bbc brasil

BBC Brasil: Brasil é 4º país que mais se afastou da democracia em 2020, diz relatório

O Brasil é o quarto país que mais se afastou da democracia em 2020 em um ranking de 202 países analisados. A conclusão é do relatório Variações da Democracia (V-Dem), do instituto de mesmo nome ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia

Mariana Sanches, Da BBC News Brasil em Washington

Publicado em março de 2021, o documento é um importante instrumento usado por investidores e pesquisadores do mundo todo e do Brasil para definir prioridades de ações globalmente.

De acordo com o índice, no qual 0 representa um regime ditatorial completo e 1, a democracia plena, o Brasil hoje registra pontuação de 0,51, uma queda de 0,28 em relação à medição de 2010, que ficou em 0,79.

A queda do país só não foi maior do que as de Polônia, Hungria e Turquia. Os dois últimos, um sob regime do direitista Viktor Orban e outro sob comando do conservador Recep Erdogan, se tornaram oficialmente autocracias, na classificação do V-Dem.

"Quase todos os indicadores que usamos mostram uma drástica queda do Brasil a partir de 2015. O único ponto em que o país não perdeu de lá pra cá foi em liberdade de associação", disse à BBC News Brasil o cientista político Staffan Lindberg, diretor do Instituto Variações da Democracia.

O índice é formulado a partir da contribuição de 3,5 mil pesquisadores e analistas, 85% deles vinculados a universidades ao redor do mundo.

O resultado de cada país advém da agregação estatística dos dados para 450 indicadores diferentes, que medem aspectos como o grau de liberdade do Judiciário e do Legislativo em relação ao Executivo, a liberdade de expressão da população, a disseminação de informações falsas por fontes oficiais, a repressão a manifestações da sociedade civil, a liberdade e independência de imprensa e a liberdade de oposição política.

Onda autocrática global

De acordo com o relatório, o mundo vive o que os pesquisadores consideram uma onda de expansão das autocracias iniciada em 1994.

Essa seria a terceira onda desde 1900 (as duas primeiras aconteceram entre os anos 1920-1940 e entre o começo dos anos 1960 e o final dos anos 1970).

Se, em 2010, 48% da população mundial vivia sob regimes considerados não democráticos, em 2020 esse percentual subiu para 68% e retornou ao patamar observado no início dos anos 1990.

No grupo do G-20 - que agrega as maiores economias do mundo -, além de Brasil e Turquia, a Índia também apresentou uma queda nos parâmetros democráticos tão significativa que deixou de ser considerada a maior democracia do mundo e passou a ser classificada como autocracia com eleições pelo V-Dem.

Segundo os pesquisadores, os processos de Índia, Turquia e Brasil, apesar de estarem em estágios diferentes, seguem um mesmo roteiro. "Primeiro, um ataque à mídia e à sociedade civil, depois o incentivo à polarização da sociedade, desrespeitando os opositores e espalhando informações falsas, para então minar as instituições formais", diz o relatório.

"Estamos muito preocupados porque percebemos que Bolsonaro tem dado claros sinais que condizem com os padrões de comportamento de outros líderes autocráticos que vimos atuar antes, como Viktor Orban. São movimentos preocupantes para a sobrevivência da democracia brasileira", afirma Lindberg.

Ainda longe da autocracia

O índice V-Dem de 2021 foi finalizado antes da recente crise do presidente brasileiro com as Forças Armadas.

Em março, foi anunciada a saída do então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, o que desencadeou também a troca dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica.

Em sua carta de demissão, Azevedo e Silva afirmou que "neste período (à frente da pasta), preservei as Forças Armadas como instituições de Estado", o que provocou questionamentos sobre uma possível tentativa de politização do Exército Brasileiro por Bolsonaro, que tem usado corriqueiramente a expressão "meu Exército" para se referir às Forças Armadas do país.

Antes disso, porém, o atual presidente brasileiro já atacou reiteradas vezes a imprensa, se mostrou elogioso à ditadura militar instaurada nos anos 1960 e endossou uma manifestação de apoiadores seus que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal.

Pouco antes de ser empossado, Bolsonaro chegou a afirmar que mandaria seus opositores para a "ponta da praia", uma aparente referência à base da Marinha na Restinga da Marambaia, no Rio, onde presos foram torturados e mortos durante o regime ditatorial brasileiro.

"Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia. Vocês não terão mais vez em nossa pátria porque eu vou cortar todas as mordomias de vocês. Vocês não terão mais ONGs para saciar a fome de mortadela. Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil", disse o então presidente eleito em 2018.

Esses aspectos contribuem para os atuais resultados do país. Outros índices também apontam para um retrocesso da democracia brasileira nos últimos anos, embora a queda seja mais branda.

A ONG Freedom House avaliou que a democracia brasileira atingia 79 pontos, em uma escala de 0 a 100, em 2017. Atualmente, o índice recuou para 74.

Para Lindberg, embora os dados sobre Brasil sejam preocupantes, o país ainda está longe de ser enquadrado como uma autocracia, como aconteceu com Turquia e Índia, e isso se deve à qualidade do sistema eleitoral brasileiro.

"Embora ainda haja algumas irregularidades de votação, um pouco de intimidação eleitoral ou de compra de voto, as eleições no Brasil seguem sendo livres e justas, e é possível trocar o comando do país por meio delas", diz Lindberg.

Segundo ele, o sistema de voto eletrônico, como o usado no Brasil, tem se mostrado seguro e confiável. Bolsonaro, no entanto, tem feito uma campanha pelo voto impresso no Brasil e dito que o país pode repetir a história das últimas eleições americanas, quando Trump alegou fraude sem provas, se não mudar o sistema eleitoral.

E se a guinada autocrática atinge grandes populações ao redor do mundo, de outro lado, os processos de democratização, embora aconteçam, se concentram em países menores, como o Sri Lanka, Tunísia e Armênia.

Para os pesquisadores, isso se deve ao fato de que esses países estão relativamente mais distantes da influência de potências autocráticas, como Rússia e China, e parecem ter conseguido encaminhar suas dinâmicas políticas internas para um sistema mais livre.


BBC Brasil: A disputa por trás da saída de bispos e pastores brasileiros da Universal em Angola

Anúncio é parte do embate entre direção brasileira, liderada por Edir Macedo, e bispos e pastores angolanos que se rebelaram no fim de 2019

Gilberto Nascimento, BBC NEWS BRASIL

Cinquenta religiosos brasileiros da Igreja Universal do Reino de Deus radicados em Angola foram comunicados por autoridades locais para deixar o país nos próximos dias.

Os vistos de permanência desses missionários venceram e não serão renovados, segundo o Serviço de Migração e Estrangeiros de Angola.

O anúncio é parte de mais um capítulo do embate entre a direção brasileira da Universal (fundada e liderada pelo bispo Edir Macedo) e bispos e pastores angolanos que se rebelaram, desde o final de 2019, passando a contestar o comando geral da igreja.

O Instituto Nacional para Assuntos Religiosos (Inar), órgão do governo angolano, deu parecer favorável aos líderes locais para assumir o controle da Universal no país. A ala brasileira tenta reverter essa decisão na Justiça.

Os bispos e os pastores brasileiros da Universal que não aceitam a chamada "reforma" angolana na igreja foram orientados, então, a deixar o país. Um primeiro grupo —formado por sete casais de pastores— recebeu o comunicado na sexta-feira (9). O pastor brasileiro Valdir de Sousa divulgou a informação.

"Recebemos a notificação de abandono do país e temos oito dias para sair de Angola", disse Souza à Rádio Nacional de Angola, explicando que a nova direção local da igreja não irá mais renovar "as cartas de chamada para missionários brasileiros".

A direção brasileira da Universal, por meio de sua porta-voz em Angola, Ivone Teixeira, e do Jornal da Record, da TV Record, emissora pertencente ao bispo Edir Macedo, confirmou a "expulsão" dos brasileiros.

De acordo com a Record, o número de missionários afetados pela medida chega a cem. A emissora, em seus telejornais, tem feito ataques ao grupo rival da Universal. Para a Record, a igreja de Edir Macedo é "vítima de um golpe religioso, há mais de um ano, por parte de ex-pastores, bispos dissidentes e pessoas que não fazem parte da instituição, mas têm interesses financeiros, religiosos e até políticos". A emissora acusa líderes angolanos da igreja de "roubo, extorsão, adultério e atentado contra menor de idade".

Edir Macedo recorreu ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, para tentar reverter a situação em Angola, mas sem resultado. Bolsonaro, que teve o apoio do bispo em sua campanha à Presidência, enviou uma carta, em julho do ano passado, ao seu colega de Angola, João Lourenço, manifestando preocupação com os conflitos entre os religiosos no país e pedindo proteção aos brasileiros.

O deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), postou a carta no Twitter. Sem citar a Universal ou o Brasil, o presidente angolano João Lourenço criticou recentemente, em um pronunciamento, tentativas de ingerências em decisões internas de Angola.

O embaixador brasileiro em Angola, Rafael Vidal, disse à Agência Lusa que os problemas da Universal no país não são uma questão entre os Estados. "A Iurd em Angola é uma igreja angolana que conta com cidadãos brasileiros. É uma grande instituição que tem presença no mundo inteiro. E, em Angola, é uma igreja sujeita aos regulamentos e normas das instituições religiosas previstas pelo Estado angolano, que é um Estado de direito", afirmou.

Para o embaixador brasileiro no país, a polêmica envolve "uma instituição brasileira que vem sofrendo uma crise interna e que, em função dessa crise, tem gerado decisões de órgãos reguladores como o Inar, em relação ao funcionamento da igreja".

São questões relacionadas "ao ordenamento jurídico de Angola e à regulamentação da atividade religiosa" e "não entram na agenda bilateral entre os governos e os estados", explicou. Rafael Vidal afirmou, entretanto, que o Brasil "acompanha com atenção todas as questões que envolvem cidadãos brasileiros".

A rebelião dos bispos e pastores angolanos da Universal começou em novembro de 2019, com a divulgação de um manifesto com críticas à direção brasileira.

Os líderes locais acusaram os brasileiros por supostos crimes como evasão de divisas, expatriação ilícita de capital, racismo e discriminação. As denúncias foram encaminhadas à Procuradoria Geral da República de Angola e aguardam decisão da Justiça.

Em junho do ano passado, bispos e pastores locais assumiram o comando dos templos da Universal no país e romperam definitivamente com o antigo chefe Edir Macedo.

O grupo elegeu uma nova direção, em assembleia geral, e afirma ter o controle da quase totalidade dos 300 templos da igreja em Angola. A ala brasileira, em uma nota assinada pelo bispo Antonio Miguel Ferraz, disse que os novos líderes não são os "legítimos representantes" da igreja.

Afirmou ainda que membros da chamada "reforma" teriam sido expulsos "devido à prática de atos ilícitos e à violação do código de conduta moral".


BBC Brasil: BBB 21 - Por que o cabelo é tão importante no movimento negro

Antes de serem traficados e enviados para as Américas, muitos africanos carregavam na cabeça um símbolo que ia além da estética: o cabelo

Vitor Tavares, BBC News Brasil

A forma, o corte e os adereços podiam representar origens, etnias, religiões, status social.

Mas já no caminho para as colônias americanas, entre elas o Brasil, essa relação era rompida.

Ao expor as condições de um navio negreiro na famosa gravura Negros no Fundo do Porão, o pintor alemão Johann Moritz Rugendas retratou homens e mulheres amontoados, algemados e nus - muitos sem cabelo ou com ele bem curto.

No registro dos livros O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, de Gilberto Freyre, e Ser Escravo No Brasil, de Kátia Mattoso, são relatadas as cabeças forçadamente raspadas dos africanos no momento em que eram oferecidos à venda para os senhores de engenho.

"Buscavam minar qualquer tipo de pertencimento étnico e identificação que eles pudessem ter uns com os outros a partir do cabelo", explica a socióloga Anita Pequeno Soares, pesquisadora da relação entre o cabelo e negritude na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

"Há relatos de que a raspagem do cabelo era parte importante desse processo de subjugar a população negra, principalmente homens, o que acarretava sérios problemas, porque o cabelo protege o couro cabeludo num trabalho sob sol escaldante. As sinhás, com ciúmes de mulheres violentadas pelos homens brancos, também usavam a raspagem como prática de tortura".

Além da violência, a associação da estética dos africanos a algo primitivo e distante de ideias europeias de beleza e humanidade foi uma prática recorrente durante o colonialismo.

Uma das histórias mais chocantes e ilustrativas é de Sarah Baartman, levada da África do Sul ao Reino Unido para aparecer em espetáculos de circo.

Sarah Baartman
Sarah Baartman era exposta como um animal na Europa

Considerada por muitos como símbolo da exploração e do racismo colonial, bem como da ridicularização das pessoas negras, muitas vezes representadas como objetos ou animais, ela morreu após passar anos sendo exibida em feiras de "fenômenos bizarros humanos".

Seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais continuaram sendo exibidos em um museu de Paris até 1974. Os restos mortais só retornaram à África em 2002, após a França concordar com um pedido feito por Nelson Mandela.

"O discurso racista é pautado na negação da humanidade das pessoas negras. A beleza é parte da humanidade, ser considerado belo é parte de ser considerado gente. Isso faz para do mesmo enredo que associou negros e negras à animalidade, à natureza, como Baartman, mais comparada a macacos que seres humanos", ressalta Soares.

Cabelo como orgulho

Na história das Américas, o movimento negro tentou por diversas vezes romper com um sistema que durante séculos estigmatizou (e ainda estigmatiza) as características físicas dos negros - entre elas, uma das mais representativas é o cabelo.

O assunto ganhou ampla discussão no Brasil nos últimos dias após um episódio no programa Big Brother Brasil, da TV Globo, em que o cantor Rodolffo comparou o cabelo do professor João Luiz a uma peruca de homens das cavernas.

João Luiz, do BBB 21
Legenda da foto,João Luiz, do BBB 21, teve cabelo comparado a uma peruca de homens das cavernas

Um dos marcos identificados pela socióloga nessa busca pela valorização da estética negra é o movimento rastafári.

Nos anos 1930, um grupo de jamaicanos passou a acreditar que a coroação de Ras Tafari (o imperador etíope Haile Selassie) era o cumprimento de uma profecia e que ele era o messias.

Eles acreditavam que seriam libertados pelo imperador, que os tiraria da pobreza no Caribe e os levaria à África, a terra dos seus antepassados e um centro espiritual.

Porém, além da conotação religiosa, o movimento rástafari se respaldou na estética, como as roupas coloridas e os cabelos com dreadlocks, popularizados pelo seu seguidor mais famoso, o cantor Bob Marley.

Dois rastafáris
Legenda da foto,Movimento rastafári teve início na Jamaica

Outro marco nessa tentativa de olhar diferente para a beleza dos descendentes dos africanos escravizados foi o movimento Negritude, também nos anos 1930, promovido pelo escritor e político francês nascido na ilha caribenha de Martinica Aimé Cesarie e pelo escritor e político senegalês Léopold Senghor.

Em suas obras, há uma exaltação da "raça negra: "Buscaram valorizar raízes africanas, olhar para a África com nova perspectiva, diferente da europeia, que colocava a África como a negação da beleza", diz Soares.

'Black is beautiful'

Em 1858, em Boston, o abolicionista americano John Swett Rock fez um dos primeiros discursos conhecidos que exaltavam as características físicas dos negros.

"Quando eu comparo o sistema muscular mais forte, a bela, rica cor, os traços largos e o cabelo graciosamente frisado do negro com a frágil organização física, a cor pálida, as feições finas e os cabelos lisos do branco, estou inclinado acreditar que, quando o homem branco foi criado, a natureza estava exausta".

Esse discurso é considerado uma das bases para o que viria a ser a amplamente utilizada expressão "black is beautiful" (preto é bonito). Era uma tentativa de igualar negritude a beleza, em um ato contra séculos de imagens que mostravam negros como grotescos.

Steve Biko
Legenda da foto,Steve Biko esteve por trás do movimento contra apartheid na África do Sul e buscava valorizar a estética negra

Na África do Sul do regime racista do apartheid, a frase se tornou símbolo do movimento Consciência Negra, liderado pelo ativista Steve Biko. "Ele tinha preocupação forte com essa dimensão subjetiva do racismo, com a forma com que o racismo fazia com que as pessoas negras tivessem muitas vezes ódio de si mesmas."

Nesse contexto, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder.

A corrente sul-africana influenciou o movimento homônimo nos EUA, onde ganhou mais força. Em 1966, no momento de luta pelos direitos civis no país, também surgiu o movimento chamado "Black Power", que deu ao cabelo afro papel central na estética dos negros americanos.

O black power também virou símbolo dos Panteras Negras, um movimento de militantes políticos nos EUA que defendiam a resistência armada nos bairros negros contra a perseguição policial no país.

Para Soares, esses movimentos "ajudaram não só a pensar estratégias políticas de combate ao racismo como também formularam um conjunto de ideias que inspiraram o ativismo de jovens militantes negros em outros países."

Brasil e alisamento

As pesquisas da socióloga da UFPE apontam que, quando esses movimentos explodiram nos EUA, eles também tiveram reflexos no Brasil. Houve, por exemplo, um aumento expressivo dos chamados "salões étnicos", voltados para pessoas com cabelos crespos.

Até então, no período pós-abolição, o que a militância negra interpretava como urgente eram questões ligadas à moral, conta Soares. Os primeiros concursos de beleza para mulheres negras, por exemplo, se preocupavam em passar uma imagem de "civilidade" àquelas pessoas, não necessariamente a estética.

"Durante a escravidão a população negra era associada muito à sexualidade, que é também associar ao animal. Esses primeiros concursos estavam preocupados em negar a degradação sexual que tentavam associar a elas. Não havia isso de cabelo black. O alisamento fazia parte da moral. Queriam, como diziam, 'reeducar a raça', mas pautados nos padrões da branquitude".

Como reflexo dos movimentos nos EUA, houve uma crescente busca de valorizar a beleza negra no país. O Teatro Experimental do Negro (TEN), por exemplo, incluiu a estética na pauta, inclusive também com concursos de beleza. Movimentos musicais como o Black Rio deram voz a artistas como Tim Maia e Sandra de Sá.

Mais recentemente, também acompanhando um movimento global impulsionado principalmente pela internet, negros e, principalmente, negras brasileiras passaram a adotar o cabelo natural como símbolo de orgulho.

Negros no Fundo do Porão
Negros no Fundo do Porão é uma obra do pintor alemão Rugendas

A chamada transição capilar, em que os cabelos alisados são cortados e tratados para que as químicas usadas fiquem para trás, se popularizou principalmente através das redes sociais.

"A geração de hoje está tendo oportunidade de viver algo diferente e eu associo ao movimento de transição capilar, que revolucionou. Hoje em dia, a partir dessa demanda, as mulheres, principalmente, viram a internet como um lugar de falar para poder trazer um novo discurso", explica Soares.

Mas a socióloga faz um alerta: "Não podemos engessar o olhar sobre o alisamento e colocá-lo exclusivamente como uma negação da negritude. Claro que cabelo afro é poder, identidade, mas cada pessoa tem seu momento".


BBC Brasil: Se Lula chegar ao poder em 2022, Forças Armadas não criarão impedimento, diz Jungmann

Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública durante o governo Temer, Raul Jungmann conhece como poucos civis os meandros da elite das Forças Armadas brasileiras

Caio Quero, BBC News Brasil

Observador privilegiado de alguns dos principais episódios das recentes crises entre militares, civis e o Judiciário — desde o controverso tuíte do general Villas Bôas ao 'prende e solta' de Lula, em 2018 —, no final de fevereiro Jungmann publicou uma carta aberta aos ministros do STF onde enumera o que vê como riscos da política armamentista do presidente Jair Bolsonaro.

No documento, ele pede uma "intervenção" dos ministros do Supremo para suspender as portarias e decretos presidenciais de Bolsonaro que desburocratizam e ampliam o acesso a armas e de munição por cidadãos comuns e por aqueles que têm registro de CAC (colecionador, atirador e caçador).

Em entrevista à BBC News Brasil, Jungmann argumenta que tais políticas estão "erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil".

"Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão", disse à BBC News Brasil.

Na entrevista, Jungmann também afirma que, apesar dos pedidos de "intervenção militar" por parte de setores radicalizados da sociedade, "as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe ou qualquer interrupção da democracia".

Questionado sobre as eleições de 2022, Jungmann diz não antever qualquer tipo de interferência ou "maiores problemas" por parte dos militares, "seja com Lula... Mandetta, Moro, Huck... e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro".

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Em fevereiro, o senhor escreveu uma carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal em que diz que a política do governo Bolsonaro de ampliar acesso às armas de fogo coloca em risco a democracia no Brasil. Como, em sua opinião, tais políticas podem ser uma ameaça às instituições?

Raul Jungmann - A questão do armamento ou não da população sempre foi um assunto de debate na área da segurança pública. Alguns achavam que isto reduziria a violência e outros, como nós, baseado em ampla literatura técnica, achávamos que não, pelo contrário: mais armas mais mortes, menos vida.

Acontece que o presidente da República fez um deslocamento do debate da área da segurança pública para a área político-ideológica quando ele diz que é preciso armar todo o povo para resistir a tiranias, para resistir a perda de liberdades. Ora, não pesa sobre o país nenhuma ameaça, seja real ou imaginária, de que você venha a ter uma tirania, pelo contrário, ainda que sob pressão nossas instituições estão funcionando até aqui. E, também, não existe nenhuma força política hoje de relevância ou mesmo de pouquíssima relevância que esteja fora do jogo democrático.

Então, isso nos leva a três questionamentos, a três graves problemas: em primeiro lugar, ao se propor o armamento da população, está se propondo a quebra do monopólio da violência legal, que é privativa ao Estado Nacional. Na verdade, o certificado do nascimento de um Estado Nacional é quando ele passa a deter o monopólio da violência legal. Em segundo lugar, ao quebrar o monopólio, você está desfazendo do papel constitucional das Forças Armadas, que são, digamos assim, a ultima ratio, o último suporte da integridade desse Estado Nacional e da nossa soberania, então isso também representa um ataque às Forças Armadas e é preciso defender o papel delas. Terceiro e último, ao propor o armamento da população, se nós não temos nenhum inimigo, nenhuma ameaça externa, então, ainda que não esteja visível no horizonte, você está erguendo o espectro horripilante de um choque, um conflito de brasileiros contra brasileiros e isso tem um nome na história: guerra civil.

Quando você teve o armamento de populações, a História nos ensina, sempre vieram a reboque ou deixaram um rastro de genocídio, de massacre de etnias, de populações, de golpes, tirania e, inclusive, do ovo da serpente: do fascismo italiano e do nazismo alemão.

Então, por isso que eu entendo que essa proposta de armar a população, pelo o que aqui narrei, representa um risco sério e precisa ser afastado, precisa ser devidamente evitado, de uma quebra de nossa estabilidade e por isso me dirigi ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam vários pedidos de suspensão dessa política armamentista do governo federal.

BBC News Brasil - O cenário que o senhor pinta é bastante preocupante. Na avaliação do senhor, qual o objetivo do governo Bolsonaro ao facilitar esse acesso a armas? O senhor acha que estas são consequências que o governo não está antevendo ou existe algo deliberado nesse sentido?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o presidente Bolsonaro sempre teve essa pauta. Eu fui colega dele durante 12 anos na Câmara dos Deputados, então ele está sendo absolutamente honesto quando faz a defesa dessa pauta. Em segundo lugar ele atende à base que o elegeu, que é uma base pró-armamentista, em larga medida. E, em terceiro lugar, aí eu acho que fazer uma interpretação literal não é possível, mas é possível dizer que este tipo de atitude conspira contra a estabilidade democrática. Basta lembrar o que aconteceu há pouco nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio, e nós temos eleição em 2022.

Então, independentemente das intenções, que não me cabe aqui avaliar, do senhor presidente da República, ele comete um enorme equívoco, que atenta contra o monopólio da violência legal pelo Estado Brasileiro, contra o papel da Forças Armadas e, evidentemente, contra a possibilidade de você ter conflitos entre brasileiros.

Imagine você que em 2022 nós temos um resultado eleitoral contestado — e aparentemente nós vamos ter uma reedição de polarização, igual a de 2018, aparentemente, apenas. Então tudo isso, evidentemente, agrava nossas preocupações e exige medidas imediatas para evitar que isso aconteça.

BBC News Brasil - O senhor foi ministro da Defesa e conhece como poucos civis as Forças Armadas. Na carta aberta, o senhor fala que essa política de facilitação do armamento atenta contra o papel das Forças Armadas. Mas, ao mesmo tempo, parte das Forças Armadas parece não estar tão incomodada com esse fato, pois temos um recorde de militares em cargos de ministérios e secretarias no governo Bolsonaro. Por que o senhor acha que isso ocorre, já que há um conflito entre o papel da Forças Armadas e essa política armamentista?

Jungmann - Em primeiro lugar é preciso dizer que o presidente Jair Bolsonaro, durante toda a sua carreira parlamentar, foi um parlamentar de nicho, ou seja, ele tinha duas clientelas específicas as quais ele se dedicava: primeira delas são os próprios militares e ele provém exatamente das Forças Armadas, mais especificamente do Exército Brasileiro e, em segundo lugar, os policiais.

No momento em que ele assume o governo, não tendo ele uma grande passagem junto às elites financeiras, empresariais, culturais, de mídia etc., etc. para compor o seu governo, ele volta-se para quem? Para os militares. Não se volta tanto para as polícias, porque as polícias são estaduais e não são nacionais, como são as Forças Armadas. Então onde é que ele vai buscar os quadros para governar com ele? Ele vai buscar isso exatamente com as Forças Armadas.

Do lado das Forças Armadas, além daqueles que evidentemente simpatizam com a agenda do presidente, existem outros que não simpatizam.

Mas aqui nós temos um problema que não é tanto das Forças Armadas e tampouco do presidente Jair Bolsonaro, que é o papel do Congresso Nacional.

Hoje se reclama muito da presença dos militares no governo, mas é preciso dizer que o Congresso Nacional tem prerrogativas constitucionais para estabelecer restrições sobre isso. Se o Congresso Nacional, se o poder político, se a elite civil e política não impõe travas a isso. Não seria necessariamente contra militares, mas exatamente para manter a separação que é fundamental institucionalmente entre governo e Forças Armadas, que têm uma missão constitucional voltada para o Estado e não para o governo. O Congresso falha ao não estabelecer isso.

Então, reclama-se por exemplo da presença (de militares no governo) — que eu acho, sobretudo em termos dos militares da ativa, excessiva —, mas não existe nenhuma trava. Em segundo lugar, sendo o presidente da República o comandante supremo das Forças Armadas, não havendo nenhuma trava legal, o que elas podem fazer?

Certa feita eu estava em um debate com o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, e ele disse: "As Forças armadas precisam se pronunciar." E eu disse: "Não, elas não devem se pronunciar. Elas devem permanecer exatamente onde estão", que é exatamente voltadas para as suas atividades profissionais, elas não têm que entrar na política. Elas não têm que falar, diferentemente de outras corporações, elas não devem falar. Porque se começam a falar, vão falar hoje, vão falar amanhã e vão falar depois.

A verdade é que aqui há uma grande confusão, que é preciso esclarecer... Quem tem falado são militares da reserva que estão em funções políticas, mas eles não falam pelas Forças Armadas.

Não se deve cobrar que os militares se pronunciem sobre política. Evidente que militar é cidadão e tem gente lá que apoia o governo e tem gente que é contrária ao governo, como aliás acontece mundo a fora — mas elas (as Forças Armadas) devem e estão permanecendo voltadas a suas atividades profissionais.

Eu não represento e não falo pelas Forças Armadas, apenas fui quase dois anos ministro da Defesa, mas posso lhe assegurar pelo que conheço e pelo que conheci, que as Forças Armadas não darão suporte ou apoio a qualquer desvio constitucional, qualquer golpe, qualquer interrupção da democracia do nosso país.

BBC News Brasil - No mês passado também voltou à tona aquele famoso tuite do general Villas Bôas, então comandante do Exército, que ele publicou as vésperas do julgamento do HC do ex-presidente Lula, em 2018. O senhor tinha acabado de assumir como Ministro da Segurança Pública, saindo da pasta da Defesa. O senhor ficou sabendo desse tuíte antes?Como foi essa história? O senhor ficou sabendo de que haveria algum posicionamento por parte do general Villas Boas?

Jungmann - Não soube e nem caberia. Eu deixei o Ministério da Defesa no dia 27 de fevereiro de 2018 e o tuíte, se eu não me engano, foi no dia 8 de abril ou alguma coisa assim (o tuite de Villas Bôas foi publicado em 3 de abril). Então a cadeia de comando já não passava por mim de forma alguma.

Eu sou um admirador e tenho uma grande amizade com o ex-comandante Villas-Bôas, um amigo que considero pessoal. Mas acho que o tuíte, embora eu entenda as razões que ele apresenta a esse respeito e acho que são ponderáveis, mas acho que não é a forma adequada.

Eu defendi aqui exatamente que as Forças Armadas permanecessem focadas em seus aspectos profissionais e em linha com a Constituição. Eu acho que, em que pese as preocupações, em que pese o clima que estava vivendo, em que pese eu reconhecer que o general Villas Bôas é um democrata, mas aquilo não é a forma mais adequada de se, digamos assim, de exercer o exercício de pressão sobre uma Suprema Corte, o que é, repito, é inadequado.

Se ele me consultasse, o que não ocorreu nem ocorreria, porque, dada nossa amizade, ele iria me preservar, eu teria procurado dissuadi-lo. Mas veja, tenho convicção que outro fosse o resultado do julgamento, ele seria integralmente respeitado.

BBC News Brasil - No livro onde o general conta sobre o tuíte, ele fala que houve participação do Alto Comando do Exército, não foi o general sozinho que tuitou. Na época, o senhor declarou que "a fala do general foi no sentido da serenidade e do respeito à Constituição e às regras, o que é correto". O senhor continua mantendo essa avaliação, sabendo que foi o Alto Comando que planejou esse tuíte?

Jungmann - Em primeiro lugar, é preciso entender o seguinte: a decisão é do comandante e ela é intransferível, porque foi ele que o publicou. Se ele chegou a ouvir, como está dentro do livro e não nos cabe duvidar, pode ter sido uma atitude, digamos, mais formal.

De todo o jeito, é uma atitude que considero que não é adequada para a necessária separação que tem que existir entre instituições. Nós estamos aqui falando de um outro poder, que é o Poder Judiciário, e ao mesmo tempo do não envolvimento do Exército e das Forças Armadas em questões tópicas, em questões de governos, na medida que são instituições do Estado.

BBC News Brasil - O senhor foi o último civil a ocupar o cargo de ministro da Defesa e, para muitos analistas, o controle civil das Forças Armadas é fundamental para a democracia. O senhor concorda com isso, acha que é melhor um civil controlar as Forças Armadas?

Jungmann - Olha, o grande controle a ser exercido pelas Forças Armadas se dá através dos órgãos de controle e, particularmente, através do Congresso Nacional e, no caso de conflito, pelo Judiciário.

Eu já fui adepto da tese de que o Ministério da Defesa deveria permanecer apenas nas mãos dos civis. Mas o controle deve sobretudo não prescindir de duas coisas: que o poder político civil tenha liderança e projeto para as Forças Armadas, e não existe isso, sobretudo na área da Defesa. Nosso poder político não exerce a sua liderança e tampouco tem demonstrado apetite por projetos para a defesa nacional.

No meu entendimento, é muito frágil você dizer "o controle depende de um civil". Você pode botar um civil lá, vamos supor uma situação absurda, que seja simplesmente uma marionete, que não tenha nenhum poder, não, não é isso.

O controle efetivo dos órgãos do Executivo está na mão do Congresso, só que o Congresso não exerce isso. No início, confesso a ti, eu entendia que deveria continuar a linhagem civil, mas depois melhor refletindo, eu vejo que nações democráticas colocam (militares no comando).

Eu estive, por exemplo, com o secretário de Defesa durante o governo Trump, o Jim Mattis, e ele é um ex-fuzileiro. Você teve mais até que Secretário de Defesa, você teve o secretário de Estado, o Colin Powell (ex-general que comandou o Departamento de Estado dos EUA entre 2001 e 2005). E alguém coloca em dúvida o controle civil sobre as Forças Armadas dos Estados Unidos? Ninguém coloca.

Então a questão não é tanto por aí. A questão, para mim, tem dois níveis: primeiro, o poder político civil não exerce suas prerrogativas na área de Defesa e também nas Forças Armadas. Em segundo lugar, um problema mais abaixo, que é o seguinte: o Brasil talvez tenha o único Ministério da Defesa do mundo em que você não tem um especialista civil, um gestor civil, de carreira, atuando.

Você não tem parlamentares que hoje dialogam e entendam sobre as Forças Armadas. Pode ter um ou outro perdido entre 513. Me lembro de ir, enquanto Ministro da Defesa, em audiências públicas e confesso, eu percebia no debate o desconhecimento ou distanciamento que existia. Como é que você quer liderar?

Então, essa é a minha visão: pode ter ministro civil, pode ter ministro militar, mas tem que ter uma grande base civil, com capacidade técnicas e científica lá dentro, participando desse processo e você precisa sobretudo que o Congresso Nacional assuma o seu papel, e ele não vem exercendo isso.

BBC News Brasil - Semana passada tivemos uma reviravolta política, o ministro do STF Edson Fachin acabou por anular as condenações do ex-presidente Lula. Na Folha de S. Paulo um reportagem afirmava que os militares viram com reserva o discurso do ex-presidente Lula depois da anulação. Eles teriam dito que podem ter dificuldade de relação com o presidente caso Lula venha a ser eleito em 2022. O senhor acha que pode ocorrer um problema nesse sentido?

Jungmann - Olha, se em 2022, o Mandetta, o Huck, o Doria, o Moro ou o próprio Lula, chegarem ao poder, eu posso lhe assegurar que da parte das Forças Armadas não terão qualquer impedimento ou dificuldade para governar.

Dentro das Forças Armadas existem, sim, aqueles que são antipetistas, como há aqueles que também tem a outra opção e são petistas, socialistas ou liberais, ou conservadores. Enfim, isso está tudo representado lá dentro.

Mas, eu posso dizer que hoje é consolidado o sentimento, até porque já viveram o governo Lula anteriormente.

O governo do PT durou 14 anos, infelizmente terminou como terminou, mas a verdade é que é no governo Lula que acontecem duas coisas importantes para as Forças Armadas. Em primeiro lugar, foi a edição de uma política e de uma estratégica nacional de Defesa.

E, além disso, é reconhecido que é desse período, que foi um período economicamente muito mais folgado, que houve um grande investimento na modernização e atualização das nossas Forças.

Então, eu digo isso como alguém que fez oposição ao governo do PT durante 14 anos, mas tem que reconhecer as coisas que de fato aconteceram e é isso que a gente tem a narrar.

Eu não vejo maiores problemas, seja com Lula, seja com quem for que chegue lá, o Mandetta, o Moro, o Huck e, evidentemente a continuidade do Bolsonaro. Serão recebidos da mesma forma, em linha com a Constituição.

BBC News Brasil - O general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva escreveu que "aproxima-se o ponto de ruptura" após a anulação das condenações de Lula. O senhor não vê isso como refletindo o que se pensa dentro das Forças Armadas ativas hoje?

Jungmann - Militares que estão na reserva usualmente têm uma visão em boa medida da Guerra Fria, do combate ao comunismo, da subversão e tudo mais, da política de segurança nacional e tal. São homens que deram e contribuíram pra nação e para pátria, mas permanecem ainda imersos em um clima que já não existe mais, que já não faz mais sentido.

De um modo geral, a reserva é assim. Ela fica numa posição, digamos assim, pré-queda do Muro de Berlim e às mudanças todas que o mundo teve, inclusive o próprio processo de redemocratização. Na reserva é comum, por exemplo, que não se aceite que as Forças Armadas não tenham um papel moderador, não tenham mais o papel de tutela e tudo mais que tinham no passado. Então eu acho que isso é a expressão de um pensamento que já não é o pensamento da Forças Armadas.

Não quero dizer que não existam lá dentro militares que pensem assim, mas a cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores, já não são inclinados ou se deixam levar por esse tipo de percepção. Eles pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia.

BBC News Brasil - Sobre seu período como ministro extraordinário da Segurança Pública (2018-2019), surgiu no contexto das mensagens vazadas entre o ex-juiz Sergio Moro e a Força Tarefa da Lava-Jato um diálogo do procurador Deltan Dallagnol em que ele diz que a ministra do STF Carmen Lúcia teria ligado para o senhor no episódio da guerra de liminares que quase libertou o presidente Lula, em 2018. Ele teria dito para o senhor que o Lula não deveria ser libertado. O senhor se envolveu de alguma forma nessa ação?

Jungmann - No dia que eu chamo de "prende-solta" do Lula, que teve duas ordens para soltar e duas ordem para prender, alternadamente, eu recebi ligações de todo mundo, de formadores de opinião, de pessoal de comunicação, de editor, de autoridade, ministro, o próprio presidente da República ligou e pediu que o mantivesse informado do que estava se passando.

Um dos telefonemas que eu recebi, foi exatamente da ministra Cármen Lúcia para pedir informações: "Jungmann, como é que tá isso? Como é que tá acontecendo?". Eu narrei tudo o que estava acontecendo, o conflito que estava se dando e, evidentemente, a dificuldade que tem a Polícia Federal, executora da ação judicial, de lidar com essa situação. E em seguida, ela me disse: "Eu vou soltar uma nota sobre isso. Eu estou preocupada", e eu disse: "Faça isso, senhora presidente". E nada mais trocamos.

Então, eu vou repetir o que eu disse quando me fizeram pela primeira vez essa pergunta: isso é uma mentira. Repito: é uma mentira. Não houve esse diálogo. A ministra é uma juíza e sabe que se ela assim procedesse, estaria incorrendo no crime de obstrução da Justiça. Se eu, porventura, recebesse - que não recebi - esse pedido, eu estaria incorrendo em obstrução de Justiça, o que obviamente não fiz.

Por isso mesmo, eu resolvi interpelar o senhor Deltan Dallagnol para que ele confirme e desminta isso, porque não faz nenhum sentido. Não houve nada disso de parte da ministra Cármen Lúcia, que então presidia o Supremo, e da minha parte.

Pelo amor de Deus, quando a Polícia Federal está trabalhando junto ao Judiciário, o ministro da Segurança Pública e da Justiça não tem poder nenhum, está se passando em outro poder. A Polícia Federal trabalha de mãos dadas com o Judiciário e quem poderia autorizar ou solicitar isso é exatamente o juiz da questão, o juiz do caso.

A mim não caberia e tampouco à senhora presidente do Supremo nenhuma ação, senão estaríamos cometendo um crime de obstrução de Justiça, o que nem ela e nem eu cometemos.


BBC Brasil: Brasil de Bolsonaro tem maior proporção de militares como ministros do que Venezuela

O Brasil de Jair Bolsonaro já tem, proporcionalmente, mais militares como ministros do que a vizinha Venezuela, onde há muito tempo as Forças Armadas abdicaram da neutralidade e se tornaram fiadoras da permanência de Nicolás Maduro no poder

Luis Barrucho, BBC News Brasil em Londres

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essa presença expressiva de militares, especialmente da ativa, atuando dentro do governo, contribui para a ideologização de uma instituição que deveria ser neutra.

Fortalece esse argumento a recente fala do ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, que chamou o Congresso de "chantagista".

A declaração de Heleno inspirou a convocação de manifestações contra o Congresso para o próximo dia 15 de março. Em um áudio captado durante uma transmissão em rede social, o ministro foi flagrado dizendo que Bolsonaro não poderia aceitar que o Legislativo queira avançar sobre o dinheiro do Executivo.

"Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. F*da-se", disse aos ministros da Economia, Paulo Guedes e da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.

Bolsonaro encaminhou a amigos um vídeo que convoca a população a ir às ruas para defendê-lo. Lideranças políticas, como os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, criticaram o presidente e falaram sobre "crise constitucional".

"As evidências históricas nos mostram que a democracia tem uma sobrevida maior quando há um controle civil das Forças Armadas. Ainda que, por ora não se veja um movimento mais efetivo dos militares no sentido de gerar desgaste democrático, trata-se de uma mudança na correlação de forças que gera preocupação e, se não houver esse controle, certamente representa uma das fontes de risco para a democracia", diz à BBC News Brasil Rafael Cortez, cientista político da Tendências Consultoria Integrada.

"Os regimes políticos são mais instáveis quando não há esse controle. Gerir o monopólio da força não é trivial e não é por um acaso que boa parte dos regimes autoritários do mundo ou regimes com forte instabilidade tem um papel político dos militares bastante efetivo", acrescenta.

Para Christoph Harig, pesquisador da Universidade Helmut Schmidt, em Hamburgo, na Alemanha, e doutor em Estudos de Segurança na Universidade King's College, em Londres, onde estudou Brasil, "já é problemático ter vários militares da reserva no governo, mas convidar aqueles da ativa afeta diretamente as Forças Armadas como instituição e evidentemente ridiculariza seu suposto papel 'não partidário' na democracia brasileira".

Composição ministerial

Atualmente, os militares controlam oito dos 22 ministérios do governo de Jair Bolsonaro (36,36%). Com a recente nomeação do general Walter Souza Braga Netto para a Casa Civil, o Palácio do Planalto ficou totalmente 'militarizado', embora Jorge de Oliveira Francisco, da Secretaria-Geral da Presidência, não seja egresso das Forças Armadas — ele é major da Polícia Militar do Distrito Federal.

Os militares que estão no governo atual, além de Braga Netto, são: tenente-coronel da reserva Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), general da reserva Fernando Azevedo e Silva (Defesa), general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), almirante Bento Costa Lima (Minas e Energia), capitão da reserva Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União) e capitão da reserva Tarcísio Freitas (Infraestrutura). Braga Netto e Ramos ainda estão na ativa, embora o primeiro, pressionado, tenha decidido antecipar sua ida à reserva, marcada para o meio deste ano.

Já no caso da Venezuela, militares comandam dez dos 34 ministérios (29,4%), a cifra mais baixa dos últimos anos, segundo a ONG venezuelana Control Ciudadano. São eles: coronel Jorge Elieser Márquez (Despacho da Presidência e Continuação da Gestão do Governo), major-general Néstor Reverol (Relações Interiores, Justiça e Paz), general Vladimir Padrino López (Defesa), coronel Wilmar Castro Soteldo (Agricultura Produtiva e Terras), general Ildemaro Moisés Villarroel Arismendi (Habitação e Moradia), major-general Manuel Quevedo (Petróleo), major-general Carlos Leal Tellería (Alimentação), general de divisão Raúl Alfonso Paredes (Obras Públicas), Almirante Gilberto Pinto Blanco (Desenvolvimento de Mineração Ecológica) e major-general Gerardo Izquierdo Torres (Nova Fronteira de Paz).

O número de militares como ministros no governo de Jair Bolsonaro também é superior a três dos cinco presidentes da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) — cada um deles tinha na composição de seus ministérios sete nomes das Forças Armadas. Na mesma base de comparação, o governo de Bolsonaro empata com o de Costa e Silva, mas ainda está atrás de Castelo Branco, que tinha doze militares como ministros.

Além disso, o Palácio do Planalto conta com cargos de destaque ocupados por egressos das Forças Armadas, como o próprio presidente, que é capitão reformado do Exército, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, além do porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, também general da reserva.

No último dia 14 de fevereiro, Bolsonaro também nomeou o almirante Flávio Augusto Viana Rocha para comandar a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), que ganhou novas funções e agora está subordinada diretamente ao presidente. Oficial-general da ativa da Marinha, Rocha estava à frente do 1º Distrito Naval. A SAE estava ligada anteriormente à Secretaria-Geral da Presidência, uma das quatro pastas com status de ministério que funciona no Palácio do Planalto.

'Neutralidade'

Segundo Cortez, da Tendências Consultoria Integrada, o papel das Forças Armadas deveria ser "apolítico".

"A partir do momento em que os militares passam a exercer um papel mais político, sofrem desgaste e passam a ser percebidos como atores políticos, não só os da reserva como os da ativa. Isso gera um choque entre mundos: um que funciona como base na hierarquia e disciplina e outro com base em relações mais horizontais. Não há uma escala formal no universo da política. São dois modus operandi bastante complicados", diz.

"Quando os militares passam a fazer parte do governo, politiza-se a instituição e essa separação vai se tornando mais difícil, especialmente quando se combinam membros da reserva e da ativa. Essas relações vão se tornando mais delicadas e mais complexas. Boa parte da legitimidade das Forças Armadas é ter esse papel não político", acrescenta.

Christoph Harig, da Universidade Helmut Schmidt, concorda. Ele relembra o caso do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi ministro-chefe da Secretaria de Governo e deixou o cargo em junho do ano passado, seis meses depois de ser empossado, após se envolver em uma crise com o filho do presidente, Carlos Bolsonaro, e o escritor Olavo de Carvalho, guru ideológico de Bolsonaro.

Santos Cruz se tornou, então, crítico do governo.

"Não acho que isso (presença de militares no governo) enfraqueça diretamente o conceito de democracia, mas levanta questões sobre responsabilidade e relações civil-militares (especialmente porque alguns são da ativa que foram apenas 'emprestados' ao governo federal). Os militares insistem que a instituição não se envolve na política do governo e que quem integra o governo não representa os militares como instituição."

"Mas essas linhas divisórias estão cada vez mais embaçadas, especialmente se os militares puderem retornar à ativa posteriormente. Eles podem dizer que estão sempre agindo no melhor interesse do país, mas os militares estão cada vez mais sendo identificados como parte do governo Bolsonaro", acrescenta.

"Basta comparar com os EUA, onde o presidente Donald Trump agora critica Kelly (general da reserva John Kelly, ex-chefe de gabinete de Trump) por se manifestar depois de deixar o governo: se, hipoteticamente, alguém como Braga Netto brigasse com Bolsonaro (como Santos Cruz 'brigou'), ele seria capaz de retornar à suposta atividade apartidária como oficial militar?", questiona.

'Diversas fases'

Cortez lembra que a relação de Bolsonaro com os militares passou por diversas fases.

"Não há dúvida de que parte do processo de legitimização da candidatura de Bolsonaro passou por esse apoio dos militares", diz.

Mas, uma vez iniciado o mandato, houve atritos. Além de Santos Cruz, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, também foi alvo de críticas.

"Num primeiro momento, houve um ativismo do vice-presidente, general Hamilton Mourão, bastante relevante de equilibrar e olhar com cuidado determinadas ações presidenciais. E isso perdeu fôlego ao longo de 2019", diz Cortez.

"Havia uma expectativa que me parece que não condiz tanto com a realidade de que as Forças Armadas iriam controlar eventuais abusos do presidente Bolsonaro, que imprimiriam um pragmatismo na administração do governo, que também é muito marcada por certa guerra ideológica. Os militares seriam assim um grupo que exerceriam esse poder de veto desses excessos. Essa expectativa não se confirmou", acrescenta.

Para Cortez, mais recentemente, ocorreu "uma segunda etapa desse papel mais ativo dos militares de ocuparem pastas mais importantes".

"A ideia de se cercar de militares reforça o mandato Bolsonaro diante de um conjunto bem relevante de críticas do estilo bolsonarista. É um movimento estratégico", diz.

Outro risco da atuação política de militares dentro do governo, também apontado por especialistas, é a contaminação da caserna, cuja simpatia ao bolsonarismo é amplamente conhecida. Soldados poderiam sentir-se assim 'avalizados' em possíveis reivindicações pelo posicionamento ideológico de seus superiores.

Recentemente, motins ilegais de policiais militares se espalharam por todo o Brasil.

"Ao trazer as Forças Armadas para o debate político, isso gera desgaste. Preservar o papel institucional passa por esse distanciamento. Toda essa conjuntura vai gerar um dilema para a instituição", conclui Cortez.


BBC Brasil: Ditadura brasileira usou Itamaraty para apoiar repressão de Pinochet no Chile, diz autor de livro sobre golpe chileno

Sete anos de pesquisa em milhares de documentos oficiais e dezenas de entrevistas no Brasil, Chile e Estados Unidos desafiam uma série de noções históricas — à direita e à esquerda — sobre como o regime militar brasileiro se envolveu no golpe de Estado que retirou do governo chileno o socialista Salvador Allende e colocou em seu lugar uma junta militar comandada por Augusto Pinochet

Mariana Sanches, BBC News Brasil em Washington

Em O Brasil Contra a Democracia, lançado no país em 8/2 pela Companhia das Letras, o jornalista Roberto Simon revela o papel consistente do Brasil no desfecho de 11 de setembro de 1973, no Palácio de La Moneda, sede do poder federal chileno. Naquele dia, quando Allende apontou o fuzil AK-47, presente de Fidel Castro, contra o próprio queixo, o tiro abateu a democracia mais longeva da região naquele momento.

Mas as ações brasileiras começariam muitos anos antes do tiro, logo após a vitória nas urnas do socialista, em 1970, quando coube ao Itamaraty mapear os militares chilenos que poderiam levar a cabo uma ruptura democrática. O Brasil apoiou os conspiradores, isolou o Chile de Allende internacionalmente, propalou a ideia nunca comprovada de que havia no país campos de guerrilheiros, e, depois do golpe, ajudou na construção do aparato de repressão de Pinochet.

Ao agir dessa forma, de acordo com Simon, o regime anti-comunista do Brasil perseguia seus próprios interesses. Para o Conselho de Segurança Nacional, o Chile de Allende era a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional", potencialmente muito mais perigosa ao Brasil do que Cuba, por sua proximidade geográfica e pelo grande número de exilados brasileiros no país.

E nesse intento, um dos órgãos da burocracia brasileira teve especial importância: o Itamaraty. Simon desmonta a noção de que durante o regime ditatorial brasileiro, os diplomatas se encastelaram em assuntos de interesse permanente do país, distantes das atrocidades do governo corrente. Ao contrário, nas páginas de O Brasil Contra a Democracia o Itamaraty se revela peça fundamental da repressão do Estado brasileiro.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - De que maneira a ditadura militar brasileira atuou para destruir a democracia e consolidar um regime autoritário no Chile?

Roberto Simon - De várias formas. O Brasil apoiou atores que estavam conspirando contra a democracia no Chile, atuou para isolar diplomaticamente o Chile e identificar militares que poderiam se aventurar num golpe de Estado contra Allende. Apoiou grupos de extrema direita, como o neofascista Patria y Libertad e, no momento do golpe, o Brasil deu enorme apoio. Foi o primeiro país a reconhecer a junta militar liderada por Augusto Pinochet e ajudou na montagem do aparato de repressão do governo Pinochet. O país garantiu apoio político, diplomático e econômico ao governo Pinochet.

E ao mesmo tempo em que tomava ações diretas, o Brasil também desempenhava um papel de modelo para o Chile: o golpe de 1964 contra João Goulart era visto pelos algozes do governo Allende como um exemplo. Na visão dos que derrubaram o governo Allende, o Brasil tinha, com sucesso, derrotado um governo de esquerda populista para criar um regime autoritário que promovia um crescimento ordenado. Nos anos 1970, o Brasil era o país que mais crescia no mundo percentualmente e os chilenos olhavam aquilo como uma grande lição. A ideia de você ter um regime anti-comunista que colocasse ordem no país e que eliminasse o risco de uma revolução socialista era algo que eles buscavam.

BBC News Brasil - E do lado do Brasil, qual era o interesse do governo brasileiro em ter Pinochet no poder?

Simon - Quando Allende é eleito, em 1970, o Brasil toma um grande susto. O Brasil acreditava que o candidato de direita, (o conservador Jorge) Alessandri ganharia. É importante dizer que Allende era um revolucionário de fato, não era como a centro-esquerda europeia da época, não era um reformista. Ele tinha uma proposta de acabar com o capitalismo no Chile e impor uma economia socialista, mas o faria não por meio de uma revolução armada, mas pelas urnas, o caminho eleitoral que os chilenos chamavam de uma "revolução a empanadas e vinho tinto", em vez de fuzis e paredões.

Os documentos brasileiros da época começam a se referir ao Chile como a "nova cabeça de ponte do comunismo internacional." Parte da imprensa brasileira daquela época chama o país de "Nova Cuba na América Latina", só que muito mais preocupante para o Brasil porque o país não estava no Caribe, mas estava aqui do lado na América do Sul. E é bom lembrar que naquele momento do golpe havia milhares de exilados brasileiros vivendo em Santiago.

Então, dentro desse contexto a da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura, o Chile desponta como a maior ameaça regional ao Brasil. E é aí que os militares brasileiros se debruçam sobre várias maneiras de lidar com essa ameaça. Não só os militares como também o Itamaraty.

BBC News Brasil - O regime de Pinochet é considerado um dos mais violentos do mundo, enquanto que a ditadura brasileira é citada por alguns como supostamente (e comparativamente) mais branda na repressão. De que maneira as descobertas do livro desafiam essas noções ao entrelaçar a história dos dois regimes?

Simon - O aparato de repressão no Chile foi construído com enorme apoio do Brasil. Vários agentes da Dina, a polícia secreta do Pinochet, receberam treinamento do SNI (Serviço Nacional de Informações, o órgão de espionagem brasileiro) no Brasil. Um dos líderes da inteligência chilena no final dos anos 1970 era adido militar no Brasil, em 1974 — e mais tarde foi condenado pela Justiça chilena (por crimes da ditadura).

Então, é difícil separar onde começa a repressão brasileira e termina a repressão chilena até porque após o golpe os dois países começaram a compartilhar informações sobre exilados. O Brasil queria muito saber sobre o destino de exilados brasileiros que viviam no Chile, e isso ia desde pessoas que haviam sido banidas do Brasil, trocadas por diplomatas sequestrados no Brasil, guerrilheiros etc, até intelectuais de esquerda, professores, que não tinham nenhum vínculo com a luta armada mas a ditadura decidiu cassá-los e tentar rastreá-los.

O Brasil enviou agentes ao Estádio Nacional, o principal estádio do Chile que se converteu num grande campo de prisioneiros no imediato pós-golpe (estimados 40 mil prisioneiros passaram por lá). O Chile não tinha a capacidade de prender tanta gente, então eles usaram o estádio e foi um dos grandes antros da tortura e das mais bárbaras violações de direitos humanos no Chile. E o Brasil enviou uma missão de agentes da repressão para o estádio para ajudar no interrogatório de brasileiros.

Aí há duas narrativas: eu entrevistei um capitão da Força Aérea Brasileira que esteve dentro do Estádio Nacional e admite que viu cenas de violência muito fortes, mas disse que os brasileiros não torturaram. Mas ao falar com alguns dos cerca de 50 brasileiros que ficaram presos por várias semanas ou meses no Estádio Nacional, eles dizem que foram torturados por agentes da repressão do Brasil. E chilenos presos também dizem ter sofrido tortura de agentes brasileiros.

É um momento que, por exemplo, a palavra "pau de arara" entra nesse vernáculo da repressão chilena, uma palavra completamente vinda do português brasileiro, do nada ela aparece no Chile. Então você vê todas essas conexões acontecendo muito rapidamente no imediato pós-golpe.

BBC News Brasil - Qual foi o papel do Brasil na organização da Operação Condor?

Simon - De acordo os documentos da inteligência americana, o Brasil primeiro tenta controlar a Operação Condor e depois meio que pula fora preferindo uma colaboração bilateral entre agências de repressão que havia sido a colaboração que a ditadura sempre preferiu e sempre operou. A ditadura (brasileira) colaborou com os uruguaios, nos anos 1960, quando parte da cúpula do governo Jango foi para Montevidéu. Havia colaborado e já vinha colaborando com Argentina muito antes do golpe na Argentina, incluindo um sequestro de brasileiros em Buenos Aires, e era esse tipo de colaboração, um a um, que o governo militar realmente queria em vez de um grande consórcio regional na luta contra a oposição.

O Brasil se via como um país muito mais importante que o Chile, como uma potência regional e não estava disposto a seguir ordens ou a liderança do Pinochet, sem algum controle direto (das ações). Em um dado momento da Operação Condor, os chilenos e os argentinos, no pós-golpe na Argentina, decidem lançar uma missão para assassinar opositores sul-americanos na Europa, e o Brasil se opõe a isso, de acordo com os documentos da inteligência americana.

O Brasil não queria esse tipo de coisa, isso já no governo Geisel. Então, está claro que o Brasil espionava seus opositores na Europa e usava agentes de repressão dentro do Itamaraty para mapeá-los, mas assassinar brasileiros exilados na Europa era um rubicão que a ditadura não cruzaria.

O Brasil era um protagonista (na Operação Condor) porque era do ponto de vista geopolítico o país mais importante da região. Era um protagonista importante, mas não compartilhava os objetivos máximos que os argentinos os chilenos e os uruguaios tinham. E em março de 1974, seis meses depois do golpe no Chile, começa o governo Geisel no Brasil, com a proposta de iniciar uma lenta, gradual e segura transição rumo a um governo civil e de levar os os militares de volta à caserna, partir para essa fase de descompressão política. Então, na verdade, o Brasil estava numa trajetória quase oposta à Argentina e ao Chile nesses meados dos anos 1970.

BBC News Brasil - Um grande número de brasileiros se exilou no Chile em um dado período. Existe alguma evidência de que o Chile sob Salvador Allende tivesse se convertido em campo de treinamento para guerrilheiros socialistasinclusive brasileiros?

Simon - Santiago se tornou a capital do exílio brasileiro no final dos anos 1960, antes mesmo da vitória do Allende, em 1970. E muitos brasileiros entraram na vida política chilena, se a gente parar para pensar no establishment da nova república brasileira, há Fernando Henrique Cardoso, Marco Aurélio Garcia, José Serra, César Maia Paulo Renato Souza. Todos eles estiveram no Chile e ocuparam postos no PT, PSDB, PMDB, DEM, todos esses partidos tinham figuras que passaram pelo Chile.

Mas em relação à luta armada, o Chile nunca foi um lugar de luta armada. A revolução chilena era uma revolução, usando a linguagem da extrema esquerda da época, pra ser feita por meio do Estado burguês. Eles elegeriam uma grande coalizão de esquerda, de socialistas, comunistas e outros marxistas e, uma vez no poder, eles converteriam o Estado na grande máquina revolucionária.

Mas, de acordo com o que dizia Allende, isso seria feito respeitando as regras do jogo democrático. De fato, Allende nunca rompeu com isso, nunca tentou censurar a imprensa, nunca tentou fazer esse tipo de coisa de subverter a ordem democrática. E o que é principal, e os documentos da CIA dizem isso explicitamente, Allende entendia que era fundamental ter boas relações (com países) e conter essa campanha internacional contra o Chile para conseguir fazer as transformações internas.

Então, por exemplo, ele começou a controlar o número de asilos diplomáticos, asilos territoriais, que o Chile concedia a esquerdistas brasileiros. Se tivesse uma pessoa que tivesse cometido um crime de sangue ou que houvesse suspeita que fosse um infiltrado, não poderia ir para o Chile. Então, as aulas de guerrilha continuaram a ser em Cuba, alguns foram para a China, outros para a Coreia do Norte, mas não há absolutamente nenhuma evidência de que havia campos de guerrilheiros no Chile, que o Chile tivesse cursos de guerrilha.

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro já disse a ex-presidente chilena Michelle Bachelet que se o regime de Pinochet não tivesse matado gente como o pai dela (um militar morto na repressão), o Chile hoje seria uma Cuba. Faz sentido?

Simon - Essa apropriação histórica do Chile estava fora do horizonte quando o livro começou a ser escrito em 2013. Era impensável que um presidente do Brasil ou grandes figuras da política brasileira idolatrassem Pinochet ou falassem que a tortura não era um problema ou mesmo que o ministro da Economia se declarasse um Chicago boy (em referência ao grupo de economistas da Universidade de Chicago que adotaram medidas liberais na economia chilena durante a ditadura). Esse tipo de coisa era impensável, basta lembrar onde estávamos em 2013 (governo Dilma Rousseff, vítima de tortura da ditadura brasileira, com o desenvolvimentista Guido Mantega no controle da economia).

E também tem grandes contradições aí porque hoje se sabe que Pinochet tinha fortunas escondidas em offshores internacionais, uma investigação do Senado americano revelou. Ele era um grande corrupto. Sabemos que a polícia secreta dele estava envolvida diretamente com o narcotráfico, além das maiores barbáries e violações de direitos humanos. Foi o Pinochet que ordenou um atentado terrorista no centro de Washington. O governo (americano de Ronald) Reagan tinha péssimas relações com Pinochet.

Então, há uma mitologia do Chile importada ao Brasil e é completamente distorcida e descolada da realidade.

E também há hoje no Brasil outros aspectos que se conectam com o passado. O modo como o Ministério das Relações Exteriores naquela época reagia à campanha internacional de denunciar a tortura no país, que tem alguns traços semelhantes, guardadas as proporções, com o que a gente está vendo agora com a campanha internacional pela defesa do meio ambiente no Brasil, como o Brasil rapidamente pode se tornar um pária internacional.

E muito como a ditadura naquele momento, parece que o atual governo brasileiro entende que se trata de uma batalha de propaganda. Que bastava responder naquela época à Anistia Internacional, e agora ao GreenPeace. Ou mandar os embaixadores escreverem cartas para o (jornal francês) Le Monde, para o (diário americano) The New York Times, como também fazem hoje. Ou ainda a noção de que vai combater isso agora mostrando o verdadeiro exemplo de cidadãos brasileiros, algo muito parecido com a retórica da ditadura de que as denúncias de tortura eram coisa de brasileiros que odiavam seu próprio país.

A lição que a gente vê dos anos 1970 é que a ditadura nunca conseguiu baixar essa pressão internacional só com propaganda. Isso só parou quando, de fato, o governo parou de torturar seus opositores, já no final dos anos 1970, começo dos anos 1980. E do mesmo modo, a pressão internacional em relação ao meio ambiente no Brasil só vai parar quando o Brasil tiver uma política séria para o meio ambiente.

Então, eu vejo que há uma linha de continuidade nas mentes conspiratórias de governos brasileiros em achar que a representação do fato pode ser mais importante do que o fato em si.

BBC News Brasil - Seu livro mostra que o Itamaraty tinha atuação consistente no aparato de repressão e que não se tratava de um ato isolado de um ou outro diplomata mais simpático à ditadura. Isso desafia a imagem que se tinha de um Itamaraty técnico, não?

Simon - Geralmente, a história oficialista trata esse episódio no Chile como algo de figuras isoladas: o embaixador anticomunista, algumas pessoas da linha-dura do regime militar que por lá se aventuraram. E o livro mostra que na verdade foi o oposto. Havia uma política de Estado para o Chile, que envolvia instituições, agências especializadas dentro do Itamaraty, como o Centro de Informações do Exterior, o Ciex, e a Divisão Segurança Institucional do Itamaraty, a DSI. Aliás, todos os órgãos do governo brasileiro tinham uma DSI, sempre chefiadas por militares, e a do Itamaraty era a única comandada por um civil.

E essas entidades tinham por objetivo espionar brasileiros no exterior, conter campanhas de denúncias dos direitos humanos e, em última análise, se você olhar o que aconteceu com os brasileiros presos no Estádio Nacional, vários deles sob tortura, as decisões de não solicitar salvo conduto a essas pessoas, de não facilitar qualquer tipo de proteção consular, foram tomadas dentro do gabinete do ministro das Relações Exteriores. E todas as informações dessas agências de espionagem do Itamaraty alimentavam o SNI e as agências de inteligência das Forças Armadas. Então, o Itamaraty era parte essencial da repressão a brasileiros fora das fronteiras nacionais. E era essa a cadeia de comando, que ia do Palácio Planalto, Itamaraty, SNI e descia até os porões do regime, onde o Chile era visto como a grande fronteira na luta contra a subversão brasileira.

Houve diplomatas que se rebelaram contra isso, alguns chegaram a transportar listas de torturadores brasileiros em malas diplomáticas, mas o livro mostra que eles foram a exceção que confirma a regra desse colaboracionismo total da instituição. A noção de que o Itamaraty de alguma forma se descolou da ditadura para se ater aos interesses permanentes do Estado brasileiro é um mito, que serviu para proteger o Itamaraty. E é um mito que deve ser desfeito para o bem da política externa brasileira e da democracia. É preciso entender como dinâmicas internas têm um impacto decisivo na relação do Brasil com o mundo.

Capa do livro lançado por Roberto Simon contém o título e uma imagem de um garoto com uniforme e capacete, em preto e branco

BBC News Brasil - E isso também desbanca uma outra noção muito presente nas esquerdas brasileira e latino-americanas de que a ditadura brasileira seria um mero ferramental para os americanos exercerem seus interesses na região?

Simon - Na verdade, o Brasil se via como um dos grandes, ou talvez, o principal ator nesse jogo da Guerra Fria regional. Por isso, acabou intervindo em vários países do seu entorno.

O golpe contra Allende foi uma derrota fragorosa da esquerda chilena e da esquerda latino-americana. Naquele imediato pós-golpe, pessoas de esquerda tentaram encontrar explicações. Tem um texto do (autor colombiano) Gabriel García Márquez que diz que os Estados Unidos não precisavam mandar mais seus marines (à América Latina) porque tinha o Brasil para agir por eles. E a imprensa cubana naquela época falava de um eixo Brasília-Washington contra a esquerda latino-americana. Então começa a se criar aquela caricatura de gorilas do Brasil marionetes do Tio Sam.

E é uma visão empobrecedora porque ela afasta essa discussão sobre as motivações geopolíticas, econômicas e diplomáticas que levaram a ditadura brasileira a atuar no Chile. E revendo toda a documentação, uma das minhas conclusões é que de fato houve uma troca significativa de informações entre o Brasil e os EUA no sentido de se opor a Allende e eventualmente apoiar um golpe no Chile.

Há uma reunião importante, em 1971, entre os presidentes Médici e Nixon na qual Médici explicitamente fala ao colega americano que o Brasil estava em contato com militares chilenos e que Allende cairia. Mas depois de revisar milhares de documentos de três países diretamente envolvidos nessa história, eu não achei absolutamente nenhuma evidência de que houve alguma operação conjunta brasileira e americana para derrubar Allende. Havia uma vontade de trabalhar junto e de alinhar visões, mas não houve uma operação da CIA e do SNI para derrubá-lo. Claro que você tem um alinhamento dos dois regimes anticomunistas, o governo Nixon tinha uma enorme simpatia pelo governo Médici. O próprio Nixon dizia para os brasileiros que "somos os maiores aliados que o Brasil já teve na Casa Branca" e também dizia que "o Brasil é o nosso maior investimento na América Latina". Mas no nível operacional, de agentes dos dois países, no Chile, não há nenhuma evidência de que houve uma colaboração direta.


BBC Brasil: Enem vai expor nova camada de exclusão entre alunos mais pobres

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que realizará sua edição 2020 em 17 e 24 de janeiro, vai escancarar novas camadas de desigualdade na educação surgidas durante a pandemia do coronavírus e que prejudicam principalmente os jovens mais vulneráveis no terceiro ano do ensino médio

Paula Adamo Idoeta, BBC News Brasil em São Paulo

A avaliação é de José Francisco Soares, especialista em mensuração de desigualdade de ensino que entre 2014 e 2016 foi presidente do Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pela aplicação do Enem e das demais avaliações da educação no país.

É também professor emérito da UFMG e cocriador do Indicador de Desigualdades Educacionais e Aprendizagens (IDeA), índice que avalia, em cada município brasileiro, o nível de aprendizagem e suas desigualdades entre diferentes grupos sociais e raciais.

Na prática, essas novas camadas de desigualdade a que se refere Soares farão com que alunos com melhores condições de estudar - por exemplo, os que tiveram segurança alimentar, acesso à internet e às aulas - ou que já tivessem concluído o ensino médio terão mais chance de conseguir vagas em universidades via Enem.

Isso em detrimento dos alunos mais vulneráveis, que ficarão mais distantes do ensino superior e, como consequência, com menos chance de renda maior e de oportunidades melhores de empregos no futuro. Os mais prejudicados, na visão de Soares, tendem a ser os alunos de ensino médio que não conseguiram acompanhar as aulas.

Criaria-se, assim, uma nova exclusão, mesmo entre grupos que tradicionalmente já tinham dificuldades de acesso ao ensino superior.

Para Soares, a despeito dos novos entraves para a realização do Enem, depois de um ano de ensino remoto e em meio a um novo pico de casos de covid-19 no país, não faria sentido adiar o exame novamente - ele avalia que o Inep tem estrutura logística suficiente e que, ao adiar as provas, jogaria-se no aluno o ônus por seu possível mau desempenho, em vez de tratar o problema como algo estrutural.

"Prefiro dizer: há um problema novo (de desigualdade) que a gente precisa tratar", opina.

O tema, porém, tem despertado intensos debates nos últimos dias. Na sexta-feira (8/1), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação na Justiça pedindo o adiamento do exame, afirmando que "não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de covid-19".

Em entrevista à BBC News Brasil, Soares comentou também sobre outras manifestações crônicas da desigualdade de ensino e de estratégias para combatê-las - usando, inclusive, a tecnologia, que na pandemia ganhou espaço inédito na educação.

Francisco Soares
Francisco Soares foi presidente do Inep (órgão do MEC) e ajudou a criar novo indicador de desigualdade na educação

Veja a seguir trechos da conversa, divididos por tópicos:

Enem: logística e desigualdades

Questionado pela reportagem se este será o Enem mais desafiador dos cerca de 20 anos de história do exame, Soares diz que a equipe técnica do Inep está preparada para as questões logísticas da prova mesmo nas condições impostas pela pandemia.

"Costumo falar que se o Brasil entrasse numa guerra, o coordenador logístico teria que ser alguém dessa equipe (do Inep), que há muitos anos vem conseguindo fazer o exame no país: a prova chega, os fiscais chegam, é muito impressionante. O Brasil tem essa capacidade logística também nas vacinas, nas eleições. Esse é um lado que dá um certo conforto", diz.

"Neste ano tem o desafio do distanciamento social, mas o número (de 5,7 milhões de inscritos) é muito menor. Não estamos batendo nos 9 milhões. Esse grupo experiente vai abrir os espaços necessários (para a realização da prova)."

Do ponto de vista de ensino durante a pandemia, porém, a questão é mais grave, diz Soares.

Apesar de acreditar que a desigualdade de acesso ao ensino superior é bastante amenizada pela Lei das Cotas - que reserva 50% das vagas de universidades e institutos federais a alunos de escolas públicas -, o Enem deste ano vai escancarar problemas que se aprofundaram.

"A vantagem (dos jovens) que estudam em escolas privadas e que têm na família um apoio maior vai se compondo de tal maneira que, quando chega a hora do Enem, é quase um jogo de carta marcada. Ele escancara as desigualdades. Só que neste ano isso ficou pior, porque criamos uma nova desigualdade, entre os alunos que estão terminando o ensino médio (e não conseguiram acompanhar as aulas) e os que já tinham terminado. Uma nova desigualdade entre os mais pobres. Criamos uma exclusão nova", explica.

"Não estou dizendo que a gente deve adiar o Enem, que não deve ter Enem. O que estou dizendo é que a gente precisa tratar disso de forma concreta. (...) Uma hipótese provável é que vamos ter menos estudantes de ensino médio das escolas públicas sendo admitidos (em universidades públicas, em favor de alunos que já haviam concluído o ensino médio antes da pandemia). Não é fácil, porque é uma distinção entre dois grupos que já eram excluídos. Por isso falo que estamos inventando uma nova desigualdade."

Uma possível solução, embora de implementação difícil, seria reservar vagas nas universidades públicas para alunos que estavam no terceiro ano, em proporção semelhante ao que cada universidade aprovou no ano anterior, diz ele.

Debate sobre adiamento do Enem

Embora as soluções não sejam fáceis, Soares acha mais eficiente focar os esforços nelas do que em discutir um eventual novo adiamento do Enem - que tem sido defendido por parte dos estudantes, analistas de educação e grupos políticos, para dar mais tempo de preparo aos jovens e tentar sair do pico da pandemia.

"Acho que (adiar) não teria nenhum efeito, basicamente. Temos um processo de seleção, infelizmente, que vai separar (jovens admitidos ou não no ensino superior). Prefiro perceber que houve uma nova desigualdade e não deixar esses alunos padecerem. Mas acho que o sistema tem que continuar", afirma.

"O Brasil tem (o hábito) de transferir culpa. Então, quando adio o Enem, estou também criando uma fantástica justificativa: 'você não passou, o problema é seu'. Prefiro dizer: há um problema novo que a gente precisa tratar. Não vai ser com algo episódico (adiamento) que vamos resolver."

Evasão escolar, a 'batalha' principal de 2021

Pesquisas de opinião recentes com pais de alunos da rede pública de ensino sugerem que um alto índice deles - até um terço - teme que os filhos abandonem a escola por conta da pandemia.

Para Soares, evitar a evasão escolar será o maior desafio da educação neste ano.

"Com todas as críticas que a gente pode ter, o país vinha melhorando ao longo desses anos. A primeira melhoria foi levar o aluno para a escola. (...) Onde começa o problema? Aos 13 anos. A criança entra na adolescência e começa a desistir (da escola). É isso que a pandemia vai acirrar", afirma.

Especialistas apontam que, ao sair da escola e entrar precocemente no mercado de trabalho - particularmente em um momento de crise econômica -, esse jovem iniciará uma trajetória de piores perspectivas profissionais, menores salários e menor chance de mobilidade social.

"Temos que cuidar para a criança não sair da escola. Esse é o esforço de todo mundo - da igreja, da cidadania, dos partidos, de quem for. Essa é a batalha deste ano. Com acolhimento, preciso criar um ambiente para trazer o aluno para a escola. Tem também os professores, que passaram um ano muito difícil. E eles precisam ganhar prioridade na vacinação. A gente precisava sinalizar que isso é importante. Falta no Brasil essa vontade de colocar a criança no centro (das políticas públicas)."

A evasão e a repetência escolares são também uma grande fonte de desperdício de recursos, uma vez que mantêm o sistema educacional mais inchado para atender alunos que demoram a completar - ou sequer completam - o ciclo de anos de estudo.

"Quando a criança sai ou toma bomba, eu tenho um sistema maior do que preciso. Então a criança precisa ficar na escola."

Desigualdades educacionais crônicas

O mais recente Índice Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal mensuração da qualidade do ensino no país e divulgado pelo Ministério da Educação em setembro, apontou avanços na educação geral do Brasil, embora poucos Estados tenham alcançado as metas previstas.

Mesmo esses avanços devem ser lidos com cautela, explica Soares, porque mascaram desigualdades educacionais invisíveis aos dados.

"Eu colocaria a 'melhora no Ideb' entre aspas. Porque o Ideb (mensura o desempenho escolar) das crianças que estão na escola. As que saíram, já era. É algo tipicamente brasileiro", diz o pesquisador.

"Imagina: você é brasileiro e saiu da escola por um motivo qualquer. Você é quem mais precisa da escola. Mas você não impacta o indicador. Isso é de um cinismo estrutural. (...) Além disso, temos uma expectativa muito baixa" em relação à educação pública, argumenta.

Estratégias para avançar: de tecnologia a ensino integral

"A pandemia trouxe problemas novos para os quais não temos solução. Como fazer a escola funcionar em uma situação como esta? Mas tem uma coisa importante que a pandemia está nos ensinando a amadurecer à força: está nos dizendo que, para vencer a desigualdade, preciso da tecnologia", defende Soares.

"Na saúde, estamos perto de ter um prontuário único (para cada paciente), algo que traz muitos problemas em potencial, mas também muita facilidade: quando você for atendida, o médico vai conhecer toda a sua história. Mas na educação a gente não tem esses dados. Com a tecnologia, talvez a gente tenha uma ferramenta (para acompanhar todo o desenvolvimento escolar), não preciso esperar até o aluno estar no cursinho (para diagnosticar problemas)."

Um avanço que tem sido comemorado por Soares e outros especialistas em educação é a aprovação recente, pelo Congresso, do Fundeb, fundo de dinheiro público para a educação básica que passa a ser permanente e obrigatoriamente ganhará mais recursos por parte do governo federal.

"Isso é uma coisa boa, mas temos que usar bem: oferecendo escola de tempo integral, para professor e aluno. (...) E uma quantidade enorme de jovens gostaria de, durante o ensino médio, ter alguma certificação (técnica). Uma vez, uma pessoa que veio instalar uma antena na minha casa me disse: 'terminei o ensino médio e não sabia nada. Precisei pagar (para se capacitar e conseguir seu emprego)'. De novo, olha como o país é: não deu nada a ele e, para ele ter emprego, teve de pagar."

"Então essa é uma primeira mudança razoável: junto com a escola, ter uma certificação. E colocar o ensino superior no horizonte (dos jovens de escolas públicas). Tem muita iniciativa interessante. As escolas de tempo integral de Pernambuco, por exemplo, têm uma disciplina de projeto de vida. Não é dizer ao aluno: 'sonhe'. É dizer 'você está aqui, pense no que vai ser feito (para crescer)'".

Mas o ponto de partida é de fato enxergar cada brasileiro como merecedor de uma educação de alta qualidade e de acesso pleno à cidadania, opina Soares.

"O Brasil é um país que tem uma porta de entrada para a cidadania. Nós precisamos vencer isso. É uma decisão que precisa estar na nossa cabeça: todo brasileiro tem que ser brasileiro. O sonho brasileiro é ser o opressor. 'Eu quero estar no seu lugar'. (Mas) o projeto que vai nos mover é dizer: 'eu vou puxar todo mundo para cima'."


BBC Brasil: 'Tribalismo masculino' - a seita violenta ligada ao 'viking' em invasão ao Congresso dos EUA

Um homem branco, musculoso e tatuado com o torso nu, a cabeça envolta por chifres e pelos de bisão, o rosto pintado com as cores da bandeira dos EUA e as pernas cobertas por tecido leve e da cor da pele se tornou o ícone da invasão à sede do Congresso dos Estados Unidos, na quarta-feira (06/01). Ele não era o único vestido assim

Ricardo Senra, BBC Brasil em Londres

Mas o que pareceu para muitos uma estratégia isolada para chamar atenção de fotógrafos também pode guardar as ideias de um movimento com objetivos contraditórios, radicais e violentos — da ode ao confronto físico e à guerra ao ódio contra mulheres, gays e suas conquistas por direitos iguais na sociedade.

Quem explica é a antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath, no Reino Unido, que pesquisa a masculinidade e dedicou parte de suas leituras recentes ao chamado "tribalismo masculino", ou "masculinismo".

"O princípio dos grupos tribalistas masculinos, ou masculinistas, é primeiro um ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente. Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução", diz.

Para os adeptos, a vestimenta "tribal" funcionaria como uma espécie de elogio aos primórdios da humanidade, antes de consensos globais em torno de paz, igualdade, direitos humanos e conquistas de mulheres e grupos LGBTQs.

As primeiras referências acadêmicas ao grupo surgiram há décadas, mas se tornaram mais frequentes nos anos 2000, graças a debates em fóruns anônimos e na deep web.

Desde 2016, ano de eleição de Donald Trump, essas ideias vêm ganhando força em meio a uma complexa teia de novos grupos impulsionados por negacionistas da ciência e teorias de conspiração, como a chamada alt-right, ou "direita alternativa", e, mais recentemente, o QAnon (veja mais abaixo).

Caça e guerra

Além do exemplo que ficou famoso, outros manifestantes trumpistas desfilaram visuais "tribalistas".

Um deles foi fotografado vestindo algo semelhante a uma pele de urso sob um retrato de Charles Sumner, importante senador que defendeu a abolição da escravidão no século 19. Na mão esquerda, o militante segurava um cajado. Na direita, um escudo policial.

"Os masculinistas não acham que a mulher tenha um papel na sociedade, eles são mais extremos. Os cristãos nos EUA veem um papel nas mulheres de cuidar da família. Os masculinistas as odeiam."

Como acontece em outros grupos sociais, o termo engloba um universo heterogêneo de adeptos. Em comum a todos os grupos, conta a professora, há "um elogio ao tipo de homem viril que se acredita ter sido perdido nas últimas décadas".

"Eles reivindicam uma virilidade da caça, da guerra. Alguns são mais religiosos, outros não são. Há grupos que se identificam com romanos, com espartanos. Outros, por exemplo, reivindicam uma estética viking, ou se identificam com grupos indígenas norte-americanos, como no caso do sujeito de Washington, que estava com uma roupa de bisão norte-americano", explica Pinheiro-Machado.

"Roupas de couro, corpo tatuado, isso perpassa a todos", diz.

"É um universo que remete à conquista, à invasão, a capturar mulheres para estuprar, botar em cativeiro para reprodução, em um cenário totalmente distópico em que os homens precisam estar entre homens para resgatar sua virilidade perdida."

Perigo

Entre os principais riscos associados ao grupo, a professora destaca como "mais evidente, preocupante e imediato a violência contra as mulheres".

"O feminicídio é inspirado na ideia de posse de mulheres, que é um fenômeno que sempre existiu, mas que é estimulado por um contexto político", diz.

"Outra consequência imediata é a perseguição de pessoas que estudam gênero e sexualidade, como a professora Lola (Aronovich, da Universidade Federal de Fortaleza) e a Debora Diniz (das universidades de Brasilia e Brown, nos EUA)."

Ambas são vítimas de constantes ataques e ameaças online vindas de grupos radicais identificados com masculinistas brasileiros, alguns investigados pela polícia.

Muitos vídeos associados a tribalistas circulam há anos também em português — algo que se tornou mais frequente, segundo a professora, desde a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.

Em um dos filmes, um homem vestido de gladiador surge sobre um cavalo dizendo que o Brasil precisa se livrar de "ameaças comunistas e feministas".

Em outro, um paulista com roupas que imitam gregos de Esparta pede que homens lutem por sua virilidade.

Em fóruns abertos, grupos de brasileiros vão além e chegam a defender abertamente estupros e assassinatos de mulheres.

QAnon

Após ter fotos estampadas em jornais no mundo inteiro, o homem que viralizou após a invasão de ao congresso dos EUA em meio aos debates para a certificação da eleição de Joe Biden foi identificado em redes sociais.

"Para onde vamos, vamos todos", frequentemente abreviado como "WWG1WGA!" (em inglês) é um dos slogans mais populares do QAnon
Legenda da foto,"Para onde vamos, vamos todos", frequentemente abreviado como "WWG1WGA!" (em inglês) é um dos slogans mais populares do QAnon

Conhecido como "Q Shaman", Jake Angeli, de 32 anos, vive no Arizona e é um conhecido influencer (influenciador, em inglês) da extrema-direita americana.

Vestindo sempre referências a povos tradicionais indígenas dos EUA ou a vikings, ele já foi fotografado militando em protestos a favor de Donald Trump — ou fazendo oposição em atos organizados por grupos como o Black Lives Matter.

Nas redes, ele se tornou um dos porta-vozes do movimento QAnon, uma teoria conspiratória ampla e completamente infundada que diz que o presidente Trump estaria travando uma guerra secreta contra pedófilos e adoradores de Satanás do alto escalão do governo, do mundo empresarial e da imprensa.

Seus apoiadores vaticinam que esta luta levará a um dia de ajuste de contas, em que pessoas proeminentes, como a ex-candidata presidencial Hillary Clinton, serão presas e executadas.

Adeptos do movimento impulsionam hashtags e coordenam ataques aos que consideram inimigos — políticos, celebridades e jornalistas que eles acreditam, sem qualquer prova, estar encobrindo pedófilos.

Não são apenas mensagens ameaçadoras online: vários apoiadores do movimento foram presos após fazerem ameaças ou tomarem medidas concretas na "vida real".

Em um caso notável em 2018, um homem fortemente armado bloqueou uma ponte sobre a Represa Hoover. Mais tarde, Matthew Wright se declarou culpado de uma acusação de terrorismo.

Anti-gays que fazem sexo com homens

página de dicionario em ingles com o texto: "Uma pessoa, de qualquer gênero, que ama homens, ou que é atraída sexualmente por homem"

O principal ícone dos tribalistas masculinos ou masculinistas é o americano Jack Donovan, autor de livros e vídeos reproduzidos milhões de vezes online.

Segundo Pinheiro-Machado, Donovan e seus seguidores ilustram o eixo mais extremo dos masculinistas.

"Não se consideram gays, mas mantém relações sexuais com homens. isso é um aspecto paradigmático e extremo dos masculinistas", diz.

"Há uma devoção e um amor à estética masculina", continua a professora. "Mas a interpretação de uma identidade gay ou homoerótica seria um sinal de fraqueza. Então, é um ato sexual bruto em devoção a esse corpo que é a própria imagem. Mas sem associar isso ao feminino ou a uma identidade LGBTQ."

Em seu livro Androfilia (2006), Donovan faz ataques à cultura gay e a associa a "inimigos da masculinidade". Ao mesmo tempo, ele classifica seu desejo por homens como uma "defesa a um ideal masculino".

As teses do autor são descritas por críticos como preconceituosas e ameaçadoras, especialmente para homens gays que não têm perfis hipermasculinos — ou são descritos como "afeminados".

Segundo Matthew Lyons, um dos autores do livro Key Thinkers of the Radical Right (Pensadores-chave da Direita Radical, em tradução livre), publicado em 2019 pela editora da Universidade de Oxford, o tribalismo masculino de Donovan também parte do princípio de que gênero seria algo "natural e imutável" — em oposição direta à existência de pessoas transexuais.


BBC Brasil: Autogolpe de Trump fracassou por não ter apoio militar, diz Steven Levitsky

Um acontecimento que não se via nos Estados Unidos desde o século 19

Patricia Sulbarán Lovera, BBC News Mundo

Um grupo de apoiadores do presidente americano, Donald Trump, invadiu e depredou a sede do Congresso dos EUA, em Washington, após ultrapassarem as barreiras montadas por agentes de segurança, em meio a confrontos isolados.

O ato violento no Capitólio na quarta-feira (6/1) ocorreu logo depois que Trump discursou para uma multidão em frente à Casa Branca, a quase 3 km dali, repetindo acusações sem prova e rejeitadas por diversos juízes do país de que houve fraude na eleição em que perdeu para Joe Biden.

O que se viu no Capitólio foram cenas de caos, com congressistas deitados no chão, sendo evacuados e colocando máscaras antigás.

Para o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, a invasão do Congresso foi uma resposta a "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump.

Levitsky é coautor do livro Como as Democracias Morrem, de 2018, no qual expõe "os sinais alarmantes que põem em risco a democracia liberal dos EUA".

Estudioso também dos processos democráticos e presidenciais da América Latina, Levitsky descreveu a invasão do Capitólio por apoiadores de Trump como uma "tentativa de autogolpe", em entrevista à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares" e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Segundo sua análise, "a democracia sobreviverá a este dia", mas o que se coloca para o futuro do país é um período de crise bastante incerto.

BBC - Que interpretação o senhor dá para a insurgência de apoiadores de Trump no Capitólio dos Estados Unidos?

Steven Levistky - Pode-se presumir que isso iria acontecer. Donald Trump e muitos, muitos líderes republicanos têm incitado, têm mentido para sua base que os democratas estão arruinando o país e subvertendo a democracia. Eles vêm dizendo isso há cinco anos.

E então, depois de perder a eleição, não só Trump mas também líderes do Partido Republicano estavam lá no Congresso, repetindo a mentira e desacreditando a legitimidade da democracia e das instituições. Depois de anos mobilizando sua base com uma linguagem que incluía termos como socialismo ou traição, pode realmente surpreender que isso esteja acontecendo depois que você perdeu a eleição?

Na história da América Latina, quando os líderes incitam seus seguidores em um ambiente altamente polarizado, as pessoas agem. Palavras têm significado, elas têm poder.

O que me surpreende nisso é como a polícia estava mal preparada.

BBC - Como o senhor interpreta as reações de alguns membros do Partido Republicano e do próprio presidente Trump, que em um tuíte nesta quarta-feira (6/1) pediu a seus apoiadores que não fossem violentos?

Levistky - O presidente já foi radicalmente violento antes e, se não queria que isso acontecesse, precisava agir mais rápido e se mobilizar para evitar. Ele provavelmente não deveria ter sugerido que marchassem até o Congresso. Trump os enviou para lá, ele os incitou a se mobilizarem para o Congresso. O fato de que os líderes republicanos agora estão rompendo com Trump é hipócrita, depois de o apoiarem por anos, mas é importante e positivo. Parece-me positivo ter visto discursos como o de Mitch McConnell (líder da maioria do Partido Republicano no Senado).

BBC - Estamos diante de uma revolução, de um golpe de Estado, de uma insurreição?

Levitsky - É uma variante do que na América Latina chamaríamos de autogolpe. É um presidente mobilizando seus apoiadores para permanecer no poder ilegalmente. Será um autogolpe fracassado, mas é uma insurreição do poder para tentar subverter os resultados da eleição e permanecer no poder ilegalmente. Eu diria que foi uma tentativa de autogolpe.

BBC - Na América Latina, esse tipo de situações que o senhor descreve são prejudiciais à democracia. O senhor diria que este é um momento perigoso na história americana? Diria que a democracia permanecerá forte, e o presidente eleito Joe Biden será empossado em 20 de janeiro?

Levistky -Tenho esperado com terror por este dia na democracia americana nos últimos quatro anos. Todos os dias durante quatro anos. Nossa democracia está em grave crise e este é o ponto culminante dela. Mas não é que tenha saído do nada. Nossa democracia está em crise há vários anos e acho que vai continuar assim.

Este autogolpe vai fracassar. Aqueles que protestarem em algum momento serão retirados do Capitólio e em algum momento a eleição de Biden também será certificada, e Trump será removido da Presidência. Agora, não está claro como isso vai acontecer. Mas Trump vai fracassar, e a democracia americana sobreviverá aos eventos de hoje.

Mas isso não significa que está tudo bem. São acontecimentos aterrorizantes e prejudiciais como na América Latina. A grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares. Um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem muito poucas chances de sucesso.

BBC - O senhor fala com segurança que a democracia sobreviverá e que esta será uma tentativa fracassada.

Levistky - Hoje. Acredito que, no médio prazo, estamos nos aproximando de um período de crise. Eu digo que esta tentativa de hoje irá falhar, porque a correlação de forças não existe para apoiar Trump. Não tem apoio militar. A democracia sobreviverá quando acordarmos amanhã, mas não posso garantir o que acontecerá daqui a cinco anos. A democracia americana é um desastre.

BBC - O presidente eleito Joe Biden mencionou que a democracia estava "sob um ataque sem precedentes" com os acontecimentos desta quarta-feira. Esta situação é extraordinária no contexto da história americana moderna?

Levistky - É extraordinário e sem precedentes no contexto da história americana moderna. No século 19, o país passou por uma era de violência, especificamente nos anos anteriores à Guerra Civil, e também vivenciou violência, especificamente em nível estadual, durante anos após a Guerra Civil. Portanto, em meados do século 19, os EUA experimentaram crises ainda mais graves do que as que vemos hoje. Mas não sofremos algo assim no século 20.

Isso não tem precedentes na história democrática moderna.

BBC - E quais são os mecanismos dos poderes constituídos para lidar com essa crise? Na Constituição ou nas legislaturas?

Levistky - Formalmente, existem dois mecanismos, mas nenhum deles foi usado até agora. Um é o impeachment ou o impeachment que leva à remoção. Nos EUA, ocorreram julgamentos políticos de presidentes, mas não resultaram em sua destituição do poder. É um processo bastante longo, a menos que o façamos à maneira peruana, de retirar o presidente durante a noite. É improvável que isso aconteça.

E há outro mecanismo, a emenda nº 25 à Constituição, que é mais recente porque foi aprovada em meados do século 20, e também não foi usado até agora.

Nenhum desses mecanismos foi adotado.

A América Latina tem muito mais experiência em provocar a destituição de presidentes que abusam do poder do que os EUA. A grande maioria das democracias presidencialistas está na América, mas nunca usamos o mecanismo americano para remover um presidente nos termos constitucionais.

Acho que a melhor saída seria Trump renunciar, seria que aqueles de seu próprio partido pressionassem Trump a renunciar. Ele não vai, mas deveria.

BBC - Mas ele está dizendo que não vai. Então, se ele nunca o fizer, se ele nunca ceder, o que acontece?

Levitsky - Durante o mês de novembro, esperei que sua filha e seu genro o fizessem entender, e há reportagens que indicam que ele sabe que perdeu e que deve ir embora. Uma característica de Trump é que ele não antecipa as consequências do que diz e faz. Então, eu não acho que ele previu o que acabou acontecendo hoje no Capitólio, embora ele o tenha instigado.

Acho que Trump sabe que tem que sair e acho que o cenário mais provável, apesar deste terrível golpe fracassado, é que os americanos virem a página e deixem Trump passar suas últimas duas semanas no cargo. Tudo é possível neste momento, mas parece improvável que ele tente se recusar a sair em 20 de janeiro.

Não teremos mais uma transição pacífica de poder, mas será, mais ou menos, uma transferência de poder habitual.

BBC - O senhor disse que a invasão do Capitólio é o ponto culminante de cinco anos de um intenso jogo político entre o presidente Trump e o Partido Republicano. O que o senhor acha que acontecerá no contexto de uma nova Presidência democrata de Joe Biden?

Levitsky - Eu acho que é muito incerto. Decerto não há tantas pessoas nas ruas; obviamente estão fazendo muito barulho, mas em comparação com a marcha das mulheres depois que Trump foi eleito, esta é uma festa no jardim. Não é que as massas estejam tomando as ruas, isso não é uma revolução. Esta não é a Argentina em outubro de 1945.

Então, o que eu acho, dependendo do que Trump faz, é que em algum momento ele terá que desistir. E se ele desistir e voltar para a Flórida, acho que isso vai ficar mais fraco. Ainda haverá uma direita radicalizada e mobilizada, mas não acho que Biden esteja enfrentando uma crise de governança.

Na verdade, acho que talvez isso o fortaleça. Porque agora os republicanos estão à beira de uma divisão severa. Portanto, acho que há várias coisas que podem acontecer: Uma, que o Partido Republicano finalmente se reunirá e derrubará Trump, de modo que ele acabe isolado, junto com seus aliados como (Rudy) Giuliani e as pessoas a quem perdoou. E que Mitch McConnell, Marco Rubio e até Ted Cruz acabam abandonando Trump.

Ou a outra coisa que pode acontecer é que o Partido Republicano se divida, quebre, como parecia que ia acontecer nesta quarta-feira. Não estou falando de uma divisão formal, mas de uma composição na qual há uma ala do partido que ainda está fortemente alinhada com Trump e outra ala que está tentando ir além de Trump. E se os republicanos estão divididos, isso vai fortalecer Biden.


BBC Brasil: Emendas, cargos e ministérios - As promessas dos candidatos à presidência da Câmara

O Ministério do Desenvolvimento Regional e a Secretaria de Governo da Presidência; R$ 1,9 bilhão em recursos públicos para obras e equipamentos; a volta do imposto sindical, e até a recriação do antigo Ministério do Esporte

André Shalders, BBC News Brasil

Estas são algumas das promessas e benesses que estão sendo negociadas na disputa política mais importante de 2021: a eleição para as presidências da Câmara e do Senado, marcadas para o começo de fevereiro.

Para o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), é extremamente importante conseguir colocar aliados no comando das duas Casas do Legislativo. São os presidentes da Câmara e do Senado que pautam (ou não) os projetos de lei, as medidas provisórias e as propostas de emenda à Constituição (PECs) de interesse do Palácio do Planalto.

Leia também:

Além disso, o presidente da Câmara é o responsável por aceitar ou engavetar os pedidos de impeachment contra o presidente da República.

Tanto na Câmara quanto no Senado a votação é individual e secreta. Só os próprios parlamentares sabem em quem eles votaram.

Até agora, a disputa mais concorrida é a da presidência da Câmara. São dois os candidatos principais: Arthur Lira (PP-AL) é o líder do bloco do "Centrão" e concorre com o apoio do Palácio do Planalto; já Baleia Rossi (MDB-SP), líder do MDB, disputa como representante do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

No Senado, a situação é bem mais complexa: são vários os pré-candidatos, e nem o governo e nem a oposição fecharam apoio a um ou outro nome. Se apresentaram os senadores Eduardo Braga (MDB-AM); Fernando Bezerra (MDB-PE); Eduardo Gomes (MDB-TO); Simone Tebet (MDB-MS) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), entre outros.

Por Lira, Planalto negocia ministérios e verbas

Como candidato do Palácio do Planalto, Arthur Lira conta com uma vantagem significativa sobre Baleia Rossi: o acesso a verbas, cargos comissionados e até ministérios que são manejados pelo Poder Executivo, e que podem ser liberados para deputados em troca de apoio.

No começo de 2021, o Planalto planeja fazer uma pequena reforma ministerial — mudar a composição e os ocupantes de algumas das pastas, de forma a abrir espaço para aliados.

Em meados de dezembro, por exemplo, o presidente do Republicanos (antigo PRB), deputado Marcos Pereira (PRB-SP), anunciou apoio a Arthur Lira — mesmo sendo o atual vice-presidente da Câmara, ao lado de Rodrigo Maia. A mudança de lado de Pereira estaria condicionada a um ministério para o PRB, segundo alguns deputados. O presidente do Republicanos nega.

Também em meados de dezembro, o Planalto chegou a acenar ao PSL, partido pelo qual Bolsonaro se elegeu presidente em 2018, com um ministério — no caso, com a recriação do antigo Ministério do Esporte.

No entanto, a conversa não foi adiante. O presidente do partido, o deputado Luciano Bivar (PE), acabou fechando apoio a Baleia Rossi.

Procurado pela BBC News Brasil, Bivar preferiu não comentar. O partido reforçou, porém, que não aceitará qualquer cargo ou ministério no governo Bolsonaro.

Outra arma no arsenal do governo são as verbas públicas cuja destinação pode ser decidida pelos deputados — é um mecanismo diferente daquele das emendas parlamentares, cuja execução atualmente é obrigatória.

Geralmente, as verbas são usadas para obras de infraestrutura urbana ou para a compra de equipamentos nas localidades onde os políticos têm votos.

Em meados de dezembro, por exemplo, o governo patrocinou a aprovação de um Projeto de Lei do Congresso (o PLN nº 29 de 2020) liberando R$ 1,9 bilhão para ações de quatro ministérios: Agricultura e Pecuária, Desenvolvimento Regional, Educação e Turismo. Segundo deputados de direita e de esquerda ouvidos pela BBC News Brasil, o objetivo da liberação de recursos era conquistar apoios para a candidatura de Arthur Lira.

Já as emendas parlamentares "tradicionais", inscritas no Orçamento da União, ainda não foram usadas para a barganha política — pelo menos, é o que mostram os dados disponíveis até o dia 29 de dezembro de 2020.

Até aquela data, o governo tinha empenhado, em dezembro, R$ 191,2 milhões para deputados dos partidos que apoiam Arthur Lira (214 deputados). Ou seja, cerca de R$ 893 mil para cada representante.

Enquanto isso, os integrantes das siglas que apoiam Baleia Rossi viram a liberação de R$ 344,3 milhões (para 281 deputados). Ou seja, uma média de R$ 1,2 milhão para as emendas de cada um deles.

Os dados são do sistema Siga Brasil, desenvolvido pelo Senado Federal, e foram sistematizados pela reportagem da BBC News Brasil.

Enquanto isso, o próprio Arthur Lira faz campanha junto aos deputados prometendo distribuir nacos de poder — inclusive na definição da pauta de votações. Se eleito, o alagoano promete fazer reuniões com os líderes partidários para definir o que a Câmara votará na semana seguinte. Estas reuniões já foram comuns na Câmara, no passado, mas foram abandonadas na gestão de Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Baleia Rossi: cargos na mesa e até abertura de CPIs

Sem acesso à máquina do Executivo, o adversário de Arthur Lira, Baleia Rossi (MDB-SP), precisa trabalhar com a expectativa de poder dentro da própria Casa — como a distribuição de cargos na Mesa Diretora e o compromisso de pautar certos temas caros aos partidos que o apoiam.

Na última semana de 2020, Rossi promoveu uma reunião (virtual) com os líderes dos partidos de oposição. Durante o encontro, ele prometeu às siglas de esquerda tomar atitudes para viabilizar o trabalho dos oposicionistas: instalar Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) quando necessário; colocar em votação os projetos de decreto legislativo (PDLs) que são usados para barrar iniciativas do Poder Executivo chefiado por Bolsonaro; e assegurar espaço para estes partidos na Mesa Diretora.

Além disso, Rossi também acenou aos partidos de oposição com a possibilidade de pautar projetos importantes para estes grupos. O PT, por exemplo, quer que a Câmara discuta a forma de financiamento das centrais sindicais — inclusive com a possível volta do imposto sindical. O partido deve decidir se apoiará Baleia Rossi em 4 de janeiro de 2021.

Há um aspecto no qual Lira se sobressai diante de Baleia Rossi: até o momento, o paulista possui mais partidos em seu bloco de apoio que o rival alagoano. Com isso, poderá indicar mais cargos na Mesa Diretora da Câmara — e estes cargos, por sua vez, podem ser usados para assegurar o apoio dos partidos.

No dia 1º de fevereiro, apenas o cargo de presidente da Câmara será eleito pelo voto: os demais cargos da Mesa serão indicados pelos blocos, conforme o tamanho de cada um. Se concretizar o apoio do PT e dos demais partidos de oposição, o bloco de Rossi somará 281 deputados, ante apenas 214 do grupo de Arthur Lira.

Com isso, o emedebista poderá indicar os principais cargos, como os de 1º vice-presidente (que substitui o chefe da Câmara em suas ausências) e o de 1º secretário (uma espécie de "prefeito" da Câmara, que controla o orçamento multimilionário da Casa).

Atualmente, estas duas posições são disputadas pelo PT (53 deputados) e pelo PSL (também com 53). Caso este último partido fique com a 1ª vice-presidência, o posto será ocupado por Luciano Bivar, segundo apurou a BBC News Brasil.


BBC Brasil: Enquanto Bolsonaro patina em se aproximar de Biden, oposição brasileira ganha terreno com democratas

Se o presidente brasileiro Jair Bolsonaro demorou 38 dias para reconhecer a vitória de Joe Biden à Presidência dos Estados Unidos e patina para estabelecer conexões com os democratas, a oposição ao seu governo no Brasil tem se mostrado mais efetiva em construir pontes com a nova administração, que começará oficialmente no dia 20 de janeiro.

Mariana Sanches, BBC News Brasil em Washington

E uma parte importante dessa conexão tem sido operada por meio de lideranças indígenas, com quem Bolsonaro tem acumulado embates.

A última prova disso é o lançamento de uma parceria entre a parlamentar americana democrata Deb Haaland e a deputada federal brasileira Joênia Wapichana (Rede-RR).

Na semana passada, as duas conversaram pelo telefone para coordenar esforços interamericanos para avançar em pautas de respeito aos direitos dos povos nativos e proteção ao meio ambiente nos dois países.

"Continuaremos colocando Bolsonaro na fogueira enquanto ele cometer violações dos direitos humanos, seguir no esforço para destruir a Floresta Amazônica e colocar nosso planeta em risco de um desastre climático ainda maior", afirmou Haaland em nota enviada à BBC News Brasil.

Entusiasta da gestão do republicano Donald Trump, que tentou sem sucesso a reeleição, Bolsonaro já havia se posicionado publicamente em favor de um segundo mandato para Trump, de quem se disse fã.

Seu filho e deputado federal, Eduardo Bolsonaro, que em 2019 acalentou o desejo de ser embaixador em Washington, fez campanha por Trump em suas redes sociais.

Após a divulgação do resultado do pleito, o Itamaraty mergulhou em silêncio enquanto até duas semanas atrás Bolsonaro dizia ter informações sobre "fraude eleitoral". Na terça-feira (15), o presidente enviou "saudações" a Biden", "com meus melhores votos e a esperança de que os EUA sigam sendo "a terra dos livres e o lar dos corajosos".

E acrescentou: "Estarei pronto a trabalhar com o novo governo e dar continuidade à construção de uma aliança Brasil-EUA".

Haaland: crítica a Bolsonaro e cotada para o gabinete de Biden

O caminho dessa cooperação, no entanto, pode ser acidentado. Isso porque existe uma sincronia de movimentos de atores políticos nos legislativos tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos que dificultam a aproximação.

"A gente tem visto um Itamaraty disfuncional, declinante, com o filho do presidente (Eduardo) como uma eminência parda da política externa. Então outros atores políticos passaram a atuar, como o legislativo brasileiro, que geralmente não têm protagonismo no tema. Do lado do Brasil, vemos uma politização histórica da política externa", afirma Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas.

"Ao mesmo tempo, pela primeira vez, o Congresso americano mostrou interesse em se aproximar do legislativo brasileiro e a vitória de Biden empoderou esse grupo de deputados democratas que está na Câmara."

Primeira mulher indígena a ser eleita para o Congresso americano, Haaland é cotada para ser a secretária do Departamento de Interior do presidente-eleito Joe Biden, o que a colocaria no primeiro time da nova administração.

Haaland se tornou uma das principais críticas de Bolsonaro no partido — e na Câmara —, e tem trazido nomes proeminentes da agremiação consigo para as manifestações públicas contra o mandatário brasileiro, como o senador Bernie Sanders e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez. Ela passou a atuar tanto na pressão pública a Bolsonaro, por meio de cartas, quanto na proposição de medidas contra os interesses do governo brasileiro no Congresso americano.

A deputada americana tentou, por exemplo, barrar a aprovação do status do Brasil como aliado militar extra-OTAN, uma das conquistas mais comemoradas pelo Itamaraty sob Bolsonaro.

Nas últimas semanas, ela se empenhava em cortar do Orçamento de Defesa dos EUA a previsão de verba pública para o acordo de salvaguardas tecnológicas entre os países, que deve viabilizar lançamentos de satélites americanos da base de Alcântara, no Maranhão.

Em maio de 2019, pouco depois do anúncio do acordo para uso da base de Alcântara, Haaland conseguiu angariar assinaturas de 54 congressistas americanos para uma carta enviada ao secretário de Estado americano, Mike Pompeo, na qual alertava para "violações dos direitos humanos de comunidades indígenas e quilombolas no Brasil".

Meses antes, além de Wapichana, a política americana recebeu no Congresso dos EUA as parlamentares oposicionistas Erika Kokay (PT-DF) e Fernanda Melchionna (PSOL-RS).

Em junho desse ano, voltou à carga com uma carta enviada ao presidente da Câmara brasileira, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em que pedia a derrubada de um projeto de lei que previa ampla regularização fundiária na Amazônia e que acabou batizado pelos críticos de "PL da Grilagem".

"Entendemos que esse projeto é muito prejudicial para a floresta amazônica, uma vez que legalizará grandes áreas de terras públicas que já foram ocupadas e desmatadas ilegalmente", escrevia Haaland, na carta assinada por 18 de seus colegas.

No mesmo período, seus colegas da Comissão de Orçamento e Tributos da Câmara enviaram comunicação às autoridades comerciais americanas dizendo que se opunham a qualquer avanço em tratados comerciais com o Brasil de Bolsonaro.

E em dezembro, Haaland assinou com outros 21 colegas um pedido de proteção à deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), em que qualificava as políticas de Bolsonaro como "antidemocráticas e xenófobas".

"O que estamos fazendo é expor para o mundo as ações do governo Bolsonaro que precisam parar e teremos intercâmbio de relações legislativas intensas", afirmou à BBC News Brasil a deputada Joênia Wapichana.

Segundo ela, o governo Bolsonaro deveria "ter atuado de forma mais diplomática e menos de acordo com preferência individual" com os democratas. Questionado repetidas vezes sobre o assunto, o embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, afirma manter bom trânsito nos dois partidos.

Mas não para por aí. Em outubro de 2020, enquanto a disputa para a Presidência da Casa Branca chegava à reta final, em Washington D.C., a líder indígena Alessandra Korap Munduruku recebia o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos.

Korap ganhou proeminência ao pedir a expulsão de garimpeiros das terras de seu povo, motivo pelo qual passou a ser ameaçada de morte.

A líder tem denunciado que desde a chegada ao poder de Bolsonaro, a situação das populações nativas se deteriorou.

Bolsonaro já se posicionou publicamente a favor do garimpo em terras indígenas, contra a destruição de maquinário usado por madeireiros para derrubar ilegalmente a floresta na Amazônia e, durante a campanha, prometeu que não demarcaria mais nem "um centímetro quadrado" de área para essas populações.

No evento de homenagem a Korap, coube a John Kerry, recém-nomeado por Biden como enviado especial de mudanças climáticas para o Conselho Nacional de Segurança, fazer o principal discurso da noite. Ali, ele disse à Korap que se comprometia a lutar a seu lado.

"O povo Munduruku no Brasil é guerreiro de muitas formas diferentes. Tem resistido ativamente à pressão constante, violenta, ilegal e, às vezes, patrocinada pelo Estado, de madeireiros e mineradores para explorar suas terras. Alessandra, você falou e continua a falar a verdade ao poder. E é extraordinária a maneira como você luta pelos pulmões do planeta, a maneira como você luta para proteger nossa terra e por todos os bens comuns que precisamos nos esforçar para salvar", disse Kerry, responsável pela formulação das propostas para meio ambiente da campanha de Biden.

Naquele mesmo mês, o democrata surpreendeu o governo brasileiro ao citar o desmatamento na Amazônia como um exemplo de como mudaria sua liderança global em relação à gestão Trump durante um debate televisivo entre os candidatos.

Ao anunciar que pretendia criar um fundo para a preservação do Bioma, Biden afirmou: "Aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas". A fala foi vista pelo governo Bolsonaro como uma ameaça à soberania do país.

O poder da oposição americana a Bolsonaro

Para Casarões, é difícil dimensionar o poder desse grupo de deputados democratas, no qual Haaland é uma liderança. Isso porque, diferente do Brasil, o presidente americano depende essencialmente do legislativo para aprovar medidas centrais e por enquanto a Câmara é a única das duas casas que os democratas controlam por enquanto — a maioria no Senado para o próximo ano ainda está indefinida.

Considerado um moderado e centrista entre os Democratas, Biden terá que fazer concessões à ala mais à esquerda do partido para poder governar.

E um tema no qual seria mais fácil chegar a um consenso é justamente a agenda ambiental, na qual Bolsonaro é visto como um antagonista claro para o partido. Biden já anunciou, por exemplo, que recolocará os EUA no Acordo de Paris, de onde Trump retirou o país, em um movimento que Bolsonaro admitiu ter vontade de copiar.

No final de novembro, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que a Amazônia brasileira perdeu mais de 11 mil quilômetros quadrados de área de floresta no período entre agosto de 2019 e julho de 2020.

É o maior desmatamento registrado nos últimos 12 anos. Nesta quarta, dia 16, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo de países do qual o Brasil quer se tornar membro, divulgou relatório em que aponta que o Brasil tem falhado em coibir a devastação ambiental.

"As discussões políticas enviaram sinais contraditórios sobre o compromisso (do governo) com a estrutura de proteção ambiental existente", afirma o relatório, que exorta o governo a aumentar o orçamento para a fiscalização.

Reservadamente, democratas afirmam não ver condições de interlocução nesses temas com o chanceler Ernesto Araújo, que, em setembro de 2019, deu uma palestra em um think tank conservador na capital americana no qual questionava premissas científicas do aquecimento global.

"O negacionismo climático que uniu Bolsonaro a Trump simplesmente não funcionará com Biden, que priorizará ações climáticas globais ambiciosas, incluindo a proteção da floresta Amazônica. O problema não é apenas dos ministros atuais e seus discursos públicos, mas as políticas destrutivas do governo Bolsonaro no assunto continuarão a isolar o Brasil de governos e investidores internacionais", afirma Andrew Miller, um dos diretores da organização ambiental Amazon Watch.


BBC Brasil: Amazônia - Mapeamento inédito identifica 2,7 mil projetos de restauração

  • Mariana Schreiber, Da BBC News Brasil em Brasília

Enquanto de um lado avança o desmatamento na Amazônia, de outro 2.773 projetos promovem hoje no Brasil a restauração da maior floresta tropical do mundo, mas cobrindo ainda uma área ínfima dos milhões de hectares com potencial para serem recuperados.

São iniciativas tocadas por organizações da sociedade civil, empresas, agricultores, instituições de pesquisa e governos que foram mapeadas pela primeira vez pela Aliança pela Restauração na Amazônia, em documento lançado nesta quarta-feira (09/12) e antecipado à BBC News Brasil.

É o caso do projeto Café Apuí, no Amazonas, em que 59 famílias produzem café orgânico em 33 hectares de sistemas agroflorestais — método de cultivo em que coexistem na mesma área o cultivo agrícola e outras vegetações.

A iniciativa, que já plantou 32 mil árvores, recuperou antigos cafezais que estavam abandonados por baixa produtividade devido a degradação do solo. A melhor qualidade do café produzido sob a sombra da vegetação mais alta replantada permitiu um aumento de 300% da renda das famílias envolvidas, destaca a publicação.

Os 2.773 projetos mapeados, no entanto, cobrem 113,5 mil hectares, uma pequena área frente ao acelerado ritmo de destruição da floresta. Apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020, foram desmatados 1,1 milhão de hectares da Amazônia (alta de 9,5% ante os doze meses anteriores), segundo dados oficiais preliminares do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — cada hectare equivale a aproximadamente um campo profissional de futebol.

Por isso, a publicação traz dez recomendações para que a restauração ganhe escala no Brasil, ao mesmo tempo que alerta que esses projetos não substituem a preservação da floresta ainda de pé, com o combate ao desmatamento, que é majoritariamente ilegal na Amazônia.

Segundo Danielle Celentano, secretária executiva da Aliança pela Restauração na Amazônia, a recuperação da floresta e o combate ao desmatamento são estratégias que caminham juntas para evitar que a Amazônia chegue ao "ponto de não retorno" (tipping point, em inglês), um patamar de destruição em que a floresta perderia a capacidade de se regenerar e haveria mudanças drásticas e permanentes do ecossistema (como redução das chuva e aumento da seca).

Cientistas como Carlos Nobres calculam que esse ponto irreversível deve ocorrer quando o desmatamento atingir algo entre 20% a 25% da floresta original. Em entrevista à BBC News Brasil em setembro, ele disse que já foi perdido de 16% a 17% da floresta, e que o "ponto de não retorno" será atingido no intervalo de 15 a 30 anos, permanecendo a taxa de desmatamento atual.

"A Amazônia está chegando perto do tipping point. Então, é agora ou nunca: tem que parar de desmatar e recuperar o passivo (o que foi desmatado ilegalmente), promovendo uma nova economia de base florestal", afirma Celentano, que é também gerente sênior de restauração de paisagens florestais da Conservação Internacional, uma das 80 instituições que integram a Aliança pela Restauração.

Ela ressalta que uma das formas de ampliar a recuperação da Amazônia é promover o cumprimento da lei. O Código Florestal, de 2012, estabeleceu que apenas 20% das propriedades na Amazônia podem ser desmatadas e determinou a restauração das áreas de floresta que foram suprimidas ilegalmente, mas o prazo para cumprimento tem sido sucessivamente adiado.

Segundo a publicação da Aliança, a área que deve ser recuperada por esses proprietários para legalizar suas terras é estimada em 8 milhões de hectares, sendo que 5 milhões são passíveis de serem restaurados (a diferença pode ser compensada através de outros mecanismos previstos na lei).

Sem o cumprimento da lei pelos donos de terra, a maioria das iniciativas de restauração são tocadas por organizações da sociedade civil (87,5% dos projetos mapeados). Em seguida estão empresas (5,6%), agricultores (3,8%), instituições de pesquisa (2,4%) e governos (0,7%).

São os projetos de empresas, porém, que respondem pela maior área em recuperação (52% do total). O levantamento mostra ainda que Rondônia concentra o maior número de iniciativas (1.658), mas responde por apenas 9% da área em restauração. Já o Pará concentra 49% da área total mapeada e Mato Grosso, 27%.

Floresta se recupera sozinha, mas é desmatada de novo

Os projetos mapeados cobrem uma diversidade de técnicas de restauração, que podem variar de acordo com o nível de degradação da área e a finalidade buscada com a recuperação.

O desmatamento acumulado da Amazônia é calculado em 80,3 milhões de hectares. Parte da floresta consegue se recuperar sozinha, quando a área destruída fica depois abandonada, mas essa vegetação secundária não tem a mesma riqueza de biodiversidade da mata nativa e é também mais vulnerável a ser novamente desmatada, destaca a publicação.

Estimativa do MapBiomas é de que, em 2018, 14,9 milhões de hectares da Amazônia estavam cobertos com vegetação secundária, mas o desmatamento nessas áreas têm sido, em média, 40% maior do que em florestas primárias.

Por isso, o documento da Aliança considera como área em restauração apenas os espaços de vegetação secundária que estão em "regeneração natural assistida". Ou seja, que recebem interferência humana para evitar novos desmatamentos e aumentar a biodiversidade. Segundo o documento, há 147 projetos desse tipo, que cobrem 12% do território mapeado.

Já espaços com baixo potencial de regeneração natural demandam intervenções ativas, normalmente mais custosas, como o plantio de sementes e mudas. O levantamento identificou 734 iniciativas desse tipo, que cobrem a maior parte da área em restauração (59%).

A semeadura direta é uma forma mais barata, considerada promissora, mas ainda usada em pequena dimensão (são 185 projetos que cobrem 3% da área mapeada). Uma dessas técnicas, batizada de muvuca, consiste em plantar com máquinas agrícolas uma mistura de sementes agrícolas e florestais, de espécies de ciclo curto, médio e longo.

"Mistura de sementes nativas e de adubação verde com areia que forma um insumo homogêneo propício para a formação da estrutura da floresta, a muvuca consegue colocar o dobro ou até dez vezes mais árvores por hectare e com metade do custo do que seria um plantio com mudas", diz o portal do Instituto Socioambiental, que usa a técnica em projetos de restauração em parceria com produtores rurais nas bacias dos rios Xingu e Araguaia, no Mato Grosso.

Restauração com produção para frear novos desmatamentos

A maioria das iniciativas, porém, é de sistemas agroflorestais (1.643 ou 59% do total, cobrindo 14% da área mapeada), técnica de restauração florestal produtiva que garante retorno econômico, servindo como instrumento importante para evitar novos desmatamentos.

Um desses projetos, o Cacau Floresta, envolve 250 famílias que desde 2013 já restauraram mais de 500 hectares da Amazônia nos municípios de São Félix do Xingu e Tucumã (Pará), cidades que estão no chamado Arco do Desmatamento (região com maiores taxas de destruição da floresta que engloba partes do Maranhão, Pará, Mato Grosso, Rondônia e Acre).

A iniciativa, que alia o cultivo de cacau com outras espécies nativas, recuperando áreas degradadas pela pecuária extensiva, é desenvolvido pela The Nature Conservancy (TNC) — organização que atua com preservação em mais de 60 países e também integra a Aliança pela Restauração na Amazônia.

Rodrigo Freire, vice-gerente de restauração florestal na TNC Brasil, explica que fazendas de gado só atingem maior rentabilidade com uso mais intensivo de tecnologia, o que é não é o caso de pequenos produtores da região do Arco do Desmatamento, onde o ganho anual por hectare com pecuária de corte varia de R$ 50 a R$ 200.

Segundo ele, o investimento para converter esses pastos em agrofloresta é de R$ 15 mil (sendo R$ 6 mil o valor da própria mão de obra) por hectare, investimento que costuma ser recuperado em quatro a cinco anos, usando inicialmente cultivos de ciclo mais curto, como milho, mandioca e banana. Depois, com o aumento da produção de cacau, produto de alto valor agregado vendido para a indústria de chocolate, é possível chegar a uma rentabilidade anual de R$ 7 mil a R$ 10 mil por hectare, diz.

"A partir do momento que o produtor viu mais rentabilidade naquela agrofloresta do que no pasto, ele abre a percepção também para a importância das árvores em pé e desses recursos ecológicos como umidade, água, fertilidade do solo (que são recuperados com a restauração da floresta)", nota ele.

Freire reconhece que a agrofloresta é menos diversa que a mata nativa, podendo chegar a 50 espécies por hectare, ante mais de 140 por hectare na floresta original da Amazônia. Apesar disso, diz que a área restaurada consegue recuperar parte da biodiversidade e retomar "suas funções ecológicas, seus serviços ecossistêmicos".

"Em área de pasto, quando tem chuva forte, a água escorre muito rápido pela superfície, causando assoreamento, o carregamento de nutrientes que são removidos do solo, pois a vegetação do pasto é muito rala, pouco profunda", ressalta.

"Quando você abre espaço para uma agrofloresta, com muitas árvores, de diferentes espécies e alturas, volta a ter uma estrutura de floresta de proteção do solo. E as próprias folhas e galhos quando caem fazem com que o solo volte a ter fertilidade muito maior", compara.

Essa recuperação da vegetação e do solo garante mais produtividade e contribui para a preservação das fontes de água da propriedade e da região. Além disso, a nova estrutura de floresta acaba atraindo novamente a fauna para a área antes degradada.

"Passarinhos, por exemplo, fazem ninhos nas copas do cacaueira. Também vemos a anta, maior mamífero terrestre nativo (do Brasil), voltando a ocupar o plantio de cacau, usando o sistema agroflorestal como refúgio de migração entre os fragmentos florestais locais", conta.

Implementação da lei, mais crédito e compromisso do setor privado

Para que a restauração ganhe escala na Amazônia, a publicação diz que é preciso priorizar o cumprimento do Acordo de Paris, no qual o Brasil assumiu o compromisso em 2015 de restaurar 12 milhões de hectares até 2030.

O governo Jair Bolsonaro, porém, não tem dado andamento à Política Nacional para Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg), ferramenta criada em 2017 que traz diretrizes para alcançar essa meta.

O documento recomenda também que o os governos estaduais implementem os Programas de Regularização Ambiental (PRAs), previstos no Código Florestal, passo fundamental para que propriedades que desmataram mais de 20% na Amazônia recuperem a área destruída ilegalmente.

A publicação destaca ainda a necessidade de criar e regulamentar mecanismos de "pagamentos por serviços ambientais", como o mercado de crédito de carbono, para que as áreas restauradas, que têm grande capacidade de capturar e armazenar carbono da atmosfera, possam gerar retorno aos proprietários.

Outra recomendação é o aumento das linhas de crédito para financiar esses projetos, assim como compromissos mais ambiciosos de empresas e bancos para não realizar negócios com fornecedores que não estão com suas propriedades legalmente restauradas.

"Sabemos que só a obrigatoriedade não motiva ninguém. Cumprir a lei deve ser o básico de qualquer sociedade coerente, responsável, mas precisa ter incentivos também (para os proprietários se regularizarem), principalmente quando boa parte dessa restauração florestal custa, exige investimento, trabalho, tecnologia e insumos", afirma Rodrigo Freire.

"E faz parte da abordagem da restauração (ter) uma solução para o desmatamento. Não dá para desmatar em um lugar e ficar restaurando no outro. Vai ter perda de biodiversidade, não é isso que a gente quer", reforçou.