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'Game over': bolsonaristas se revoltam com recuo do presidente
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"Game Over", disse o blogueiro Allan Santos no Twitter — o termo em inglês pode ser traduzido como "fim do jogo" ou simplesmente "acabou".Pule Twitter post, 1
GAME OVER pic.twitter.com/EiEgzB5FPV— Allan Dos Santos (@allanldsantos) September 9, 2021
Final de Twitter post, 1
Rodrigo Constantino usou a mesma expressão, mas foi mais enfático nas críticas ao presidente. Para ele, Bolsonaro demonstrou "fraqueza" e "levou um xeque-mate".
"Bolsonaro pode ter assinado sua derrota", afirmou no Twitter.
Se era xadrez 4D, parece que Bolsonaro tomou um xeque-mate de uma rainha tridimensional. Depois da demonstração de força do povo, o presidente demonstra fraqueza. Situação bem complicada para os patriotas. Bolsonaro pode ter assinado sua derrota hoje...— Rodrigo Constantino (@Rconstantino) September 9, 2021
O empresário Leandro Ruschel fez um prognóstico semelhante sobre o futuro político do presidente.
"Impressão inicial, ainda provisória: com o ato de hoje, Bolsonaro está abrindo mão da candidatura à reeleição. A conferir", disse ele.
Impressão inicial, ainda provisória: com o ato de hoje, Bolsonaro está abrindo mão da candidatura à reeleição.
A conferir.— Leandro Ruschel 🇧🇷🇺🇸🇮🇹🇩🇪 (@leandroruschel) September 9, 2021
O pastor Silas Malafaia deixou claro que não pretende seguir o presidente em sua recém-adquirida moderação e voltou a atacar Alexandre de Moraes, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
"Continuo aliado, mas não alienado", tuitou. "Minhas convicções são inegociáveis."
CONTINUO ALIADO , MAS NÃO ALIENADO ! Bolsonaro pode colocar a nota que quiser , Alexandre de Moraes continua a ser um ditador da toga que rasgou a constituição e prendeu gente inocente . MINHAS CONVICÇÕES SÃO INEGOCIÁVEIS !— Silas Malafaia (@PastorMalafaia) September 9, 2021
'No calor do momento'
Bolsonaro divulgou a nota um dia após o presidente do STF, Luiz Fux, afirmar que suas ameaças poderiam culminar em um processo de impeachment.
O presidente participou de atos no 7 de setembro que pediram o fechamento do STF e do Congresso. Em seus discursos, ele atacou a Corte e seus ministros e disse que poderia não cumprir novas decisões de Moraes, a quem chamou de "canalha".
No comunicado divulgado pelo Planalto, Bolsonaro baixou o tom e afirmou que as declarações foram feitas no "calor do momento" e que "nunca teve intenção de agredir quaisquer dos poderes".
O presidente ainda disse que "não tem direito de esticar a corda a ponto de prejudicar a vida dos brasileiros e sua economia" e que suas divergências com o ministro Alexandre de Moraes — seu maior desafeto no STF e a quem chamou de "canalha" em sua fala nos protestos — deveriam ser resolvidas por meio da via judicial.
"Reitero meu respeito pelas instituições da República, forças motoras que ajudam a governar o país", afirmou Bolsonaro.
'Traidor'
Em grupos de apoio ao presidente no aplicativo Telegram, os bolsonaristas se dividiram entre a revolta, a incredulidade e a decepção com a reação do presidente.
"Traidor", disse uma integrante de um grupo com mais de 11 mil participantes.
"Eu vim para Brasília apoiar o presidente e ele faz isso", comentou outro membro.
Em outro grupo, com 2 mil pessoas, um apoiador disse: "O presidente se rendeu, se acovardou. Eu esperava muito mais".
"Também não acreditei!!! Será alguma estratégia?!?", respondeu outra participante.
"Será que o presidente vai renunciar à reeleição? Será que o sistema fez com Bolsonaro o mesmo que fez com Trump?", questionou uma terceira.
Em outro grupo, com 36 mil inscritos, um membro interpretou assim o comunicado: "Nosso capitão recuou".
"Infelizmente", respondeu outro.
"Alguém confirma", questionou um integrante, que ouviu em resposta: "Sim, é verdade. O presidente nos abandonou."
"Ele disse que não ia respeitar o STF e agora tá se desculpando por nota", comentou um apoiador.
Outra participantes disse que a atitude de Bolsonaro foi uma "falta de respeito com o povo que ele pediu para ir às ruas".
"Não vivia falando que tá com o povo aonde o povo estiver e agora??? Somos chacota da esquerda."
"Que decepção", escreveu um terceiro, "mas acredito que isso tenha sido só para pacificar as coisas apenas uma estratégia a mando de alguém;"
"Decepção total, o sistema venceu o nosso presidente", afirmou mais um
Mas nem todos perderam a confiança em Bolsonaro.
"Não recuou não, estão malucos? Ele tem razão em fazer, tenham certeza, é uma demonstração de bom senso e autoproteção. Parem para pensar caramba", disse um membro desse mesmo grupo.
Outro afirmou que "recuar não é derrota".
"Temos que ter paciência, galera", pediu um outro apoiador.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58510232
Bolsonaro faz Brasil parecer república das bananas, diz analista
Democracia brasileira saiu mais fraca do 199º aniversário da independência do Brasil, analisa a cientista política Amy Erica Smith
Mariana Sanches / BBC News Brasil
Em protestos que atraíram centenas de milhares de pessoas neste 7 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não cumprirá decisões judiciais, ameaçou fechar o Supremo Tribunal Federal, disse que um dos ministros, Alexandre de Moraes, "açoita a democracia", chamou o processo eleitoral sem voto impresso de "farsa" e disse que apenas Deus pode tirá-lo da Presidência.
"É possível que as coisas agora tenham chegado a um ponto tão ruim que forcem a ação de outros poderes", opina ela.
Após Bolsonaro intensificar os ataques ao Supremo e ameaçar não cumprir decisões do ministro Alexandre de Moraes, aumentaram as cobranças pela abertura de um processo de impeachment no Congresso.
Para a estudiosa, a demonstração de força de Bolsonaro não foi um "fracasso total", dado o número de pessoas que ele atraiu e a disseminação de suas palavras, mas deixou claro que Bolsonaro não reúne condições de dar um golpe. "Se tivesse, ele já teria dado".
Smith observa que Bolsonaro e seus apoiadores tentam projetar uma imagem de lideranças da direita global, com placas em inglês contra o STF e apoio de ex-assessores de Trump em suas empreitadas, mas, para a maioria da audiência internacional, "Bolsonaro pinta o Brasil como uma república das bananas".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Amy Erica Smith à BBC News Brasil, editadas por clareza e concisão.
BBC News Brasil - Como qualifica os acontecimentos desse 7 de setembro?
Amy Erica Smith - A multidão tinha um tamanho razoável e o discurso de Bolsonaro está mais radical, talvez o mais radical que se possa ser sem provocar um confronto direto e imediato. O tipo de ataque que ele fez ao ministro Alexandre de Moraes hoje cruza a linha da democracia. As coisas que Bolsonaro disse não satisfazem os mínimos requisitos da democracia e, se for permitido que ele continue a fazer esse tipo de declaração, as coisas ficarão muito ruins no Brasil.
Ele até poderia recuar, mas não acredito que irá. A essa altura, nós já vimos o suficiente pra identificar um padrão de alguém que vai gradualmente ficando mais e mais radical. Declarações como "só saio da presidência morto" são extremamente anti-democráticas, assim como tudo o que ele disse hoje. Desse ponto em diante, as coisas só pioram.
BBC News Brasil - Alguns analistas, como o filósofo Marcos Nobre, veem nos movimentos de Bolsonaro em 7 de setembro uma espécie de ensaio do golpe, um teste de quão longe se pode ir. A senhora concorda?
Smith - Se Bolsonaro tivesse apoio para um golpe, provavelmente ele já teria dado um golpe. Muito do que ele faz é projetado para tentar atrair mais pessoas para o seu lado e viabilizar um golpe. Está claro que, se pudesse ter fechado o Supremo Tribunal Federal há um ano, ele já teria feito isso.
Mas ele não tem apoio institucional para fazer isso, nem dos militares nem de outros políticos. E se tentasse, não conseguiria se segurar no poder. Então acho que o termo ensaio não cabe, porque a verdade é que se ele tivesse tido condições de dar um golpe ontem, ele teria dado. E seus apoiadores também teriam apoiado o golpe se ele tivesse tentado.
O que eu acho que Bolsonaro está fazendo é deliberadamente mostrando que seu interesse é golpista e tentando arregimentar pessoas pra sua causa. Isso é mais um alerta do que ele gostaria de fazer se conseguisse obter mais poder. E eu acho que foi uma tentativa também de satisfazer alguns de seus apoiadores mais radicais, que pediam por esse tipo de comportamento. Então ele manda uma mensagem para esses apoiadores ao mesmo tempo em que tenta intimidar o Supremo e Congresso. E, honestamente, não vejo como isso possa ter funcionado, nem para intimidar, nem para ganhar novos apoiadores.
BBC News Brasil - Bolsonaro terminou o sete de setembro mais forte ou mais fraco do que começou o dia?
Smith - Não acho que foi um fracasso completo. Ele conseguiu reunir uma massa moderadamente grande. Não foi uma massa esmagadora, mas atraiu público e conseguiu levar seus discursos à TV. Mas em termos eleitorais práticos, a popularidade dele ainda está na casa de 20% e não houve ali nenhum sinal de que ele tem poder suficiente para mobilizar eleitores a ponto de alterar o cálculo eleitoral dos partidos em favor dele.
Já em relação à crise institucional, ao conflito com outros poderes, Bolsonaro termina o dia bem mais radical e aparentemente tendo dito coisas que podem levar a ações legais contra ele no Supremo e ao seu impeachment no Congresso. Esses são cenários possíveis. Então, ele sai do sete de setembro mais vulnerável em relação aos demais poderes. E podemos esperar resposta ao menos da Suprema Corte, com certeza.
BBC News Brasil - O Brasil vive uma crise institucional grave. Hoje o presidente disse que só Deus o tira do cargo, que não cumprirá decisões judiciais de um dos ministros do Supremo e que não participará do que chamou de "farsa" das eleições sem votos impresso. Com isso, afrontou o Congresso e a Suprema Corte. Como fica a democracia depois disso?
Smith - O que está claro é que a democracia brasileira saiu do sete de setembro mais fraca, em uma crise maior. Mas é possível que agora as coisas tenham chegado a um ponto tão ruim que forcem a ação de outros poderes. A democracia brasileira está em grande risco, especialmente com as ameaças ao Supremo.
Protestos contra Bolsonaro no 7 de Setembro
BBC News Brasil - Alguns líderes partidários voltaram a falar em impeachment, e esse é um assunto que tem rondado a gestão Bolsonaro, mas nunca como algo viável. Isso pode ter mudado ontem?
Smith - As coisas que Bolsonaro falou ontem certamente aumentam suas chances de sofrer um impeachment. O sete de setembro pode ser o começo do fim pra ele.
Ele chamou o Conselho da República (órgão que decide sobre intervenção federal) e disse que mostraria a eles a fotografia do povo. Isso, em outras condições, seria o chamamento para o golpe. Mas as pessoas que compõem esse Conselho da República não dirão: 'sim, senhor, vamos dar um golpe'. Então é difícil entender os reais efeitos do que Bolsonaro diz. É bizarro imaginar que ele pense que os demais chefes de poderes vão coadunar com essa ideia. Não é possível que ele próprio acredite nisso. Pode ser um teatro político, mas não deixa de ser perigoso.
BBC News Brasil - A economia brasileira patina, e investidores estrangeiros não se sentem confortáveis em trazer seu dinheiro ao país. Como diferentes observadores internacionais veem o que acontece no Brasil e o que esperam do país?
Smith - É terrível para os negócios e os manifestos do agronegócio e de empresários brasileiros contra as ações de Bolsonaro mostram isso. Bolsonaro pinta o Brasil como uma república das bananas. O que estamos vendo hoje é uma instabilidade extrema e o que o presidente promete aos investidores é ainda mais instabilidade por vir. O comportamento de Bolsonaro em si é péssimo para atrair os investimentos. Essa instabilidade política poderia ser resolvida com um novo presidente, mas parte dos danos à imagem do Brasil no exterior, a relações com os EUA e a Europa, essas coisas demoram mais tempo a serem reparadas.
BBC News Brasil - Ainda em relação às relações internacionais, como vê o fato de ex-assessores de Trump, como Jason Miller e Steve Bannon, mostrarem tanta proximidade e interesse com o governo - e a campanha - de Bolsonaro?
Smith - Não são só os assessores, mas também chama a atenção a quantidade de placas em inglês carregadas por bolsonaristas. E isso acontece porque a direita, e especialmente a extrema-direita, da qual Bolsonaro faz parte, é um movimento de laços internacionais muito fortes. Isso é muito emblemático de que o presidente se vê como parte de uma direita global e acredita que ela poderá ajudá-lo. Mas a verdade é que a direita global - e especialmente a americana - não é mais tão poderosa quanto já foi e não será capaz de ajudá-lo nessa crise institucional. Todo o apoio do mundo de Trump e seu grupo não salvarão Bolsonaro. E isso seria verdade mesmo se Trump ainda fosse presidente, mas é ainda mais óbvio agora que Trump está fora do poder.
BBC News Brasil - Vimos manifestações contra e a favor de Bolsonaro no sete de setembro. Ambas diziam defender a democracia. O que significa essa contradição?
Smith - Isso é algo muito perigoso para a democracia, porque a situação de polarização e partidarização atingiu tal nível que pessoas com ideias totalmente opostas do que democracia signifique estejam dispostas a lutar até o fim umas com as outras enquanto supostamente defendem a mesma coisa. Isso é uma prova da tensão do estado de coisas na democracia brasileira.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58485310
As ameaças de Bolsonaro em discursos no 7 de Setembro
Bolsonaro chamou as eleições de "farsa", disse que só sai da presidência "preso ou morto" e exaltou a desobediência à Justiça
BBC Brasil
O atos de apoio a Bolsonaro, por intervenção militar e contra o STF foram organizados em diversas cidades em momento de crise e queda de popularidade do presidente.
Mas a maior parte dos manifestantes concentraram em São Paulo, que reuniu caravanas vindas de diversos locais do país. Segundo a estimativa oficial da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, passaram cerca de 125 mil manifestantes pela avenida Paulista neste 7 de setembro.
Foi em São Paulo que Bolsonaro elevou o tom de golpismo, que já estava presente em seu discurso em Brasília. Ele questionou a urna eletrônica e as eleições, citou novamente o voto impresso (que já foi rejeitado pelo Congresso) e disse que não pode "participar de uma farsa como essa patrocinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE)".
"Quero dizer àqueles que querem me tornar inelegível em Brasília: só Deus me tira de lá", afirmou.
"Só saio preso, morto ou com vitória. Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso."
Bolsonaro criticou o presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, sem citá-lo nominalmente.
"Não é uma pessoa no Tribunal Superior Eleitoral que vai dizer que esse processo é seguro, usando a sua caneta desmonetizar páginas que criticam esse sistema de votação", disse ele, em referência a decisões da Justiça contrárias a bolsonaristas que espalharam notícias falsas sobre as eleições.
"A paciência do nosso povo já se esgotou! Nós acreditamos e queremos a democracia! A alma da democracia é o voto! E não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece segurança", afirmou Bolsonaro.
Protestos contra Bolsonaro no Sete de Setembro
Ataques ao STF
Bolsonaro concentrou suas críticas ao STF na figura do ministro Alexandre de Moraes, que determinou nesta segunda (5/9) a prisão de apoiadores do presidente que publicaram ameaças ao tribunal e a seus membros.
"Não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil", disse o presidente.
"Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos, porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada Poder da República", completou Bolsonaro, conclamando o presidente do STF, Luiz Fux, a interferir nas decisões de Moraes - algo que seria inconstitucional.
Em São Paulo, Bolsonaro citou Moraes nominalmente e o chamou de "canalha", dizendo que "não pode mais admitir" que ele "continue açoitando o povo brasileiro."
Antes das manifestações, Bolsonaro chegou a enviar um pedidos de impeachment de Moraes ao Senado, onde o pedido foi rejeitado.
Apesar da derrota, o presidente continuou insistindo no ataque, e disse em Brasília que Moraes "perdeu as condições mínimas de continuar dentro daquele tribunal".
E ameaçou: "Não queremos ruptura, não queremos brigar com Poder algum, mas não podemos admitir que uma pessoa coloque em risco a nossa liberdade."
Manifestação na Esplanada, em Brasília, no Sete de Setembro
Contradições
Ambos os discursos de Bolsonaro tiveram contradições como dizer que "defende a democracia" e ao mesmo tempo criticar as eleições e dizer que só sai de Brasília "preso, mortos ou com vitória".
Bolsonaro usou repetidas vezes o argumento de que a Constituição Federal estaria sendo ferida por outro Poder. Mas ele próprio fez ameaças que, se concretizadas, significariam violações graves da Constituição.
"Nós todos na Praça dos Três Poderes juramos respeitar a nossa Constituição. Quem age fora dela se enquadra ou pede para sair", disse, acrescentando que as manifestações do 7 de Setembro são um "ultimato" aos Poderes da República.
"Peço a Deus coragem para decidir. Não são fáceis as decisões. Não escolham o lado do conforto. Sempre estarei ao lado do povo brasileiro. Esse retrato que estamos tendo nesse dia é de vocês. É um ultimato para todos que estão na praça dos Três Poderes, inclusive eu, presidente da República, para onde devemos ir", declarou.
"A partir de hoje uma nova história começa a ser escrita aqui no Brasil. Peço a Deus mais que sabedoria, força e coragem para bem presidir", completou, sendo aplaudido por Braga Netto e demais ministros.
Conselho da República
Ao final do discurso em Brasília, Bolsonaro disse que se reuniria na quarta com o Conselho da República, para apresentar a "fotografia" de "onde todos devemos ir". O Conselho da República é um órgão consultivo previsto na lei para ser usado pelo presidente em momentos de crise, para deliberar sobre "intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio", além de decidir sobre "questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas".
Apesar do que disse Bolsonaro no discurso, não há reunião do Conselho da República marcada para quarta-feira por enquanto, segundo o vice-presidente Hamilton Mourão. "Julgo que o presidente se equivocou, pois ninguém sabe disso", afirmou o vice, cuja presença é necessária no conselho.
O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), líder da minoria na Câmara dos Deputados e membro do conselho, afirmou que a reunião não foi marcada e que "não será sob chantagem de um presidente que participa de uma ato que ameaça ministros, que ameaça intervenção militar e que ameaça o fechamento do Congresso, que o Conselho da República vai se reunir."
Fim do ato
Em Brasília, no carro de som, bem ao lado de Bolsonaro, presenciando as ameaças do presidente, estava o ministro da Defesa, general Braga Netto.
Já o ato em São Paulo teve a presença do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que foi abordado por dezenas de bolsonaristas para fotos, e do ex-secretário de comunicações Fabio Wajngarten.
O número de pessoas com máscaras era bem reduzido em ambos os atos que tiveram a presença do presidente. Em São Paulo, havia muitos idosos e crianças sem máscara. Policiais também eram parados com pedidos de fotos e o hino nacional era cantado reiteradamente.
Ao final, Bolsonaro deixou a Paulista em cima de um carro, com um policial levando um colete à prova de balas na frente, e se dirigiu ao comando militar em São Paulo, onde pegou o avião presidencial de volta à Brasília.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58479785
Como o 7/9 apagou a memória da luta negra por independência e abolição
Edison Veiga / De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
O soldado Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga (1761-1799), o marceneiro e militar Lucas Dantas do Amorim Torres (1744-1799), e os alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira (1775-1799) e João de Deus Nascimento (1771-1799) são nomes praticamente esquecidos da historiografia nacional. Pois eles lideraram um movimento popular que pedia independência política quando aquele que se tornaria dom Pedro I (1798-1834) não passava de um recém-nascido.
A Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates ou Revolta dos Búzios, foi um movimento emancipacionista popular que se iniciou em 12 de agosto de 1798, exatamente dois meses antes do nascimento de Pedro I. E terminou no fim de 1799 — em 8 de novembro daquele ano os quatro líderes acima mencionados foram executados em praça pública.
Diferentemente da maneira como o processo de independência brasileira acabou sendo costurado, culminando no 7 de setembro de 1822, era uma articulação popular que, entre suas bandeiras, pedia o regime republicano e o fim da escravidão.
Muitos dos participantes do movimento, inclusive Virgens e Veiga, Amorim Torres, Santos Lira e Deus Nascimento, eram negros.
Revoltas como esta ocorreram nas décadas que precederam a Independência brasileira e, cada vez mais, são exemplos recuperados por historiadores de como a historiografia oficial do país acabou ofuscando a participação do negro em episódios importantes. Ao mesmo tempo, suscitam a reflexão: se uma luta assim tivesse conseguido prosperar, a sociedade brasileira poderia ter sido organizada de forma completamente distinta, com abolição da escravidão quase um século antes e regime republicano sem passar pelos dois governos imperiais, conduzidos por descendentes da mesma casa portuguesa.
"É interessante perceber o quanto a história do Brasil é contada do ponto de vista do colonizador e do branco. A independência foi um desses momentos que atendeu apenas a uma elite, não dando conta de garantir a liberdade para a maior parte da população brasileira, os negros e indígenas", comenta o pesquisador da história negra Guilherme Soares Dias, consultor em diversidade.
"Não aprendemos sobre esses fatos sob outra perspectiva e nem temos esses debates nas escolas. Esse era um momento efervescente da busca pela abolição com várias revoltas no Brasil e outros países conquistando essa liberdade do povo negro. A história ainda retrata apenas um lado e a gente ainda precisa buscar outras informações sobre esse período", completa ele. "Esse apagamento das lutas negras faz parte de um racismo estrutural que é resquício daquele momento em que o negro não era visto como humano e sim como coisa. A sua história, seus costumes, sua cultura, seus pensamentos não importavam, já que ele era animalizado. As pessoas precisam ter raiz."
Dias afirma que a primeira coisa tirada pela escravidão foi a própria história da população negra. "Ainda hoje precisamos fazer essa busca e jogar luz para heróis, lutas e acontecimentos que foram importantes para as pessoas negras", diz. "Essa é a narrativa que a história do Brasil ainda não conta."
Lutas contra o domínio português
Professora na Universidade Federal Fluminense e integrante da Rede de Historiadores e Historiadoras Negros, a historiadora Ynaê Lopes dos Santos cita três como os principais movimentos que pediam a separação de Portugal antes do famoso 7 de setembro. Além da Revolta dos Búzios, também destaca a Inconfidência Mineira, de 1789, e a Revolução Pernambucana, de 1817.
"Foram os mais expressivos. Mas sem sombras de dúvidas a Conjuração Baiana foi o com a maior participação efetiva da população negra, tanto a livre quanto a escravizada", ressalta. "E foi um movimento que pensava o processo de Independência correlatamente com o processo de abolição da escravidão, algo que não aparecia nos outros dois movimentos insurgentes."
Santos cita, inclusive, que isso fez com que muitos negros que haviam aderido a essas revoltas tenham as abandonado em seguida, tão logo compreenderam que "era algo que não lhes dizia respeito".
Para o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador do tema na Universidade Estadual de Campinas, é preciso olhar para vários processos de emancipação que não estavam diretamente ligados às elites. "E a Conjuração Baiana é um exemplo, que pensava também na libertação dos escravos, o que não era pensado pelas elites que dependiam do regime escravocrata", exemplifica.
"Grande parte dos movimentos e revoltas do Brasil de então tinha a participação dos mulatos e negros, que eram o maior contingente populacional. Reivindicavam melhores condições de vida, igualdade de direitos", afirma o historiador Francisco Phelipe Cunha Paz, membro da Rede de Historiadores e Historiadoras Negros e da Associação Brasileira de Estudos Africanos.
Mas ele lembra que é importante "não cair na tentação" de homogeneizar os grupo - nem os negros, tampouco os não negros. "Eles eram atravessados por entendimentos, expectativas e laços diferentes, por vezes internamente antagônicos", ressalta.
Paz conta que houve participação de negros, homens e mulheres, em revoltas no Pará, no Maranhão, no Piauí, além da Bahia. Neste caso mais emblemático, inclusive, ele ressalta que até mesmo a questão dos nomes — Conjuração Baiana, Revolta dos Alfaiates, Revolta dos Búzios — guarda uma disputa de narrativas.
"Ao contrário dos outros nomes, a nomenclatura 'dos Búzios' faz ligação direta com as populações negras envolvidas no levante popular que foi um dos primeiros movimentos por independência e fim da escravidão", diz. "Faz justiça, assim, ao grande contingente de pessoas de cor por trás da sua existência."
O jogo de búzios é muito presente em religiões tradicionais africanas. E os revoltosos desse episódio utilizavam essas conchas como pulseiras, como forma de identificação.
"[A Revolta dos Búzios] foi formada basicamente por escravizados, livres e libertos, trabalhadores pobres e alguns membros da elite branca liberal", explica Paz. A recuperação dessa nomenclatura foi feita graças a uma articulação baiana de movimentos sociais negros.
Para o historiador Paz, isso é simbólico do que deve ser a tarefa atual: "conseguir destacar as agendas das populações negras e os seus descontentamentos com o governo português e a sociedade escravista no Brasil".
"Além de disputar as memórias públicas em torno do processo de Independência do Brasil, que não se reduz ao ato administrativo de sua proclamação oficial", acrescenta. "Pelo contrário, é, sem sombra de dúvidas, também produto das articulações políticas e sociais das populações negras."
Reis ressalta ainda o fato de que essas revoltas que ocorreram costumam ser tratadas apenas como motins, como rebeliões contra o poder estabelecido, mas comumente não são vistas como lutas que tinham em seu cerne o ideal de emancipação, "de independência da nação". "E quando a Independência de fato ocorre, ela é uma Independência repressora, que acaba massacrando as revoltas que ocorrem depois, sob o argumento da manutenção do Estado nacional brasileiro", comenta.
Consolidação da Independência
No imaginário popular, está dom Pedro levantando a espada, gritando heroico "independência ou morte", tal e qual no famoso quadro criado em 1888 por Pedro Américo (1843-1905). Longe de ser uma fotografia, retrata de forma pomposa e distante da realidade o que aconteceu em 7 de setembro de 1822. Mas foi a narrativa que venceu, sob o prisma do homem branco europeu — o mesmo colonizador.
"O Brasil Imperial, proclamado independente no 7 de setembro de 1822, foi uma articulação 'de portas fechadas' entre escravocratas, comerciantes e a própria família real portuguesa, com uma promessa clara - a manutenção do tráfico transatlântico e da escravidão", define Paz.
"O movimento da Independência ofuscou os outros movimentos que ocorriam na época, principalmente a questão abolicionista, porque acabou sendo um movimento de elite, uma elite preocupada em manter a autonomia que havia sido conquistada desde a chegada da corte ao Brasil em 1808", explica o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre personalidades que viveram no período, como o próprio Pedro I.
A transferência da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, nesse contexto de fuga das tropas napoleônicas no início do século 19, acabou sendo crucial para que ocorresse no Brasil uma história da independência tão diferente do que ocorreu em outros países latino-americanos — a começar, por não vir junto com um regime republicano.
"O Brasil já tinha uma elite de funcionários públicos, funcionários do governo e latifundiários que não queriam perder as conquistas adquiridas com a chegada da corte portuguesa", completa Rezzutti.
"A não ser no caso do Haiti, não há nenhum país da América Latina em que a Independência não tenha sido conquistada pela elite [branca]. Aqui no Brasil houve o agravante: tornou-se império porque acreditava-se que a elite brasileira não fosse tão esclarecida intelectualmente quanto o restante da elite latino-americana. Então se temia que o Brasil se fragmentasse em diversos países", explica o pesquisador.
"A ideia de manter o regime monárquico foi para garantir a integridade do Estado nacional. Mas isso acabou tendo a consequência de que a parte hegemônica da elite pensava totalmente contra a abolição", prossegue ele.
Essa acabou se tornando a narrativa preponderante, afinal, como lembra Rezzutti, "a história é escrita pelos vencedores, e a elite foi a vencedora da Independência". "Uma elite escravocrata, formada por latifundiários e burocratas que dependiam do trabalho escravo", afirma.
A historiadora Ynaê Lopes dos Santos ressalta que é preciso diferenciar "o que foi o processo de independência do Brasil" e "a história que se contou sobre isso".
"Temos um acesso muito limitado ao processo de Independência, que faz parte de um projeto nacional de contar a história como se fosse um fato que começa e termina no 7 de Setembro", pontua ela. "Na verdade, foi algo mais complexo, envolvendo uma série de interesses. A forma de contá-la tem o propósito de marcar a história do Brasil como uma história pouco conflituosa e pouco combativa."
Para Santos, o ponto-chave nessa compreensão está em encarar a homogeneidade étnica e cultural daqueles que ocupavam os altos postos do poder nas primeiras décadas do século 19 — os deputados que representavam as capitanias brasileiras na Assembleia de Lisboa e, com a Independência, os que formam a Assembleia do Rio de Janeiro.
"Esse alto escalão político brasileiro era formado majoritariamente por homens brancos escravocratas, formados na mesma universidade, de Coimbra, ensinados pelos mesmos professores", define ela. "Comungavam as mesmas experiências e visões de mundo."
Por isso, ela explica, não existiu nesse momento da Independência um debate em relação à manutenção ou não da escravidão. "Foi uma questão silenciada. A manutenção da escravidão se deu pelo próprio silenciamento da existência da escravidão na carta constitucional de 1824", afirma a historiadora. Citando o historiador Luiz Felipe de Alencastro, ela repete que "o Brasil foi um país que nasceu apostando no futuro da escravidão".
"Aposta esta que silenciava justamente o que era a jurisdição, colocando-a na salvaguarda da propriedade privada", explica.
"Existia um acordo da classe política brasileira, em sua imensa maioria, para que fosse construído um país soberano alicerçado na manutenção da escravidão", complementa. "Porque havia a compreensão que a própria unidade nacional estava vinculada à manutenção da escravidão. A escravidão acabou sendo a instituição que ordenou o funcionamento da sociedade brasileira, não só economicamente, mas também política e socialmente."
Outro aspecto lembrado pela professora são as tantas revoltas que ocorreram para consolidar a independência. E aí novamente é preciso olhar para a Bahia, que acabou revivendo os ideais da Revolta dos Búzios no início da década de 1820 — com a guerra da independência ocorrida, de fato, em 2 de julho de 1823.
"Naquela província, vimos os contornos mais radicais da efetivação da Independência, com as pessoas expulsando as tropas portuguesas de seus territórios", diz Santos.
"Um olhar um pouco mais crítico em relação à Independência do Brasil pressupõe pelo menos uma análise de duas escalas desse processo: aquele feito pela classe política, pela oligarquia político-econômica brasileira; de outro lado, o chão das províncias, as pessoas que realmente transformaram esse projeto de Independência em um fato real", explica a historiadora. "Nesse ponto, há uma presença muito forte de sujeitos que tiveram suas histórias silenciadas, homens e mulheres, negros, mestiços, pobres, etc."
Mas a historiografia oficial acabou realçando apenas o primeiro grupo. E esse apagamento ocorreu não só dessas revoltas pós 7 de Setembro, como também dos movimentos que ocorriam antes. "As revoltas do Brasil colonial, muitas tinham objetivos separatistas, abolicionistas e republicanos. Isso acabou suprimido da história oficial brasileira", complementa a professora.
Racismo estrutural
Ao apagar a participação do negro, a história cria um arcabouço para a manutenção do racismo estrutural. "A leitura oficial do 7 de Setembro é calcada e estruturada pelo racismo. Isso faz parte de um projeto de nação que se constituiu que se reforçou ao longo dos anos, inclusive com o advento da República, já que boa parte do que é ensinado sobre a Independência foi gestado no período republicano", frisa a historiadora Santos.
"A maneira como aprendemos a história da Independência do Brasil é mais um dos expoentes sintomas do racismos estrutural brasileiro, que silencia as inúmeras histórias e participações da população não branca na formação do país", acrescenta ela.
"A invisibilidade é uma das marcas desse poder que nega e silencia os sujeitos históricos negros e indígenas", diz o historiador Paz. "Essa 'história escrita por mãos brancas', como sentencia a historiadora negra brasileira, Beatriz Nascimento, é produzida tanto no apagamento do negro na história do Brasil, quanto no descrédito das suas narrativas no presente."
Para o historiador, o próprio movimento de independência do Haiti — guerra travada de 1791 a 1804 que acabou resultando na primeira república americana governada por pessoas de ascendência africana — deixava as elites brasileiras apreensivas que algo parecido pudesse ocorrer.
"Acredito que as disputas pelos sentidos em torno do 'grito do Ipiranga' e a própria independência em si, da maneira que se deu, significa menos uma ruptura anticolonial e mais uma articulação antinegra, muito pelo medo dos rumores que desciam do Haiti", comenta ele.
Para Reis, na consolidação do Estado nacional brasileiro houve uma intenção de "não lembrança", de "não significação" dos elementos de luta negra, indígena, de gênero e, "sobretudo, de classe". "Eles são apagados em nome da manutenção do poderio da elite local, que 'faz', enfim, a Independência e dão sentido a ela."
Fonte: BBC News Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58468215
David Samuels: Bolsonaro tenta desviar foco de investigações contra sua família
Ao convocar massas populares às ruas, Jair Bolsonaro estará "apelando ao único instrumento" que tem: "mobilizar o povão"
Mariana Sanches/ BBC News Brasil
É o que argumenta o cientista político americano David Samuels, especialista em política brasileira da Universidade de Minnesota e autor do livro "Partidários, antipartidários e não-partidários: comportamento eleitoral no Brasil", em parceria com o cientista-político brasileiro César Zucco. O recurso, segundo Samuels, é fundamental para que o presidente brasileiro mostre aos demais poderes que segue sendo um ator político relevante.
Bolsonaro tem colecionado embates com as demais instituições. Ele antagoniza especialmente com o Supremo Tribunal Federal (STF), que tem barrado parte de suas iniciativas (tidas como inconstitucionais) e investiga o próprio presidente no Inquérito das Fake News, mas também afronta o Congresso ao desrespeitar decisões do Legislativo. No caso mais recente, embora tivesse se comprometido a abandonar a defesa pelo voto impresso caso a proposta fosse derrotada no plenário da Câmara, como foi, Bolsonaro não desistiu de encampar a ideia — e ameaçar a realização de eleições no ano que vem.
Para Samuels, apesar da retórica de Bolsonaro, que ele considera "golpista", o presidente não teria um claro plano de como tomar o poder e se perpetuar nele. "Qual seria o ponto em um golpe? O que o Bolsonaro faz então? No dia seguinte, ele ainda teria que se preocupar com covid, com o comércio internacional e a economia", afirma o pesquisador.
Samuels nota ainda a ausência de apoios entre as elites política, econômica e cultural para uma ruptura institucional. E a falta de endosso de atores internacionais importantes, como os Estados Unidos. Para o brasilianista, isso marca uma diferença fundamental com 1964.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Samuels à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza:
BBC News Brasil - Bolsonaro já disse que, se não houver voto impresso, pode não haver eleição em 2022. Ele também disse que vê apenas três possibilidades para o seu futuro: ser preso, ser morto ou a vitória. O que ele pretende com as manifestações de 7 de setembro?
David Samuels - Acho que primeiro ele está tentando demonstrar que tem apoio popular. A esquerda já não leva as pessoas às ruas como antes, e há muita energia, emoção e impulso entre as pessoas de direita no Brasil. Então, ele está tentando demonstrar a todos os outros Poderes que ele ainda pode ser um jogador político relevante. Mas acho que as manifestações de rua costumam ser exageradas em sua importância. Se você tiver 1 milhão de pessoas na rua, 1 milhão de pessoas na Esplanada dos Ministérios em Brasília, isso é 1% do eleitorado. É muita gente muito brava e ativa, mas ainda é um número bem pequeno de gente. E mesmo se você pensar que, para todos que apareceram nas ruas, talvez outros 10 (milhões) quisessem aparecer, ainda serão menos de 10% do eleitorado. Então, é uma tentativa de demonstração de força.
Outra coisa é que eu acho que ele está tentando desviar a atenção do potencial de seus filhos ou de ele mesmo ser preso, já que existem esses processos em andamento (da rachadinha dos gabinetes de Carlos e Flávio Bolsonaro e das fake news em que o próprio presidente é alvo). E se houver muito tumulto em Brasília ou em qualquer outro lugar do país, isso tirará esses casos dos holofotes e talvez até crie algum fato novo no Brasil. Acho que ele está claramente esperando por violência, que algum agente provocador comece a atirar, que haja alguma situação do tipo facada para fazê-lo parecer um mártir.
Bolsonaro é uma espécie de presidente acidental. Em 2018, as pessoas se viram entre escolher o PT ou o anti-PT, e ele era o claro candidato anti-PT. E então ele se torna presidente e realmente não sabe o que fazer, do mesmo modo que (Donald) Trump não sabia o que fazer. Ele diz vitória, morte ou prisão. Por que não há uma quarta opção, que é levar o Brasil para a frente? E isso é o que há de tão triste em sua presidência. Para mim, como observador estrangeiro, ele realmente teria uma chance de construir uma alternativa ao PT. Isso atrairia muitas pessoas. Mas esse não é o estilo dele. O estilo de Bolsonaro é, na verdade, o completo oposto de construir qualquer coisa. Ele é um destruidor. Tudo o que ele quer é pegar o fuzil e atirar, zerar os cartuchos e recarregar de novo. Esse é o seu modus operandi.
BBC News Brasil - É um modus operandi que funciona melhor para campanha do que para governo, não?
Samuels - Ele não tem um plano de governo. Não sabe costurar, construir coligações e alianças. Porque, na verdade, ele não tem nenhuma necessidade de alianças, porque ele não tem metas, não tem políticas públicas que queira aprovar.
O único instrumento que ele tem é seu apelo ao povão. E é também a única coisa que ele sabe fazer. É o que fazia quando era deputado e agora multiplique isso por 100 porque ele está na presidência. Essa é a única forma política que ele conhece porque foi sempre marginal na política, sempre se colocou como um outsider.
BBC News Brasil - O senhor disse que Bolsonaro espera por atos de violência. Há o risco de que a Esplanada dos Ministérios se converta na edição brasileira da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro?
Samuels - É possível. Ninguém pode prever esse tipo de evento que é sem precedentes, mas não quero descartar a possibilidade. Mas e daí? Temos violência, algo assim acontece, e o que acontecerá no dia seguinte? Eu simplesmente não vejo nem mesmo os militares entregando o poder a ele. E qual seria o ponto em um golpe? O que o Bolsonaro faz então? No dia seguinte, ele ainda teria que se preocupar com covid, com o comércio internacional e a economia.
Um golpe agora seria uma situação muito diferente de 1964. Nenhuma das principais instituições do Brasil está batendo as panelas por um golpe. Não há gente na grande mídia, entre os governadores, no Congresso, nenhum dos grandes atores que apoiaram 1964 estão agora clamando por um golpe militar. Não há interesse entre os chamados "faria limers", as elites econômicas, por um golpe. Ok, eles apoiaram Bolsonaro, mas muitos já o abandonaram porque a economia tem desempenho pífio e Bolsonaro não implementa políticas para ajudá-los a ganhar dinheiro.
As elites políticas funcionam da mesma maneira. Eles estão ok com o presidente enquanto conseguem recursos para enviar aos seus currais eleitorais, mas Bolsonaro não tem uma estratégia para ajudá-los a ganhar a reeleição. E se a economia realmente afundar, vai haver um sentimento anti-incumbente cada vez maior.
Apesar de todo o desejo de poder e força de Bolsonaro, ele parece ter esquecido o quão poderosa é a instituição Presidência da República. Ele entregou seu poder ao Congresso, ao Centrão, de uma maneira sem precedentes. É certamente algo novo ver um presidente que não quer governar. Vimos na história do Brasil presidentes que tentaram governar sem o Congresso, como Dilma (Rousseff) e (Fernando) Collor, e eles certamente pagaram um preço por isso. No caso de Bolsonaro, ele nem tenta, prefere ir ao Twitter ou às manifestações populares.
BBC News Brasil - O que o sr. está dizendo é que, enquanto ameaça com o golpe, o presidente apenas cede integralmente seu poder ao Congresso e ao Centrão? O que explica isso?
Samuels - Exatamente. Ele não tem um plano. Apenas circula por aí, no Twitter, com os seus apoiadores, dando as declarações mais bombásticas que consegue formular para atrair a atenção. Quanto a planos, ele deixa isso para outra pessoa. E essa é uma diferença entre Trump e Bolsonaro. Quando Trump foi eleito, o partido Republicano tinha um plano, e esse plano era interferir nos destinos do país pelos próximos 50 anos, ou impedir que o país mudasse para direções que eles não gostassem. E ter Trump os ajudou muito a formar uma maioria conservadora na Suprema Corte e reformar outros tribunais, a mudar as questões de impostos, a alterar certas políticas públicas.
Já Bolsonaro, não. Ele não conseguiu aglutinar o partido (PSL) em torno de uma agenda sua, e agora sequer tem partido. É muito provável que o bolsonarismo se encerre em Bolsonaro. Diferente do anti-petismo, que deve seguir vivo por muito tempo.
Nos EUA, grandes questões nacionais realmente polarizam os partidos e os eleitores, enquanto no Brasil, um congressista não depende de grandes temas nacionais pra se eleger. O que os faz vencer a eleição é trazer benefícios diretos pra suas bases, então o presidente tem um grande poder de barganha de liberar emendas em troca da aprovação de suas metas e políticas. Mas Bolsonaro simplesmente entregou na mão dos líderes partidários no Congresso todo esse poder, ele não está interessado em como o dinheiro vai ser dividido, já que não tem políticas claras.
BBC News Brasil - O sr. disse que Bolsonaro não tem planos. Mas o sr. identifica nele claros elementos de um político que pretende dar um golpe? Que elementos seriam esses?
Samuels - Com certeza. A retórica é um desses elementos, e essa retórica é a mesma de Trump. E acredito que haja mais uma semelhança com Trump. Trump não tinha exatamente nenhum plano para um golpe, acho que ele meio que esperava que o golpe simplesmente acontecesse. Ele realmente acreditava em sua própria retórica de que o número de votos de Joe Biden era irreal. Bolsonaro age da mesma maneira: parece acreditar que a ideia de que está perdendo apoiadores é fake news, que a mídia apenas o persegue e conta mentiras, que fatos não são reais. Isso é o que ele quer acreditar. Mas a questão é a seguinte: ele está realmente organizando alguma coisa para poder declarar seu Poder sobre os demais Poderes? Alguém realmente concorda com isso? Uma coisa é se autoproclamar algo, outra é ter quem obedeça ao que esses líderes autoproclamaram.
Não dá para dar um golpe e governar o Brasil se o seu apoio é só metade do contingente da Polícia Militar. Se esse é todo o apoio institucional que Bolsonaro tem, provavelmente isso não será suficiente. Até porque serão pessoas armadas desorganizadas, sem comando e essas são muito fáceis de serem dominadas. Não vejo grupos armados autônomos como um grande risco no Brasil hoje. Até porque os instrumentos de violência coercitiva do Estado, organizados, treinados e equipados, são muito mais poderosos.
BBC News Brasil - Mas e se os membros das forças policiais decidirem não atuar para conter distúrbios e manter a ordem?
Samuels - Esse é o problema primário que qualquer hierarquia, particularmente qualquer organização em que seus membros estejam armados, mais teme: a desordem em suas próprias bases. E, portanto, os líderes militares e policiais precisam realmente pesar a possibilidade de que alguns de seus colegas não o acompanhem e algumas das pessoas que os seguem não o acompanhem ou o façam de maneira ineficaz e relutante. Nesse caso, isso só leva a mais caos. Mas ao menos as Forças Armadas me parecem ter clareza que esse tipo de coisa causaria um impacto muito grande em sua imagem em relação ao público, na confiança em relação à instituição, e isso deveria estar sendo levado em conta.
BBC News Brasil - As Forças Armadas têm tido posicionamento ambíguo em relação ao presidente. Eles ocupam uma série de cargos no governo e recentemente promoveram um desfile de tanques na Esplanada dos Ministérios no dia da votação sobre voto impresso no Congresso. O sr. acredita que elas apoiariam um golpe de Bolsonaro?
Samuels - Esse risco existe, mas não sei mensurar o tamanho dele. Os oficiais têm e terão opiniões políticas e podem dizer coisas para obter um impacto político sem que necessariamente haja maiores consequências nisso. Mas é importante lembrar que não estamos em 1964, não temos elites unidas na ideia de que o Brasil precisa por fim à democracia, a Guerra Fria acabou faz tempo, não existem comunistas escondidos embaixo de cada pedrinha, o comunismo está morto.
Os políticos conservadores de direita, e isso não é só no Brasil, mas na Europa e nos Estados Unidos, gostam de se esquecer que o capitalismo e a democracia venceram a Guerra Fria porque para eles seria muito mais fácil localizar um claro inimigo a quem combater. Na ausência disso, transformam seus oponentes domésticos no inimigo a ser eliminado e isso tem ameaçado a democracia em diversos países.
E esse é um outro ponto: internacionalmente, Bolsonaro não conta com o contexto para um golpe. É certo que se os EUA estivessem se movendo para apoiar alguma tentativa de ruptura institucional, como historicamente já fizeram, isso aumentaria as chances de um golpe ter sucesso. Mas o que está acontecendo é o oposto a isso, silenciosamente a diplomacia americana atua contra a possibilidade de um golpe no Brasil.
BBC News Brasil - Os apoiadores de Bolsonaro dizem que estão tomando as ruas para defender a liberdade e a própria democracia. Fazem isso ao mesmo tempo em que atacam o Supremo Tribunal Federal e o Congresso, que são pilares democráticos. O que explica essa contradição?
Samuels - O que democracia significa para essas pessoas poderia ser chamado de autocracia na ciência política. Então, só é democracia se o meu candidato ganhar? Bom, não é assim que a democracia funciona, afinal. O problema é como argumentar com pessoas que pensam que se seu candidato perder, então é uma ditadura, suas liberdades estão cassadas.
Existe um conceito muito importante na ciência política que é o reconhecimento da derrota pelo perdedor: o candidato derrotado dizer: "bem, perdi, não estou feliz, mas vou viver para continuar lutando, disputando eleições, apontando falhas aos meus opositores". O que vemos hoje é que esse reconhecimento da derrota tem diminuído em grande medida, especialmente entre candidatos da direita e movimentos populistas, como o trumpismo e o bolsonarismo.
Uma razão pra isso é a polarização, com pessoas circulando apenas em sua bolha e consumindo apenas as notícias que reafirmam suas crenças, nas mídias sociais. Mas existem muitas outras razões mais profundas para isso.
A verdade é que existe muita disputa sobre o que significa a democracia em si. A maior parte das pessoas acha que é apenas o direito de votar, e só. Mas é muito mais do que isso. E existe sempre a tensão entre os direitos individuais e o poder da maioria. Porque se você é uma minoria que perdeu a eleição, você não perdeu seus direitos individuais, mas acontecerá uma série de coisas no seu país, na sua comunidade, que você não quer que aconteçam. Essa é sempre uma tensão entre o poder de quem ganha e os direitos inalienáveis de quem perdeu. E com a polarização, o que é considerado política pública legítima mudou, o sistema todo acaba sendo visto como ilegítimo porque implementa coisas a que eu me oponho, por exemplo.
Na prática, as pessoas deixaram de entender que as coisas que elas desejam individualmente tem consequências coletivas para a sociedade. De outro modo, há quem acredite que pessoas devam perder seus direitos individuais para que a sociedade prospere como um todo e a perda da vida de alguns indivíduos é um preço a pagar. É o que vemos com o libertarianismo de um lado, e o totalitarismo de outro.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58472779
Com popularidade em baixa, Bolsonaro tenta mostrar força nas ruas
Presidente tenta demonstrar força mobilizando um grande número de apoiadores em manifestações neste 7/9
Mariana Schreiber / BBC News Brasil
A expectativa é que os protestos terão como foco ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), Corte em que vêm sendo conduzidas investigações contra o presidente e seus aliados, por suposto compartilhamento de notícias falsas e ataques às instituições democráticas, como o próprio Poder Judiciário e o Congresso Nacional.
Na visão de apoiadores do presidente, essas investigações, conduzidas sob a supervisão do ministro do STF Alexandre de Moraes, têm cometido abusos e cerceado a liberdade de expressão, ao prender críticos da Corte e suspender suas redes sociais. Já os que defendem essas medidas dizem que essas pessoas cometem crimes ao ameaçar ministros do Supremo e defender o fechamento do STF e do Congresso Nacional.
Os principais atos em apoio a Bolsonaro estão previstos para ocorrer de manhã em Brasília e de tarde em São Paulo, mas outras mobilizações são aguardadas pelo país. A decisão dos organizadores de concentrar os esforços na capital federal e na maior cidade do Brasil, com reforço de caravanas de outras localidades, tem como objetivo tentar aumentar a dimensão desses atos, gerando imagens de grandes aglomerações em apoio a Bolsonaro.
Independentemente do tamanho das manifestações, há temor de que grupos mais radicais de apoiadores do presidente atuem com violência, o que levou os governos de São Paulo e do Distrito Federal a reforçar o esquema de segurança nas ruas.
Esse receio é reforçado pelo envolvimento de alguns policiais militares, da ativa e da reserva, na convocação dos atos, como Aleksander Lacerda, que foi afastado do comando de sete batalhões no interior de São Paulo, com 5 mil policiais, após usar suas redes sociais para estimular a presença nos atos desta terça-feira.
Em Brasília, estavam previstas barreiras para impedir a chegada de manifestantes na Praça dos Três Poderes, com objetivo de evitar tentativas de invasão ou depredação das sedes do STF e do Congresso, instituições que são vistas como inimigos do presidente por parte de seus apoiadores. E, segundo as autoridades, haverá também revista policial de manifestantes em Brasília e São Paulo para apreender eventuais armas de fogo e armas brancas levadas aos atos.
No entanto, na noite de segunda-feira (6), apoiadores de Bolsonaro furaram bloqueio da Polícia Militar e invadiram a Esplanada dos Ministérios. Inicialmente, o esquema de segurança não permitia a entrada de veículos no local, mas manifestantes retiraram as grades de segurança.
A previsão é que Bolsonaro discurse nas duas cidades. A dúvida é se manterá o tom mais radical de ataques ao Poder Judiciário adotado nos últimos dias.
Na sexta-feira (03/09), Bolsonaro disse que os atos de 7 de setembro serão um "ultimato" para dois ministros do STF, em referência a Alexandre de Moraes, que conduz as investigações contra o próprio presidente e seus apoiadores, e a Luís Roberto Barroso, que presidente o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Corte que abriu apuração contra os ataques presidenciais à urna eletrônica.
Já no sábado, em uma motociata no interior de Pernambuco, Bolsonaro falou na possibilidade de uma "ruptura" institucional.
"O STF não pode ser diferente do Poder Executivo ou Legislativo. Se lá tem alguém que ousa continuar agindo fora das quatro linhas da Constituição, aquele Poder tem que chamar aquela pessoa e enquadrá-la, e lembrar-lhe que ele fez um juramento de cumprir a Constituição. Se assim não ocorrer, qualquer um dos três Poderes, a tendência é acontecer uma ruptura", ameaçou.
"Ruptura essa que eu não quero nem desejo. Tenho certeza, nem o povo brasileiro assim o quer. Mas a responsabilidade cabe a cada poder. Apelo a esse Poder, que reveja a ação dessa pessoa que está prejudicando o destino do Brasil", discursou ainda.
'Mobilização para afastar riscos de impeachment e inelegibilidade'
Para Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria, os atos a favor do presidente não representarão de fato um "ultimato" ao STF, mas devem ter dimensões suficientemente grandes para manter afastada a possibilidade de um processo de impeachment contra Bolsonaro.
Há dezenas de pedidos de cassação contra o presidente, mas a abertura de um processo depende de uma decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira, que hoje é um aliado de Bolsonaro.
Além disso, afirma Cortez, o presidente também pretende com esses atos mostrar força suficiente para evitar alguma decisão mais incisiva do TSE para torná-lo inelegível em 2022.
A Corte Eleitoral conduz no momento uma investigação para apurar possíveis informações falsas disseminadas por Bolsonaro contestando a integridade do sistema eletrônico de votação, iniciativa que potencialmente pode barrá-lo da disputa presidencial.
"A minha expectativa é que haverá um número suficiente (de apoiadores nos atos desta terça) para manter a ideia atual por parte dos atores políticos institucionais, dos diversos Poderes, de que ainda existe um custo político para eventualmente uma ação forte (contra o presidente), seja em relação a um possível impeachment, seja em relação as condições formais de uma candidatura em 2022", acredita.
Popularidade em queda dificulta mobilização mais ampla
Na avaliação de Cortez, a queda de popularidade do presidente contribui para seu discurso mais radical, na medida em que, ao perder o apoio popular mais amplo que o elegeu em 2018, aumenta a necessidade de mobilizar sua base mais extremista.
Nas últimas semanas, sucessivas pesquisas de opinião, de diferentes institutos e consultorias, têm apontado para o crescimento da rejeição ao presidente. Levantamento do Poder Data realizado entre segunda (1/9) e quarta-feira (3/9) da semana passada, por exemplo, apurou que 63% dos entrevistados rejeitam o governo de Bolsonaro, enquanto apenas 27% o aprovam. Foram ouvidas 2.500 pessoas por telefone.
A pesquisa também indicou que se a eleição presidencial fosse hoje, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) venceria Bolsonaro em um segundo turno por 55% a 30%. Outras pesquisas também têm apontado o petista como favorito para o pleito de 2022, como levantamentos presenciais realizados pelo Instituto Datafolha e a consultoria Quaest em julho e agosto, respectivamente.
"A única forma de Bolsonaro vender a narrativa de que segue popular é pelas ruas. Passeatas, motociatas em lugares estratégicos, fotos grandiosas para colocar na parede do gabinete. Não tem valor estatístico, mas tem poder imagético", disse o cientista político Guilherme Casarões, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ao analisar a convocação dos atos de 7 de setembro em sua conta no Twitter.
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A queda de popularidade do presidente ocorre em um contexto de aumento da inflação — com preço mais alto de itens básicos como alimentos, energia, gás de cozinha e combustíveis — e persistência do desemprego elevado.
Além disso, se avolumaram as suspeitas apuradas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 de possíveis irregularidades na compra de vacinas, ao mesmo tempo que se intensificaram as denúncias contra Bolsonaro e seus filhos de supostos esquemas de rachadinhas (desvios de verba do gabinete parlamentar) em seus mandatos no Poder Legislativo (Bolsonaro foi deputado federal por quase três décadas antes de assumir a Presidência da República).
Na revelação mais recente, Marcelo Luiz Nogueira dos Santos disse ao portal Metrópoles que devolvia 80% do seu salário quando era funcionário do ex-gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), entre 2003 e 2007. Quem recolhia os valores, segundo ele, era a então mulher de Bolsonaro, Ana Cristina Valle.
Hoje senador, Flávio foi denunciado em novembro passado criminalmente pelo Ministério Público do Rio de Janeiro justamente sob a acusação de desviar recursos da Alerj ao recolher os salários de funcionários do seu gabinete, mas a Justiça ainda não decidiu se abrirá um processo contra ele.
Marcelo Santos — que foi também babá do quarto filho do presidente, Jair Renan — disse ainda ao portal Metrópoles que o esquema de rachadinha era replicado no gabinete de vereador do Rio de Janeiro de Carlos Bolsonaro (PSC). As acusações foram publicadas dias depois da Justiça do Rio de Janeiro determinar a quebra de sigilo fiscal de Carlos, dentro da investigação que apura esse suposto esquema.
Carlos e Flávio têm negado qualquer ilegalidade e se dizem vítimas de perseguição com objetivo de atingir seu pai. O presidente, por sua vez, tem optado pelo silêncio ao ser confrontado com essas acusações.
Ele não esclareceu, por exemplo, a informação de que Fabrício Queiroz, apontado como operador do esquema de rachadinha de Flávio Bolsonaro, depositou R$ 89 mil em cheques para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. A informação foi revelada há um ano, a partir da quebra de sigilo de Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58470564
A catastrófica reação em cadeia à seca do rio Paraná
Quando um rio seca, a tragédia é visível. Suas águas desaparecem, dando lugar a uma paisagem terrosa e estampada com novas ilhas
Juliana Gragnani / BBC News Brasil
Por trás dessa imagem, contudo, uma série de eventos catastróficos começam a acontecer em cadeia, como num efeito dominó.
O caudaloso rio Paraná, que percorre quase 5 mil quilômetros desde sua nascente no Brasil até sua foz no Rio da Prata, está secando. Trata-se do segundo maior rio da América do Sul depois do Amazonas, um que alimenta importantes afluentes, como o Iguaçu, onde ficam as cataratas, e que drena o sul do continente - Paraguai, Argentina, Bolívia e o sul do Brasil. É ali, na fronteira entre Brasil e Paraguai, que fica a Usina Hidrelétrica de Itaipu.
A pior seca em 91 anos no Brasil causou uma diminuição histórica das águas do rio, afetando sua navegabilidade, por onde há exportação agrícola e industrial, e quem depende dele para sobreviver. Com a estiagem, sofrem pescadores da beira do rio, trabalhadores de hidrovias, operadores logísticos, empresários do agronegócio e, claro, a população brasileira, vítima da alta de preços e de uma grave crise energética.
Sem contar os vizinhos argentinos e paraguaios, com problemas semelhantes, principalmente em relação ao escoamento de produção.
Essa reação em cadeia a um só evento ilustra temores do que nos espera no futuro, com a emergência do clima e mais eventos climáticos extremos, como previsto no último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre o Clima da ONU). Por causa da ação humana, o planeta está aquecendo, fato que já vem provocando consequências alarmantes. Na América do Sul, o aumento da seca e da aridez é uma das previsões do grupo de cientistas da ONU.
No caso do Paraná, especialistas apontam o desmatamento descontrolado, a crise do clima e ciclos naturais como causas da seca dos últimos anos. A diferença, diz Oscar Fernandez, professor de Geografia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (campus de Marechal Cândido Rondon), é que a população que habita essa região hoje em dia é muito mais numerosa. "Há 91 anos, quando houve uma seca assim nessa região, a população era muito menor, então o impacto sobre a população também era muito menor."
Com tanta gente que depende das águas do rio Paraná - alguns de maneira óbvia, outros de forma indireta -, a BBC News Brasil explica nesta reportagem a reação em cadeia causada por sua seca.
A vida dos peixes e a pesca
"Ao sul de Iguaçu, já tem lugares que pessoas estão passando à pé porque o rio está muito raso", diz Fernandez. E isso afeta diretamente a fauna do rio.
"Com a diminuição da profundidade do rio, o peixe vai perdendo seu habitat, e sua reprodução é afetada. Os peixes têm espaços exclusivos para a desova e espaços para seu desenvolvimento. Todos esses habitats diminuem ou desaparecem com a seca do rio."
O turismo pesqueiro e a pesca para subsistência são atividades comuns no rio Paraná. No trecho do rio do outro lado da fronteira brasileira, na Argentina, há várias colônias de pescadores e relatos de milhares de famílias de pescadores enfrentando uma crise pela seca do rio.
No Brasil, também há registros de que peixes estão sendo afetados. Para guardar água e conseguir suprir a demanda de energia nos próximos meses (mais sobre isso no fim da reportagem), o Ministério de Minas e Energia recomendou que algumas usinas do rio Paraná reduzissem sua vazão.
Entre elas, a Porto Primavera, que fica entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. A diminuição de sua vazão, segundo a Companhia Energética de São Paulo (Cesp), foi "parte de uma forma emergencial de mitigar os efeitos da seca nas demais usinas que compõem o sistema".
Com a redução da vazão, as laterais do rio baixaram e lagoas isoladas se formaram, ameaçando a fauna que vive ali.
Por isso, foi preciso fazer o resgate de peixes. A Cesp diz ter realizado avaliação, rastreio, resgate e transposição de peixes para áreas seguras.
Foram resgatadas cerca de 2 toneladas de peixes nativos, que foram transportados para o leito do rio. Além disso, foram retiradas 2,5 toneladas de peixes mortos. Segundo a Cesp, 90% desses peixes eram de espécies exóticas, da região amazônica, que foram introduzidas na bacia do rio Paraná e são mais sensíveis ao frio.
O uso da hidrovia e a alternativa mais poluente
Uma das principais hidrovias do país, a Tietê-Paraná encerrou os trabalhos em 2021. O motivo? Falta água para viabilizar a navegação.
Pelos 2,4 mil quilômetros de extensão da hidrovia escoam grãos do Centro-Oeste, parte de Rondônia, Tocantins, Minas Gerais e São Paulo. Parte dos produtos seguem em ferrovia ou rodovia para o porto de Santos e saem para exportação - daí a localização da hidrovia ser tão estratégica. O porto de Santos é o maior da América Latina.
Cerca de 3,5 a 4 milhões de toneladas de produtos agropecuários, como milho, soja, cana-de-açúcar e etanol, são transportados por ano por ali, diz o presidente do Sindicato dos Armadores de Navegação Fluvial do Estado de São Paulo (Sindasp), Luizio Rizzo.
A hidrovia já havia ficado paralisada por quase todo 2014 e 2015 também por causa da escassez hídrica. Dessa vez, diz Rizzo, a expectativa é voltar em janeiro.
Segundo ele, a estimativa de produtos agropecuários que seriam levados pela hidrovia entre agora e dezembro é em torno de 1,5 milhão de toneladas. O impacto econômico, estima ele, é de R$ 3,5 bilhões, considerando perdas com transporte, renda geral dos municípios e dos produtores.
Além disso, o fechamento da hidrovia impacta também seus trabalhadores: ao longo do rio, trabalham os estaleiros de manutenção e de construção naval, além dos marinheiros que viajam nas barcaças, com chefe de máquina, cozinheiro, entre outros. Há 1.500 pessoas empregadas diretamente. E há empresas, diz Rizzo, que já demitiram 90% de seus funcionários.
"Esse fantasma da paralisação da hidrovia do Tietê, sem expectativa de retorno, estava nos assombrando", diz Elisangela Pereira Lopes, assessora técnica de infraestrutura e logística da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil.
Outro fechamento como o de 2014-2015 acaba afastando investimentos privados e criando insegurança jurídica, diz ela. Rizzo cita este problema como o mais grave de todos: "Hoje há muitas empresas que querem investir, mas não investem por falta de confiança no modal. As empresas estão recuando com projetos", diz ele.
O dissabor com o desincentivo ao investimento se acentua porque essa forma de transporte é uma das mais sustentáveis e baratas. Lopes elenca as vantagens de uma hidrovia: apesar de ser a matriz de transporte minoritária no Brasil (só 4% dos grãos são transportados assim), a hidrovia é muito mais sustentável que o transporte rodoviário.
Enquanto o transporte por caminhões produz 100 gramas de Co2 a cada tonelada por quilômetro transportado, na hidrovia são 20 gramas. Além disso, é um transporte mais barato, já que carrega muito mais: uma barcaça pode transportar até 6 mil toneladas, enquanto caminhões carregam de 35 a 40 toneladas. O valor chega a ser 35% do valor do transporte rodoviário.
Ou seja, no caso da Hidrovia Tietê-Paraná, que transporta 10 milhões de toneladas de produtos por ano (incluindo os 3,5 milhões de produtos agropecuários), são 250 mil viagens de caminhões retiradas por ano das estradas.
"Caminhões produzem externalidades negativas, como acidentes, depreciação da via, altos custos de transporte e poluição", diz Lopes.
A logística do agronegócio e o consumidor
Assim, a suspensão da hidrovia afeta a logística do agronegócio, que não pode escoar grãos por ali nem subir insumos pelo rio, afetando a safra seguinte.
Com a paralisação da hidrovia, diz Lopes, "o produtor rural terá de assumir o custo, reduzindo sua margem de lucro".
Também entram na conta o embarcador, o transportador, o elo todo, diz ela.
E, como a alternativa rodoviária é mais cara, isso pode chegar até o consumidor. Se os produtos estiverem atendendo o mercado interno, "acaba ficando mais caro também para a sociedade como um todo, para o Brasil", diz Lopes. "O produto chega mais caro na gôndola de supermercado."
Rizzo concorda. "Os produtos vão ter que sair de caminhão e de trem, que têm um frete mais caro que a hidrovia. Quando aumenta o frete, isso acaba refletindo em tudo. Na cadeia, sobe o preço da ração, do óleo… e quando esse produtor for comprar insumo, como aumentou o preço do frete, vai encarecer o fertilizante que ele vai comprar. No final da conta, quem paga somos nós. Vai refletir na mesa do consumidor", diz.
Exportação dos países vizinhos
Apesar de o Brasil sofrer com a seca do rio, são nossos vizinhos que pagam uma conta mais alta.
O Paraguai, por exemplo, exporta a maior parte de sua produção por meio do transporte fluvial. O país utiliza a via do rio Paraguai, que nasce no Brasil, passa pela Bolívia, atravessa o Paraguai e se junta ao rio Paraná. Por meio desse extenso caminho da hidrovia Paraguai-Paraná, o Paraguai leva cargas a portos do Uruguai e da Argentina para exportação.
A Argentina, maior exportador de farelo de soja do mundo, também sente a crise, já que utiliza o rio Paraná para escoar sua produção pelo porto de Rosário. Como os produtores brasileiros, os argentinos estão tendo de buscar outras rotas para exportar sua carga, aumentando o custo do frete. Além disso, navios já tiveram de cortar a quantidade de carga que estão transportando para poder navegar no rio.
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, declarou em julho um estado de emergência hídrica durante 180 dias em diversas províncias, incluindo a de Buenos Aires.
A crise de energia
Com a pior crise hidrológica desde 1930 e um país que produz a maior parte de sua energia por meio de hidrelétricas (63,2%, segundo dados do ONS), é possível que o Brasil tenha problemas na geração de energia elétrica. Nos últimos sete anos, os reservatórios das usinas no país receberam volume de água inferior à média histórica, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
O ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque fez um pronunciamento em cadeia nacional na semana passada sobre a crise energética. Ele pediu que a população desligasse luzes e aparelhos fora de uso, reduzisse o uso de chuveiros elétricos, aparelhos de ar-condicionado e ferro de passar roupa.
"O período de chuvas na região Sul foi pior que o esperado. Como consequência, o nível dos reservatórios de nossas usinas hidrelétricas das regiões Sudeste e Centro-Oeste sofreram redução maior que a prevista", declarou.
O temor é que o país não tenha energia elétrica suficiente para atender a demanda nos horários de maior consumo no fim do ano, com risco de apagão.
O rio Paraná entra nessa conta, claro - faz parte da bacia com maior capacidade instalada de geração de energia hidroelétrica no país, por volta de 60%. Além disso, cerca de um terço da população brasileira vive nesta região.
Para Paulo César Cunha, consultor da área de energia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o conjunto de bacias que deságuam na bacia do Paraná é "a mais relevante" do Brasil. "É nosso principal conjunto de rios e barragens, onde ficam os principais sítios de geração de energia."
Uma seca nessa região, portanto, "é preocupante".
A seca afeta a geração de energia de duas formas, ele explica: na vazão da água, ou seja, a quantidade de água que passa nas turbinas, e na altura da água do rio, que define a potência de energia que a máquina consegue produzir.
Em um estudo prospectivo de agosto deste ano, o ONS declarou que "os níveis de armazenamento dos reservatórios localizados na bacia do rio Paraná não se recuperaram de forma satisfatória ao longo do período úmido 2020/2021".
A situação hidrológica da bacia do rio Paraná, que engloba as bacias dos rio Paranaíba, Grande, Tietê e Paranapanema, é "crítica", e as usinas dessa bacia são "de extrema importância para a operação do SIN (o Sistema Interligado Nacional, ou sistema de produção e transmissão de energia elétrica do Brasil), pois os recursos neles estocados são capazes de garantir energia nos períodos secos, quando não há contribuições significativas das usinas instaladas na região Norte do País", diz o relatório.
Por isso a diminuição da vazão adotada em algumas usinas, com o objetivo de guardar água para a geração de energia. "Só que isso prejudica os outros usos da água, como a navegação, a pesca e a irrigação", diz Cunha.
O relatório da ONS diz que não há expectativas de chuva que proporcionem melhoria nos armazenamentos dos reservatórios até o próximo período chuvoso e que, "considerando a relevância hidroenergética das usinas hidroelétricas localizadas na bacia do rio Paraná (...), a situação hidroenergética desfavorável na qual se encontra a bacia do rio Paraná requer atenção".
Na perspectiva de médio prazo, avalia Cunha, a situação é "muito ruim". Os anos seguidos com poucas águas vai fazendo o terreno ficar "impróprio, muito seco", diz ele. "Até conseguir uma nova situação de água acumulada que permita voltar à normalidade, teria que ter bastante água por bastante tempo."
Contudo, para ele, até o final de 2021, o país terá condições para gerar energia. "Sempre tem o risco de apagão, e o risco aumentou. Mas 2022 é uma incógnita. Se as chuvas que começarem em novembro forem tão ruins como do ano passado, será preocupante. O que pode salvar 2022 é a chuva do período úmido."
De qualquer forma, o preço da energia já subiu. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) anunciou na semana passada uma nova modalidade de bandeira tarifária, a "Escassez Hídrica", com valor de R$ 14,20 /100 kWh, que já entrou em vigor e terá validade até 30 de abril de 2022. O Ministério de Minas e Energia estimou que a nova bandeira gerará aumento de 6,78% na tarifa de luz para os consumidores.
"O preço sobe, os custos de maneira geral sobem, e espera-se que o consumo se reduza", diz Cunha. "Isso tem interferência no conforto e na produção: surtos de crescimento econômico acabam sendo frustrados porque a energia fica tão cara que as pessoas não conseguem usar adequadamente", diz ele, citando mais algumas das reações em cadeia à seca nessa região.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58441586
Carta: Brasil vive ameaça de 'insurreição' antidemocrática
Grupo composto por políticos de 27 países alerta para "insurreição" e riscos à democracia brasileira neste Sete de Setembro
BBC Brasil
"Estamos muito preocupados com a iminente ameaça às instituições democráticas brasileiras, e estaremos vigilantes do 7 de Setembro em diante. Os brasileiros lutaram décadas para garantir a democracia ante o regime militar, e não se pode deixar que Bolsonaro roube isso deles agora."
Para os signatários da carta, divulgada na segunda-feira (6/9), as manifestações convocadas por Bolsonaro e seus aliados, como "grupos racistas, policiais militares e autoridades do governo federal", buscam intimidar instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso e ampliam os temores de golpe de Estado na terceira maior democracia do mundo.
O presidente brasileiro, como cita o documento, tem ampliado suas ameaças autoritárias. Ele já disse publicamente diversas vezes que pode impedir a realização de eleições presidenciais em 2022. Pesquisas de intenção de voto apontam como favorito o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em suas declarações, Bolsonaro tem deixado de lado a defesa do voto impresso (proposta derrotada no Congresso) e passado a acusar ministros do STF de atuar fora da Constituição, o que lhe serviria de pretexto para agir "fora das quatro linhas da Constituição".
Os signatários da carta aberta contra os protestos de 7 de Setembro citam uma mensagem compartilhada por Bolsonaro que fala em "contragolpe" contra o Congresso, o Judiciário e a esquerda, que teriam, sem apresentar provas, perseguido o presidente e esvaziado seu poder.
Bolsonaro, seus filhos e aliados se tornaram alvo de investigações sob suspeita de ligação com atos antidemocráticos, ataques a ministros do Supremo e disseminação de informações falsas, entre outras acusações. Além disso, o STF também garantiu que prefeitos e governadores agissem com autonomia na pandemia de covid-19, o que é visto por Bolsonaro como um ataque a suas prerrogativas.
O documento sobre os riscos dos protestos no Brasil foi assinado por 158 líderes políticos e ativistas, entre eles José Zapatero (ex-primeiro-ministro da Espanha), os ex-presidentes Ernesto Samper (Colômbia), Fernando Lugo (Paraguai), Martín Torrijos (Panamá) e Rafael Correa (Equador), além de parlamentares de países como Reino Unido, EUA, França, Espanha, México, Alemanha, Argentina, Chile, Austrália, Grécia e Nova Zelândia.
Na carta, os signatários comparam os protestos de 7 de Setembro com a invasão do Congresso dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021 por apoiadores incitados pelo então presidente Donald Trump, que não aceitava a derrota nas urnas para Joe Biden.
O ato, que acabou com cinco mortos, foi considerado uma tentativa de golpe de Estado por alguns políticos e especialistas ao tentar impedir a oficialização do resultado das urnas.
Depois da invasão violenta na capital dos EUA, dezenas de manifestantes acabaram identificados pela polícia e condenados à prisão pela participação na insurreição.
Temores de violência em Brasília e SP no 7 de Setembro
Os protestos marcados para 7 de setembro em Brasília e em São Paulo, principalmente, têm despertado temores de violência física e patrimonial.
O STF, por exemplo, estabeleceu planos para "todos os cenários possíveis": de manifestação pacífica a tentativas de depredação e invasão do edifício. O clima entre os ministros da Corte é de preocupação e atenção à adesão de policiais militares aos protestos (algo proibido por lei) e à reação de Bolsonaro caso haja violência ou ataques ao Congresso ou Supremo.
Para tentar mitigar riscos de manifestantes tentarem invadir o Congresso e o Supremo, ou até jogar bombas caseiras nos edifícios, o Governo do DF decidiu restringir os atos à Esplanada dos Ministérios.
Isso significa que os manifestantes não poderão "descer" a avenida em direção à Praça dos Três Poderes, onde ficam Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal.
Em São Paulo, onde Bolsonaro também discursará, está previsto um forte de esquema de segurança para acompanhar a manifestação na avenida Paulista e evitar confrontos violentos com participantes de protestos ligados a grupos de esquerda a poucos quilômetros dali, no vale do Anhangabaú. Atos como o Grito dos Excluídos ocorrem tradicionalmente no 7 de setembro, feriado nacional em homenagem à independência do país.
Eventual participação de militares e policiais militares
Pela legislação brasileira, nenhum militar ou policial militar da ativa pode participar de atos políticos com símbolos que remetam às instituições onde eles atuam. Só podem participar de manifestações se estiverem à paisana, como cidadãos comuns, e desarmados.
Se descumprirem essa regra, podem ser enquadrados no Código Penal Militar pelos crimes de motim ou revolta (quando há dois ou mais envolvidos). E as penas podem chegar a 20 anos de prisão em regime fechado.
Mas há expectativa de que número significativo de policiais da reserva ou de folga no dia compareçam aos protestos.
Especialistas explicam que a lei permite que qualquer cidadão peça mudanças de políticas públicas, desde que seja de maneira democrática. Mas esse não é o caso, segundo eles.
"Não é um pedido de mudança de política pública. Está claro nas entrelinhas que eles querem uma quebra na democracia. É um discurso como se fosse a favor da democracia, mas pedem que não tenha um Congresso que atrapalhe Bolsonaro, sem STF e sem um Poder Judiciário independente", disse Luiz Alexandre Souza da Costa, cientista político, professor da Uerj e major da reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em entrevista à BBC News Brasil.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58466032
Seis crises que Bolsonaro tenta estancar com ato de 7 de setembro
Leandro Machado / BBC News Brasil
Se por um lado Bolsonaro diz que "nunca outra oportunidade para o povo brasileiro foi tão importante ou será importante quanto esse nosso próximo 7 de setembro", 9 milhões de brasileiros entraram para a lista de pessoas em situação de fome no ano passado, uma alta de 84,4% em relação a 2018.
Embora Bolsonaro e seus seguidores digam que não acreditam em pesquisas de opinião, a aprovação de seu governo atingiu o pior nível desde o início da gestão em 2018. Em julho, 51% dos entrevistados classificaram o governo como ruim ou péssimo, segundo levantamento Datafolha.
Além disso, as notícias das últimas semanas não são muito favoráveis a Bolsonaro:
O Brasil já tem mais de 580 mil mortes na pandemia e, agora, pode enfrentar uma crise energética; em meio à alta da inflação, o Produto Interno Bruto (PIB) registrou uma queda de 0,1% no segundo trimestre deste ano; a proposta de voto impresso defendida por bolsonaristas foi derrotada na Câmara dos Deputados; o presidente hoje responde a cinco inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE); a CPI da covid-19, em curso no Senado, investiga uma série de denúncias de corrupção na compra de vacinas pelo Ministério da Saúde.
Os protestos de 7 de setembro são vistos com preocupação por parte do Judiciário e dos governadores. O receio é que ocorram episódios de violência em meio à radicalização de Bolsonaro, que vem reiteradamente ameaçando a democracia e as eleições do próximo ano. Também há expectativa de que policiais militares participem do ato, o que é proibido por lei.
A rede bolsonarista rechaça a possibilidade de violência, e argumenta que as manifestações reivindicam "liberdade de expressão" para conservadores, que se veem perseguidos pela Justiça e por plataformas de redes sociais. Por outro lado, em grupos no Whatapp há pedidos por um "saneamento" do Congresso e do STF, além da defesa do voto impresso e do tratamento precoce contra a covid (tratamento esse com uso de medicamentos sem eficácia comprovada).
Abaixo, a BBC News Brasil explica algumas dessas nuvens que Bolsonaro tenta dissipar com o ato de 7 de setembro e como elas podem afetar seu governo e as eleições presidenciais do próximo ano.
1. Alta da fome
Em 2020, cerca de 19 milhões de pessoas viviam em situação de fome no país, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil. Em 2018, eram 10,3 milhões. Ou seja, em dois anos houve uma alta de 84,4% (ou quase 9 milhões de pessoas a mais).
Já um estudo do grupo de pesquisas Food for Justice, da Universidade Livre de Berlim, apontou que, em abril de 2021, 59,4% dos domicílios do Brasil se encontravam em situação de insegurança alimentar — quando uma família diz ter preocupação com a falta de alimentos em casa ou já enfrenta dificuldades para conseguir fazer todas as refeições.
No começo de agosto, Bolsonaro entregou ao Congresso uma Medida Provisória para criar o Auxílio Brasil, programa social que substituirá o Bolsa Família.
O plano inicial era aumentar o valor repassado às famílias, com a expectativa de melhorar esses índices, mas também turbinar a avaliação do presidente na camada mais pobre da população.
Porém, nesta semana, o governo enviou ao Congresso uma proposta de orçamento que prevê, para 2022, o mesmo valor repassado ao Bolsa Família neste ano - R$ 34,7 bilhões.
Para o cientista político Sérgio Praça, professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, o reajuste era a última esperança de Bolsonaro conseguir melhorar sua popularidade.
"Acho que o governo não tem mais como sair do buraco em que se enfiou durante a crise da pandemia. Há um acúmulo de crises, tanto econômicas como políticas. O aumento do benefício seria um grande trunfo, talvez o único, que poderia fazer o Bolsonaro recuperar sua popularidade perdida", diz.
2. Reprovação a Bolsonaro cresce
Uma pesquisa Datafolha divulgada no início de julho apontou que a reprovação a Bolsonaro subiu e atingiu 51% da população, pior número do presidente desde que ele iniciou seu mandato, em janeiro de 2019.
Já a avaliação positiva ficou no mesmo patamar da pesquisa anterior, de março, com 24% das pessoas considerando o governo bom ou ótimo - esse também é o pior resultado de Bolsonaro desde o início da gestão.
A situação do presidente fica pior entre a parcela que ganha até dois salários mínimos - esses são 57% da população. Nesse grupo, 54% das pessoas reprova Bolsonaro - em março, eram 45%.
Para Mauro Paulino, diretor do Datafolha, a erosão da popularidade do presidente se explica por uma série de fatores, como a condução desastrosa do governo na pandemia, as altas do desemprego, da inflação e da fome - fatores que fazem a diferença no cotidiano dos mais pobres.
Pesquisas de intenção de voto mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como favorito para o pleito de 2022. No Datafolha, o petista aparece com 46% das intenções de voto no primeiro turno, enquanto Bolsonaro marca 25%. Em um cenário de segundo turno entre os dois, Lula venceria com ampla margem: 58% a 31%. Bolsonaro perderia em todas simulações de segundo turno: tanto para João Doria (PSDB), como para Ciro Gomes (PDT).
"Sem dúvida, o caminho de Bolsonaro é mais difícil do que de Lula. O presidente enfrenta um noticiário negativo diariamente, com uma série de crises. Já Lula não tem aparecido na mídia de maneira negativa. Quanto mais o governo Bolsonaro piora, melhor Lula se sai nas pesquisas. A eleição terá uma forte disputa entre quem será o candidato que vai disputar o segundo turno com Lula", diz.
Mas Paulino pondera: "Ainda estamos na linha de largada. Bolsonaro tem a máquina do governo nas mãos, além de apoio no Congresso. Esses fatores podem fazer diferença até as eleições. Nada está definido", diz.
3. Denúncias de corrupção
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), no Senado, é outro dos problemas de Bolsonaro nos últimos meses.
Inicialmente, os senadores investigavam as ações e omissões do governo federal na condução da pandemia que já matou mais de 580 mil brasileiros desde março do ano passado.
Porém, nos últimos meses, uma série de denúncias de corrupção dentro do Ministério da Saúde ganharam o foco da comissão, como suspeitas de que servidores pediram propina para liberar a compra de vacinas contra a covid-19.
Uma das investigações aponta para uma suposta participação do líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (Progressistas), em um esquema de propinas na compra do imunizante indiano Covaxin. Ele nega. O governo cancelou a licitação.
Nesta semana, outra denúncia ganhou as manchetes: a CPI apontou que o motoboy Ivanildo Gonçalves, funcionário da empresa VTCLog, teria pago ao menos quatro boletos de Roberto Dias, então diretor de logística do Ministério de Saúde, indicado ao cargo pelo deputado Ricardo Barros.
A VTCLog é uma empresa de logística contratada pela pasta para cuidar da armazenagem e distribuição de medicamentos e vacinas no Brasil - ela é investigada por suspeitas de irregularidades em contratos com o ministério.
Nos últimos meses, o motoboy, que ganha menos de R$ 2 mil por mês, sacou mais de R$ 4 milhões em espécie a mando da companhia. Em depoimento à CPI, ele confirmou que pagava boletos a pedido de seu empregador, embora não soubesse se eles eram de Roberto Dias. O ex-servidor nega irregularidades.
"A CPI pegou um ponto sensível de Bolsonaro: ele sempre dizia que em seu governo não havia corrupção. O noticiário constante sobre a CPI desgastou bastante a imagem de Bolsonaro, inclusive entre seus apoiadores mais fiéis", diz Paulino, em entrevista à BBC News Brasil, por telefone.
"Bolsonaro tem 11% de eleitores fiéis, que dizem votar nele de qualquer jeito. No ano passado, esse número já foi de 17%, o que praticamente o garantia no segundo turno das eleições. Mas muita gente que acreditava no discurso de combate à corrupção se decepcionou", diz.
4. Situação energética se agrava
Na última terça-feira, Jair Bolsonaro festejou com seguidores e andou de cavalo, segurando uma bandeira do Brasil, em visita à cidade de Uberlândia, em Minas Gerais. Poucas horas depois, coube ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão para dizer que "nossa condição energética se agravou".
Com a pior escassez de chuvas nos últimos 91 anos e reservatórios na casa dos 20%, Albuquerque pediu que os brasileiros economizem energia elétrica, principalmente em horários de pico, reduzindo o uso de ar-condicionado, ferro de passar e chuveiro elétrico.
Porém, em seu discurso, o ministro não citou mais um aumento na conta de energia elétrica aprovado horas antes pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica): uma nova bandeira tarifária, chamada "bandeira escassez hídrica", no valor de R$ 14,20 por 100 kWh.
O ministro afirmou que o risco de "racionamento de energia é zero", mas o vice-presidente, Hamilton Mourão, admitiu que um racionamento "não está descartado".
5. PIB pífio, inflação em alta
O frustrante resultado do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro também está à porta de Bolsonaro. No segundo trimestre, ele registrou queda de 0,1% em relação ao primeiro, divulgou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) nesta quarta-feira.
O resultado representa um freio em relação ao crescimento de 1,2% do PIB no primeiro trimestre, na comparação com o quarto trimestre de 2020, quando o bom desempenho da atividade foi puxado pela agropecuária, indústria e serviços.
Para o ministro da Economia, Paulo Guedes, o resultado ruim se explica por um "trimestre trágico da pandemia", ressaltando que a economia voltará a crescer em breve.
"Justamente abril, maio e junho deste ano, quando entrou de novo o auxílio emergencial, nós mantivemos a responsabilidade e o compromisso com a saúde do brasileiro", disse.
Outros indicadores econômicos também não são nada animadores para Bolsonaro: 14 milhões de pessoas estão desempregadas no país, o dólar é operado na casa de R$ 5,20 e a inflação chegou a 8,99% nos últimos 12 meses, acima da meta do governo, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE.
"Os mais afetados pelo conjunto de crises são os mais pobres, e essa é a camada que decide as eleições. O rescaldo da pandemia e como a economia vai reagir serão decisivos na eleição", diz Paulino.
6. Rejeição do voto impresso, inquéritos no STF
Uma das principais bandeiras políticas de Bolsonaro nos últimos meses caiu por terra em agosto: a proposta de voto impresso. Sem apontar provas, o presidente afirmava que há risco de fraudes nas próximas eleições e que seria necessário adotar a impressão do voto como alternativa para a checagem dos resultados.
A proposta, amplamente criticada por adversários, aliados e Justiça Eleitoral, foi enterrada na Câmara dos Deputados, mesmo com governo tendo maioria na Casa.
Durante a celeuma, Bolsonaro novamente divulgou mentiras sobre o processo eleitoral e fez ameaças golpistas contra a realização das eleições, o que levou o TSE a apresentar uma notícia-crime contra ele.
Alexandre de Moraes, ministro do STF, aceitou o pedido, abrindo uma investigação contra o presidente dentro do inquérito que apura a produção de notícias falsas. Esse é um dos cinco inquéritos que o mandatário enfrenta no Supremo e no TSE.
Bolsonaro e seus seguidores reclamam da atuação do Supremo, alegando que o Judiciário interfere em outros Poderes e que essas investigações deveriam passar antes pela Procuradoria-Geral da União (PGR), a quem cabe abrir um inquérito contra o presidente.
Logo depois, Bolsonaro apresentou ao Senado um pedido de impeachment de Alexandre de Moraes. Outra derrota: o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), rejeitou a solicitação, alegando não haver "justa causa" para o afastamento do ministro.
Nesta semana, a Justiça provocou mais um revés: o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou a quebra dos sigilos fiscal e bancário de Carlos Bolsonaro, vereador do Rio pelo Republicanos, em uma investigação que apura a contratação de funcionários "fantasmas" no gabinete do filho do presidente na Câmara Municipal.
Na quinta, o portal Metrópoles publicou uma entrevista com Marcelo Luiz Nogueira Nogueira dos Santos, ex-funcionário da família Bolsonaro. Segundo ele, a ex-mulher do presidente,. Ana Cristina Valle, comandava um esquema de rachadinhas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.
Santos afirmou que foi nomeado no gabinete de Flávio, mas precisava devolver à família 80% de seus rendimentos na Assembleia Legislativa do Rio. A família Bolsonaro ainda não se pronunciou sobre o assunto até a publicação desta reportagem.
Críticas às atuações do Supremo e do TSE, além da defesa do voto impresso, estão entre os principais motivos do protesto de 7 de setembro.
Para Sérgio Praça, da FGV, essas pautas causam bastante barulho principalmente nas redes sociais bolsonaristas, mas não engajam a maior parte da população. "A grande maioria das pessoas é indiferente a esses temas, que circula muito nas mídias sociais. Acho que no momento o povo quer emprego e renda, não está interessado em tanque e fuzis", diz.
Já Mauro Paulino diz que as manifestações têm grande potencial de repercussão. "Se o protesto for grande, as imagens vão circular bastante. E isso pode ter um impacto importante e melhorar um pouco a imagem do presidente."
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58416247
Querem nos segregar, diz jovem com deficiência sobre decreto de Bolsonaro
Quando Manu Aguiar nasceu com paralisia cerebral, em 1993, o médico disse à mãe da menina que ela não iria falar e não ia andar
Letícia Mori / BBC News Brasil
Hoje aos 28 anos, Manu não só fala e anda como faz faculdade na Universidade Federal do Paraná. A jovem de Ranchinhos, no litoral paranaense, diz que estudar em escola comum, ao lado de todas as outras crianças (com ou sem deficiência), foi essencial para chegar onde chegou.
Antes de ser matriculada no ensino regular, no entanto, ela estudou em uma escola especial para pessoas com deficiência, na infância.
"Eu tinha 5 anos quando a professora disse para mim mãe que eu tinha 'possibilidade de progredir' e a aconselhou a me matricular em uma escola regular", contra Manu. "Ela disse que se eu ficasse na escola especial, não iria avançar."
Manu considera importante mostrar sua perspectiva em um momento em que um decreto presidencial sobre educação especial está prestes a ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF).
O decreto de Jair Bolsonaro, que institui a política nacional de educação para alunos com deficiência, entrou em vigor em outubro do ano passado, mas foi questionado na Justiça por uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ou seja, uma ação que argumenta que o decreto é inconstitucional.
No fim de agosto, o STF fez uma audiência pública para ouvir a sociedade sobre a questão, mas ainda não há data marcada para a votação em plenário. O decreto é considerado um retrocesso por grupos de pessoas com deficiência e por especialistas em educação.
Ele promove a criação de escolas especiais para pessoas com deficiência que "não se beneficiam" da educação regular, ou seja, um local onde elas não teriam convivência com alunos sem deficiência, que frequentam as escolas regulares.
"O decreto vai na contramão de todo um esforço nacional que é feito há 20 anos no Brasil para garantir o direito de crianças com deficiência à inclusão. A gente precisa que as crianças e adolescentes sejam incluídos em todos os ambientes, especialmente as escolas", afirma Pedro Hartung, presidente do Instituto Alana, entidade de defesa dos direitos das crianças que é amicus curiae na ação do STF.
Na semana passada, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que estudantes com deficiência "atrapalham o aprendizado de outros alunos". Ao se defender de inúmeras críticas que recebeu após a fala, Ribeiro disse à rádio Jovem Pan que foi "infeliz na escolha do termo", mas não recuou na sua posição.
Incentivar as escolas especiais seria voltar às normas instituídas em 1994 e que vigoraram até 2008, quando uma nova política passou a estabelecer como norma a integração de pessoas com deficiência no ambiente escolar comum.
O decreto de Bolsonaro não proíbe a matrícula em escolas regulares, mas na prática, é isso que vai acabar acontecendo, argumenta Manu. "Vai chegar um estudante com deficiência na escola e vão dizer que não dá para incluir, vão mandar para a especial."
Hartung afirma também que a criação de instituições especiais, além de segregar, retira recursos para adaptação de escolas regulares. "O orçamento para isso é limitado. É preciso que no próprio ambiente escolar a criança possa ter acesso a políticas inclusivas, aulas no contraturno, apoio. Se todo o recurso vai para a criação de escolas especiais, as escolas regulares param de receber melhorias."
Matrículas negadas
Manu Aguiar teme que aconteça com os alunos com deficiência o que aconteceu com ela quando criança: teve a matrícula negada em diversas escolas regulares.
"Teve muita negação de matrícula aqui na época, diziam para colocar na escola especial. Minha mãe insistiu muito, foi de escola em escola pedindo, até que teve uma diretora que falou 'faz a matrícula e a gente vê o que faz depois'", conta Manu, que estudou a vida toda em escolas públicas.
A jovem é totalmente contra o decreto de Bolsonaro, e diz que é preciso investir na preparação das escolas regulares para receber alunos com deficiência, não promover a separação.
"Não temos menos valor para sermos segregados assim", diz Manu. "É preciso preparar o ensino regular, dar meios para os professores promoverem a inclusão e combater o preconceito", afirma.
Crescendo em uma época em que havia pouca conscientização sobre preconceito contra pessoas com deficiência (o chamado capacitismo), Manu conta que sofreu muito preconceito na escola comum, especialmente na adolescência, quando a escola a separou da turma onde ela tinha amigos e a menina sofreu bullying agressivo.
"Eu recebia ameaças no MSN (antigo aplicativo de troca de mensagens), virei chacota. As pessoas falavam para os meninos: 'Você é muito feio, vai namorar com a Manu'. O pior momento foi quando uma menina colocou o pé na minha frente para eu cair no corredor", conta ela.
A paralisia cerebral faz com que Manu tenha dificuldade de mobilidade, e na época dos prédios não tinham rampas e instalações acessíveis. Ela também se cansava muito em escrever. "Meus pais compraram um notebook, porque na digitação eu era rápida. E parecia que tinham parcelado uma casa, de tão caro que era na época", conta.
A escola também foi se adaptando aos poucos, e dando os apoios previstos em lei, como um professor de apoio que a acompanhava fora do horário das aulas comuns.
Apesar de todos os obstáculos que enfrentou, Manu diz que não trocaria o ensino na escola regular pela especial. "Se há capacitismo, você tem que combater, educar, não segregar as pessoas que sofrem esse preconceito. Separar não é a solução", afirma.
Chegando à universidade
Manu afirma que foi essencial ter o mesmo conteúdo que as pessoas sem deficiência e também a interação com todo mundo.
"O mundo é diverso e a gente não pode ficar numa caixa, numa bolha. Eu tirei nota baixa, tive que fazer recuperação, tinha os apoios que a lei prevê, aprendi a lidar com as adversidades. Só cheguei na universidade porque frequentei uma escola regular", diz a jovem.
"Hoje estou terminando a licenciatura em geografia e a gente pesquisa a área de educação inclusiva. As pessoas que continuaram na instituição especial onde eu estudei continuam lá até hoje", diz ela.
"As estatísticas estão aí para mostrar que, entre os estudantes com deficiência na universidade, raríssimos são os que vêm de escola especial. É um resultado que mostra que a educação inclusiva é o caminho."
O estudante universitário Jonatan Silva de Jesus, de 25 anos, também cresceu na época da política das escolas especiais (entre 1994 e 2008) e conta que só estudou em escolas regulares porque "muita gente bateu o pé".
"Foi graças à minha avó, que insistiu. E eu também, porque eu queria ir para a mesma escola dos meus primos", diz Jonatan, que tem paralisia cerebral.
"Na época não tinha inclusão, você não via deficientes na rua. Quando me matricularam, a escola falou 'é por sua conta e risco'", diz ele.
O jovem também acredita que não teria chegado à universidade se não fosse a educação que recebeu na escola regular. Hoje ele cursa educação física na faculdade, estuda inclusão e faz academia. "Treino há cinco anos, mas demorou 4 anos para uma academia me aceitar", diz ele.
"Muita gente recusa, tem medo que eu me machuque. Mas essa desculpa é muito ruim. Não tem adaptação? Então faz a adaptação", afirma.
Já na escola, disse, ele teve sorte ao encontrar uma professora que, embora não estivesse totalmente preparada para a inclusão, fez de tudo para que isso acontecesse.
"Ela falou vamos: aprender todos juntos. Onde eu tinha dificuldade, recebia ajuda, outros alunos me perguntavam. Eu fui bolando junto com professores algumas alternativas", afirma o jovem de Santana do Parnaíba, no interior de São Paulo.
"Ela procurava até atividades na educação física para eu fazer parte também. Me senti acolhido. Meus amigos também abraçaram a ideia e eu fui mostrando para eles também a minha realidade. Se eu tivesse ido para uma escola especial, ia viver numa bolha", afirma.
Jonatan diz que "até entende" pais que defendem a criação das escolas especiais. "Eu entendo, os pais querem proteger. E tem que proteger sim, mas não colocar em uma bolha de vidro e não deixar viver."
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58400488
Como líderes evangélicos usam redes para apoiar ato pró-Bolsonaro
Um dos representantes é Silas Malafaia. Pastor afirma que evangélicos de todo o país estão se organizando para participar de manifestações
Vinícius Lemos / BBC News Brasil
Ele declara que as pessoas devem ir às ruas na próxima terça-feira (07/09) para lutar a favor do país, da família e dos princípios de Deus. Discursos semelhantes têm sido adotados por outros líderes evangélicos nas redes sociais para convocar os fiéis para a manifestação pró-Bolsonaro.
Um dos principais representantes do segmento é o pastor Silas Malafaia. Em 23 de agosto, ele compartilhou um vídeo no qual líderes evangélicos convocam os fiéis para o ato na Avenida Paulista.
"Eu estou capitaneando, sim. Estou na frente disso, chamando tudo que é líder. E nunca, na história desse país, os evangélicos se mobilizaram para um ato como esse", diz Malafaia à BBC News Brasil. Segundo ele, evangélicos de todo o país estão se organizando para participar de manifestações em suas cidades.
Os evangélicos, que segundo pesquisas recentes compõem cerca de 30% da população brasileira, representam um grupo significativo para Bolsonaro. Uma pesquisa Datafolha de maio deste ano apontou que 24% da população em geral considera o governo ótimo ou bom. Já apenas entre a população evangélica, esse número corresponde a 33%.
Em 2018, a pesquisa Datafolha na véspera do segundo turno projetou que sete em cada 10 eleitores evangélicos votariam em Bolsonaro contra o petista Fernando Haddad.
Em maio deste ano, a pesquisa Datafolha ilustrou um cenário diferente de 2018 entre o bolsonarismo e as igrejas evangélicas. O levantamento mostrou que 35% dos evangélicos escolheriam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um primeiro turno. Já Bolsonaro teria 34% dessa população. Conforme a pesquisa, cada candidato tem 45% das intenções de voto desses religiosos em um eventual segundo turno entre os dois.
"Existe um desembarque das forças em torno do bolsonarismo. Cada vez mais, o Bolsonaro está restrito ao que chamamos de bolsonarismo raiz, grupo do qual os evangélicos fazem parte", aponta Vinícius do Valle, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP).
"Mas os evangélicos representam um grupo muito heterogêneo no Brasil. Nas eleições de 2018, o Bolsonaro conseguiu certa hegemonia entre os evangélicos e manteve isso por muito tempo, mas hoje está em crise. Hoje a gente não vê a quantidade de pastores defendendo o Bolsonaro como antes da pandemia", acrescenta Valle, que há uma década estuda a relação entre política e as igrejas evangélicas.
No meio evangélico, há pastores que se manifestaram contra a presença de fiéis na manifestação de sete de setembro.
"Todo esse movimento tem por finalidade ameaçar as instituições do nosso país. Essas pessoas defendem o fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal), essas pessoas defendem o fechamento do Congresso Nacional. Logo, essas pessoas agem contra a democracia, contra o estado democrático de direito", declara o pastor Rodrigo Coelho, do Rio de Janeiro, em um vídeo compartilhado nas redes sociais.
'Em todo o Brasil vai ter evangélico na rua'
Os líderes religiosos estão organizando, segundo o pastor Malafaia, meios de transporte para os fiéis, bandeira e faixas para participarem de atos em São Paulo, Brasília ou em outras cidades pelo país.
"Isso vai ser em todo o Brasil. Em todo o Brasil vai ter evangélico na rua. Não é só em São Paulo e no Rio de Janeiro. Vai ter caravana de tudo quanto é jeito no Brasil", afirma Malafaia.
"Aqui no Rio de Janeiro, estamos colocando um trio elétrico gigante. Mas isso não tem nome de igreja, porque igreja é acima disso. Nós, cidadãos, é que somos evangélicos, então não vai ter nome de igreja nenhuma", completa o pastor.
Malafaia argumenta que a convocação dos fiéis para os atos é fundamental porque, segundo ele, atualmente a liberdade de expressão está em jogo no país.
"Estamos vendo o STF rasgar a Constituição, uma das coisas mais vergonhosas, e com a conivência da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e de grande parte da mídia", declara.
O "ataque à Constituição Federal" ao qual Malafaia e outros líderes evangélicos utilizam como argumento para a convocação aos atos é referente a decisões recentes do STF, que incomodaram Bolsonaro e seus aliados.
Entre essas decisões estão medidas como uma determinação do ministro do STF Alexandre Moraes, no início de agosto, para incluir o presidente Jair Bolsonaro entre os investigados no inquérito sobre divulgação de informações falsas.
Outro ponto criticado por religiosos bolsonaristas são as investigações da Polícia Federal sobre ataques de "milícias digitais". Segundo as apurações, são atos feitos para desestabilizar instituições como o STF e atentar contra a democracia. Em meados de agosto, o ex-deputado Roberto Jefferson foi preso após as investigações apontarem que ele é parte do núcleo político desse grupo.
Apesar de muitos pastores não citarem o presidente nas convocações dos fiéis nas redes sociais para os atos, o discurso desses líderes religiosos é totalmente alinhado ao de Bolsonaro. Outra pauta que eles defendem, a favor do presidente, é o voto impresso, derrotado na Câmara dos Deputados.
"Claro que sabemos que também é (ato) de apoio ao presidente. É evidente", afirma Malafaia.
"A igreja não apoia ninguém. Nós, evangélicos, apoiamos. Nós, evangélicos, não vamos participar de ato de partido político. Mas (ato) de apoio ao presidente, vamos participar. Não tenha dúvida nenhuma", acrescenta o pastor.
Malafaia destaca que uma das maiores movimentações entre evangélicos em sete de setembro deve ocorrer em Manaus (AM). O pastor afirma que os evangélicos da região esperam que 500 mil pessoas saiam às ruas da capital amazonense na manifestação pró-Bolsonaro.
O pastor Renê Terra Nova, de Manaus, também tem feito diversas publicações em suas redes sociais para convocar os fiéis para o ato na terça-feira.
Terra Nova afirma que está apoiando o Brasil, mas diz que no atual contexto isso significa que precisa estar ao lado de Bolsonaro.
"No atual cenário, o governo Bolsonaro está lutando pelo país, e esse é o sonho de qualquer cidadão sério. O Governo Bolsonaro está com nosso apoio, mas não estamos indo às ruas por causa de uma pessoa, mas por causa da plataforma que defendemos - Deus, Pátria e Família, e a nossa liberdade", diz Terra Nova à BBC News Brasil.
Para convencer os fiéis, o discurso dos líderes costuma ser extremo, como o de Munguba Júnior que afirma que aqueles que não participarem do ato querem ser escravizados.
"Quando falo sobre uma possível escravidão, estamos defendendo a liberdade do povo. Vamos fazer oração no local (do ato) pedindo para que Deus nos livre do comunismo. Se o comunismo for implantado, seguramente a liberdade vai embora", diz Munguba à BBC News Brasil.
A "ameaça comunista", segundo o pastor, se tornará real se um partido de esquerda como o PT for eleito para governar o país. Esse argumento é utilizado por religiosos bolsonaristas para reforçar a ideia de que a participação nos atos é uma espécie de "luta do bem contra o mal".
Munguba, que é de Fortaleza (CE), afirma que o vídeo que publicou para convocar para os atos vale para todo o país, pois argumenta que sua igreja, Seven Church, é acompanhada por fiéis de diferentes regiões do Brasil.
'Somos cristãos, mas não defendemos o que essas pessoas defendem'
As convocações de Malafaia e seus aliados incomodaram pastores que compõem o Movimento Resistência Reformada, um grupo de lideranças evangélicas que se opõe às medidas de Bolsonaro.
"Somos cristãos, mas não defendemos o que essas pessoas defendem, por isso nos posicionamos. Não queremos, de forma alguma, que o Brasil se torne uma teocracia, que é o que essas lideranças almejam. Isso tudo é lamentável", declara o pastor Rodrigo Coelho, líder do Resistência Reformada.
Quando notaram o crescente apelo de líderes como Malafaia para que os fiéis participassem das manifestações, os membros do movimento, cerca de 100 líderes religiosos no Brasil e alguns do exterior, publicaram um vídeo contrário a isso.
"Você, nesse lugar, é tão somente massa de manobra, tão somente uma pessoa sendo manipulada (por pastores bolsonaristas) para que essas pessoas possam permanecer no poder e permanecer com os seus privilégios. Não se permita isso. Não se permita ser cooptado por essa gente", diz Coelho, em trecho de vídeo compartilhado por ele nas redes sociais.
O pastor argumenta que o principal objetivo do movimento é defender os direitos humanos e se posicionar contra os "desmandos do Bolsonaro" e de seus aliados.
"O movimento nasce no contexto do governo Bolsonaro, mas vai além dele, porque a gente crê que o governo Bolsonaro vai passar. Decidimos nos posicionar (contra o ato de sete de setembro) porque é um absurdo o que acontece no Brasil, sobretudo o apoio de parte da igreja evangélica", declara Coelho.
"O Silas já apoiou toda a classe política, de direita ou esquerda, e me parece fazer qualquer coisa para estar no poder e ter privilégios de quem transita no Palácio (do Planalto). Mas na verdade, a gente entende que lugar de profeta é fora do Palácio, denunciando quem faz coisa errada", completa.
Os vídeos de religiosos convocando para os atos alcançaram mais de um milhão de visualizações nas diferentes redes sociais. Coelho não tem dados exatos sobre o alcance do vídeo feito por ele contra os chamados para esses atos, mas admite que a visualização foi muito menor.
"A gente faz isso de forma orgânica, enquanto esse pessoal (como Malafaia) patrocina os posts. Esse pessoal está desesperado porque o governo, a cada dia mais, enfrenta momentos ruins", declara.
"Porém, estamos satisfeitos em saber que chegamos em vários lugares com o nosso vídeo. Várias pessoas do Brasil têm entrado em contato para manifestar apoio. Isso prova que nas igrejas evangélicas há pessoas que não estão alinhadas a essas lideranças religiosas e a esse governo", completa o pastor.
Evangélicos e Bolsonaro
O racha entre evangélicos sobre o apoio a Bolsonaro não abala aqueles que têm convocado os atos a favor do presidente.
Pastores ligados ao presidente afirmam que o apoio ao governo segue em alta entre esses religiosos. Malafaia diz, apenas com base em experiência própria, que cerca de 80% dos evangélicos apoiam Bolsonaro.
"Conheço o mundo evangélico. Isso é uma piada (as pesquisas que indicam queda no apoio ao presidente entre os evangélicos). Tenho acompanhado o Bolsonaro em vários lugares. No mínimo, uns 50% das pessoas que estão em aeroportos e nos lugares em que o presidente está são evangélicos", declara Malafaia.
Especialistas ressaltam que a retórica de Bolsonaro de ser perseguido injustamente enquanto tenta combater um mal maior, que seria a esquerda ou uma "constante ameaça comunista", vai no sentido do que as igrejas evangélicas pregam entre os fiéis da luta do bem contra o mal.
No atual cenário, segundo o cientista político Vinícius do Valle, o presidente tenta resgatar o discurso de que se trata do bem contra o mal no Brasil para tentar reunir o maior número de apoiadores. "Ele diz que os bolsonaristas podem salvar o presidente do mal se forem contra o STF", diz o especialista.
"Os evangélicos surgem como uma das poucas forças que permanecem fiéis ao presidente, como os militares e muitos ruralistas, ainda que de forma reduzida atualmente", acrescenta Valle.
O especialista ressalta que as inúmeras convocações de líderes religiosos não significam a garantia de presença massiva dos evangélicos nos atos de sete de setembro.
"Os evangélicos não seguem à risca os posicionamentos dos pastores. Além disso, dentro da própria igreja há diferentes lideranças, que nem sempre seguem o mesmo posicionamento. O pastor que fala diretamente com o público nem sempre tem o mesmo discurso do pastor que é presidente da igreja", afirma Valle.
Além disso, fatores como a alta do desemprego, a crise econômica e o aumento dos preços de itens básicos têm feito, conforme os especialistas, com que muitos evangélicos abandonem o bolsonarismo.
O cientista Felipe Nunes, da Quaest, empresa de inteligência de dados, afirma que o eleitor brasileiro é mais pragmático do que ideológico. "O brasileiro avalia o seu bem-estar. No atual momento, com a qualidade de vida caindo, com o aumento da inflação, falta de crescimento econômico e a percepção de que as coisas não vão melhorar, isso tudo recai sobre a imagem do presidente", diz à BBC News Brasil.
Em razão disso, segundo ele, uma parcela dos mais pobres entre os evangélicos começou a se afastar do presidente. "Um resultado econômico ruim leva os evangélicos mais pobres a sofrer na carne com tudo o que está acontecendo e colocam na conta do presidente", explica Nunes.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58442769
Até 20 anos de prisão para PMs em serviço que participem de atos políticos
Entre os que garantiram presença nos protestos convocados por Bolsonaro para o 7 de setembro estão policiais militares da ativa e da reserva
Felipe Souza / BBC News Brasil
Mas essa categoria pode se manifestar publicamente?
Segundo especialistas em direito constitucional ouvidos pela BBC News Brasil, nenhum policial da ativa pode participar de atos políticos com símbolos que remetam às instituições onde eles trabalham. Esses servidores podem participar de atos políticos desde que estejam à paisana, como cidadãos comuns, e desarmados.
Caso contrário, os policiais podem ser enquadrados no Código Penal Militar pelos crimes de motim ou revolta (quando há dois ou mais envolvidos). As penas podem chegar a 20 anos de prisão em regime fechado.
A expectativa é de que um grande número de policiais militares da reserva participem do ato. Militares de folga também devem ir ao protesto pró-Bolsonaro como cidadãos comuns, mas sem farda e armas.
Os atos do dia 7 de Setembro são convocados em meio a atritos com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e têm intenção de atacar a Suprema Corte, se manifestar a favor da reeleição do presidente Bolsonaro, contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT e governos de esquerda em geral.
O cientista político e reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro Luiz Alexandre Souza da Costa disse que a Constituição prevê que todos os cidadãos têm direito a se manifestar publicamente. Porém, há regras específicas para os policiais militares.
"Não é legítimo para o que estão convocando. Não é um pedido de mudança de política pública. Está claro nas entrelinhas que eles querem uma quebra na democracia. É um discurso como se fosse a favor da democracia, mas pedem que não tenha um Congresso que atrapalhe Bolsonaro, sem STF e sem um Poder Judiciário independente", afirmou Costa.
O cientista político disse que esse protesto mostra ser "claramente ser a favor de golpe de Estado para implementar ditadura". Ele diz ainda que os discursos que convidam para o ato propõem que os policiais levem bandeiras dos batalhões onde eles trabalham.
Isso, segundo o especialista, é o mesmo que levar uma instituição pública de Estado para uma discussão política, antidemocrática e ilegal.
"Essa é uma reivindicação antidemocrática, contra o poder civil e a Constituição, à qual eles juraram respeitar. Eles não juraram respeitar o Bolsonaro ou qualquer outro que está no poder. Desta forma, esses manifestantes estão querendo participar de uma revolta popular, mas eles têm armas. Bolsonaro queria todo mundo com fuzil, mas como ele não conseguiu, agora quer ter a seu dispor os PMs ativos e inativos. Segundo o Ipea, são 750 mil PMs e bombeiros armados. Isso sem contar os policiais civis, federais e penais — quase o dobro das forças armadas", afirmou.
Especialistas explicam que a lei permite que qualquer cidadão peça mudanças de políticas públicas, desde que seja de maneira democrática.
"É legítimo que policiais queiram fazer um protesto pedindo a desmilitarização das polícias. Isso é legal, pois é uma categoria pedindo uma mudança de política. Eles podem argumentar que a guerra às drogas não está funcionando, então querem a legalização das drogas. Isso é legítimo e constitucional", afirmou.
Na última semana, o governador de São Paulo, João Doria, afastou o coronel Aleksander Lacerda por indisciplina, depois que ele convocou policiais para o protesto pró-Bolsonaro na Paulista. Lacerda estava à frente do Comando de Policiamento do Interior 7, responsável por 78 municípios na região de Sorocaba, no Estado de São Paulo.
"Aqui em São Paulo, não teremos manifestações de policiais militares da ativa de ordem política (...) Não admitiremos nenhuma postura de indisciplina", disse o governador após a decisão.
Mas, em entrevista ao portal UOL, o deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP) disse que a categoria alugou ao menos 50 ônibus em cidades do interior paulista para que policiais pudessem se deslocar para participar do ato na capital.
Luiz Costa, que também é professor de direito militar da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e conhece de perto o comportamento das tropas, se diz preocupado com as atitudes de oficiais em relação aos protestos de 7 de Setembro.
"Os militares são subordinados e respeitam a hierarquia. A polícia de São Paulo é a mais profissionalizada do Brasil. Quando um militar quebra isso com um ataque frontal ao governador, isso acende um alerta vermelho no país. Porque se isso aconteceu em São Paulo, com um coronel da ativa atacando governador, imagine o que pode acontecer no resto do país", alertou o professor.
Para ele, esses oficiais sabiam das consequências que sofreriam e tiveram essas atitudes para afrontar o governador.
"Um coronel da ativa sabe que tem que respeitar a autoridade pública. A PM tem que punir e falar que eles podem ser demitidos, além de responder criminalmente. Não interessa se é Doria, Cabral ou Bolsonaro. Tem que respeitar o cargo. Ele (coronel) desrespeitou o Doria e quebrou um dos principais pilares da hierarquia militar", afirmou.
Ele se diz preocupado, pois afirma que, na Bolívia, ocorreu um golpe iniciado pelas polícias e que o Exército apenas não fez nada para impedi-lo.
O professor afirma ainda que, em 2019, foi aprovada uma lei que impediu que os gestores prendessem policiais militares administrativamente por quebras na disciplina.
Desta maneira, o governador de São Paulo afastou o coronel, pode dar uma advertência a ele, mas não pode prendê-lo. Caso queira demiti-lo, por exemplo, o governador precisa aguardar que uma possível ação contra ele transite em julgado, o que pode levar anos.
Isso, segundo o professor, pode deixar os policiais mais confortáveis para cometer possíveis transgressões
Um policial do Rio de Janeiro condenado por matar a juíza Patrícia Acioli, segundo ele, continua recebendo salário normalmente. "Ele só está na geladeira, mas continua ganhando todo mês como um servidor comum", afirmou o professor da EURJ.
O que diz a lei?
O Artigo 5º, inciso 16, da Constituição Federal diz que todos podem se reunir pacificamente e sem armas, em local aberto ao público.
Porém, o Código Penal Militar prevê como crimes motim e revolta. O motim é a reunião de militares ou assemelhados para desobedecer ordem superior, agindo em ordem ou praticando violência.
Também prevê a ocupação de "quartel, fortaleza, arsenal, fábrica ou estabelecimento militar, ou dependência de qualquer deles, hangar, aeródromo ou aeronave, navio ou viatura militar, ou utilizando-se de qualquer daqueles locais ou meios de transporte, para ação militar, ou prática de violência, em desobediência a ordem superior ou em detrimento da ordem ou da disciplina militar".
A pena é de 4 a 8 anos de prisão, com aumento de um terço para os cabeças — no caso, os oficiais que participarem.
Já a revolta é o mesmo crime, porém com agentes armados. A pena é de 8 a 20 anos de prisão.
Ao menos 340 militares foram denunciados no Ceará por uma greve considerada ilegal em 2020. A maioria pelo crime de revolta.
Na ocasião, o senador Cid Gomes (PDT-CE) chegou a ser baleado por grevistas enquanto dirigia um trator em direção a um batalhão.
Em 2008, 423 bombeiros foram presos por invadir quartéis em movimentos grevistas em diversos Estados, mas foram anistiados no Congresso Nacional.
Voltar para casa
Policiais militares da reserva ouvidos pela BBC News Brasil disseram que os comandos devem determinar que os seus subordinados voltem para casa, caso apareçam armados no protesto.
"Se eles não querem voltar para casa, se enquadram no crime de revolta, por desobedecer um superior. Os oficiais precisam deixar claro as sanções que os policiais podem receber, caso participem de atos antidemocráticos, mas esse recado não está sendo dado", disse o professor da UERJ Luiz Alexandre Souza da Costa.
O professor afirma que apenas o ato de se reunir ao redor de um batalhão pode ser considerado um crime, por ser uma transgressão, numa tentativa de ligar uma instituição a um ato político.
"O Artigo 165 do Código Penal Militar prevê como ilícito promover a reunião de militar ou participar de reunião para discutir atos de superior ou assunto pertinente à disciplina militar. Quem participa pode pegar de 2 a 6 meses de prisão. Quem promoveu, 6 meses a 1 ano", afirmou o professor de direito penal.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58416407