegue com articulação política.
FHC - É, articulação. É uma questão em todos os governos, não só no Brasil. Mesmo nas ditaduras você tem que ter apoio. Pega a ditadura aqui no Brasil, não tinha apoio? Tinha. Pode não ser o apoio que você deseja, não é voto, mas tem que ter apoio em alguns grupos da sociedade. Aqui temos um regime democrático, que precisa de voto, e os parlamentares nesse regime têm peso. E temos tremenda dificuldade hoje com uma fragmentação partidária sem tamanho; quando você não tem essa fragmentação é mais fácil discutir o apoio.
Como você discute apoio? A pior maneira feita aqui foi comprar, com dinheiro, que é insustentável e corrompe tudo, não só as pessoas como as instituições. Mas você tem que negociar: você está de acordo? Quem está do meu lado? Se você estiver de acordo, você vai ser ministro. Mas no Brasil se criou a ideia de que fazer acordo é crime, corrupção. Aí não tem como governar, só com a ditadura. Como é que faz? Quem ganhou manda?
Sempre disse isso: tem que ser com base em um programa. Quando não tem programa, e esse programa não tem apoio da sociedade, o governo fica muito frágil, e o Congresso derruba.
BBC News Brasil - O senhor vê esse risco para Bolsonaro, de não terminar o mandato?
FHC - Espero que não, porque o Brasil precisa de continuidade, precisa que as instituições se reforcem. Então não torço por esse lado, nem estou vendo que isso possa ocorrer já. Não gostaria que isso ocorresse, na verdade, por questões históricas. Mas acho que o governo tem que andar depressa.
Costumo fazer uma comparação grosseira, do cavalo e o cavaleiro. O Congresso e o Executivo é a mesma coisa. O Congresso fica te olhando lá: "esse cara não sabe montar a cavalo, e se não sabe, vou dar um pinote". E de repente dá um pinote e te tira. Então você tem que estar o tempo todo tentando convencer o Congresso e o povo de um certo caminho.
Como é que você convence o Congresso? Tendo apoio popular fica mais fácil, porque o Congresso pensa na própria eleição. Segunda parte: você tem que compartilhar o poder e ter objetivos - o que estou propondo, o que vou fazer. Pega uma coisa essencial para o Brasil, a reforma da Previdência. Por que é essencial? Porque daqui a pouco o governo vai ter que emitir moeda, volta a inflação.
Já no meu tempo tentamos fazer [a reforma da Previdência], conseguimos um pouquinho. Cada um fez um pouquinho. Pouco a pouco, até no momento atual, a população começa a entender isso.
Para fazer uma reforma você tem que gastar muita saliva, e explicar muito para a população o porquê, para ganhar o apoio. Para o Congresso também te apoiar. O caminho mais fácil é você cooptar o Congresso, seja com cargos, seja com dinheiro. Mas não é o melhor. O melhor é você ter capacidade política para ganhar a luta na agenda. O que eu fiz no tempo do Real? Eu falei.
BBC News Brasil - O senhor disse em entrevistas que, no processo de aprovação do Plano Real, assumiu o papel de articulador como ministro da Fazenda quando o presidente Itamar Franco preferiu ficar de fora. Esse é um modelo que poderia funcionar para a reforma da Previdência? Guedes poderia ser o "FHC" de Bolsonaro?
FHC - Não do jeito que ele está pensando. Ele tem que ser político.
Eu era senador, então eu ia às bancadas todas do Congresso e discutia inclusive com a oposição, não tinha medo de bicho papão, os enfrentava. E eu falava na televisão. Vou dar um exemplo: eu fui convidado uma vez para falar sobre o plano Real no programa Silvio Santos. Cheguei lá no barracão na marginal do rio Tietê, onde era o estúdio. Silvio estava em uma salinha fazendo maquiagem e me chamou lá. Ele me dizia: repete. Eu repetia. Ele falava "ih, vai ser um desastre, não vão entender nada".
Ele acabou a maquiagem e entramos em um salão do auditório. Ele me disse "olha, minha audiência tem uma idade mental de 12 anos. Em média". Ele foi lá e deu um show. Explicou muito melhor e mais apropriadamente do que eu seria capaz, para o auditório dele, o que era o Plano Real, a URV. Mas fui lá falar com ele. A questão de obter apoio implica em explicar.
BBC News Brasil - E no que o senhor vê falhas em Guedes? Ele foi falar no Congresso…
FHC - Sim, foi lá responder, respondeu bem, como um professor. Não falei como professor, falei como político. Se você falar como professor é uma coisa: quem entende é quem está na aula. E quem não está em aula? Não estou dizendo que Guedes não seja capaz, estou falando que, até agora, não vi ninguém que explicasse dessa maneira.
Sendo líder, você tem que traduzir de maneira que as pessoas sintam. Está faltando isso. Não é propaganda, é a crença de que o líder vai fazer aquilo. Alguém vai ter que assumir esse papel. Vou dar um exemplo que eu gosto muito, do Lula, no Palácio da Alvorada, falando sobre poluição.
"[Ele disse:] a poluição, vocês sabem, vem lá de cima. A Terra é redonda e ela gira. Se ela fosse plana, a poluição seria um problema deles, porque são eles que poluem. Mas como ela gira, cai na nossa cabeça; então nós temos que proteger o meio ambiente". Ele explicou. Fundamento científico zero, mas a maneira de dizer "atenção, porque isso pega em você também" é assim.
BBC News Brasil - O governo está gastando saliva nos lugares errados?
FHC - Sou prudente nessas coisas. Acho que tem que dar um pouco de tempo ao tempo para ver como o governo vai atuar. O estilo de comunicação que vejo no presidente é a internet. Não é minha área, não sei dizer se está funcionando, se não está funcionando.
Mas quando sai da internet e vai falar, é um estilo mais "o homem comum". Pode pegar? Pode. Mas precisa falar, repetir, de uma maneira mais fácil, mais direta. Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase presidente, que a gente saiba que quando ele está falando, está falando pelo governo. Isso não é só aqui, é no mundo todo onde há democracia.
BBC News Brasil - Mas o presidente tem declarado que ele já fez sua parte ao entregar a proposta ao Congresso. Disse que, por ele, nem seria favorável à reforma.
FHC - Acho que ele está errado. Isso está errado. É porque ele vem de uma corporação e todas as corporações ficam com preocupação quando muda a Previdência, eu entendo. Sou de uma família que tem muitos militares. Você não imagina a dificuldade que eu tive com a reforma da Previdência, [com] minha irmã, meus irmãos. [Eles diziam:] 'meu pai contribuía, tenho direito'. E o que eu dizia? Eu lavo as mãos? Alguém vai ter que botar a mão na massa.
BBC News Brasil - Como os empresários e o mercado têm percebido o governo nessa situação?
FHC - Não tenho tanta familiaridade, mas o que posso dizer é: o mercado e o Congresso têm uma conversa de surdos. Um não entende o outro e adivinha, aposta. Muitas vezes o mercado aposta que vai haver tal coisa que é inviável, e o Congresso é absolutamente insensível ao nervosismo do mercado. Então é por isso que precisa de alguém que faça pontes, explique.
BBC News Brasil - Na semana passada, a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de "aprendiz de presidente", dizendo que faltava a ele conhecimento sobre o próprio emprego. O senhor concorda?
FHC - Não estou lá próximo para saber como ele tem desempenhado. O que vi foi em Davos, [quando] perdeu uma oportunidade. Agora foi lá para Israel e prometeu que ia abrir uma embaixada, recuou para abrir um escritório, provavelmente desagradou aos dois lados. Nos EUA, ele foi muito pró, foi pró demais.
Acredito que tem que se dar tempo ao tempo. A verdade é que ele esteve por muitos anos no Congresso. Eu tive escolinha de presidente: porque eu fui líder [durante o governo] Sarney, depois veio Itamar que era meu colega, vi [a política] mais de perto. Não é necessário isso, o Lula nunca foi tão perto e aprendeu. A Dilma não aprendeu. Para você ver que tem alguma coisa que depende do estilo da pessoa. Mas acho que é cedo para dizermos "é assim". E temos um ministro do Exterior que quando fala, complica, né... (risos).
BBC News Brasil - O senhor já declarou que não está vendo oposição ao governo.
FHC - Só de dentro do próprio governo.
BBC News Brasil - Durante a eleição, o senhor disse que não apoiaria nem Bolsonaro nem o PT, por tratarem-se de "dois extremos", e foi criticado por não ter se posicionado. Só se disse oposição em janeiro.
FHC - Eu nunca apoiei o Bolsonaro, não era isso. Mas estou em uma situação difícil. O PT deu com os burros n'água, levou o Brasil a um desastre enorme. As ideias não mudaram, eu não quero.
Por outro lado, eu não acreditava também no voluntarismo do Bolsonaro. Mas nunca apoiei. Não torço contra o Brasil, nunca. Não é que necessariamente vai fazer bobagem, vamos ver. Tomara que não faça. Se fizer, eu estou contra.
BBC News Brasil - Mas na sua análise dos primeiros três meses…
FHC - É como eu disse, não vejo caminho.
BBC News Brasil - Nesta semana, Paulo Vieira de Souza, acusado pelo MPF de ser operador de políticos do PSDB de São Paulo, assumiu ter quatro contas na Suíça. O senhor acha que o PSDB pode voltar a se diferenciar dos outros partidos em termos de ética?
FHC - Vamos ver, eu leio toda hora "o Paulo Preto é operador do PSDB". Não é verdade. Quem é o tesoureiro do PSDB? Não sei, não é uma figura importante, nem o Paulo Preto jamais foi ligado a um tesoureiro do PSDB. Pode ter sido usado por pessoas do PSDB, o que é diferente de constituir o elo entre a corrupção e o partido.
Agora, houve casos que comprometem o partido, a crítica recai, todo o sistema foi alcançado por essas críticas. Qual vai ser o futuro dos partidos? Ou se renovam efetivamente e têm lideranças que expressam essa renovação ou vão continuar o que são: máquinas de fazer voto.
BBC News Brasil - O senhor já disse que não gosta de ver o presidente Lula preso.
FHC - Nem ele, nem nenhum.
BBC News Brasil - Agora vai fazer um ano da prisão dele. Como vê esse processo?
FHC - Uma coisa é o sentimento pessoal: não gosto de ver pessoas que eu conheço na cadeia. Mas, no Brasil, as regras existem. Está preso porque foi condenado em segunda instância. Antigamente pela Constituição diziam que você só poderia ser preso quando o processo transitasse em julgado.
O Supremo Tribunal voltou [com] uma interpretação que já existia e diz o seguinte: [trânsito] em julgado quer dizer o quê? Quando você vai em segunda instância e é a última na qual se apresentam provas sobre o fato. A partir daí, a interpretação é jurídica.
Então pode prender, e depois apela da cadeia em questões jurídicas. O Lula está preso de acordo com essas regras. Não posso ser contra as regras, seria contra a democracia. Ele não está preso arbitrariamente.
Houve um arbítrio agora? Houve. Quando prenderam o presidente Temer, arbitrariamente, porque não havia, a meu ver, a necessidade de daquele espetáculo.
BBC News Brasil - A bandeira Lula Livre, que a esquerda defende, é uma arbitrariedade na opinião do senhor?
FHC - É uma bandeira, né, de luta política. Acho que a partir de certa idade, digamos, de 70, 75 anos, deveria ficar preso em casa. Mas aí tem que ser uma regra, não é para A, B ou C, não é porque foi presidente, é porque tem a idade.
BBC News Brasil - Há uma crítica em relação à Lava Jato, da espetacularização das prisões.
FHC - No caso do Lula, ele foi condenado.
Vou dar um exemplo de um que é do meu partido. Eduardo Azeredo, foi governador de Minas Gerais. Foi condenado a 21 anos de cadeia. O que o Eduardo Azeredo fez? Houve um alguém... Um ex-ministro do Lula (Walfrido Mares Guia) e um presidente de uma importante federação empresarial (Clésio Andrade) fizeram um contrato com o governo dele para usar o dinheiro na campanha dele. Está errado. Preso está ele, não estão os outros. Está injusto.
Mas ele está preso porque foi condenado, não posso sair por aí [dizendo] "libere ele". É um momento triste do Brasil. Necessário, porque a corrupção contaminou tudo, os partidos, as lideranças, a máquina pública, as empresas. Necessário. Tem abuso? Pode ter, mas qualquer [abuso] tem que ser coibido.
BBC Brasil: 50 anos do AI-5 - Os números por trás do 'milagre econômico' da ditadura no Brasil
Há 50 anos, o governo militar decretava o Ato Institucional número 5 (AI-5), o quinto de 17 grandes decretos emitidos durante a ditadura. Era o início da fase que é considerada a mais repressiva do regime.
O período iniciado em 1968 foi marcado pelo fechamento do Congresso Nacional, pela tortura de adversários políticos e pela morte e desaparecimento de mais de 400 pessoas, como indica o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Ainda assim, não é incomum que o período do regime militar no Brasil, entre 1964 e 1985, seja lembrado por alguns com certa nostalgia como um tempo marcado por um forte crescimento da economia, que ficou conhecido "milagre econômico". A economia brasileira nunca cresceu tanto - antes ou depois. A taxa média de crescimento nesse período girava em torno de 10% por ano.
Mas especialistas notam que o regime militar deixou para o país uma herança maldita para a economia, como o agravamento de alguns dos problemas que ainda marcam o noticiário econômico brasileiro, como o endividamento do setor público e o aumento da desigualdade social.
"O governo militar, quando assume em 1964, enfrenta um período de bastante desorganização da economia, com desequilíbrio fiscal, inflação alta e desemprego. Havia um desgaste muito grande do modelo econômico anterior, com o fracasso do Plano Trienal (para retormar o crescimento econômico). Eles conseguiram modernizar a economia, mas isso teve um alto preço, que acabou sendo pago após a redemocratização, como hiperfinflação e dívida externa estratosférica", diz Vinicius Müller, professor de história econômica do Insper, à BBC News Brasil.
Mesmo serviços públicos, como a educação eram restritos e sofreram uma clara erosão de investimentos do Estado. O desenvolvimento da indústria, por outro lado, se deu à custa de muito endividamento público. A dívida externa brasileira cresceu em mais de 30 vezes. Se o PIB cresceu como nunca, a repressão limitou o poder de barganha dos sindicatos, e o salário dos trabalhadores amargou duas décadas de reajustes abaixo da inflação.
A BBC News Brasil analisou os dados do período e entrevistou historiadores, economistas e sociólogos em busca de um raio-x do legado socioeconômico do regime militar. Veja os principais pontos.
Havia menos corrupção?
Pouco se ouve falar em corrupção durante a ditadura. Mas isso quer dizer que ela não existiu?
O ambiente do regime militar era "ideal para práticas corruptas", segundo o professor Pedro Henrique Pedreira Campos, do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro Estranhas Catedrais: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-militar, 1964-1988, que analisa mais profundamente essa relação.
"Os mecanismos de fiscalização eram inexistentes ou estavam amordaçados: a imprensa, a oposição política, o Parlamento. As próprias instituições do Estado, como Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário, sofreram forte limitação na sua atuação naquele período", diz Campos.
Campos lembra, ainda, que "mesmo com todo esse amordaçamento dos mecanismos de fiscalização, alguns casos vieram à tona, principalmente no período da transição política, e foram denunciados publicamente".
É o caso, por exemplo, do Relatório Saraiva, que envolve a suposta cobrança de propina por parte de Delfim Netto, então ministro da Fazenda, em obras de engenharia e financiamento para equipamentos de usinas hidrelétricas. Delfim sempre negou a acusação.
"O próprio SNI (Serviço Nacional de Informações), o órgão de espionagem da ditadura, flagrou alguns ministros, empresários e agentes públicos cobrando propina e recebendo recursos ilegais por parte de empresas para ter favorecimentos", diz.
"Não é porque tínhamos menos notícia de corrupção que havia menos (atos de corrupção). Pelo contrário, tudo aponta que a corrupção era deliberada. O que a gente conhece e que veio a público provavelmente é a ponta do iceberg das irregularidades que foram cometidas naquele período. É uma pena que exista um desconhecimento de grande parte da população em relação a isso", conclui Campos.
'Crescimento chinês' e Estado na infraestrutura
De fato, o PIB brasileiro (Produto Interno Bruto, ou a soma de todas as riquezas produzidas) cresceu muito durante o governo militar. No início do regime, o crescimento foi baixo por conta das medidas tomadas para conter a inflação, que chegava a quase 100% ao ano.
Mas, a partir de 1968, a economia deslanchou. Inaugurava-se um período de cinco anos que ficou conhecido como "milagre econômico", quando o país cresceu a taxas elevadas e sem precedentes.
Em 1973, no auge do "milagre", o PIB cresceu 14%.
Imagine se toda essa riqueza acumulada fosse dividida igualmente por toda a população brasileira. É o chamado PIB per capita, que não considera a desigualdade, mas dá uma primeira ideia da evolução no período. Foi de US$ 261 em 1964 para US$ 1.643 em 1985.
Em 1964, um brasileiro ganhava, em média, o equivalente a 17% da renda recebida por um típico cidadão americano. Já em 1978, a renda média do brasileiro passou a corresponder a 28% a do americano. O problema era que nem todos recebiam igual fatia do bolo.
"Os militares alcançaram resultados bem positivos do ponto de vista econômico na primeira metade do regime: conseguiram controlar a inflação (em um primeiro momento), aumentaram a produtividade da economia, modernizaram a máquina pública e o parque industrial. Além disso, fortaleceram o Estado, que passou a ter um protagonismo significativo nos investimentos em infraestrutura", diz Guilherme Grandi, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP).
A taxa de investimento público em relação ao PIB passou de quase 15% em 1964 para 23,3% em 1975.
"Mas como isso foi feito? Foi feito em um ambiente autoritário, à custa de muitas vidas", ressalva.
Emprego, obras públicas e financiamento internacional
Com esse crescimento, também vieram mais empregos, especialmente na indústria.
Em 1965, o setor empregava 2 milhões de pessoas. Vinte anos depois, em 1985, 3,5 milhões.
A inflação também caiu. Foi de 92% em 1964 para 15,6% em 1973.
Mas como isso foi possível? Houve uma combinação de fatores.
Os militares incentivaram a entrada do capital estrangeiro, estimularam exportações e implementaram medidas para proteger o investimento financeiro, como a correção monetária. Foram feitas reformas fiscais, tributárias e financeiras.
"A criação do Banco Central (1964), que administra nossa política monetária, data desse período", lembra Grandi, da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA/USP).
O governo também apostou em grandes obras. Vieram a Ponte Rio-Niterói, a mega usina de Itaipu, usinas nucleares de Angra, polos petroquímicos e Rodovia Transamazônica (até hoje não concluída).
Mas grande parte desse "milagre" só foi possível graças ao dinheiro internacional. Era uma época de crédito farto no exterior. O capital estrangeiro chegou ao Brasil tanto pelas chamadas multinacionais, que encontraram no nosso país um ambiente mais favorável, quanto por empréstimos tomados de instituições internacionais.
Os militares investiram ainda num programa de desenvolvimento do parque industrial. A Zona Franca de Manaus, por exemplo, foi formada nessa época, com isenção de impostos às empresas que por lá se estabeleciam. A ideia era substituir importações, ou seja, incentivar a produção nacional de bens que vinham sendo importados com um alto custo em dólar à balança comercial externa.
E para quem defende uma economia com forte controle estatal, não faltaram exemplos durante a ditadura. Ao todo, 274 estatais foram criadas durante o governo militar, como Nuclebrás (energia nuclear), Infraero (aeroportos) e Telebras (telefonia).
O crescimento durante a primeira metade do regime militar aumentou a oferta de postos de trabalho, que por sua vez ajudou a expandir o consumo interno.
A fartura de emprego atraiu muita gente das zonas rurais, inchando as cidades, que não estavam preparadas para receber esse excedente populacional. Em 1960, mais da metade da nossa população vivia no campo. Já no fim da ditadura, sete em cada dez brasileiros já moravam nas cidades.
Arrocho salarial e enfraquecimento dos sindicatos
Mas a conta do milagre não saiu nada barata. No início da ditadura, a inflação foi controlada, mas às custas das classes mais baixas, dos trabalhadores. Os salários foram achatados, já que foi mudada a fórmula que reajustava os salários pela inflação.
No governo militar, os trabalhadores tiveram aumentos salariais que eram insuficientes para recompor as perdas causadas pela elevação dos preços, reduzindo o poder de compra.
Entre 1964 e 1985, o salário mínimo caiu 50% em valores reais, ou seja, já ajustados pela inflação. Foram precisos 30 anos para recuperar o poder salarial dos mais pobres.
Esse arrocho salarial aconteceu em parte como resultado da intervenção dos militares sobre os sindicatos, o que diminuiu o poder dos movimentos e de negociação dos operários. Muitas dessas associações foram desmanteladas. Vários dirigentes sindicais foram presos ou substituídos por simpatizantes do regime.
O achatamento dos salários diminuiu o custo de mão-de-obra. Além disso, foi reduzida a alíquota máxima do Imposto de Renda, beneficiando os mais ricos, e concedidas várias isenções fiscais ao empresariado.
Foi criada a chamada correção monetária, um instrumento que protegia os investimentos da inflação e favoreceu mais quem tinha dinheiro para investir no mercado financeiro.
"Os trabalhadores foram os grupos mais fragilizados para disputar politicamente esses ganhos. Houve uma resposta muito agressiva contra eles", diz Müller, do Insper.
Riqueza na mão de poucos
Na visão dos militares, era "preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo". A frase, que se tornou célebre, foi dita por Delfim Netto, ministro da Fazenda de 1967 a 1974 e considerado o "pai" do milagre econômico. Não era a única teoria econômica que embasava o desenvolvimento em diferentes partes do mundo, mas foi a que prevaleceu no país.
As medidas implementadas, no entanto, acabaram também acentuando a desigualdade social de uma forma nunca vista, aumentando enormemente a concentração de riqueza.
Em 1964, o 1% mais rico da população detinha entre 15-20% de toda a renda do país. No fim da ditadura, passou a controlar quase 30%, como mostra um estudo conduzido por Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da UnB.
Souza usou dados do Imposto de Renda, seguindo a mesma metodologia do economista francês Thomas Piketty, conhecido por ampliar as discussões sobre desigualdade social no mundo com seu livro O Capital do Século 21 (2014).
"Meu estudo mostrou que a desigualdade não foi consequência do milagre econômico, mas se acentuou antes desse período, com as decisões do governo militar que jogou a conta do ajuste no colo dos trabalhadores", diz Souza à BBC News Brasil.
O especialista lembra ainda que os militares acabaram com a estabilidade após dez anos de serviço, regra que valia no setor privado. Em contrapartida, criaram o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
"O governo arranjou um motivo político para acabar com a estabilidade e criou um mecanismo de poupança forçada para subsidiar empréstimos para financiar setores escolhidos. Ficou mais barato para as empresas demitirem. Ou seja, antes do reajuste anual, vários funcionários eram demitidos e recontratados logo depois. E a rede de proteção social do Brasil daquela época era quase nula", explica Souza.
O choque do petróleo de 1973
A trajetória de crescimento do PIB do Brasil começou a mudar em 1973, quando o Brasil e o mundo se surpreenderam com o primeiro choque do petróleo. Os países árabes exportadores de petróleo acertaram um embargo direcionado às nações que eram vistas como apoiadoras de Israel.
Como consequência imediata, o preço do barril de petróleo quadruplicou, afetando países importadores, como o Brasil. O crédito, que antes era farto, ficou de repente escasso. A economia brasileira, tão dependente de empréstimo estrangeiro, passou a enfrentar dificuldade. A rolagem da dívida externa teve de ser feita a juros mais elevados.
Lembram-se do crescimento de 14% em 1973? Ele caiu para 9% no ano seguinte e 5,2% em 1975.
Mas os militares decidiram não abrir mão do modelo econômico. Eles defendiam que o país deveria continuar crescendo a qualquer custo.
A opção foi continuar se endividando. Não esperavam, porém, uma nova piora do quadro externo.
Em 1979, houve uma segunda crise do petróleo. O Irã, então segundo maior produtor mundial, cortou a venda e a distribuição da matéria-prima, devido à Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini. O preço médio do barril explodiu. Mais um golpe à economia brasileira.
Mudança de rumo? Não, o Brasil decidiu continuar a se endividar.
Menos dinheiro para a educação
Você já ouviu falar que, antigamente, a escola pública época era de boa qualidade e só quem estudava em colégios particulares era quem não fosse capaz de acompanhar a rigidez da escola pública?
O que muitos não sabem é que o processo de deterioração do ensino público ganhou força justamente no regime militar.
De fato, os governantes do período conseguiram reduzir a taxa de analfabetismo e estenderam a obrigatoriedade da educação básica. Segundo censos do IBGE, a taxa de analfabetismo de pessoas com 15 anos ou mais caiu de 33,6% em 1970 para 20% em 1991.
Também houve um foco importante na pós-graduação - especialmente na área de ciência e tecnologia.
No entanto, a ampliação do ensino não foi acompanhada de um aumento dos investimentos em educação. A verba, por outro lado, caiu.
A Constituição de 1967, aprovada durante a ditadura, trouxe duas alterações que mudariam o rumo da política educacional brasileira.
Primeiro, desobrigou o investimento público mínimo no setor.
No governo anterior, de João Goulart, a legislação previa que a União tinha de investir pelo menos 12% do PIB em educação. Além disso, obrigava Estados e municípios a alocarem 20% do orçamento na área de educação.
Em 1970, esse percentual foi para 7,6% do PIB, caiu para 4,31% em 1975, se recuperou um pouco e atingiu 5% em 1978.
Segundo, os militares abriram o ensino para a iniciativa privada, principalmente no ensino superior.
"O regime militar relativizou o princípio da gratuidade do ensino. O significativo aumento da participação privada na oferta de ensino, principalmente em nível superior, foi possível pelo incentivo governamental assumido deliberadamente como política educacional", diz à BBC News Brasil Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp e estudioso do tema.
Dados compilados por ele mostram que, de fato, ocorreu no período uma grande expansão do ensino superior. Entre 1964 e 1973, enquanto o ensino primário cresceu 70,3%, o ginasial, 332%, o colegial, 391%; o ensino superior foi muito além, tendo crescido no mesmo período 744,7%.
"E o grande peso nessa expansão se deveu à iniciativa privada: entre 1968 e 1976, o número de instituições públicas de ensino superior passou de 129 para 222, enquanto as instituições privadas saltaram de 243 para 663", explica Saviani.
Os militares também estenderam a educação básica obrigatória de quatro para oito anos.
"A mudança foi positiva. Mas não foi acompanhada de um crescimento de verbas em igual proporção", afirma o pesquisador.
Como resultado, não havia professor para todo mundo e a formação de novos docentes ficou prejudicada. Os salários e as condições de trabalho se deterioraram. O magistério deixou de ser uma profissão cobiçada pela classe média. Foram contratados os chamados professores leigos (sem qualificação pedagógica) para atender a demanda.
No Nordeste, por exemplo, 36% do quadro de docentes tinham apenas o 1º grau completo.
Tudo isso acabou por sucatear as escolas públicas.
Assim, os filhos da classe média que antes estavam matriculados nas escolas públicas passaram a frequentar colégios particulares. Os colégios públicos ficaram voltados aos mais pobres e esquecidos pelo governo.
Especialistas em educação tendem a atribuir a piora em serviços públicos em várias partes do mundo a medidas que incentivam a migração da classe média para a rede privada, deixando a rede pública desprovida da pressão política por melhorias tradicionalmente feita pela classe média escolarizada e ciente de seus direitos.
Queda na mortalidade infantil e saúde privada
Na área da saúde, houve avanços. A mortalidade infantil caiu pela metade de 1964 a 1985, e a expectativa de vida subiu de 56,3 anos para 63,5 anos no mesmo período.
Mas apesar do progresso em alguns indicadores, especialistas apontam que o regime militar "privatizou a saúde".
O Estado passou a diminuir sua participação no atendimento à população e foi substituído aos poucos pela rede privada.
De 1964 até 1974, o número de hospitais com fins lucrativos foi de 944 para 2.121.
Já o êxodo rural, a saída do campo rumo às cidades, foi mal planejado e nunca pôde ser revertido. As cidades brasileiras, despreparadas para o imenso contigente de pessoas que chegavam do interior, ficaram inchadas. Sem uma política habitacional efetiva, comunidades pobres, como favelas, se multiplicaram sem acesso a infraestrutura e saneamento básico.
Ganhos que não se sustentaram
Voltando à economia, o modelo adotado pelo regime militar se mostrou um "castelo de areia", segundo especialistas entrevistados pela BBC News Brasil.
A inflação, que foi controlada no início, explodiu na segunda metade do regime. Em 1985, o índice anual já batia 231%. Quatro anos depois, durante o governo Sarney, eleito indiretamente pelo Congresso, a inflação chegou a quase 2.000% em 12 meses.
O endividamento subiu de 15,7% do PIB em 1964 para 54% do PIB quando os militares deixaram o poder, em 1984.
A dívida externa cresceu 30 vezes. Passou de US$ 3,4 bilhões em 1964 para mais de US$ 100 bilhões em 1985.
E ainda que a renda média tenha avançado, o salto brasileiro foi muito inferior ao da Coreia do Sul, por exemplo, cuja trajetória é frequentemente comparada à do Brasil.
Em 1964, o PIB per capita da Coreia do Sul era de US$ 123,59, a metade do brasileiro. Em 1985, quando a ditadura militar brasileira acabou, já era 50% maior do que o nosso (US$ 2.457,33).
O dia em que o país "faliu"
Em 1982, portanto ainda no regime militar, o Brasil quebrou. Começava a crise da dívida, no que se convencionou chamar de "década perdida", que pôs fim ao modelo de forte crescimento do país, sustentado no endividamento externo e políticas desenvolvimentistas como a substituição de importações (relançada posteriormente no governo Lula).
Cinco anos depois, o país declarou a moratória: o presidente José Sarney anunciou a suspensão do pagamento dos juros da dívida externa por tempo indeterminado. Não tínhamos mais dinheiro e a inflação estava nas alturas.
Nesse cenário, os militares se despediram do comando. Basicamente, deixaram de presente para a democracia uma conta bem alta, o que se convencionou chamar de "herança maldita".
"As reformas feitas pelos militares foram feitas sem o contraditório da oposição. Foram medidas polêmicas, que implicaram em vencedores e perdedores. Não houve discussão porque o regime era de exceção", diz à BBC News Brasil Claudio Hamilton dos Santos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Vale lembrar que naquela época só havia dois partidos - MDB (oposição) e Arena (governista). Vários opositores do regime foram presos ou exilados.
BBC Brasil: 'Tecnologia permite destruir Amazônia mais rápido do que fizemos com a Mata Atlântica'
Só 3% da madeira derrubada na Mata Atlântica para dar lugar a fazendas foi aproveitada; em geral, matas eram incendiadas e transformadas em pastos para prepará-las para a agricultura, assim como hoje ocorre na Amazônia
Por João Fellet, Da BBC News Brasil em São Paulo
Em 2005, então recém-formado na faculdade de Biologia da USP, o botânico Ricardo Cardim teve a ideia de percorrer áreas desflorestadas da Mata Atlântica atrás de árvores gigantes que haviam sobrevivido isoladas no meio de plantações e pastagens.
A pesquisa ganhou corpo ao longo dos últimos 13 anos e se transformou numa das maiores investigações sobre a história da destruição de uma das regiões mais biodiversas do planeta.
Em "Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e Seus Vestígios" (ed. Olhares), livro lançado em novembro, Cardim documenta a vertiginosa expansão econômica sobre o bioma, que, em pouco mais de um século, o fez perder 90% de sua vegetação original e dividiu as áreas sobreviventes em 245 mil fragmentos.
Ao lado do fotógrafo Cássio Vasconcellos e do botânico Luciano Zandoná, Cardim também elaborou um inventário de tesouros que resistiram às derrubadas - entre os quais exemplares centenários de figueiras, perobas e paus-brasil, retratados em expedições por seis Estados das regiões Sul, Sudeste e Nordeste.
A árvore mais alta identificada, numa antiga fazenda de cacau em Camacã (BA), foi um jequitibá com 58 metros de altura e tronco com 13,6 metros de circunferência - dimensões extraordinárias, mas aquém das árvores gigantes do bioma no passado, como um jequitibá na região de Campinas (SP) cujo caule alcançava 19,5 metros de circunferência no início do século 20.
Em entrevista à BBC News Brasil, Cardim diz que as condições que permitiram o desenvolvimento das árvores gigantes da Mata Atlântica não existem mais. Compartimentadas e cercadas por lavouras, muitas áreas de floresta sobreviventes se despovoaram de animais - essenciais para a renovação das plantas - e sofrem com a invasão de espécies exóticas e alterações climáticas.
Ele diz acreditar, porém, que as próximas gerações conseguirão reconectar os fragmentos da floresta e trazer os bichos de volta, garantindo a sobrevivência do bioma, ainda que sem a mesma riqueza original.
Cardim não nutre o mesmo otimismo em relação à Amazônia - que, segundo ele, vive hoje, passo a passo, o mesmo roteiro da destruição da Mata Atlântica. Segundo o botânico, enquanto o desflorestamento da Mata Atlântica parece ter sido contido, a Amazônia sofre com a ação "de um arco de aventureiros que são incontroláveis" e fragmentarão o bioma antes que a sociedade se conscientize sobre sua importância. "Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo".
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - O livro mostra que, ao contrário do que muitos pensam, a destruição da Mata Atlântica foi um processo bem recente. Como o bioma foi aniquilado tão rapidamente?
Ricardo Cardim - Até 1890, o que estava mexido no Brasil era um pedacinho de Pernambuco, por causa do ciclo do açúcar no século 17, e do Rio de Janeiro, por causa das fazendas de café. O resto era mata fechada, com índios dentro.
Parece incrível, mas a destruição da Mata Atlântica se deu mesmo no século 20. A grande cobiça era pelos húmus que fertilizaram o solo da Mata Atlântica ao longo de milênios. A madeira era muito mais um empecilho do que um benefício. Só no final do processo, quando já tínhamos muito caminhão e transporte facilitado pelas ferrovias, que a madeira começou a ser aproveitada. Mesmo assim, o índice de aproveitamento da madeira foi de cerca de 3% de tudo o que foi derrubado.
A ordem era "limpa logo para a gente começar a colher o ouro verde", que era o café. Fizemos como aquele cara que herda uma fortuna e na mesma noite vai gastar tudo em farra, e acorda pobre. Demoramos milhares de anos para formar aquele solo, criar aquelas condições perfeitas, e em cinco ou dez anos, aquilo não existia mais. Os solos que a gente cultiva hoje só são cultiváveis por causa da tecnologia, porque já foram exauridos.
BBC News Brasil - Você destaca no livro a destruição das matas de araucárias, na porção sul da Mata Atlântica. O que houve de peculiar nesse processo?
Cardim - A velocidade com que ocorreu. Essa é uma floresta que passa do século 19 ao 20 praticamente intacta. Brincava-se que era possível atravessar os Estados do Paraná e de Santa Catarina nos galhos das araucárias, de tão grudadinhas que elas estavam.
Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil importava madeira - o que era surreal para um país que estava destruindo florestas adoidado para plantar café. Mas, quando a Primeira Guerra impede esse comércio, o mercado começa a lembrar a araucária - um pinheiro maravilhoso, muito fácil de cortar. Começa um saque da floresta voltado para a madeira como se nunca viu.
A araucária vira uma grande divisa. Todo mundo que quer ficar rico vai para a floresta de araucária montar sua serrraria. Isso chega no auge nos anos 1950 e 1960. Cortavam tanta madeira que boa parte dela apodrecia antes de ser escoada para o mercado. Nos anos 1970, a floresta acabou. Houve uma quebradeira geral nas serrarias. Famílias que eram riquíssimas ficaram pobres.
A araucária simplesmente acabou. O que temos hoje são araucárias rebrotando, pequenas. O que sobrou hoje é uma sombra.
BBC News Brasil - O quão virgem era a Mata Atlântica antes de 1500?
Cardim - (O antropólogo) Darcy Ribeiro falava que havia entre 4 e 6 milhões de índios vivendo aqui no território. Acho possível, mas não acho que o impacto deles na floresta foi tão grande quanto o historiador americano Warren Dean falou em "A ferro e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira" (1996). Ele diz que não existia floresta intocada, porque os índios já tinham cortado aquilo pelo menos uma vez em um milênio.
Eu acredito que os índios tinham capacidade de alterar o meio, mas com ferramentas muito primitivas - machados de pedra, fogo -, e também tinham populações muito pulverizadas. As coivaras que eles faziam para queimar e plantar roças não eram suficientes para gerar uma extensa derrubada. Acho que os índios deixavam as árvores grandes no meio da coivara e plantavam embaixo delas. E não acho que tenham conseguido trabalhar todo o território a ponto de alterá-lo.
BBC News Brasil - Qual o cenário hoje para as árvores gigantes remanescentes da Mata Atlântica?
Cardim - É terrivelmente ameaçado. A Mata Atlântica virou uma colcha de retalhos. Sobrou um décimo do que ela era, e ainda por cima esse décimo é formado por vegetação secundária - por florestas que já foram queimadas, exploradas, derrubadas - e dividido em 245 mil fragmentos de diferentes tamanhos. As árvores gigantes que sobraram nesses pedacinhos, especialmente nos menores, estão superameaçadas.
O clima local altera quando se derrubam florestas - basta lembrar que São Paulo era a terra da garoa, e hoje não temos mais garoa porque sumiu o verde dentro e no entorno da cidade. Os ventos, alterações ecológicas como a infestação de cipós, uma série de desequilíbrios ecológicos causados pela invasão do homem na floresta estão colocando em risco as poucas árvores gigantes que sobreviveram no bioma - tanto dentro da floresta quanto aquelas que estão isoladas em pastos, plantações, meios urbanos.
Nossa geração talvez seja uma das últimas a conseguir enxergar essas árvores gigantes, porque elas estão desaparecendo. E acho difícil que novas árvores desse porte surjam se a gente não reconectar os fragmentos de floresta.
BBC News Brasil - É viável reconectar esses fragmentos, considerando as forças econômicas e políticas atuais? As paisagens na região parecem estar muito consolidadas.
Cardim - Nasci em 1978 e cresci numa casa que tinha telefone de disco, uma TV com bombril espetado em cima e meu pai assinando jornal. O mundo mudou muito, e não só em tecnologia, em visão do planeta, sociedade. As crianças estão vindo com outro olhar sobre a natureza. Tenho muita fé de que elas vão causar uma revolução, e a tecnologia vai resolver muitos problemas, produzindo muito alimento sem precisar de grandes territórios. Vai chegar o momento em que vamos conseguir ter a harmonia entre o conforto moderno e o modo de produção econômico, e conseguiremos restabelecer parte do território natural.
Em 2100, teremos a Mata Atlântica reconectada, sobrevivendo, em harmonia com as cidades e as atividades agrícolas. Sou otimista.
BBC News Brasil - A Mata Atlântica será capaz de se regenerar sozinha?
Cardim - Se o ser humano desaparecesse da Terra neste instante, a Mata Atlântica iria recompor todo seu espaço. O que a atrapalharia são as plantas invasoras. Trouxemos muitas plantas estrangeiras. Quando você traz algo de fora, isso pode prejudicar enormemente quem já estava aqui antes. Vemos isso no parque Trianon (em São Paulo) e na Floresta da Tijuca (no Rio de Janeiro).
A floresta abandonada, sem ser manejada, iria virar um híbrido de Mata Atlântica com Pinus elliotti (pinheiro nativo da América do Norte), com palmeira seafortia (espécie australiana), com jaqueiras (oriundas da Ásia), e isso poderia comprometer grande parte da bidiversidade até chegar num ponto de equilibrio. Teríamos uma floresta mais pobre do que aquela que os portugueses encontraram em 1500.
BBC News Brasil - O geógrafo Altair Sales costuma dizer que os trechos remanescentes de Cerrado são como fotografias do passado, porque muitas das interações entre insetos, plantas e animais que permitiram o desenvolvimento daquelas paisagens deixaram de existir à medida que o bioma foi sendo degradado - e que no futuro aquelas paisagens desaparecerão. Isso se aplica à Mata Atlântica?
Cardim - Sim. Temos hoje na Mata Atlântica florestas que são relíquias, restos de uma era quando tínhamos macacos muriquis andando de galho em galho do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, quando tínhamos antas, varas de queixadas e catetus, onças em todos os lugares.
Os bichos são fundamentais para plantar e polinizar a floresta. Nos anos 1930, o homem chegou à mata metralhando os bichos, caçava tudo o que via por ali. A vegetação tropical é intimamente ligada a seus bichos, uma evoluiu com o outro, com complexas interações que a gente nem imagina ainda.
Na Mata Atlântica, temos hoje a figura da floresta vazia, da floresta zumbi, como a do Parque Trianon, que não tem como se renovar. Para que a semente de um jatobá germine, ela tem de ter a dormência quebrada pelo intestino da anta. Sem anta, isso não acontece mais, a semente cai no chão e não germina. Os mecanismos estão profundamente comprometidos tanto no Cerrado quanto na Mata Atlântica.
Por isso, quando formos investir para reconectar os fragmentos, precisamos procriar os bichos para que eles possam voltar a transitar e reabilitar a floresta.
BBC News Brasil - Em vez de homogênea, a Mata Atlântica é descrita no livro como um bioma com múltiplas faces. O quão diversa é a formação?
Cardim - As pessoas tendem a pensar que a Mata Atlântica é aquele tapetão de floresta, como na Serra do Mar. Pensam que só ocorre no litoral, sem saber que ela vai até o Paraguai. Ela era realmente extensa. Outra coisa interessante é a diversidade de paisagens.
Na Mata Atlântica, podemos encontrar desde a restinga arenosa, um areial com ilhas de bromélias, cactos, pequenos arbustos, pitangueiras, verdadeiros jardins prontos - não é à toa que Burle Marx se inspirava nessas paisagens -, a campos de altitude, como em Itatiaia, ou na Serra dos Órgãos, que são campos com plantinhas no topo, até florestas monstruosas como as que existiram no norte do Paraná e no sul da Bahia.
Ela tem maior biodiverisade, comparativamente, do que a Amazônia, porque ela concentra diversas paisagens e espécies num território relativamente pequeno, graças à proximidade do oceano em alguns pontos e do relevo, que é bastante movimentado e cria diferentes condições para a vegetação.
BBC News Brasil - Já tivemos perdas irreparáveis de espécies de árvores gigantes na Mata Atlântica?
Cardim - Suspeito que sim. Por exemplo, a peroba-rosa encobria centenas de quilômetros de florestas. Ela foi tão cortada, sobrou tão pouco, que nos faz questionar o quanto sofreu de ersoão genética a ponto de se tornar viável. Uma doença talvez seja capaz de matar todas as restantes. São os últimos moicanos. Tenho a sensação de que muitas árvores da Mata Atlântica são os últimos moicanos.
Nas expedições que fiz durante a produção do livro, tinha o objetivo de ver a floresta original, mas acho que não consegui. A grande verdade é essa. Eu vi florestas que podem ter sido próximas daquilo, mas fiquei com a sensação de que não existe mais a floresta original, que meu tataravô possa ter visto quando estavam abrindo as fazendas.
BBC News Brasil - Quando se critica o desmatamento no Brasil, alguns representantes do agronegócio costumam citar a destruição das florestas na Europa e reivindicar o direito de fazer o mesmo por aqui. Como seria nossa sociedade se a Mata Atlântica não tivesse sido destruída?
Cardim - Esse argumento é tão hediondo como falar que, já que houve o Holocausto na Alemanha, podemos fazer um aqui também. A Europa hoje está preocupadíssima em restabelecer suas florestas e nunca mais vai restabelecer do jeito que era, porque as matas lá vêm sendo derrubadas desde a época romana.
Se tivéssemos encontrado outros meios de produzir riqueza, através da educação, da tecnologia, teríamos agora um patrimônio maravilhoso. Não sou contra a exploração de madeira. Sem a madeira, não teríamos orquestras, por exemplo. Eu adoro móveis de madeira nobre. Mas, se tivéssemos explorado de forma sustentável, poderíamos ter móveis de jacarandá pelo resto da vida.
Teríamos um potencial gastronômico inacreditavelmente grande, como alguns já começaram a perceber, como (o chef) Alex Atala. Teríamos muito potencial no ramo da biotecnologia, de medicamentos. E também de turismo, pois é impossível ficar indiferente diante dessas árvores gigantes. É como alguém diante da pirâmide de Queóps.
BBC News Brasil - O processo de destruição da Mata Atlântica é comparável ao que hoje enfrenta a Amazônia?
Cardim - A grande sacada desse livro é mostrar que fizemos uma coisa na Mata Atlântica nos últimos 100 ou 150 anos que é exatamente igual ao que estamos fazendo hoje na Amazônia. O que muda é a proporção, por causa da extensão da Amazônia e a tecnologia. Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo.
BBC News Brasil - Quais foram as etapas da destruição da Mata Atlântica que agora se repetem na Amazônia?
Cardim - Primeiro, criar uma motivação econômica para um acesso à floresta. Na época (dos presidentes) Costa e Silva e Médici, nos anos 1970, começa a surgir a ideia da terra sem homens da Amazônia para o homem sem terras do Nordeste. Esse caminho para o interior da Amazônia, que começa com a rodovia Transamazônica, tem como paralelo a entrada das ferrovias no seio da Mata Atlântica por causa do café. A ferrovia entrava e rasgava a Mata Atlântica - vem o eixo de penetração, saem estradas vicinais para saquear a floresta e aproveitar a terra.
É o que está ocorrendo hoje na Amazônia: primeiro vem o cara saquear madeira, depois se faz a queimada para aproveitar o solo, o fogo fertiliza aquela terra e planta-se capim para que o gado pisoteie os entulhos da floresta. Com dois ou três anos, aquela floresta desaparece e vira carbono, e aí entra a soja. No nosso caso, era o café que entrava. Temos registros em Campinas (SP), em 1840, da presença do gado entre ruínas de árvores colossais da Mata Atlântica. Era um modo de domar a terra para o café.
BBC News Brasil - Seremos capazes de frear o desmatamento na Amazônia?
Cardim - Sou otimista quanto à Mata Atlântica, mas não quanto à Amazônia. Acho que não vai dar tempo. A Amazônia vai ser fragmentada antes que as gerações futuras consigam entender a importância dela.
Existe lá um arco de aventureiros -políticos, grileiros - que são incontroláveis. Eles vão fragmentar a floresta antes que a gente consiga mudar a sociedade.
BBC News Brasil - As tecnologias e a legislação para evitar o desmatamento também não avançaram?
Cardim - Com certeza, mas ainda acho que são fracas perante o que está acontecendo lá. O que houve em Rondônia é emblemático. A floresta do Estado sumiu em dez anos. E hoje a última fronteira é o Estado do Amazonas, porque o Pará já foi muito detonado.
Estão derrubando por mais que coloquemos multas. Tem muita gente lá que não tem nada a perder e vai fazer isso acontecer. Talvez, daqui a 40 anos, alguém faça um livro como este que eu fiz contando como a Amazônia foi destruída.
BBC Brasil: O que são e como agem as milícias acusadas de matar Marielle Franco
Por Rafael Barifouse, Da BBC News Brasil em São Paulo
Milicianos estão sendo acusados de participação na morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em março, no Rio
As milícias que atuam no Rio de Janeiro voltaram às manchetes nesta semana com desdobramentos de investigações ligadas à morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, executados a tiros na região central da capital fluminense há nove meses.
O general Richard Nunes, secretário de Segurança Pública do Estado, disse ao jornal O Estado de S. Paulo, que Marielle teria sido morta a mando de milicianos. O motivo seria a crença de que a vereadora poderia interferir em interesses relacionados à grilagem de terras na zona oeste do Rio, principal área de atuação destes grupos paramilitares na cidade.
Na quinta-feira (12), foram cumpridos mandados de prisão, busca e intimações nas cidades de Nova Iguaçu, Angra dos Reis e Petrópolis, no Rio de Janeiro, e Juiz de Fora, em Minas Gerais.
Os mandados foram emitidos em inquéritos que correm em paralelo à investigação sobre a morte de Marielle e Anderson e teriam como alvos suspeitos de envolvimento com o crime.
Também foi feita uma operação de busca e apreensão na casa e no gabinete do vereador Marcello Siciliano (PHS). O político estaria envolvido junto com um miliciano no assassinato de Marielle, segundo depoimentos prestados à polícia. Siciliano nega qualquer participação no crime.
A Polícia Civil ainda apura um suposto plano para executar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Segundo uma denúncia anônima, um policial militar e comerciantes ligados a milicianos teriam a intenção de matá-lo.
Freixo é o autor do relatório da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigou a atuação das milícias, em 2008, e que culminou no indiciamento de 226 pessoas por ligações com estes grupos, entre elas vereadores e deputados estaduais.
Até hoje esta CPI foi a maior investigação já feita sobre a atuação de milícias.
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, as milícias representam hoje uma ameaça maior do que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
O que são as milícias
Milícias são grupos armados irregulares formados muitas vezes por integrantes e ex-integrantes de forças de segurança do Estado, como policiais, bombeiros e agentes penitenciários.
Os milicianos assumem por meio da força armada o controle territorial de áreas ou mesmo bairros inteiros e coagem moradores e comerciantes, segundo definições traçadas pelos pesquisadores Ignácio Cano e Thais Duarte no estudo "No Sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)", publicado em 2012.
Estes criminosos se apresentam como uma solução para o problema do tráfico de drogas seja para impedir sua entrada em um determinado bairro, por exemplo, ou como uma forma de expulsar os traficantes dali.
"Estes grupos podem ter 20, 30 ou até 40 membros. São pessoas que de alguma forma têm acesso privilegiado a armas e bons contatos na polícia, o que lhes confere proteção. Eles ocupam uma área sob a justificativa de que proporcionarão a segurança que o Estado não é capaz de fornecer, deixam um grupo armado no local e partem para outras áreas para invadi-las", diz Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
As milícias têm como objetivo principal o lucro, obtido a princípio pela cobrança da proteção oferecida nestes locais.
"Eles chegam dizendo que trarão a paz, mas isso tem um preço, que é a taxa de segurança imposta a moradores e comerciantes. Quem se opõe, é morto. Depois, as milícias percebem que podem criar um negócio mais amplo e ampliam o portfólio de suas atividades", explica o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, professor da UFFRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).
O pesquisador diz que atualmente as milícias estão envolvidas na oferta de uma variedade de serviços, como venda de água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas ilegalmente.
Esta última atividade estaria ligada ao crime contra Marielle e Anderson, de acordo com a polícia, porque a vereadora estaria apoiando um grupo que lutava contra o plano da prefeitura para a comunidade de Rio das Pedras, na zona oeste, de realizar parcerias com construtoras para que elas fizessem obras de urbanização em troca da permissão para construir edifícios de até 12 andares na região.
Rio das Pedras foi uma das primeiras áreas da cidade a ser controlada por milícias. A atuação da vereadora contrariaria os interesses de milicianos, que seriam donos de imóveis no local.
A origem das milícias
Muitas vezes, as milícias são tratadas como uma novidade surgida no Rio de Janeiro nos anos 2000, mas especialistas no tema apontam que suas raízes são mais profundas.
"Quando se cria essa categoria, parece um fenômeno novo, mas foi apenas um novo nome para um tipo de atividade que já existia na Baixada Fluminense [na região metropolitana do Rio] desde os anos 1950, em que grupos de extermínio já agiam como protomilícias e cobravam taxas de comerciantes locais para manter a ordem", diz Misse.
Alves afirma que, a partir de meados dos anos 1990, estes grupos mudaram de perfil - até então formados majoritariamente por civis, eles passaram a ter entre seus membros cada vez mais agentes públicos de segurança e ganharam força, atuando também na política.
"Com o controle de um território urbano, eles passam a oferecer o acesso a eleitores e vendem votos de áreas inteiras para quem paga mais", diz o sociólogo.
A socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Cidadania na Universidade Candido Mendes (CESeC) e ex-diretora do sistema prisional do Rio de Janeiro, diz que, em princípio, "havia a crença que estes grupos tinham bons propósitos".
"Políticos chegaram a transmitir a ideia de que, como a polícia não podia dar segurança, a própria população estava se organizando para fazer isso, mas, com o tempo, ficou claro que eram grupos armados que estavam submetendo comunidades inteiras a um regime de terror e cometendo todo tipo de crimes", diz Lemgruber.
A CPI de 2008, instaurada após funcionários do jornal O Dia terem sido torturados por milicianos, foi um ponto importante para essa mudança de percepção.
A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro informou à BBC News Brasil que, entre 2006 e setembro deste ano, 1709 pessoas foram presas por ligações com milícias.
No entanto, Lemgruber faz críticas ao real efeito da CPI e da atuação do Estado contra estes grupos.
"A CPI mostrou que temos um problema de grandes proporções, durante algum período pessoas foram presas, mas nada foi feito além disso", afirma a socióloga.
"Algumas medidas simples poderiam ter sido tomadas. As corregedorias das corporações deveriam ter aberto investigações para verificar se agentes suspeitos tinham rendimentos para levar a vida que tinham. Estes grupos precisavam ser sufocados financeiramente, mas isso nunca aconteceu, porque não há interesse. Ou melhor, há muitos interesses escusos entremeados aí."
A dimensão das milícias
Estudos apontam que as milícias cresceram bastante desde a conclusão da CPI.
Um levantamento do MPE (Ministério Público Estadual) do Rio de Janeiro revelado em abril pelo jornal O Globo mostra que, nos últimos oito anos, as milícias mais do que dobraram sua área de atuação na zona oeste do Rio de Janeiro.
Em 2010, grupos paramilitares controlavam 41 comunidades e favelas cariocas nesta região da cidade. Hoje, são 88.
Por sua vez, um levantamento do site G1 feito com base em dados do MPE, da Polícia Civil, da Secretaria de Estado de Segurança e do IBGE aponta que, em 2008, as milícias estavam em 161 favelas da região metropolitana fluminense. Dez anos depois, já estão em 37 bairros da cidade e 165 favelas.
Estes grupos teriam 2 milhões de pessoas sob sua influência, em uma área de 348 km², uma expansão ocorrida não só na zona oeste, mas também na Baixada Fluminense e no município de Itaguaí, a 69 km do Rio.
Na avaliação de Alves, da UFRRJ, as milícias representam hoje um perigo maior do que o tráfico de drogas.
"O poder deles é incomparável, têm um portfólio de negócios em sua base e estão dentro do Estado. Eles elegem políticos, o tráfico não. Veja que, para a investigação sobre a morte da Marielle chegar a alguma coisa, foram necessários nove meses. Não sei se isso terá algum resultado, mas mostra o poder que as milícias têm hoje."
Misse, da UFRJ, concorda que os grupos paramilitares são um problema de segurança pública "mais grave do que o tráfico, porque envolve agentes e ex-agentes públicos".
"Hoje em dia, há um discurso que legitima esse tipo de atuação, de que isso é algo eficiente para controlar a criminalidade, algo que o tráfico não tem", afirma.
"As milícias continuam se espalhando e parecem ter um projeto de expansão, de ampliar seu poder por meio da política, conferindo a ela uma proteção por dentro do Estado."
BBC Brasil: Bolsonaro presidente - A surpreendente trajetória de político do baixo clero ao Planalto
Após uma campanha marcada por um alto nível de tensão, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito neste domingo o novo presidente da República. Com 92,08% das urnas apurados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o candidato atingiu 55,63% dos votos válidos e está matematicamente eleito. O adversário, o ex-prefeito Fernando Haddad (PT), está com 44,37%.
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Mas se tornou nacionalmente conhecido ao longo dos anos por declarações polêmicas, principalmente sobre a comunidade LGBT e a ditadura militar. Até o início campanha, analistas políticos afirmavam que a candidatura do deputado federal poderia se "desidratar", já que ele teria direito a apenas 8 segundos diários de propaganda eleitoral na TV.
No entanto, o capitão reformado cresceu de forma continuada nas pesquisas, se consolidando no primeiro lugar já no primeiro turno. A BBC News Brasil reuniu os principais fatos na trajetória do candidato do PSL rumo ao resultado da eleição deste domingo.
Entre 2015 e 2016 - 'Vou ser candidato a presidente gostem ou não gostem'
Bolsonaro fala publicamente na possibilidade de ser candidato à Presidência da República há cerca de três anos. Em abril de 2015, ele se desfiliou do PP já com a intenção de seguir o "sonho" de ser presidente.
"Foi um pedido verbal, mas oficial. A gente começa aí um processo de separação, que espero que seja amigável. Tenho um sonho para 2018 de disputar o cargo de senador ou presidente da República. No partido onde estou, dificilmente serei candidato sequer para o Senado. O que sinto é que eles querem uma opção diferente para 2018", afirmou, na ocasião.
Em novembro de 2016, ele reforçou que disputaria a eleição presidencial "quer gostem ou não", ao prestar depoimento na condição de testemunha num processo aberto pelo Conselho de Ética da Câmara para apurar se Jean Wyllys (PSOL-RJ) quebrou o decoro parlamentar ao cuspir em Bolsonaro em 2015.
Na época, o ex-capitão do Exército estava filiado ao Partido Social Cristão (PSC) - sigla conhecida por reunir líderes evangélicos -, e havia divergências dentro do partido sobre uma eventual candidatura dele.
"Há dois anos me preparo para que o partido, se assim entender, (permita minha candidatura) de acordo com minha aceitação popular. Eu estarei pronto para enfrentar uma campanha presidencial, o que não é fácil", disse.
Agosto de 2017- Primeiras pesquisas mostravam Bolsonaro atrás de Lula
Em agosto do ano passado, quando as primeiras pesquisas de intenção de voto começaram a ser divulgadas, Bolsonaro já aparecia em posição competitiva. Na ocasião, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda era tido como o candidato do PT - ele ainda não havia sido condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em segunda instância, o que acabou ocorrendo em janeiro de 2018.
Uma pesquisa do Datafolha divulgada no dia 30 de agosto de 2017 pelo jornal "Folha de S.Paulo" mostrava Lula em primeiro lugar com 36% das intenções de voto, seguido por Bolsonaro, com 16%, e por Marina Silva (Rede), com 14%.
Março de 2018 - Filiação ao PSL e lançamento da pré-candidatura
Após divergências com o PSC e sem ver espaço para ser candidato por esse partido, Bolsonaro migrou para o Partido Social Liberal (PSL) em 7 de março deste ano.
Ele aproveitou a ocasião para lançar a pré-candidatura à Presidência com um discurso focado em defender a revisão da Lei do Desarmamento. O evento contou com gritos de "mito, mito, mito", orações e Hino Nacional.
Abril de 2018 - Prisão de Lula e tomada da dianteira nas pesquisas por Bolsonaro
Em abril, Lula foi preso, três dias depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) negar habeas corpus da defesa que pedia que ele não pudesse ser detido até uma condenação definitiva - o chamado trânsito em julgado. Apesar da prisão, o PT decidiu insistir na candidatura de Lula até o prazo final dado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a substituição do nome.
Bolsonaro passou à dianteira nas pesquisas de intenção de voto nos cenários em que Fernando Haddad aparecia como substituto do ex-presidente na chapa do PT. Pesquisa Ibope divulgada em 20 de junho mostrava o candidato do PSL com 17% das intenções de voto, seguido por Marina Silva (13%), Ciro (8%) e Alckmin (6%). Haddad, até então vice na chapa de Lula, aparecia só com 2%.
14 de agosto de 2018 - Bolsonaro registra a candidatura
Em 14 de agosto, Bolsonaro registrou a sua candidatura no TSE e declarou um patrimônio de R$ 2,3 milhões (todos os candidatos precisam declarar patrimônio à Justiça Eleitoral).
No dia seguinte, o PT registrou a candidatura de Lula, embora o petista estivesse preso e impedido de concorrer pela Lei da Ficha Limpa.
6 de setembro - Bolsonaro leva facada em comício em Juiz de Fora (MG)
Um dos episódios mais marcantes de toda a campanha ocorreria no dia 6 de setembro na cidade mineira de Juiz de Fora. Bolsonaro estava nos ombros de apoiadores, durante um comício, quando levou uma facada na barriga.
O autor do atentado, Adelio Bispo de Oliveira, 40, foi preso. Bolsonaro chegou a perder 40% do sangue do corpo - cerca de 2,5 litros - e passou por duas cirurgias.
Com o episódio, ele se afastou das campanhas nas ruas mas, ao mesmo tempo, ganhou ampla visibilidade na mídia, inclusive no horário nobre de televisão.
Os adversários dele, por sua vez, decidiram mudar a estratégia de campanha, moderando o tom das críticas ao candidato do PSL nas duas primeiras semanas que se seguiram ao atentado. A lógica era a de que poderia não pegar bem fazer ataques pesados a alguém hospitalizado.
10 de setembro - Substituição de Lula por Haddad como candidato do PT
Após Lula ser barrado pela Justiça Eleitoral com base na Lei da Ficha Limpa, o PT decidiu substituir a candidatura do ex-presidente pelo vice na chapa, Fernando Haddad. Nos dias que se seguiram, começou a ficar mais evidente que a reta final da campanha poderia se centralizar numa disputa entre Bolsonaro e o ex-prefeito de São Paulo.
O candidato do PSL passou a apresentar um crescimento constante nas pesquisas, se consolidando no primeiro lugar em intenções de voto. Haddad também cresceu fortemente, se beneficiando da transferência de votos de Lula e passando a figurar em segundo lugar. Mas os dois também carregavam altas taxas de rejeição - acima de 40%.
A campanha eleitoral assumiu, então, o seu maior grau de polarização, com a possibilidade de uma disputa entre anti-petistas e anti-Bolsonaro num segundo turno.
30 de setembro - Mulheres vão às ruas em campanha #EleNão
Uma semana antes do primeiro turno da eleição, milhões de mulheres tomaram as ruas de 114 cidades do Brasil para protestar contra Bolsonaro, como parte do movimento #EleNão, que se espalhou nas redes sociais.
Conhecido por declarações machistas, como quando disse, em 2016, que não empregaria uma mulher com o mesmo salário que um homem, o candidato do PSL alcançou, ao longo da campanha, patamar de 50% de rejeição entre as eleitoras.
Em reação ao #EleNão, mulheres apoiadoras de Bolsonaro organizaram atos em 16 cidades.
5 de outubro - Bolsonaro 'boicota' debate da TV Globo dando entrevista para a Record
Desde que levou a facada, Bolsonaro precisou passar semanas internado e deixou de participar de debates televisivos.
Para especialistas, o fato de não ter precisado enfrentar perguntas difíceis, no embate ao vivo com os demais candidatos, pode ter beneficiado o candidato do PSL, que passou a se dedicar à divulgação de vídeos nas redes sociais.
No último debate televisivo, marcado para ocorrer dois dias antes do primeiro turno, Bolsonaro já havia sido liberado do hospital e se recuperava em casa. Mas afirmou que não participaria "por recomendação médica".
No entanto, no mesmo dia e horário do debate, quando todos os outros candidatos se dedicavam a responder às perguntas uns dos outros, a TV Record exibiu uma entrevista exclusiva com Bolsonaro, gravada na casa no deputado do PSL.
Nos 30 minutos de vídeo, o candidato atacou seus adversários, especialmente Haddad, a quem chamou de "fantoche de Lula", além de criticar a condução das investigações sobre o atentado que sofreu e dizer que não tem responsabilidade sobre a divulgação de fake news por seus apoiadores.
6 de outubro - A última pesquisa e a chance de vitória em primeiro turno
Na semana que antecedeu o primeiro turno das votações, Bolsonaro cresceu fortemente nas pesquisas a ponto de alcançar 40% dos votos válidos, seguido por Haddad, com 25%, e Ciro, com 15%.
A alta gerou, nas redes sociais, um movimento em prol de "voto útil" do eleitor "antipetista" por uma vitória de Bolsonaro no primeiro turno.
7 de outubro - Bolsonaro vota no Rio de Janeiro
9 de outubro em diante - Denúncias de agressões no segundo turno
Logo depois do primeiro turno, começaram a proliferar relatos de agressões relacionadas ao discurso eleitoral. Um dos casos mais dramáticos foi registrado em Salvador: o assassinato do mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê, de 63 anos. Ele foi morto a facadas após uma discussão política algumas horas depois da eleição de domingo.
Testemunhas disseram que o desentendimento começou quando o capoeirista revelou apoio ao candidato do PT. O agressor, Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, teria defendido Bolsonaro.
O período eleitoral também foi marcado por casos de agressões a jornalistas. Foram 137 em 2018, segundo estimativas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) - sendo 75 ataques digitais e 62 físicos, e a maioria deles ligados à cobertura eleitoral.
Ao ser questionado sobre atos de violência nas ruas, Bolsonaro disse que não tem controle sobre seus apoiadores. "O cara lá que tem uma camisa minha e comete um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?", questionou.
"Eu lamento. Peço ao pessoal que não pratique isso, mas eu não tenho controle sobre milhões e milhões de pessoas que me apoiam."
No dia 12 de outubro, ele foi mais enfático em condenar as agressões. "Dispensamos voto e qualquer aproximação de quem pratica violência contra eleitores que não votam em mim. A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar", afirmou, em sua conta no Twitter.
10 de outubro - Bolsonaro anuncia que não vai participar de debates
Dois dias após o primeiro turno da eleição, Bolsonaro afirmou que não participaria do debate organizado por Folha de S.Paulo, UOL e SBT, marcado para o dia 17 de outubro. Na época, ele alegou que a equipe médica recomendou "mais alguns dias de repouso".
Pouco mais de uma semana depois, o presidente em exercício do PSL, Gustavo Bebianno, declarou que Bolsonaro não participaria de nenhum debate televisivo com Haddad no segundo turno e nem viajaria para atos de campanha.
A justificativa dada foi o desconforto causado pela bolsa de colostomia presa ao seu corpo desde que levou a facada, além de questões de segurança. Em entrevista à TV Globo, Bolsonaro afirmou considerar os debates algo "secundário".
"Eu poderia me submeter a uma aventura, mas poderia ter uma consequência péssima para minha saúde. Levando-se em conta a restrição, a minha saúde e a gravidade do que ocorreu, a tendência é eu não participar de debates. Não posso abusar nesse momento. Questão de debate é secundário. Da minha parte, até gostaria porque não teria dificuldade de debater com preposto com um poste do Lula."
18 de outubro - Reportagem diz que empresas pagavam por disparos contra o PT no WhatsApp
Reportagem da Folha de S.Paulo publicada no dia 18 de outubro afirmou que empresas que apoiam Bolsonaro estavam comprando pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, vedada pela legislação eleitoral, e não declarada.
Bolsonaro se pronunciou dizendo que "não tem nada a ver com isso". E passou a criticar fortemente a Folha de S.Paulo, inclusive prometendo cortar, quando eleito, publicidade do governo federal no jornal. "A Folha de S.Paulo é a maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo", disse, em transmissão ao vivo.
A pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a Polícia Federal abriu uma investigação sobre a compra de pacotes de disparos no WhatsApp.
20 de outubro - Filho de Bolsonaro fala em 'fechar o STF'
Um dos acontecimentos que mais geraram repercussão durante a campanha do segundo turno foi a divulgação de imagens em que Eduardo Bolsonaro, 34 anos, um dos filhos do candidato à Presidência, afirma que bastariam um "cabo e um soldado" para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF).
Em vídeo gravado em julho, disponível na internet, Eduardo, que foi reeleito deputado federal, aparece numa sala de aula de um cursinho para interessados em ingressar na Polícia Federal, em Cascavel (PR).
Ele é perguntado por um aluno sobre o que poderia ser feito caso o STF impugnasse a candidatura ou diplomação do pai dele por fraude eleitoral. Eduardo respondeu, em tom de ameaça, que o tribunal "terá que pagar para ver o que acontece" e argumentou que dificilmente haveria reação popular se um ministro do Supremo fosse preso.
A declaração gerou forte reação entre ministros da Corte. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, afirmou que "atacar o Poder Judiciário é atacar a democracia", enquanto Celso de Mello - decano do Supremo - disse que a fala foi "inconsequente e golpista".
Jair Bolsonaro primeiro afirmou que "qualquer um que fale em fechar o Supremo precisa se consultar com um psiquiatra". Posteriormente, ele disse: "Eu já adverti o garoto, o meu filho, a responsabilidade é dele. Ele já se desculpou".
21 de outubro - Bolsonaro fala em 'faxina' e promete 'banir marginais vermelhos'
Em vídeo ao vivo transmitido durante um comício na Avenina Paulista, em São Paulo, Bolsonaro proferiu um dos discursos mais agressivos da campanha. "A faxina agora será muito mais ampla. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria", afirmou o capitão reformado.
Ele também ameaçou prender o senador Lindbergh Farias e o próprio Haddad, e afirmou que Lula irá "apodrecer na cadeia".
"Seu Lula da Silva, se você estava esperando Haddad vencer para assinar o decreto de indulto, eu vou te dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia. Brevemente você terá Lindbergh Farias para jogar dominó no xadrez. Aguarde, o Haddad vai chegar aí também. Não será para visitá-lo não, será para ficar alguns anos ao seu lado", disse. "Será uma limpeza nunca vista na história", completou.
27 de outubro - Última pesquisa Datafolha aponta vitória de Bolsonaro
No sábado, foi divulgada a última pesquisa de intenção de voto do Datafolha dessas eleições. Bolsonaro aparecia com 55% das intenções de votos válidos, uma vantagem de dez pontos percentuais em relação a Haddad (45%).
Ao longo das semanas que antecederam a eleição, a vantagem de Bolsonaro sobre Haddad, que chegou a ser de 18 pontos percentuais, diminuiu. Mas não o suficiente para que o petista chegasse perto de efetivamente ameaçar a liderança do candidato do PSL.
28 de outubro - Bolsonaro vota no Rio de Janeiro
Com esquema reforçado de segurança e vestindo um colete a prova de balas, Bolsonaro votou às 9h17, acompanhado da esposa, na Escola Municipal Rosa da Fonseca, na Vila Militar, em Deodoro, na Zona Oeste do Rio.
"Pelo que eu vi nas ruas nos últimos meses, é vitória", disse ele, ao ser questionado sobre a expectativa para o resultado.
BBC Brasil: Como o WhatsApp mobilizou caminhoneiros, driblou governo e pode impactar eleições
Depois dos papéis de peso do Twitter na Primavera Árabe em 2011 e do Facebook nas manifestações brasileiras de junho de 2013, chegou a vez do WhatsApp protagonizar a organização de uma mobilização
Por Amanda Rossi, da BBC Brasil
Depois de uma insurreição popular convocada por SMS em Moçambique, em 2010, da Primavera Árabe difundida pelo Twitter no Oriente Médio, em 2011, e das manifestações brasileiras de junho de 2013 impulsionadas pelo Facebook, chegou a vez do WhatsApp ocupar o protagonismo na organização de uma mobilização.
A greve dos caminhoneiros, que interditou milhares de trechos de rodovias em todo o país ao longo de dez dias, é a maior mobilização mundial já feita pelo WhatsApp, dizem Yasodara Córdova, pesquisadora da Escola de Governo de Harvard, nos Estados Unidos, que estuda como os governos lidam com a Internet, e Fabrício Benevenuto, professor de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pioneiro na pesquisa de conteúdos compartilhados em grupos de WhatsApp. "A mobilização ocorre por motivos sociais. As redes dão uma vazão a esses sentimentos", diz Yasodara.
"Na quarta-feira antes da greve, o (preço do) diesel aumentou. Desci para Santos para levar carga. Quando voltei, o diesel já tinha aumentado. Na sexta, aumentou de novo. A galera se comunicou no WhatsApp e falou: não está dando mais", lembra o caminhoneiro Moisés de Oliveira, que ficou parado na Rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo, onde ajudou a organizar um grupo de grevistas, sempre com o celular à mão.
A essência do trabalho do caminhoneiro é circular. Isso facilitou que as mensagens se espalhassem rapidamente por diferentes pontos do Brasil. "A gente viaja o Brasil inteiro e vai conhecendo outros caminhoneiros. Quando chega no posto para dormir, a gente conversa, troca o (número de) WhatsApp. Aí, quando chegou a greve, já havia vários grupos montados e a gente distribuiu a informação", diz Oliveira, de 40 anos, 22 anos deles passados atrás do volante do caminhão.
"O Whatsapp facilitou demais a nossa comunicação. Antes, a gente era desconhecido (um do outro). Agora, o pessoal faz um vídeo e, em dois minutos, já espalhou pelo Brasil", completa. "A gente não é envolvido com partido político nenhum. Mas a gente tem a nossa logística".
Na última quinta-feira, apesar de já não haver mais pontos de interdição nas estradas, segundo a Polícia Rodoviária Federal, os apelos pela continuidade da greve não haviam parado de circular pelo WhatsApp. Eram desde pedidos para caminhoneiros irem até Brasília, para que ficassem parados em casa, até convocações de protestos nas cidades.
Conversas fechadas, criptografadas, sem rastro e em pirâmide
A comunicação por WhatsApp tem características diferentes das feitas por Twitter e Facebook. Os dois últimos "são como uma via pública, uma praça, onde você abre uma banquinha e as pessoas podem te ver e interagir com você. Já o grupo de WhatsApp é como a sala de jantar da sua casa, não entra todo mundo", exemplifica a pesquisadora brasileira Yasodara Córdova.
Na prática, enquanto postagens públicas no Twitter ou Facebook podem ser vistas por qualquer um e chegar de uma vez só a milhares de usuários, as mensagens de WhatsApp atingem apenas um indivíduo ou os participantes do grupo, limitados a um número máximo de 256 pessoas. Dali, podem ser levadas para outras pessoas ou outros grupos, em uma distribuição em pirâmide.
Além disso, todo diálogo é criptografado - é como se a sala de jantar estivesse bem trancada e só pudesse entrar quem fosse convidado ou tivesse a chave.
Isso faz com que a conversa fique fechada - para acessá-la, só infiltrado. "A comunicação no Whatsapp acontece de maneira mais velada, mais escondida. São grupos relativamente pequenos. E não há registro público, um rastro, porque há essa encriptação", diz Benevenuto.
Além disso, a comunicação é mais difusa. A conversa vai se propagando pelos celulares, sem registro de quem foi a fonte original da informação - seja mensagem em texto, imagem, áudio ou vídeo. Assim, fica mais difícil identificar quem são as vozes mais difundidas e que estão se transformando em lideranças.
Essas características fazem com que a mobilização pelo WhatsApp represente um novo desafio para governos, acostumados a negociar com lideranças de organizações definidas, com logotipo e CNPJ.
"O sindicato é um modelo que está em declínio no mundo todo. Não só em termos de representatividade, mas também em metodologia. No caso da greve dos caminhoneiros, há um pioneirismo da organização do trabalho baseado na internet. É uma espécie de sindicato digital. É possível que no futuro a gente tenha novas formas de mobilização da força de trabalho como essa", fala Yasodara.
Governo foi driblado pela organização dos caminhoneiros
No quarto dia de greve, uma quinta-feira, o governo do presidente Michel Temer fechou um acordo com parte dos representantes de associações e sindicatos de caminhoneiros, se comprometendo a baixar o preço do combustível em 10% por 30 dias. Com isso, anunciou que a greve iria ter uma trégua. Naquele momento, os postos já começavam a ficar sem combustível.
Mas os caminhoneiros organizados pelo WhatsApp não concordaram com a negociação. No aplicativo, seguiram-se mensagens de repúdio às lideranças que negociaram com o governo Temer, além de aúdios e vídeos notificando sobre pontos de paralização que se mantinham ativos. Nada de acordo, a greve continuava.
"Se não tivesse o WhatsApp, eu creio que o governo já tinha enganado a gente há dias. O governo ia na televisão dizer que a greve acabou. Até um caminhoneiro conseguir se comunicar com outro, já tinha tudo mundo ido embora, tinha acabado a greve. Agora, a gente assistiu a nota do presidente e já passou informação para os grupos de WhatsApp: não acabou não", explica o caminhoneiro Moisés Oliveira.
São Paulo usou o WhatsApp nas negociações
No Estado de São Paulo, foi traçada uma estratégia diferente para negociar com os grevistas. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, Marcos da Costa, irmão de um caminhoneiro hoje afastado da profissão, resolveu entrar nas negociações.
"Não era um movimento institucionalizado, respondendo a sindicatos e associações. Eram caminhoneiros que se esgotaram com o aumento do preço dos combustíveis e começaram a parar (de rodar). A comunicação deles por WhatsApp permitiu que se formasse uma onda muito rápida no Brasil inteiro", diz Costa.
Depois da negociação fracassada do governo federal na quinta-feira, Costa pediu que colegas advogados do setor de transportes procurassem identificar quem eram as lideranças dos caminhoneiros parados em São Paulo. Em seguida, no sábado de manhã, mais de 10 delas se reuniram na sede da OAB.
"No começo da reunião, os caminhoneiros pediram para tirar foto e fazer vídeo para compartilhar nos grupos de WhatsApp. Isso viralizou. E serviu para que a gente pudesse ter segurança da capacidade de mobilização daquelas pessoas", fala o presidente da OAB.
Em seguida, foi montado um novo grupo de WhatsApp entre esses caminhoneiros e a OAB. "Esse grupo serviu de preparação das pautas de negociação. Ele canalizava as demandas dos caminhoneiros, porque cada pessoa dessas tinha interlocução com outros grupos de WhatsApp. Era uma rede gigantesca", fala Costa. "Eu não tenho dúvida de que isso fez a diferença. Foi fundamental para abrir a possibilidade de diálogo com aqueles que estavam realmente à frente do movimento".
No sábado à tarde, o grupo de WhatsApp criado pela OAB se reuniu com o governo de São Paulo para negociar a desobstrução das estradas do Estado.
"Ainda durante a reunião, eles (os representantes dos caminhoneiros) mandaram mensagens de WhatsApp para a base pedindo para liberar (as estradas). Cerca de uma hora depois, vimos pela cobertura da mídia que a liberação estava começando. Foi o diálogo por WhatsApp que permitiu a primeira liberação de rodovia", comenta o advogado. O movimento dos caminhoneiros em São Paulo não acabou ali, mas de fato começou a diminuir.
Ainda no sábado, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Marun, esteve em São Paulo para participar das conversas com o grupo paulista, tomar conhecimento das pautas e tentar tirar as negociações de Brasília do limbo.
"A greve mostrou que vamos ter que criar mecanismos para dar conta de demandas apresentadas de forma completamente diferentes. Tradicionalmente, eram instituições que iam ao governo apresentar suas pautas. Hoje, vemos movimentos líquidos, absolutamente horizontalizados. A partir de agora, os governos vão ter que aprender a lidar com essa nova realidade e aprender a identificar canais que possam servir para diálogo", conclui Costa.
WhatsApp foi a principal forma de contato com a mobilização
A primeira medição da importância do WhatsApp na greve dos caminhoneiros foi feita pelo Ipsos. Na última terça-feira, o instituto de pesquisa entrevistou cerca de 1,2 mil caminhoneiros que usam um aplicativo de cargas. Dentre os entrevistados, quase metade (46%) soube da paralisação via WhatsApp.
É mais que o dobro de importância da própria estrada - 18% souberam do movimento sendo parados por colegas enquanto rodavam com o caminhão. O Facebook veio em seguida, informando 8,5% dos entrevistados. Um número ínfimo de 1% foi convocado por sindicato ou associação. Entre os entrevistados, estão tanto caminhoneiros que estavam protestando, como quem ficou em casa ou estava rodando normalmente.
Por outro lado, nem tudo é digital. Entre o grupo mais ativo de caminhoneiros, que continuava parado nas estradas na última terça-feira, o corpo a corpo foi tão importante quanto a mobilização nas redes - 39% tomaram conhecimento da greve na estrada, enquanto outros 39% souberam por WhatsApp e Facebook.
A importância do WhatsApp na greve também fica evidente em um boato que circulou no próprio app, alertando usuários para não atualizarem o aplicativo. Segundo a mensagem, a atualização do WhatsApp teria sido determinada pelo governo federal para inviabilizar a comunicação de participantes da greve. O WhatsApp informou que essa informação não procede.
O dia a dia dos grupos de WhatsApp
Uma vez que a mobilização tinha começado, o WhatsApp foi fundamental para propagar informações, passar mensagens de motivação, angariar apoio e bater de frente com o governo do presidente Michel Temer.
É possível ter um retrato de como isso aconteceu pelo monitor do WhatsApp desenvolvido pelo projeto "Eleições Sem Fake", coordenado por Benevenuto, da UFMG. O sistema acompanha 182 grupos públicos com temática política e seleciona quais são as imagens mais compartilhadas diariamente. É a única ferramenta brasileira que acompanha o que ocorre dentro do WhatsApp - seu uso é restrito a pesquisadores.
Segundo o monitor, um dia antes da greve começar, uma imagem de caminhões parados em uma estrada já estava entre as dez mais compartilhadas do dia: "greve geral pela baixa dos combustíveis, você apoia?". Era o movimento se organizando.
Já na segunda-feira, quando os caminhoneiros começaram a parar as rodovias, a greve foi a temática das cinco imagens mais compartilhadas do dia. Na terça-feira, idem - sendo que uma das imagens fazia um chamado: "caminhoneiros convocam população, sozinho (sic) não conseguiremos".
Na quinta-feira, quando o governo de Michel Temer buscou negociar com lideranças de organizações de caminhoneiros, o topo de compartilhamentos foi uma imagem com a hashtag "SomosTodosCaminhoneiros" e outra com a frase "A greve continua". Também circularam memes culpando o PT pela crise e, no sentido oposto, dizendo que a crise começou porque o PT saiu do governo.
Em seguida, pedidos de intervenção militar passaram a despontar. Já na última terça-feira, quando o protesto dos caminhoneiros já estava perdendo força, os grupos de WhatsApp foram tomados por críticas à baixa adesão da população ao protesto: "Povo tem o governo que merece: reclama ficar 3h na fila do hospital, mas fica 8h na fila do posto de combustível".
Informações reais duelam com fake news
Nesse meio tempo, foram surgindo grupos de WhastsApp de apoiadores dos caminhoneiros, para troca de informações sobre a greve. A BBC Brasil acompanhou seis deles. Em meio a mensagens verdadeiras, circulavam muitas notícias falsas e desatualizadas. Entre elas, vídeos dizendo que manifestantes tinham ocupado Brasília e imagens informando que militares estariam prestes a tomar o poder.
No começo desta semana, foi feito um apelo nos grupos: que os caminhoneiros passassem a informar data, hora e local da mensagem de áudio ou vídeo, já que tudo estava mudando muito rapidamente e era preciso identificar se se tratava de algo novo ou não. Em um dos grupos, criado no dia seguinte à greve, o administrador deletou mais de 200 participantes acusados de promover "fake news".
"A ideia do WhatsApp é a comunicação ponta a ponta. Não tem impulsionamento de mensagens, como no Facebook. Então, a empresa não tem influência no diálogo. São grupos se auto-organizando e repassando essas mensagens", afirma Benevenuto.
É uma via aberta, por onde trafegam os diferentes ideiais de uma sociedade. "Eu me lembro de ver a primavera árabe, em 2011, e pensar: 'as redes sociais vão virar movimento político, vão alavancar a democracia, vão abrir a cabeça das pessoas, não tem como governos autoritários controlarem uma coisa dessas'. E hoje vemos que pode ser usada para qualquer dos lados. Tem pedido de intervenção militar, notícia falsa...", completa o pesquisador da UFMG.
WhatsApp vai ser importante nas eleições de 2018
O WhatsApp, usado por 60% da população do Brasil, já é uma das principais fontes de informação no país. Segundo o Digital News Report de 2017, um estudo sobre o consumo de notícias produzido em conjunto pela Reuters Institute e pela Universidade de Oxford em 36 países, 46% dos brasileiros usam WhatsApp para encontrar notícias.
O número é muito maior do que a média mundial, de 15%, e chamou a atenção dos pesquisadores. No estudo, eles destacaram que o WhatsApp cresceu tanto no Brasil que já está rivalizando com o Facebook - usado por 57% dos brasileiros para encontrar notícias.
"A greve de caminhoneiros aponta totalmente como pode ser o uso do WhatsApp nas eleições de 2018", diz Maurício Moura, pesquisador da George Washington University, nos Estados Unidos, que analisou o uso do aplicativo nas eleições de 2014. Segundo o pesquisador, a tendência é que o debate eleitoral deste ano ocorra muito dentro do app de conversas.
"A rede social das eleições de 2018 vai ser o WhatsApp. Hoje, muito mais pessoas têm smarthphones no Brasil do que em 2014", avalia Moura, que também já trabalhou com campanhas políticas e é fundador da Ideia Big Data, que realiza pesquisas de opinião. "Agora, não tem como fazer campanha no WhatsApp sem números de telefone. Por isso, a primeira estratégia dos candidatos e partidos é coletar números de celular, em eventos, fan pages...".
Mesmo antes da campanha, já há diversos grupos de apoiadores de candidatos, como Jair Bolsonaro. "A tendência é as pessoas se organizarem nos grupos de WhatsApp em torno de candidatos e pautas. Por outro lado, pessoas que querem desestabilizar as campanhas umas das outras também estarão operando nos grupos de WhatsApp com bastante intensidade", acrescenta Yasodara.
O combate às notícias falsas, que se tornou uma grande preocupação desde a eleição de Donald Trump, em 2016, promete ser muito mais difícil no WhatsApp. O Facebook, por exemplo, se comprometeu a não impulsionar páginas que promovam notícias falsas. A rede social pode fazer isso porque funciona como uma mediadora das publicações. Já no WhatsApp, onde não há nenhuma forma de controle externo, isso é impossível.
"Enquanto Facebook e Twitter estiveram sob forte escrutínio nos últimos tempos, o WhatsApp passou um pouco batido. Porém, o app é extremamente utilizado dentro do Brasil. Com toda essa atenção que se deu às outras redes, muito do esforço de campanha política migra para o WhatsApp, onde não há quase nenhum monitoramento", diz Benevenuto, da UFMG.
No WhatsApp, combater notícias falsas e discursos de ódio "é um desafio tão complexo quanto regular o discurso dentro das casas das pessoas", compara Yasodara. "Como a sociedade faz para que os pais não ensinem aos filhos que o nazismo é uma coisa legal? Primeiro, criminaliza o que é ilegal. Segundo, traz cada vez mais informações verdadeiras para o debate público ", opina a pesquisadora de Harvard.
* Colaboraram Juliana Gragnani, André Shalders e Felipe Souza
No lugar certo quando tudo dá errado: quem é Raul Jungmann, o homem de Temer para a segurança pública (BBC Brasil)
Por André Shalders
"Havia tensão porque o governo enviou a Polícia Federal e o Exército e eles iam invadir o local. Jungmann tentou garantir que os militantes do MST não fossem agredidos", relembra a servidora aposentada Maria de Oliveira, à época funcionária da Ouvidoria Agrária Nacional. Depois de quase 24h de trabalho, na madrugada de domingo, Jungmann e Oliveira conseguiram um acordo para que o MST saísse, sem prisões. O acordo, no entanto, não foi inteiramente cumprido: 16 líderes do MST e a filha de um dos militantes, de 16 anos, foram deitados com a barriga na lama do chão, algemados e presos.
Estar no lugar certo na hora em que as coisas estão pegando fogo é uma das especialidades de Jungmann, de 65 anos, nomeado nesta segunda-feira pelo presidente Michel Temer para chefiar o recém-criado ministério da Segurança Pública. Natural de Recife (PE), Jungmann tornou-se ministro da Defesa em 12 de maio de 2016, quando Michel Temer (MDB) anunciou a primeira formação de seu governo.
Daquele dia até hoje, o pernambucano acumulou poder e se tornou um dos homens fortes de Temer. A nomeação como ministro da Segurança Pública mostra isso: o pernambucano será o responsável pela área que é "prioridade zero" do Planalto. Nesta terça-feira, horas depois de ser nomeado, Jungmann deu o tom de sua gestão: demitiu do comando da Polícia Federal o delegado Fernando Segóvia - que causara dificuldades ao Planalto com declarações atabalhoadas sobre um inquérito que investiga o presidente Michel Temer - e o substituiu por Rogério Galloro.
Comandar a "prioridade zero" do governo significa também que Jungmann voltará ao foco da tensão: uma das missões dele será acompanhar a intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro, em andamento desde meados de fevereiro.
Antes mesmo de ser alçado ao posto, distribuiu declarações fortes sobre os planos da intervenção. Em entrevista coletiva, aventou a possibilidade de "mandados coletivos de busca e apreensão" e chegou a falar em "captura coletiva" de suspeitos. Mais recentemente, culpou usuários de classe média por sustentar o tráfico de drogas.
O comportamento aguerrido não é novidade na trajetória do político, como prova outro episódio de sua carreira.
No dia 21 de setembro de 2009, o ex-presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, voltou às escondidas a seu país e foi à embaixada brasileira em Tegucigalpa, em busca de asilo político. A situação criou um impasse: as forças armadas do país cercavam a embaixada.
Jungmann, que era deputado federal à época, chegou à embaixada no fim de setembro, como o coordenador de uma missão do Congresso. Um dos seus ex-assessores diz que Jungmann "sentou na cadeira do embaixador", tomando o controle da situação. Na manhã seguinte, declarações de Zelaya estavam em todos jornais brasileiros: bastava ligar para o pernambucano para falar com o ex-presidente hondurenho.
Foi Temer antes de ser "modinha"
A reportagem da BBC Brasil conversou com quase uma dezena de subordinados, ex-funcionários, correligionários e colegas de trabalho de Jungmann.
Alguns traços foram mencionados pela maioria das pessoas que o conhecem: o novo 'czar da Segurança Pública' dorme pouco (é comum que mande e-mails e faça ligações de trabalho no meio da madrugada); é rápido na tomada de decisões; tem bom trânsito dentro do Congresso e nas Forças Armadas e costuma colocar a própria carreira acima de questões partidárias (ele é filiado ao Partido Popular Socialista, o PPS).
No Palácio do Planalto, é visto também como alguém que adotou a causa de Michel Temer "antes de ser modinha" - ou seja, tomou o lado do então vice antes que o emedebista assumisse a cadeira de Dilma Rousseff (PT). A lealdade precoce justifica parte de seu atual sucesso. É de Jungmann, por exemplo, o pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que impedisse a posse do ex-presidente Lula como ministro de Dilma, em março de 2016.
Mas o fator determinante para seu acúmulo de poder foi o bom relacionamento dele com as Forças Armadas - algo que ele cultiva desde antes de se tornar ministro da Defesa. No Planalto, Jungmann é visto como a melhor "ponte" disponível entre o generalato e o mundo civil.
Ao longo da trajetória política, Jungmann alterou suas prioridades de questões do campo e da reforma agrária para a segurança pública. Em 2005, quando o país realizou um referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo, Jungmann se engajou na campanha pelo "sim", que defendia mais restrições ao comércio de armamentos, como secretário-geral da Frente Brasil Sem Armas. O lado dele, porém, foi derrotado.
Enquanto foi deputado (de 2003 a 2011, e depois de 2015 até maio de 2016), Jungmann começou a se aproximar dos militares ao comandar comissões na Câmara que tratavam de projetos de interesse da caserna. Durante o processo de impeachment de Dilma, entre 2015 e 2016, era ele quem "tirava a temperatura" dos generais e mantinha informado o comando "pró-Temer" no Congresso. Era, por exemplo, frequentador dos jantares na casa de Heráclito Fortes (PSB-PI), em Brasília, nas quais se reuniam deputados que trabalharam pelo impeachment.
Padrinhos políticos
O pai do ministro, Sílvio Jungmann da Silva Pinto, foi um jornalista e servidor público conhecido em Recife. Militava em causas de esquerda e, por isso, teve de se mudar do Estado nordestino para São Paulo (SP) quando a repressão política da ditadura militar iniciada em 1964 recrudesceu, segundo o deputado Roberto Freire (PPS-SP). O filho, por sua vez, permaneceu na capital pernambucana e iniciou o curso de psicologia na Universidade Católica do Estado em 1976, sem se formar.
O sobrenome pelo qual o ministro é conhecido vem da família paterna, e é de origem alemã. Jungmann também tem ascendência judaica.
Mais ou menos na mesma época em que começou o curso universitário, ele se filiou ao Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, único partido de oposição permitido no regime militar. Segundo Roberto Freire, Jungmann ajudava a organizar os comícios que o MDB fazia pelo país na década de 1970, contra a ditadura. Foi só um pouco depois, em 1990, que ele entrou oficialmente para o PPS, que na época ainda se chamava PCB - o Partido Comunista Brasileiro.
"Ele era muito próximo da gente, atuava com o nosso pessoal no PCB (antes de entrar oficialmente). Não era militante nosso, mas era mais empenhado que muitos militantes", diz Freire, que é presidente nacional do PPS. "Naquele ano (1990) a gente fez um Congresso do partido no qual pessoas que não eram filiadas tinham direito a voz e voto nas teses políticas (mas não nos aspectos administrativos). Foi aí que ele entrou", conta Freire.
Jungmann teve dois grandes padrinhos políticos no começo de sua carreira política em Brasília: o próprio Roberto Freire e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Este último é descrito por mais de uma pessoa como uma espécie de "mentor" do pernambucano. Jungmann também era amigo da mulher de FHC, a antropóloga Ruth Cardoso.
No mesmo ano em que entrou para o PCB, Jungmann obteve seu primeiro cargo de chefia, como secretário de Planejamento do governador de Pernambuco, Carlos Wilson (um político com origem na Arena, partido que apoiava os militares).
O primeiro cargo em Brasília viria no governo de Itamar Franco, como braço-direito do então ministro do Planejamento Alexis Stepanenko (1993-1994). A indicação foi de Freire, que era líder do governo de Itamar no Congresso.
De ministro a suplente de deputado
Nos anos seguintes, já no governo FHC, entre 1995 e 2002, viriam os cargos relacionados à questão agrária: presidente do Ibama, do Incra, e titular dos ministérios de Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário. Na época, o PPS fazia oposição a FHC. Jungmann, por isto, foi colocado numa espécie de "geladeira partidária": a sigla permitiu que ele assumisse os cargos, mas afastou-o de todos os assuntos internos do partido.
Discreto sobre sua vida pessoal, Jungmann teve nesta época um relacionamento com a jornalista Sílvia Faria, então chefe do jornalismo da Rede Globo em Brasília. Eles não foram casados formalmente, mas viveram juntos de 1994 até o começo dos anos 2000. Antes, fora casado com Patrícia, de quem se divorciou e com quem teve um casal de filhos já adultos: Júlia (advogada) e Bruno (administrador de empresas).
Em 2003, o PT chegou ao poder com o ex-presidente Lula e Jungmann se elege deputado federal por Pernambuco, pela primeira vez, pelo PMDB (ele voltaria ao PPS depois da eleição). O PPS, na época, apoiava o governo petista. Pessoalmente, Jungmann nunca simpatizou com o PT: em 2005, foi um dos defensores do rompimento do PPS com o governo de Lula. Ainda assim, mantém interlocutores também entre os petistas: um deles é o ex-ministro da Justiça de Dilma e advogado José Eduardo Cardozo.
Nas eleições de 2014, Jungmann concorreu a deputado federal pelo PPS, e teve apenas 36,8 mil votos. Não foi eleito e terminou como suplente. Mas quando os eleitos em outubro de 2014 começaram de fato a trabalhar, em fevereiro de 2015, Jungmann estava lá: assumiu como suplente de Sebastião Oliveira (PR), que foi chamado para ser secretário de Transportes do governo de Paulo Câmara (PSB), em Pernambuco.
O fato de ser suplente fez com que Jungmann não estivesse oficialmente deputado quando a Câmara votou o impeachment de Dilma, em maio de 2016: Oliveira tinha reassumido o cargo. Jungmann circulou pelo plenário no dia, mas não pode votar contra a petista.
A reportagem da BBC procurou Jungmann na última segunda-feira, mas ele não respondeu aos pedidos de entrevista.
Até tu, Bruto?
Nos últimos anos, Jungmann também teve que responder a questionamentos relacionados à menção ao seu nome em uma planilha de propinas da Odebrecht no âmbito da Operação Lava Jato.
Em arquivos encontrados em 2016 com o ex-diretor da empreiteira, Benedicto Barbosa Silva Júnior, o BJ, o nome de Jungmann aparece relacionado aos valores "50 + 50" ou "100" e ao apelido "Bruto". O valor seria referente a doações para a campanha de 2012, quando Jungmann se elegeu vereador em Recife. Nas eleições seguintes (2014), a Odebrecht doou R$ 384 mil à campanha de Jungmann, diretamente e por meio do PPS.
Em maio de 2017, quando o STF retirou o sigilo da delação da Odebrecht, tudo que havia em relação a Jungmann era uma petição (PET), com a recomendação do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para que a investigação sobre ele fosse arquivada. Isto porque, segundo os próprios delatores da Odebrecht, as doações ao pernambucano foram legitimas, sem contrapartidas. O caso acabou arquivado pelo STF.