aventura antidemocrática

José Eduardo Faria: A "sinalização do povo"

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Bolsonaro em manifestação de cunho golpista em Brasília. Foto: PR

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.

As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Bolsonaro fala a apoiadores na saída do Palácio. Foto: PR

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição.  Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais.  Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Carl Schmitt, à direita, na Paris ocupada, 1941. Foto: Reprodução

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.


Raul Jungmann: 'As Forças Armadas não aceitam uma aventura antidemocrática'

Ricardo Chapola, Revista IstoÉ

A carreira política de Raul Jungmann, de 69 anos, passou por extremos. Nascido em berço esquerdista, Jungmann lutou contra a ditadura militar quando ainda era universitário ao ingressar no MDB. Depois, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Sua trajetória começou a mudar quando integrou o governo de Fernando Henrique Cardoso. 

Durante esse período, Jungmann estreitou relações com as Forças Armadas, o que se intensificou durante seus mandatos como deputado federal, até transformá-lo em ministro da Defesa no governo Temer. Foi nessa época também que passou a defender a proibição da venda de armas no País. Por essa razão, virou ministro da Segurança Pública em 2016. 

Atualmente, Jungmann continua militando pela regulação de armas e pela democracia. Em entrevista à ISTOÉ, o ex-ministro criticou a política armamentista de Bolsonaro, sugeriu que o presidente tenta formar milícias para se sustentar no poder e afirmou que o ex-capitão é o principal responsável pela grave situação do País na pandemia “Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje”.

As trocas de ministros e de comandantes das Forças Armadas, além das mudanças na PF, feitas por Bolsonaro, configuram uma tentativa de o presidente interferir nessas áreas?

É privativo do presidente a substituição de cargos comissionados. Sob o aspecto legal é normal. O que parece anormal é o fato de termos tantas mudanças na PF. Isso sim caracterizaria uma intervenção na PF, que é descabida. A PF é a Polícia Judiciária da União. Evidentemente ela tem que ter autonomia, sobretudo face às funções que ela tem. Esse excesso de intervenção mostra interesse de dar uma direção política a um órgão de Estado e que não pode ser politizado. Essa sequência de mudanças e essa busca de politizar a PF desserve aos critérios constitucionais da impessoalidade e da imparcialidade que um órgão como esse tem que ter. Isso significa uma tentativa de intromissão no domínio legal. Não contribui para a democracia e tampouco para a independência dos poderes.

O Ministério da Justiça fez uso da LSN para abrir inquérito contra críticos a Bolsonaro. Qual a opinião do senhor sobre o assunto?

O Congresso tem falhado desde a redemocratização em dar ao País uma lei de defesa do Estado Democrático. Para mim, a principal responsabilidade é do Congresso. Na medida em que a legislação que você tem de defesa do Estado é uma lei do regime militar, ela termina sendo usada. Evidentemente que ela está sendo empregada abusivamente. E também acho que vem sendo usada com finalidade política. O Congresso já deveria ter aprovado uma lei do Estado Democrático.

Polícias estaduais também usaram a LSN para prender pessoas. Como o senhor classifica essa relação que Bolsonaro estabelece com as polícias nos Estados?

Eu fui companheiro de Bolsonaro na Câmara durante 12 anos. A clientela dele eram os militares e os policiais. Uma parte dessa polícia é base do presidente, que comunga dos mesmos valores e das percepções dele. O que acontece é que isso leva, às vezes, a excessos, como é o caso dos rapazes presos por policiais do DF em Brasília. De fato, é um exagero você necessitar prender manifestantes com base na LSN. E isso, inclusive, tem sido repelido e negado pelo Judiciário, que não tem dado guarida a isso. Existe, de um lado, a falha do Congresso. De outro, existe um uso excessivo e político da legislação. Mas, ao mesmo tempo, pelo fato de não termos outra lei, terminamos utilizando uma legislação que é obsoleta. A liberdade de expressão existe e tem que ser respeitada.

O STF mandou o Senado instalar a CPI da Covid-19. Qual deve ser o foco das investigações da CPI?

O Senado não tem mandato para investigar estados e municípios. É inconstitucional. O que cabe é investigar a transferência de recursos federais para estados e municípios. Em termos de responsabilidade, a maior é do governo federal, sem a menor sombra de dúvida. Porque Bolsonaro exerceu o papel de descoordenação, de negacionismo e também de negligência com a vida dos brasileiros, resultando nessa tragédia humanitária que nós estamos vivendo hoje. Acho também que o principal foco da CPI deve ser o de investigar o papel do governo federal, da Presidência da República e do Ministério da Saúde, os principais responsáveis pelo caos.

O senhor acha que Bolsonaro agiu corretamente quando escalou o presidente do Senado para articular a montagem do comitê de emergência da Covid-19?

A relação administrativa entre as esferas da União não são delegáveis a outros poderes. Quem tem atribuições constitucionais para estabelecer essa coordenação, obviamente, é o governo federal. Na prática, essa comissão é uma comissão natimorta. Esse papel é do Executivo. Não é do Legislativo, por melhor que seja a boa vontade do presidente do Senado. Essa comissão rapidamente desapareceu. O presidente tinha que criar uma unidade nacional. Tinha que promover um movimento que congregasse os poderes, União, estados, municípios e oposição em torno da questão de salvar vidas. E Bolsonaro faltou com esse papel de forma equivocada. Preferiu litigar, se contrapor a governadores e prefeitos, politizando algo que é inadmissível. Estamos lidando com a vida das pessoas. Não estamos numa causa política. Falta visão de estadista a Bolsonaro.

Mesmo assim essa tentativa de união veio tarde demais, não?

Sim, veio tarde. Já perdemos um ano e dois meses e quase 400 mil vidas. Mas sempre é hora para minimizar danos. Em que pese as críticas que faço, espero que o presidente reveja sua posição. Porque têm vidas em jogo. É uma dor que o Brasil carrega. É insuportável. Outra coisa é o desemprego, a fome e a falta de vacinas. Quando a necessidade ultrapassar o medo, aí sim nós teremos problemas sociais. Por isso que a gente tem que cuidar da vacina. Essa é a grande saída. De outra parte, precisamos reativar a economia. Não adianta separar as duas coisas. Tem que salvar as duas coisas. Mas a locomotiva disso é a vida.

Como o senhor classifica as acusações contra o presidente sobre o suposto uso da Abin para orientar a defesa de Flavio Bolsonaro no caso Queiroz?

A Abin é o órgão central do sistema de inteligência nacional. É um órgão da presidência para manter o presidente informado e apoiá-lo na tomada de decisões. Esse sistema de inteligência tem que estar submetido a critérios rígidos de controle. Como órgão de Estado, a Abin jamais pode estar a serviço de qualquer interesse privado, seja familiar do presidente, ou de quem for. Caracterizaria como crime caso fosse usada dessa forma. A Abin é um órgão de Estado. Não compete a ela nenhum tipo de atividade que seja em benefício de interesses privados. Isso significaria desvio de função, o que é inaceitável.

Qual é sua opinião sobre o projeto armamentista de Bolsonaro? Não seria arriscado defender que a população seja armada durante a pandemia?

Isso me preocupa. Sempre me posicionei que as armas fossem controladas. Mais armas significa mais mortes. Esse debate sempre foi feito na esfera da segurança pública. O presidente trouxe essa questão para a esfera político-ideológica. Fez isso ao dizer que precisávamos armar os brasileiros para que eles defendam a liberdade e não sejam escravos. Ele quebrou o monopólio da violência legal, que pertence ao Estado. Ele está ferindo o Estado, que é a parte que representa a soberania da nação. Bolsonaro está também ferindo o papel constitucional das Forças Armadas. Se o Estado tem o monopólio da violência legal, a última trincheira, a defesa que tem o Estado, são as Forças Armadas. Se você quebra o monopólio, você está criando um poder paralelo que tende a se contrapor às Forças Armadas.

O senhor está se referindo às milícias?

Sim, às milícias, bandos e grupos insurgentes. Não interessa. Se você arma brasileiros sem que exista qualquer ameaça ao Brasil ou à democracia, você está armando brasileiros contra os próprios brasileiros. Isso tem um nome horripilante: guerra civil. Na história, todas as vezes que alguém armou a população teve genocídio, massacre, golpes de estado. Por isso, foi tão importante a reação da ministra Rosa Weber. Os decretos representam exatamente a massificação do derrame de armas e munição para a população. Entre 2019 e 2020, a PF verificou um crescimento de 90% no registro de armas. Além do mais, grande parte dessas armas acaba parando nas mãos do crime organizado. Isso me preocupa, sobretudo quando a gente pensa no que aconteceu no Capitólio, nos Estados Unidos. E nós temos eleições presidenciais em 2022.

Bolsonaro entrou em atrito com os militares ao trocar o ministro da Defesa e o comando das Forças Armadas. O senhor acha que Bolsonaro tentou dar um autogolpe?

Não foi uma tentativa de golpe, porque não existe golpe no Brasil sem o apoio das Forças Armadas. O que Bolsonaro tentou fazer foi motivar as Forças Armadas a endossarem seus atos e ações, inclusive para constranger os outros Poderes. Como o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas não concordaram com isso, o presidente os demitiu. Não existe nenhuma razão para ele ter feito isso. A explicação é que foi uma intervenção política e uma punição às Forças Armadas, que não endossaram uma aventura autoritária. As Forças Armadas estão totalmente indisponíveis e não aceitam qualquer tipo de aventura antidemocrática no Brasil. O efeito foi o contrário. Um sonoro, uníssono, sólido “não”.

O senhor acha que a democracia corre riscos?

Temos aqui o presidencialismo de coalizão. Mas Bolsonaro aderiu ao presidencialismo de colisão. É o presidente da antipolítica. Preferiu optar por constranger outros Poderes. Dizendo ter a espada e ter apoio dos militares. O que ele não tinha. E dizendo também que tem o apoio das massas. Com esse presidencialismo baseado no constrangimento de outros Poderes, Bolsonaro fracassou redondamente. O STF não se dobrou. O Congresso tem um projeto autônomo, apesar de o presidente ter passado a negociar com o Centrão. E isso está manifestamente demonstrado no caso desse orçamento inadministrável. Esse orçamento é a expressão acabada de que o governo perde a capacidade de governar. Chegar nessa situação é a demonstração clara de perda de capacidade de governar. Independentemente de seus interesses, de seus desejos, o presidente vem tendo das instituições brasileiras uma resposta muito clara: de que elas não aceitarão qualquer tipo de desvio do rumo democrático. Não há disposição, nem vontade de ninguém para embarcar em qualquer aventura autoritária.