auxilio moradia
Bruno Boghossian: Judiciário protagonizou novela indecorosa com auxílio-moradia
Juízes provaram que têm pouco interesse em extinguir cultura de privilégios
A criação de novas regras para o pagamento de auxílio-moradia para juízes é o desfecho de uma novela indecorosa. Apesar de estabelecer padrões relativamente rígidos para o benefício, o Judiciário provou que está pouco interessado em extinguir sua cultura de privilégios.
Numa trama de negociações sigilosas e chantagens escancaradas, o Conselho Nacional de Justiça levou 1.555 dias para reconhecer o óbvio: só pode receber o valor extra aquele juiz que é transferido de sua comarca original, desde que não tenha imóvel próprio no novo local.
O colegiado ainda deu ares de austeridade ao aplicar uma exigência que deveria ser uma condição moral para qualquer uso de dinheiro público, que é a obrigatoriedade de apresentação de um documento que comprove a despesa do magistrado com o aluguel.
O papel de vilão cabe ao ministro Luiz Fux. Em 2014, ele assinou a liminar que liberou o pagamento do auxílio a toda a magistratura. O argumento original era a necessidade de equiparação dos benefícios recebidos em alguns estados e por outras categorias. Anos depois, comprovou-se que era papo furado.
A canetada de Fux foi usada de maneira escancarada para pressionar o Congresso e o presidente da República a autorizarem o aumento salarial de 16,38% cobrado pelo Judiciário. Ele mesmo teve uma reunião reservada com Michel Temer para negociar a troca: assim que o reajuste saiu, o ministro derrubou o benefício e o CNJ estabeleceu as novas regras para o pagamento.
O relator do caso ainda fez questão de manter uma brecha. Afirmou que o auxílio não era um “privilégio irrazoável” e se recusou a declará-lo inconstitucional. Este detalhe permite que as restrições ao benefício sejam questionadas no futuro e novas liminares sejam concedidas.
O Judiciário também enfrenta cobranças pela extinção e regulamentação de outros penduricalhos, como o auxílio-alimentação. Em quatro anos, talvez os juízes possam fingir disposição para enfrentar o tema.
Leandro Colon: Não há garantia de fim do auxílio-moradia em troca de reajuste para juízes
Lobby de magistrados cresce e STF não sinaliza fim de benefício injustificável
Sob o lobby escancarado do Judiciário, o presidente Michel Temer tem até quarta-feira (28) para decidir se sanciona ou veta o aumento de 16,38% nos salários dos juízes.
Se o bom senso e o zelo pelas contas públicas prevalecessem nos bastidores do poder em Brasília, o reajuste não teria passado a toque de caixa no Congresso —no Senado, em uma votação relâmpago, às pressas.
Político não gosta de ter problema com juiz e juiz sabe disso. Temer negociou em encontro noturno (prática nada incomum no atual governo) no Alvorada com os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux a aprovação da medida que, segundo estudo de técnicos legislativos, pode ter um impacto de R$ 4 bilhões por ano.
Em troca de engordar o contracheque dos juízes, haveria um compromisso do STF de enfim colocar em julgamento o fim do auxílio-moradia de R$ 4.377 mensais pago aos magistrados, mordomia injustificável a uma classe abastada, bem remunerada na realidade brasileira e que já desfruta de outras regalias.
Pois, bem. O reajuste passou no Congresso e depende agora de uma canetada de Temer. Na semana passada, Toffoli e o presidente do STJ, João Otávio de Noronha, aproveitaram almoço com o chefe da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, para defender a elevação salarial.
No caso de um ministro do STF, o valor subirá de R$ 33,7 mil para R$ 39,3 mil. Haverá um efeito cascata, classificado por Noronha de “papagaiada”, na remuneração dos juízes das instâncias inferiores.
O lobby não ocorre apenas nos almoços fechados com chefes das altas cortes. Não satisfeita com um salário maior, a categoria arma um contragolpe para impedir o fim do auxílio-moradia. Na sexta-feira (23), a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) entrou com pedido para que Fux, relator das ações sobre o benefício, não o revogue imediatamente.
Fux foi quem sentou em cima do tema por longo período. Não há, até agora, garantia de que os intocáveis de toga vão perder a ajuda de custose Temer ceder e sancionar o aumento.
Elio Gaspari: O ‘faço porque posso’ dos juízes
Graças à magistratura, as cadeias estão lotadas de onipotentes da política, mas o vírus também contamina o Judiciário
Para quem acha que já viu tudo, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) convocou uma greve da categoria para o próximo dia 15, uma semana antes da sessão em que o Supremo Tribunal Federal julgará a legalidade do auxílio-moradia dos magistrados. Uma manifestação de juízes contra um julgamento.
Não bastasse isso, a Ajufe argumenta que “esse benefício é recebido por todas as carreiras”. É verdade, pois os procuradores também recebem o mimo, mas é também um exagero, pois não se conhecem casos de outros servidores que recebem esse auxílio sendo donos de vários imóveis na cidade em que moram. A Ajufe poderia defender a extinção ampla, geral e irrestrita do auxílio-moradia, mas toma uma posição que equivale, no limite, a defender a anulação de todas as sentenças porque há pessoas que praticaram os mesmos atos e não foram julgadas. Uma ilegalidade não ampara outra.
A greve da Ajufe está fadada ao ridículo, mas reflete um culto à onipotência que faz mal à Justiça e ao Direito. A magistratura é um ofício poderoso e solitário. Em todos os países do mundo, os juízes são soberanos nas suas alçadas. Os ministros do STF dizemse “supremos”. Lá nunca houve caso em que um deles, ao votar num julgamento de forma contrária à que votara em caso anterior, tenha explicado a mudança com a sinceridade do juiz David Souter, da Corte Suprema dos Estados Unidos: “Ignorância, meus senhores, ignorância”. (Tratava-se de um litígio sobre a legalidade da existência de casas de strip-tease perto de escolas.)
Graças ao repórter Kalleo Coura, está na rede um áudio de nove minutos no qual o juiz Solón Mota Junior, da 2ª Vara de Família de Fortaleza, ofendeu a defensora pública Sabrina Veras. Desde novembro, a advogada pedia urgência, sem sucesso, para ser recebida pelo magistrado para transferir a guarda de duas crianças para o pai, pois a mãe as espancava. Em janeiro, uma das meninas morreu. Duas assessoras do juiz acusavam a defensora de ter dito que elas haviam matado a menina. Ela nega que o tenha feito. (Mota Junior repreendeu a advogada quando ela o tratou por “você”, mas chamou-a de “minha filha”.)
O meritíssimo chamou-a de “advogada desqualificada”. Poderia ser o jogo jogado, pois nos bate-bocas do STF vai-se por essa linha, mas ele foi além: “Você se queimou comigo. Lamento dizer, você está começando agora… se queimou comigo. E vai se queimar com tantos quanto eu fale essa história.” Juiz ameaçando advogada é uma anomalia.
As crianças contavam que a mãe as espancava, e um meritíssimo de Vara de Família argumenta: “Uma criança de 4 anos tem discernimento? Vai interferir num posicionamento de um juiz?” Tudo bem, deve-se esperar que ela atinja a maioridade.
O doutor Mota Junior não exercitou seus conhecimentos do Direito, apenas expôs o poder que julga ter. O Brasil tem 17 mil juízes, e não se pode achar que coisas desse tipo sejam comuns, mas quando a Associação dos Juízes Federais pede uma greve contra um julgamento, alguns parafusos estão soltos.
Graças à deusa da Justiça, os nove minutos do meritíssimo Mota Junior estão na rede, no site Jota. Se ele soubesse que iria ao ar, certamente seria mais comedido.