auxilio emergencial
Juan Arias: Estadistas e políticos de fibra não temem críticas de jornalistas. Só os medíocres e inseguros
Conto dois episódios emblemáticos de quando fui correspondente na Itália e no Vaticano. Jamais uma autoridade importante reclamou comigo sobre o que eu escrevia
Meus longos anos como jornalista me ensinaram que os verdadeiros estadistas e os políticos seguros de si não temem as críticas nem as perguntas mais ásperas dos jornalistas. Só os medíocres e inseguros. Os presidentes dos países importantes e das democracias sólidas sabem que as críticas dos veículos de comunicação fazem parte do jogo democrático.
Hoje, aqueles que dirigem as grandes democracias jamais se permitirão deixar de responder, em uma entrevista pessoal ou coletiva, a uma pergunta de um jornalista, por mais dura que seja, ou abandonar a entrevista. E muito menos insultar ou ameaçar o jornalista. Só o ex-presidente americano Donald Trump fazia isso, e por isso era considerado como um desequilibrado mental e acabou perdendo as eleições.
Aos jovens jornalistas brasileiros e aos estudantes de jornalismo que às vezes me perguntam sobre minhas experiências jornalísticas ao redor do mundo, dedico esta coluna para contar dois episódios emblemáticos de quando fui correspondente na Itália e no pequeno e poderoso Estado do Vaticano.
Os políticos italianos que eu criticava em meus artigos, em vez de se queixar ao meu jornal, enviavam-me um motorista com um cartão manuscrito me agradecendo. Em meus 18 anos de correspondente, jamais um político importante reclamou comigo sobre as críticas que eu lhe fazia.
Quando o ministro de Relações Exteriores da Itália era Giulio Andreotti, um dos políticos mais influentes do país, sete vezes primeiro-ministro, uma figura emblemática, a Espanha estava para entrar na então Comunidade Europeia. Para isso, era fundamental o voto da Itália. Certa manhã, o embaixador espanhol na Itália me ligou para dizer que tinha recebido uma queixa da embaixada italiana em Madri por meus artigos duros sobre a máfia siciliana. Disse que um funcionário da embaixada tinha feito um dossiê de seis meses de meus artigos e que estavam muito irritados. E acrescentou com clássico sabor mafioso: “É importante que saibam que a Espanha quer entrar na Comunidade e que precisa do voto da Itália”.
Avisado, o então diretor do EL PAÍS, Juan Luis Cebrián, que tinha sido também o idealizador do jornal, pediu ao embaixador espanhol em Roma o nome e sobrenome do funcionário da embaixada italiana em Madri que se permitiu fazer um dossiê mafioso sobre um de seus correspondentes.
Dois dias depois, recebi um telefonema do secretário de Andreotti me informando que no dia seguinte, às nove da manhã, o ministro me daria a entrevista que eu havia solicitado. Na verdade, eu nunca tinha pedido aquela entrevista e entendi que era uma forma elegante e diplomática de o ministro me chamar para falar comigo. Andreotti, como ministro de Relações Exteriores, era fundamental para apoiar a entrada da Espanha na Comunidade.
Cheguei para a entrevista certo de que se tratava de falar sobre as críticas da embaixada italiana em Madri a respeito de meus artigos. Pelo contrário, ele me recebeu todo cordial e antes que eu lhe fizesse qualquer pergunta, foi ele que me fez uma, desconcertante: “Você sabe onde o Papa [que era então o polonês João Paulo II] escreve seus discursos?”. Respondi que imaginava que era em seu escritório.
Ele respondeu que não, que os escrevia de joelhos em uma mesinha de sua capela particular onde celebrava missa. Intrigado, perguntei como ele sabia. Respondeu que o Papa o convidava muitas vezes a assistir à sua missa. “Não me importo que seja muito cedo, porque sou madrugador. O pior é quando me convida para jantar, porque costuma acabar muito tarde. Prefiro quando o Papa me convida para passear durante o dia com ele nos jardins do Vaticano.”
Eu o escutava atônito, porque estava me dando uma notícia totalmente desconhecida para a imprensa e que, se publicada, seria destaque mundial, já que revelava uma intimidade incomum com o papa Wojtyla, ainda mais se tratando de um político polêmico pelas acusações de fazer parte da máfia.
Em seguida, olhando para a parede, mostrou-me um quadro e me perguntou se conhecia o autor. Eu disse que não, e ele me respondeu: “É do pintor que em Manila, na viagem de Paulo VI às Filipinas, atentou contra o Papa com um objeto contundente na chegada ao aeroporto, ferindo-o no abdome”. Não foi um ferimento grave, mas causou uma comoção mundial.
Depois, soube-se que se tratava de um pintor excêntrico que, naquela ocasião, tinha uma exposição de seus quadros no hotel em que se hospedaria toda a comitiva papal e queria se tornar conhecido mundialmente. Lembro muito bem porque eu acompanhava o Papa no avião com um grupo de correspondentes de todo o mundo e fui testemunha do pseudoatentado.
O que não se entendia era como aquele quadro do homem que atacara o Papa tinha acabado no gabinete do ministro Andreotti. Será que o Papa tinha lhe dado o quadro de presente? Enquanto isso, nenhuma palavra sobre as críticas às minhas crônicas. O político importante do qual se chegou a dizer que era filho de Pio XII porque, ainda jovem, ganhou um cargo importante no Vaticano, concluiu nosso encontro com um último gesto emblemático. Antes de entrar na política, Andreotti foi jornalista. Tinha em sua mesa tinha um exemplar de um de seus livros, que me deu, e com isso se despediu após ter me dado uma notícia exclusiva. Quando saí, abri o livro e estava escrito: “Ao meu colega jornalista Juan Arias, com o afeto de Andreotti”.
Enviei o artigo sobre aquele encontro ao diretor do jornal, que, incrédulo, publicou-o imediatamente. Quando o embaixador da Itália em Madri abriu o EL PAÍS de manhã, ficou atônito. Entendeu muito bem que era uma mensagem cifrada para ele, para que não tentasse criticar novamente meus artigos. E a Espanha entrou na Comunidade Europeia com o voto da Itália. Assim são os verdadeiros estadistas.
Até os Papas e o Vaticano sempre respeitaram os jornalistas e aceitaram suas críticas sem fazer ameaças nem insultos. Fui testemunha disso quando o diretor do EL PAÍS em seus primeiros anos sofreu duros ataques da Igreja espanhola da época, que ainda era franquista, porque o novo jornal defendia o direito ao aborto, os direitos humanos, a liberdade de imprensa e o direito às diferenças. Era um jornal liberal, como os novos que estavam nascendo dos escombros da ditadura.
Um dia, o diretor me chamou a Roma e me pediu algo muito difícil: queria ter uma entrevista pessoal com o então substituto da Secretaria de Estado do Vaticano, o espanhol Martínez Somalo. Era a terceira autoridade do Vaticano, uma espécie de ministro do Interior, e despachava várias vezes ao dia com o Papa. Sem saber como fazer, recorri ao embaixador da Espanha na Santa Sé, que era agnóstico, e perguntei se por acaso ele poderia tentar, mas eu achava impossível porque o substituto do Vaticano nunca havia recebido nenhum diretor de jornal e, além disso, Cebrián tinha acabado de se divorciar.
Poucos dias depois, quando eu estava em um hotel de Florença fazendo uma reportagem, o telefone do quarto tocou: era o próprio substituto do Vaticano, que me conhecia das viagens com o Papa. “Juan, você me pede algo muito difícil, mas vou receber seu diretor”, disse ele. “Diga-lhe que venha em primeiro de maio, quando o Papa estará muito ocupado e terei mais tempo para ele.” E impôs como condição que eu acompanhasse o diretor.
Cebrián chegou a Roma na noite anterior e, às nove da manhã, atravessamos os portões do Vaticano e nos dirigimos, depois de entregar vários documentos, ao pequeno escritório do monsenhor Somalo, ao lado do gabinete do Papa.
Cebrián lhe explicou durante uma hora as dificuldades do EL PAÍS e dos novos jornais que estavam surgindo depois da morte do ditador Franco devido à sua posição de veículos abertos à defesa das liberdades que haviam sido pisoteadas durante a ditadura. Somalo lhe perguntou se quem atacava os jornais eram os militares. “Não, monsenhor, quem nos atrapalha é a Igreja, que sempre esteve do lado da ditadura e de Franco.”
Surpreso, Somalo lhe disse: “Aqui no Vaticano respeitamos a liberdade total de expressão e a imprensa livre”. E, referindo-se a mim, explicou por que quis que eu o acompanhasse ao encontro. “Seu correspondente aqui é testemunha de que nunca recebeu do Vaticano um telefonema de protesto por seus artigos”, afirmou. “E não me dirá, diretor, que não escreveu coisas muito duras sobre nós.” Eu tinha escrito sobre as dúvidas que existiam de que João Paulo I, que morreu misteriosamente 33 dias depois de sua eleição, pudesse ter sido assassinado. Eu lhe respondi que era verdade que o Vaticano nunca tinha se queixado de meus artigos e sempre me deu um lugar no avião do Papa para acompanhá-lo em suas viagens pelo mundo. E, entre brincadeira e a sério, acrescentei: “Mas também é verdade, e vocês sabem disso, que sei de coisas que nunca publiquei nem publicarei”. Rindo, o monsenhor Somalo disse a Cebrián em tom carinhoso: “Como seu correspondente é mau!”. Cebrián voltou para Madri e a verdade é que a Igreja deixou o jornal em paz.
Só as figuras políticas inseguras e medíocres, sem personalidade, permitem-se atacar e até insultar e ameaçar os jornais e os jornalistas.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Míriam Leitão: Um ano depois, a dúvida é sobre nós
Não cabe mais perguntar que governo é este. A resposta está dada. O Brasil chega ao seu pior número diário de vidas perdidas, em um ano de pandemia, com o colapso se espalhando pelos estados, e o presidente Bolsonaro dizendo que a máscara é que é o risco. O que cabe agora é tentar saber que país é este. Quem somos nós? De que matéria somos feitos? O futuro perguntará aos contemporâneos dessa tragédia o que fizemos. Enquanto os brasileiros morriam, o inimigo avançava impiedosamente e o governo era sócio da morte.
No dia das 1.582 vidas perdidas, ou da queda de cinco Boeings, como comparou o cientista Miguel Nicolelis, qual era a cena no Brasil? A Câmara dedicava horas seguidas à emenda que protege os parlamentares dos crimes que vierem a cometer. O Senado debatia a retirada do financiamento da Saúde e da Educação. Por serem pontos tão absurdos, as duas Casas ensaiaram recuos. E o presidente da República? Ele, como fez todos os dias desse último ano, na sua macabra mesmice, atirou contra a saúde dos brasileiros. Desta vez, dizendo que uma universidade alemã tem um estudo que prova um tal risco do uso de máscaras em crianças. Sempre assim, negando as provas da ciência, falando de algum suposto remédio. Sempre mentindo, o presidente do Brasil.
Bolsonaro nós sabemos quem é. Ele quer que haja armas e munições, quando precisamos de leitos e vacinas. Ele exibe desprezo pela vida, quando precisamos de empatia e conforto diante desse luto vasto e irremediável. O luto dos enterros sem flores, sem abraços, sem consolo. Contamos nossos mortos numa rotina fúnebre e interminável. O presidente conta as armas com as quais os seus seguidores vão nos ameaçar se eventualmente reagirmos.
Quem somos nós? O futuro nos perguntará e é preciso que o país saiba que terá que responder que, mais uma vez, fomos o povo que tolerou o intolerável. Como na escravidão, no genocídio dos índios, na ditadura, na desigualdade temos aceitado a afronta, a vilania, a infâmia. Castro Alves pode fazer de novo a pergunta: que bandeira é esta?
Essa é a nossa contemporaneidade. Lembra os nossos piores passados. É tão longo o suplício que perdemos as palavras. Não há palavras fortes o suficiente para definir o que vivemos. O presidente comete crimes diariamente. A cada crime sem punição ele se fortalece, porque sabe que pode avançar um pouco mais. Como o vírus que domina o corpo fraco. A cada dia fica mais difícil contê-lo.
De outros países, nos olham com espanto e desprezo. Nenhum povo suportaria tal opróbrio. Eles sabem o que temos feito aqui e o que temos aceitado. E não entendem. Caminhamos para o risco de colapso nacional, de falência múltipla dos órgãos de saúde do país. Só agora, alguns estados falam em lockdown. Antes, havia no máximo uma restrição de circulação à noite, como se o vírus fosse noturno e dormisse de dia. Vários países começam a comemorar queda dos contágios, internações e mortes. Comprovam vantagens do distanciamento social, das vacinas e do uso de equipamentos de proteção. O presidente diariamente passeia, diletante, pelo país, com seu séquito de homens brancos sem máscaras, com os quais exerce o poder, oferecendo-lhes migalhas do seu mandonismo. São os invertebrados de Bolsonaro.
O médico Ricardo Cruz escreveu para Denise, sua mulher, “prepare-se para o pior”. O pior chegou para a sua família e para o país. Ricardo Cruz era amado por seus colegas e pacientes. Organizou um centro de reflexão sobre as angústias que vivemos neste século e o batizou de “humanidades”. O último recado digitado por ele, mostrado por este jornal em brilhante reportagem, é um alerta vivo. Estamos no pior momento. Despreparados.
O presidente da República mente diariamente e as mentiras estão nos matando. Bolsonaro não se interessa por pessoas, mas por perfis das redes, inúmeros deles falsos. Em colunas passadas, fiz a lista dos crimes cometidos por Bolsonaro e apontei artigos e incisos das leis que ele afrontou. Mas isso o país já sabe. Alguém sempre diz que não existem as condições políticas para um impeachment. E os milhares de mortos que enterramos? Quantos deles teriam sido poupados se fosse outro o governo do Brasil? Não cabe mais perguntar que presidente é este. O país não pode alegar desconhecimento. Cabe fazer uma pergunta mais dura. Quem somos nós?
Paulo Roberto de Almeida: Desafios da pandemia e pós-pandemia para o desenvolvimento da diplomacia
O mundo pós-pandemia não será muito diferente do que temos hoje, assim como o mundo pós-Peste Negra, no século XIV, não foi muito diferente daquele que existia no cenário pré-pandemia, que dizimou, ao que parece, entre 25% e 30% da população da Europa ocidental em suas diversas ondas. O que ocorreu foi, se ouso dizer, até “positivo”, uma vez que, com a diminuição de uma oferta abundante de mão-de-obra (que vinha sendo garantida por progressos lentos, mas reais, na produção de alimentos ao longo do período final da Idade Média), tanto o custo do trabalho quanto a produtividade do trabalho registraram ganhos expressivos. Tampouco o mundo pós-Gripe Espanhola, que na verdade era americana em sua origem, foi muito diferente daquele que existia ao final da Grande Guerra, apenas que, talvez, mais propenso a acelerar as pesquisas científicas que levaram, alguns anos depois, a novas vacinas e ao milagroso antibiótico, assim como a melhores cuidados com saneamento básico e medidas associadas a tratamentos preventivos e curativos.
O mundo, tal como ele existe em suas estruturas braudelianas de longa duração, não se altera radicalmente como resultado das pandemias; tampouco as diplomacias nacionais conhecem mudanças significativas, apenas que determinadas tendências existentes são aceleradas, ao passo que outras podem ser relegadas a segundo plano. A Peste Negra trouxe várias mudanças nas relações de trabalho e nos ganhos de produtividade, assim como a Gripe Espanhola gerou progressos gerais nos serviços de saneamento básico e nas instituições estatais cuidando da saúde pública. No plano da psicologia coletiva, o mundo do século XV e o mundo da terceira década do século XX não conheceram mudanças significativas no comportamento das pessoas, dada a tendência a esquecer os horrores vividos, esquecer os mortos e tratar dos sobreviventes e dos novos vivos. A humanidade tende a esquecer grandes tragédias, como ocorreu, talvez, ao final da Grande Guerra e no seguimento do Holocausto da segunda Guerra Mundial, que só começou verdadeiramente a ser relembrado duas ou três décadas depois. Não ocorreu nenhum Tribunal de Nuremberg ao final da Grande Guerra e o que foi realizado em 1945-46 não produziu instituições permanentes de condenação de criminosos de guerra, até o surgimento do mais recente Tribunal Penal Internacional.
As mudanças foram mais significativas no campo das relações internacionais. A diplomacia da segunda metade do século XX deu grandes passos para aprofundar a nova modalidade do multilateralismo, mas essa já era uma tendência que vinha sendo reforçada desde as grandes conferências do final do século XIX – propriedade intelectual, comunicações, direito internacional da guerra e da paz, acordos setoriais, etc. – e que conheceu um grande impulso com o surgimento da Liga das Nações, mas ela foi mais o resultado dos 14 pontos de Wilson do que da Gripe Espanhola, que começou a se propagar desde que os soldados americanos chegaram à França em 1917; o presidente Wilson pode, aliás, ter sido vítima dessa gripe, pois nunca se recuperou quando retornou de vários meses de estada na Europa.
O desafio ao principal ponto de seu plano de paz, a própria Liga, veio mais do Senado americano do que da pandemia, e assim parte do grande exercício de “pacificação” das relações internacionais no pós-Grande Guerra se perdeu, inclusive porque surgiram problemas para acomodar os interesses das grandes potências militaristas e fascistas – Itália mussoliniana, Alemanha hitlerista, Japão expansionista e União Soviética stalinista – e o ambiente de crises e depressões econômicas tampouco ajudou no restabelecimento de relações de cooperação entre os principais atores das relações internacionais. Foi preciso uma nova e devastadora guerra, impulsionada por essas mesmas potências desafiadoras para que, a partir de Ialta, Potsdam e San Francisco, se desenhasse uma espécie de “paz cartaginesa”, com a derrota completa, a destruição e ocupação das potências agressoras, que permitiu o surgimento de um arranjo neo-westfaliano capaz de impor a paz e a segurança internacional com base em mecanismos fortemente oligárquicos (como aliás já tinha sido o caso no modelo original do século XVII, em Viena em 1815, e em Paris em 1919).
Depois de Bretton Woods, os progressos do multilateralismo foram realmente vários e relevantes, embora o processo decisório nas grandes agências do sistema multilateral das Nações Unidas tenha permanecido mais ou menos oligárquico entre 1945 e 1980. Apenas na terceira onda da globalização, as novas dinâmicas econômicas, a partir da consolidação do processo de convergência – depois de quase dois séculos da Grande Divergência –, criaram uma abertura nos processos decisórios, embora tenha sido apenas dez anos atrás que o “resto do mundo” superou, pela primeira vez na história, o pequeno pelotão das economias mais avançadas na formação do PIB global. Esse processo começou nos anos 1960, quando a industrialização das nações periféricas aumenta a participação do Terceiro Mundo na oferta de produtos manufaturados. Desde então, graças sobretudo à Ásia Pacífico, em especial a China, que tinha sido a maior economia mundial até o século XVIII, e a mais avançada cientificamente até o início da era moderna, quando a Europa ocidental conhece sua fulgurante ascensão para a hegemonia mundial. Mas, já no final da Guerra da Secessão, uma nova potência ascendente marca sua presença dominante no contexto da segunda Revolução Industrial. O mundo tinha sido europeu do século XVI ao XIX, e passa a ser americano, a partir do século XX, talvez desde 1898, e mais acentuadamente a partir de 1917, quando os boys desembarcam pela primeira vez nos campos de batalha do velho mundo.
O século americano, inclusive na diplomacia, teve uma vigência de apenas um século, e o século XXI começa pela fulgurante ascensão da China, retomando posições que ela já tinha tido num passado distante. O impacto dessa ascensão será sentido pelo resto do século, mas sua influência nas relações internacionais, e nas práticas diplomáticas, tem muito mais a ver com as dinâmicas econômicas do que com os efeitos sistêmicos da pandemia. Esta será superada em relativamente breve tempo, graças aos avanços fantásticos das tecnologias farmacêuticas, e ela terá consequências sobretudo na aceleração de tendências já presentes anteriormente na economia e na política mundiais, não tanto em mudanças estruturais de grande monta. Ou seja, o mundo não será muito diferente no pós-pandemia, a não ser que diversas atividades – inclusive a diplomacia – terão continuidade no terreno virtual, o que antes seguia um ritmo de tartaruga, dadas as facilidades de transportes e comunicações. A partir de agora, contatos, reuniões e viagens serão mais facilmente substituídos pela versão digital, aliás, com menos despesas e maior frequência.
Uma grande consequência tem a ver com a nova geopolítica do restante do século XXI, mas ela depende mais da postura americana no “enfrentamento” da ascensão chinesa do que propriamente das novas modalidades de práticas diplomáticas. Não tenho tempo de desenvolver aqui essa questão, que vem sendo muito mal conduzida pelos acadêmicos dos EUA em relações internacionais, que aparentemente foram contaminados pela paranoia dos generais do Pentágono, na adoção de uma postura confrontacionista em relação à China. Parto do princípio que a segunda Guerra Fria, que tem um caráter sobretudo econômico, já foi vencida pela China, que tem uma estratégia correta, assim como foi a estratégia da Grã-Bretanha no estabelecimento de sua hegemonia no século XIX, que foi a globalização e o livre comércio, assim como a exportação de capitais, assim como a consolidação de meios e instrumentos de pagamentos que mantiveram Londres no centro das relações econômicas mundiais durante um século e meio. O eixo financeiro só se deslocou de Londres para Nova York com o deslanchar da Segunda Guerra Mundial, embora desde a Grande Guerra os EUA já fossem um grande credor e investidor internacional. Esse eixo vai ter uma base sólida na Ásia Pacífico, em especial na China, inclusive por meio de criptomoedas que vão oferecer concorrência ao dólar, dominante neste século americano (e ainda influente nas próximas décadas).
A própria pandemia revelou enormes fragilidades do sistema americano de saúde, inclusive pelo efeito acrescido da grande desigualdade social que ainda caracteriza o gigante norte-americano, comparativamente a estruturas mais igualitárias na Europa ocidental. Mas a China acaba de proclamar a eliminação da pobreza, ou da miséria, em seu território, o que é um feito extraordinário para um país que tinha falhado sua inserção nas duas primeiras revoluções industriais e que só se encaixou realmente na globalização no decurso da quarta revolução industrial. O mundo do futuro não será necessariamente chinês, mas ele será forçosamente mais diversificado, inclusive com a ascensão do segundo gigante asiático, a Índia, embora ela continua persistentemente protecionista, a ponto de ter preferido não integrar o RCEP, o grande bloco comercial liderado pela China.
Quanto ao Brasil, ele é a grande decepção mundial nas últimas três ou quatro décadas, e não parece perto de ser capaz de superar suas enormes dificuldades políticas para vencer obstáculos estruturais – educação, produtividade, nova industrialização e redução das desigualdades sociais e regionais – que se opõem à sua inserção econômica global. Na verdade, o Brasil exibe uma não inserção na interdependência mundial, dado seu renitente protecionismo e a introversão típica de um país dotado de elites tacanhas e mesquinhas (não fosse assim não teriam demorado tanto tempo para extinguir o tráfico e abolir a escravidão). No plano diplomático, aliás, o Brasil é um dos raros países no mundo a ter perpetrado uma espécie de suicídio diplomático, ao ter deliberadamente escolhido ser pária, um pouco como a Coreia do Norte e Mianmar. É algo realmente vergonhoso para um país que tinha construído, ao longo dos quase dois séculos de independência, uma diplomacia tida por excelente, e que teve um papel decisivo na construção da nação, como já argumentou o embaixador Rubens Ricupero em sua obra clássica A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (2017). Mas, imagino que sua leitura, atualmente, teria o dom de provocar depressão em boa parte do corpo diplomático profissional, assim como na quase totalidade dos analistas e estudiosos das relações internacionais do Brasil.
*Texto de apoio para exposição oral de 30 minutos no 3º. Congresso de Relações Internacionais, dia 27/02, 19h45, via WebinarJam.
Affonso Celso Pastore: Lições da história
Redução dos juros pelo Fed criou condições para o crescimento de bolhas
Em viagem a Nova York, no fim de 1997, encontrei casualmente amigos ligados ao mercado financeiro, que me convidaram para uma visita ao Long Term Capital Management (LMTC), em Greenwhich, Connecticut. Aceitei. Afinal, era uma instituição criada por John Meriwether, o mago do bond trading da Salomon Brothers, e que tinha como sócios Myron Scholes e Robert Merton, que naquele ano dividiram o Prêmio Nobel de Economia. Fomos recebidos por um sócio menos graduado, calçando botas e vestindo jeans, com uma fivela de cowboy no cinto, que antes de me cumprimentar perguntou se eu tinha US$ 1 milhão – a quantia mínima para tornar-me um investidor. Quase pedi desculpas por não me qualificar como investidor, e expliquei que meu único objetivo era aprender como o LTCM conseguia proporcionar enormes ganhos na presença de tantos riscos.
Fui gentilmente brindado com uma aula. Começou explicando como operavam o “convergence trading”, que consiste em ter duas posições: comprar para entrega futura um título de renda fixa a um preço baixo, e ao mesmo tempo vender a um preço mais alto um título similar para entrega futura. Operando com treasuries, que têm risco de default nulo, haveria apenas ganhos. A aula ficou mais interessante com os exemplos de como utilizar derivativos e ampliar os ganhos alavancando posições com empréstimos de curto prazo tomados junto aos bancos, sendo tudo isso respaldado por modelos pilotados por jovens PhD formados em universidades da Ivy League. Saí de lá frustrado, pois os modelos eram tão elegantes que pensei que deveria ter estudado finanças e não economia.
Na ocasião, já era evidente para mim que havia uma crise em formação na Rússia, que ocorreu logo em seguida. Conhecia o suficiente sobre ataques especulativos e crises fiscais, levando-me a prever um final trágico para o país, mas era incapaz de imaginar que, munido dos modelos precisos da teoria de finanças, o LTCM pudesse quebrar. Errei. Um belo dia, não conseguiram pagar os empréstimos, e se não fosse o NYFed ter trancado todos os bancos financiadores em uma sala de seu edifício no down town até que concordassem em assumir totalmente o prejuízo, ocorreria uma crise sistêmica. A Rússia podia quebrar, mas o LTCM era “grande demais para quebrar”.
Confiança excessiva nos modelos gera arrogância. Antes da crise de 2008 Robert Schiller advertia sobre o crescimento de uma bolha imobiliária. Na reunião de Jackson Hole de 2005, Raguran Rajan teve a ousadia de apontar que esse risco era grande, mas a enorme confiança na hipótese de mercados eficientes, nos modelos, e na autorregulação dos mercados, fez com que seu trabalho fosse muito criticado e esquecido pelos economistas.
O Glass Steagel Act fora revogado, desaparecendo a separação entre bancos comerciais e de investimentos. Com isso as hipotecas, grande parte das quais financiava a aquisição de casas por clientes que não conseguiriam pagar, eram empacotadas em mortgage backed securities vendidas aos bancos de investimento, que alavancavam sua posição com financiamentos tomados em bancos comerciais. Brooksley Born, a presidente da Commodities Futures Trading Comission, advertiu sobre a necessidade de regulação para evitar fraudes em derivativos no mercado de balcão, largamente usados nessas operações. Discutiu o assunto com Greenspan, que discordava da proposta. A diferença era que Born “queria usar leis”, enquanto para ele o mercado resolveria tudo. “Se houvesse fraude a companhia demitiria o trader”. Ponto final!
Com a covid vivemos um ciclo econômico sem precedente. O Fed reduziu a zero a taxa dos fed funds e comprou mais de US$ 2 trilhões em treasuries. Colocou o país na armadilha da liquidez e garantiu que manteria os juros baixos por longo período, mesmo que por algum tempo a inflação superasse a meta. Com isso os investidores saíram comprando ativos, de ações a bitcoins, criando condições para o crescimento de bolhas, cuja existência é sempre negada. Para sair da estagnação, no entanto, o governo vai executar uma expansão fiscal de 10% do PIB, com o risco de superaquecer a economia. Se isto ocorrer, o Fed terá que renegar o compromisso e elevar os juros, desinflando possíveis bolhas, com prejuízos que crescem com as alavancagens.
Pode ser que “desta vez seja diferente”, ou que eu esteja vendo fantasmas. Mas seria muito bom se em vez de nos apoiarmos na crença religiosa aos modelos e de que os mercados tudo resolvem, prestássemos atenção às lições da história.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Marcus Pestana: Congresso Nacional e imunidade parlamentar
O parlamento é o centro de gravidade no funcionamento da democracia. Ali está presente a representação plural da sociedade para a construção permanente dos marcos constitucionais e legais que regram a vida da sociedade, do Estado e da economia e um contrapeso ao poder, que não é absoluto, do governo de plantão.
No Brasil, o abismo existente entre a sociedade e o Congresso não é novidade. De 1999 a 2002, tive acesso a pesquisas nacionais de opinião pública que testavam a confiança da população em 42 instituições. Os resultados foram quase os mesmos nos quatro anos. Nos primeiros lugares vinham os Correios e o Corpo de Bombeiro, nos últimos, o Congresso Nacional e os partidos políticos. A população tende a avaliar bem individualmente o deputado que atua na sua região e mal a instituição como um todo.
Há picos de rejeição em casos como a CPI dos anões do orçamento, mensalão, Lava Jato, rejeição da Emenda das Diretas, e momentos de aproximação como na eleição de Tancredo Neves, na Constituinte de 1986, nos impeachments de Collor e Dilma.
Esta relação entre Congresso e sociedade está sendo testada mais uma vez. A votação da manutenção ou não da prisão do deputado Daniel Oliveira (PSL/RJ) que agrediu de forma violenta e desqualificada membros do STF e fez apologia da ditadura, do AI-5 e do fechamento do Congresso e do Judiciário, se desdobrou na manutenção da prisão por 305 contra 154 e na discussão da emenda constitucional sobre imunidade e inviolabilidade do mandato parlamentar.
Entre os que 154 votos contra a manutenção da prisão existem dois grupos. Os que são a favor da impunidade sempre e os que entenderam que o Supremo exorbitou de suas prerrogativas e feriu a Constituição na caracterização da flagrância do crime cometido. Mas houve crime inequivocamente. Não se pode evocar o direito à liberdade de opinião e expressão individual contra o direito coletivo à democracia e à liberdade. A questão política se colocou dentro do atual clima de polarização radical, colocando em jogo a defesa da democracia contra o golpismo autoritário. Sugiro aos incautos lerem o livro COMO AS DEMOCRACIA MORREM e assistirem o filme clássico O OVO DA SERPENTE.
Do ponto de vista jurídico a questão é mais complexa. A imunidade parlamentar e a inviolabilidade do mandato foram inseridas na Constituição como proteção à liberdade de expressão, opinião e ação política dos representantes do povo, mas nunca em relação a crimes bem tipificados na legislação penal. Os parlamentares só podem ser presos em flagrante delito de crimes inafiançáveis. O Supremo decretou a prisão do deputado Daniel com base na Lei de Segurança Nacional, que merece ser revista. O STF não é formado por analfabetos jurídicos, ao contrário, é de se pressupor que ali estão alguns dos maiores constitucionalistas e juristas do país. E, por unanimidade, viu fundamentos jurídicos para a prisão em flagrante.
A complexidade é que se tratava de um crime no ambiente da internet, um vídeo nas redes sociais, que permanecia no ar no momento da prisão, portanto o crime estava sendo cometido naquele exato momento. É diferente de um assalto ou um homicídio, quando o criminoso é preso em flagrante. Fato é que o evento ressuscitou o tema do golpismo contra a democracia e suas instituições. A violência e irresponsabilidade do deputado mereciam uma resposta firme e forte das instituições democráticas.
Ato contínuo a Câmara dos Deputados colocou em discussão a PEC que propõe novo regramento do assunto, reduzindo os poderes dos magistrados, submetendo a aplicação de medidas cautelares e mesmo a avaliação de materiais aprendidos em operações policiais à prévia deliberação do plenário do STF, tipificando os crimes que permitirão prisão em flagrante (tortura, tráfico, crimes hediondos, racismo e ações armadas). A pressa na votação não se justifica em matéria tão complexa.
Mesmo sem conhecer o texto final da relatora e o resultado que poderá ter ocorrido na última quinta, fico preliminarmente com a visão do deputado Beto Pereira (PSDB/MS): “O critério de imunidade vigente hoje é suficiente para garantir o pleno exercício da atividade parlamentar. A alteração proposta peca ao transformar parlamentares em privilegiada casta, protegida pela impunidade. Como efeito colateral seremos contaminados pela indignação do povo”.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Monica de Bolle: Uma proposta para ressuscitar o auxílio emergencial
O mínimo de humanidade que precisamos resgatar é o senso de empatia com as dezenas de milhões de pessoas atingidas que precisam trezentos reais para ontem
De acordo com um estudo recente de pesquisadores da Universidade de São Paulo liderado pela economista Laura Carvalho, o auxílio emergencial impediu que a economia brasileira sofresse retração de dois dígitos em 2020. Muitos de nós já havíamos aventado que isso aconteceria antes mesmo de sua adoção. Segundo o estudo, os efeitos do auxílio emergencial foram canalizados de várias maneiras, em particular devido ao apoio ao consumo e à consequente sustentação da arrecadação.
Conforme escrevi ao longo de vários meses para veículos distintos, era mesmo de se esperar que o auxílio, assim como os programas de renda básica, tivesse esse efeito. Afinal, trata-se de um programa de transferência direta de renda para a população mais pobre, que, por ter menor renda, tende a consumir parcela bem mais elevada do que recebe quando comparada à população mais rica. A razão é óbvia: ricos podem poupar, enquanto os mais pobres não dispõem desse privilégio, tendo de atender às suas necessidades imediatas de subsistência. Em razão disso, o deslocamento de recursos para os mais pobres tem maior capacidade de sustentar setores diversos, evitando mergulhos recessivos mais profundos. Mas essa não é a principal defesa para a reinstituição do auxílio emergencial.
Como já escrevi nesse espaço, o Brasil atravessa o momento mais crítico da pandemia de covid-19, o que significa que estamos muito piores agora do que no início da pandemia. Os sistemas de saúde em diferentes localidades estão sobrecarregados e as pessoas já não têm qualquer tolerância às medidas sanitárias mais restritivas – na verdade, não mostram tolerância sequer com o uso de máscaras para proteger a si e aos outros. O comportamento é compreensível. Há sensação de fadiga em relação à pandemia, lideranças políticas falharam em dar às pessoas o devido senso de alarme, o Presidente da República jamais perdeu oportunidades de minimizar os riscos relacionados à doença e à disseminação do vírus, não houve campanha nacional de informação. Por mais que o comportamento de muitos nos deixe aturdidos, indignados até, muitos estão mal informados e há pessoas que simplesmente não têm alternativa que não seja a de se expor, sobretudo após o término prematuro do auxílio emergencial em dezembro do ano passado. O grande problema é que agora temos novas variantes perigosas do vírus em circulação, duas delas surgidas no Brasil.
Desde que o auxílio emergencial acabou, a pobreza aumentou e dezenas de milhões de pessoas ou não têm o que comer, ou enfrentam situação extrema de insegurança alimentar. No contexto de uma pandemia que tende a se agravar, como é o brasileiro, essa situação é insustentável. Não à toa o governo, após ter dito em diversas ocasiões que não reconsideraria a adoção do auxílio emergencial, parece se preparar para lançar alguma proposta. Como de costume, não há nada de concreto, apenas a situação de urgência. Como de costume, Paulo Guedes prefere lançar balões de ensaio para sentir os humores do mercado financeiro enquanto mais de 80 pessoas padecem de covid-19 por minuto em todo o país.
Um recente balão de ensaio foi a proposta de reerguer o auxílio emergencial por um valor menor do que os 300 reais que vigoraram ao final de 2020 e por tempo limitadíssimo: um par de meses, quiçá três, não mais. A “proposta” viria acompanhada de alguma contrapartida, pois, pela lógica do ministro da Economia e de seus assessores, não se pode aumentar despesas sem que sejam cortados outros gastos. Surgiu, portanto, a ideia contraditória de um auxílio emergencial condicionado. Ora, por definição, qualquer coisa que seja condicionada a outra perde o caráter emergencial, já que a condicionante teria de ser aprovada conjuntamente. O balão de ensaio de Guedes, ou um deles ao menos, previa que a condicionante fosse a PEC Emergencial. Vejam, Proposta de Emenda Constitucional: algo exigente do ponto de vista jurídico-formal e das negociações, ou seja, que exige tempo para que se costurem as adesões no Congresso e para que sejam feitas as análises de sua real constitucionalidade. É claro que tal proposta esvazia por completo a razão de ser de um auxílio emergencial.
O que fazer, então? Penso que o ideal, considerando as altas inflacionárias em 2020, seria retornar ao valor original do benefício, isto é, 600 reais. Mas,temo que, se os grupos da sociedade que tanto lutaram pelo auxílio no ano passado se mobilizem em torno desse valor, tenham de abrir mão do prazo de vigência do programa como contrapartida. E o prazo de vigência do auxílio é de extrema importância pela situação de calamidade que vivemos, o atraso da vacinação, as variantes perigosas disseminadas e a perspectiva de que a pandemia esteja muito longe de acabar – inclusive, já escrevi nesse espaço que transitaremos de uma pandemia aguda para outra crônica. Portanto, minha proposta é a manutenção do valor do benefício em 300 reais, alcançando o mesmo número de pessoas de 2020, isto é, pouco mais de 70 milhões, até o fim do ano. Se esse programa tivesse início em março, custaria nesse ano cerca de 220 bilhões de reais.
Um bom programa emergencial de transferência de renda não pode acabar de súbito: é necessária uma regra de transição
Contudo, há mais. O auxílio não pode terminar abruptamente, como ocorreu no ano passado. O fim abrupto é um choque profundo nos orçamentos familiares, na capacidade de subsistência das pessoas. Um bom programa emergencial de transferência de renda não pode acabar de súbito: é necessária uma regra de transição. Penso ser razoável uma regra de transição de seis meses a partir da data de término do programa, reduzindo gradualmente o benefício. Esse modelo de auxílio emergencial teria, assim, um custo fiscal ainda em 2022.
Como financiá-lo? Com emissão de dívida. Vou repetir: com emissão de dívida. Trata-se de um programa emergencial, que não nos permite o luxo de buscarmos recursos em reformas como a tributária, que demoraria a ser negociada, mesmo com elevações pontuais de impostos, que exigem negociações. Põe-se de pé o auxílio, emite-se dívida para financiá-lo. Mais à frente instituímos os impostos progressivos, particularmente sobre lucros e dividendos, para dar conta dos desequilíbrios fiscais. Repito: estamos falando de uma emergência, não de uma situação normal. Emergência requer pressa. E é preciso lembrar do que disse no início dessa coluna: uma parte do auxílio se autofinancia. O auxílio gera consumo, que gera arrecadação. Vimos isso em 2020, já temos a experiência.
Precisamos de condicionalidades? Tudo o que não precisamos é de condicionalidades. O auxílio emergencial é incondicional por seu caráter de urgência. O mínimo de humanidade que precisamos resgatar é o senso de empatia com as dezenas de milhões de pessoas que precisam desses trezentos reais para ontem. Insistamos para que se resgate um pouco de decência na política pública.
Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.
Afonso Benites: Ricardo Salles aposta na gestão Arthur Lira na Câmara para avançar mineração na Amazônia
Sob pressão com mudança de poder nos EUA, titular do Meio Ambiente afirma que não está preocupado com possível reforma ministerial sinalizada por Bolsonaro
Ricardo Salles tem oscilado entre altos e baixos no Governo Jair Bolsonaro. Apontado por ambientalistas como um representante de ruralistas no Ministériodo Meio Ambiente e visto por alguns diplomatas como um extremista, Salles tenta buscar uma sobrevida para sua permanência na pasta. Para isso, tenta se apoiar no novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) para emplacar projetos caros ao bolsonarismo, que têm potencial para dizimar regiões florestais e que podem prejudicar a sobrevivência de populações tradicionais. Entre essas propostas estão a regularização fundiária de regiões florestais e a que autoriza a mineração em terras indígenas. Ambas têm tudo para avançar sob a gestão Lira.
A primeira sinalização que o ministro fez para a base de apoio bolsonarista foi a de reclamar que, durante a gestão Rodrigo Maia (DEM-RJ), encerrada no início deste mês, pautas governamentais pouco avançaram. Agora, ele diz estar confiante de que a situação será mais favorável ao Governo. “O que nós vimos ao longo desse período que acabou é que nem sequer as discussões podiam ser feitas. Você mandava um projeto de lei ou até uma medida provisória que caducaram no Congresso, e as discussões não aconteciam”, disse Salles em entrevista ao programa Poder em Foco, do SBT, da qual o EL PAÍS participou como convidado.
Sobre seu apoio ao polêmico projeto de mineração em terras indígenas, o ministro diz que gostaria que houvesse regras claras sobre o tema. “A mineração na Amazônia, seja em terra indígena ou fora da terra indígena, qual é a regra que vai ser imposta? Nós estamos desde a Constituição de 1988 aguardando a solução de uma norma que já previa uma regulamentação e esse assunto vai sendo jogado pra baixo do tapete ano após ano. Então é preciso discutir e encontrar um caminho, a solução não é não ter solução”.
Nesta montanha-russa da política, Salles esteve fortalecido com o presidente mesmo após seguidas altas dos índices de desmatamento e de queimadas na floresta amazônica e no Pantanal ao longo de 2019 e 2020. O prestígio decaiu depois que, em março do ano passado, foi filmado em reunião ministerial dizendo que o Governo deveria aproveitar a pandemia para “passar a boiada” no afrouxamento de regras ambientais. Ficou um tempo fora das manchetes jornalísticas depois desse episódio. Mais recentemente, voltou a ter seu nome em destaque quando Joe Biden venceu Donald Trump na disputa presidencial dos Estados Unidos e vários analistas apostaram que ele seria demitido.
Manteve-se no cargo porque Bolsonaro estava irritado com seu vice, Hamilton Mourão, que comanda o agora esvaziado Conselho Nacional da Amazônia. O presidente queria ter alguém para se contrapor ao general. Mourão é visto por alguns bolsonaristas como uma ameaça a Bolsonaro, que já acumula mais de 60 pedidos de impeachment. Essa queda de braço tem sido vencida pelo ministro, por enquanto, já que os militares subordinados indiretamente ao conselho deixarão de atuar na fiscalização da região amazônica nos próximos dois meses.
O curioso é que o mesmo Centrão que pode dar sobrevida a Salles com o prestígio junto a Lira é o grupo que pode derrubá-lo, em busca de nacos de poder na Esplanada dos Ministério. O nome de Salles juntamente com o do chanceler Ernesto Araújo, volta a ser apontado como um dos próximos a ser demitido numa iminente reforma ministerial realizada para acomodar políticos do fisiológico Centrão. “O cargo é do presidente (...) Eu não estou preocupado se vai ter reforma, se não vai ter reforma”, disse no programa do SBT.
Primeira reunião com representante de Biden
Ao mesmo tempo em que tenta, mais uma vez, se equilibrar no cargo, Salles busca demonstrar institucionalidade e proatividade. No último dia 18, Salles e Ernesto Araújo se reuniram pela primeira vez, por videoconferência, com o secretário de Estado americano, John Kerry. Na ocasião, levaram uma proposta ao homem forte da área ambiental de Biden na qual pediam mais dinheiro para a proteção ambiental. Segundo interlocutores, o Governo americano não discordou da proposta. Apenas sinalizou que alguma compensação financeira poderia ser apresentada nos próximos meses. A proximidade entre Bolsonaro e Trump, e as declarações de apoio feitas pelo brasileiro antigo presidente americano por ora, tem criado barreiras entre a cúpula dos dois Governos.
A busca de Salles por mais recursos tem várias razões. Uma delas: em 2021, o Ministério do Meio Ambiente se deparará com um de seus menores Orçamentos das últimas décadas. O resultado prático disso será a redução de fiscalização, que está cada vez menor, e o enxugamento administrativo. Ainda assim, mesmo com menos recursos, desde que Bolsonaro chegou ao poder o país abriu mão de receber doações da Noruega e da Alemanha por meio do Fundo Amazônia. Atualmente, há 40 projetos de proteção ambiental com 1,4 bilhão de reais parados nas contas porque Bolsonaro e Salles decidiram alterar as regras de gestão desses recursos. A razão é ideológica. “Ao invés de mandar o dinheiro para projetos e ideias que não necessariamente o governo concorde, dissemos que queríamos ter maior participação nisso e os doadores, Noruega e Alemanha, não concordaram”, justificou-se o ministro.
Como alternativa para suprir esses recursos, Salles disse que o Brasil busca convencer os países ricos a doarem mais para a proteção ambiental. A contrapartida brasileira seria antecipar de 2060 para 2050 o prazo em que se zeraria as emissões de gás carbônico no país. A conta sairia cara para os países ricos, entre eles, os Estados Unidos: 10 bilhões de dólares por ano (algo em torno 53 bilhões de reais). “Pedimos cem Fundos Amazônia por ano”, afirmou na entrevista, gravada no último dia 10.
Andrea Jubé: “Ele não vai botar o pijama, não!”
General é a aposta para as crises do diesel e da energia
O presidente Jair Bolsonaro tem se notabilizado por jogar com as cartas abertas sobre a mesa. Após a intervenção na Petrobras, já anunciou que promoverá novas trocas no governo: “Mudança comigo não é de bagrinho, é de tubarão”. Pescador profissional, ele contou para os peixes que lançou a tarrafa.
Indicado para a presidência da Petrobras, o general Joaquim Silva e Luna nunca foi uma carta na manga. Ele foi apresentado como um dos homens da máxima confiança do presidente no segundo dia de governo.
Pelas idiossincrasias da política, declarações do presidente na posse do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, no dia 2 de janeiro de 2019, ainda repercutem, e estão relacionadas às principais crises da última semana.
Naquela solenidade, Bolsonaro trouxe à luz a estreita amizade com o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas. “Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, afirmou, em uma inconfidência que gera desassossego até hoje.
Villas Bôas não expôs no controvertido “Conversa com o comandante”, da editora FGV, o conteúdo dessas conversas. Mas a revelação dos bastidores dos tuítes que pressionaram o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento do “habeas corpus” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva produziu a folia mais agitada da atual gestão, desde o “golden shower”, culminando na prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).
Na mesma cerimônia, Bolsonaro tornou público seu apreço ao ex-ministro da Defesa do governo Michel Temer, anunciando que Silva e Luna, “um excelente homem”, integraria sua equipe. “Ele não vai botar o pijama, não!”
Menos de dois meses depois, em 21 de fevereiro de 2019, Silva e Luna seria nomeado diretor-geral brasileiro de Itaipu Binacional.
Representante da ala militar não palaciana, avesso aos holofotes de Brasília, o ex-ministro de Temer projetou-se como um dos quadros mais prestigiados pelo presidente.
Nestes dois anos, Bolsonaro compareceu a oito eventos da binacional no Paraná. Nesta quinta-feira, o presidente estará novamente no palanque ao lado do general em uma solenidade da hidrelétrica.
Esse é o pano de fundo da relação entre Bolsonaro e o ex-ministro, que culminou na conturbada intervenção na Petrobras, e no derretimento do valor da companhia.
Desse episódio, Silva e Luna emerge como o homem de confiança de Bolsonaro em meio a nova crise com os caminhoneiros, e, simultaneamente, para iluminar caminhos para a redução da tarifa de energia.
Bolsonaro avisou apoiadores que também vai “meter o dedo na energia elétrica, que é outro problema”. O presidente ouviu de Silva e Luna que Itaipu é uma das soluções.
Após dois anos na direção-geral brasileira da hidrelétrica, Silva e Luna tem expectativa de que, no ano que vem - ano eleitoral -, a tarifa de energia tenha queda substancial devido à amortização relevante de parcela da dívida da binacional, que deve ser integralmente quitada em 2023. “Será a energia mais barata do país”, tem dito Silva e Luna.
Sobre a Petrobras, o general nega que Bolsonaro lhe tenha encomendado mudanças na política de preços dos combustíveis.
Nos bastidores, entretanto, sabe-se que Bolsonaro se irritou com o desdém de Castello Branco em relação às queixas dos caminhoneiros, seu eleitorado cativo. Por isso, o presidente espera que o general tenha sensibilidade com esse público, com quem dialogou quando era ministro na greve de 2018.
Silva e Luna afirma que todo general tem uma missão imposta, e outra que é deduzida. A dedução do mercado é que Bolsonaro lhe incumbiu de resolver a crise dos combustíveis.
Mas o general deu sinais de querer trabalhar em sintonia com a diretoria-executiva e o conselho de administração. “Isso aí [alta dos preços] são considerações que têm que ser analisadas junto com o conselho, junto com a equipe”, disse ao Valor.
O economista- chefe da Guide Investimentos, João Maurício Rosal, observa que o mercado ainda não analisou as credenciais do general Silva e Luna para assumir o comando da Petrobras porque o ambiente de desconfiança gerado pela intervenção na companhia impede avançar uma casa num tabuleiro onde explodiram uma mina.
“A sinalização de que o controlador pode tomar decisões “ad hoc”, sem grandes explicações que não sejam ligadas ao valor da companhia vai pairar como um espectro por muito tempo. Reputação é difícil para uma empresa conquistar, mas é fácil de se perder”, diz Rosal.
O economista afirma que superar essa desconfiança vai ser missão hercúlea para o general. “Ele vai ter esse peso para carregar, essa desconfiança não se dissolve da noite para o dia”.
Rosal reconhece, entretanto, que a crise do preço dos combustíveis também é um espectro que volta e meia assombra os governos. Pedro Parente, a quem se atribui o primeiro movimento significativo de recuperação da empresa após a Lava-Jato, deixou o cargo na esteira da crise provocada pela greve dos caminhoneiros de 2018.
Por isso, Rosal sugere que o governo busque uma solução, citando o exemplo do Chile, que instituiu por um período longo um mecanismo, com gatilhos acionados sob critérios específicos para gerir a oscilação dos preços.
“Talvez o pais não esteja preparado para conviver com um mercado onde o preço dos combustíveis siga os preços internacionais, dada essa sensibilidade política. Mas o governo precisa pensar num mecanismo para o mercado de combustíveis, e não optar pela ingerência na Petrobras”, diz o economista. A alternativa seria encontrar uma política de preços final para o consumidor capaz de suavizar os ciclos internacionais sem comprometer a saúde fiscal do país”.
Vinicius Torres Freire: Novo auxílio será 'fura teto' e não exigirá corte de gasto social
Não haverá cortes obrigatórios de despesas a fim de compensar o novo auxílio emergencial que o Congresso deve aprovar em breve. É um dos artigos centrais do texto quase pronto da emenda constitucional que trata de gastos na epidemia, calamidades e de controles de gastos públicos.
Não haverá redução de salários de servidores, nem agora nem depois, tampouco corte de outros benefícios sociais. De grande impacto, propõe-se a extinção do gasto mínimo em saúde e educação, o que pode implicar o fim da eficácia prática do Fundeb (a transferência de recursos federais para a educação básica em estados e municípios). No Congresso já se ouve queixa geral sobre o fim do gasto mínimo em saúde e educação —difícil que passe.
Muito barulho por não muito, enfim. Venceu Jair Bolsonaro (sem partido), que desde o ano passado vetava quase qualquer sugestão de corte.
Não será preciso decretar calamidade para que se aprove o auxílio emergencial. Mas, no caso de o Congresso decretar calamidade nacional, nos dois anos seguintes ao fim dessa situação excepcional os governos deverão adotar medidas que contenham o aumento de gastos obrigatórios e com pessoal.
O novo auxílio emergencial que o Congresso deve aprovar em breve será um “fura teto”. Isto é, essa despesa: 1) não estará sujeita ao limite constitucional de gastos deste ano; 2) não será contada no cálculo da meta fiscal (a diferença entre o que o governo gasta e arrecada, estipulada em lei anual); 3) não estará sujeita à regra de ouro (grosso modo, o governo não pode se endividar para pagar despesas além daquelas de investimento em obras, equipamentos etc.)
O que há de “compensação” em termos de controle futuro de gastos?
A versão “quase final” da proposta de emenda constitucional 186 (PEC 186) especifica medidas a fim de evitar o estouro do teto de gastos —as regras até aqui eram confusas ou contraditórias. Se na aprovação da lei do Orçamento se verificar que a despesa obrigatória do governo supera 94% da despesa sujeita ao teto, estará suspensa qualquer medida que eleve o gasto com pessoal (reajuste, benefício, contratação, promoção etc. com exceções menores), durante o ano de vigência do Orçamento. A novidade aqui é o “gatilho” dos 94%. A despesa obrigatória já supera tal limite de 94% e assim deve ser em 2022.
Em outro artigo, governadores e prefeitos ficam autorizados a adotar medidas de contenção de gasto caso a despesa corrente, calculada em um período de 12 meses, supere em 95% a receita corrente —a contenção pode durar enquanto durar o estouro deste limite.
Isto é, governadores e prefeitos podem proibir mais gasto com pessoal ou outra despesa obrigatória, o reajuste de despesa obrigatória além da inflação, novos financiamentos, novos perdões de dívida ou não podem conceder ou ampliar benefícios tributários (redução específica de imposto para determinado setor ou grupo de cidadãos). As mesmas medidas podem ser adotadas caso a despesa ultrapasse o limite de 85%, desde que com autorização do Poder Legislativo.
Caso o governo federal, o Executivo, note que as receitas são insuficientes para cumprir metas fiscais do ano, precisa “contingenciar” (adiar até segunda ordem) parte da despesa prevista no Orçamento. Pela PEC, os demais Poderes, o Ministério Público e a Defensoria Pública terão de adotar cortes provisórios na mesma medida definida pelo Executivo (vale também para estados, Distrito Federal e municípios).
Caberá ao Congresso decretar estado de calamidade nacional. Nesse caso, ficam suspensas várias normas de contratação de despesa pública e o cumprimento da “regra de ouro”. Dois anos depois da calamidade, União, estados, Distrito Federal e municípios teriam de adotar medidas de controle de despesa previstas naquele caso em que gastos superam receitas em 95% (contenção de gastos obrigatórios e com servidores).
A PEC estipula que o presidente da República terá de mandar ao Congresso uma lei de redução paulatina de benefícios tributários, em até seis meses depois da promulgação da emenda. Isto é, o valor das reduções especiais de impostos deverá baixar de pouco mais de 4% do PIB para 2% no prazo de oito anos.
Há exceções, como benefícios da Zona Franca de Manaus, de micro e pequena empresa, para produtos da cesta básica, para entidades filantrópicas de saúde, educação e assistência social, para partidos, sindicatos, e no caso de benefícios concedidos no âmbito de fundos constitucionais do Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Ou seja, nota-se que a PEC foi redigida a dedo e que vai ser, pois, difícil reduzir benefícios tributários.
A Constituição já prevê que uma lei complementar trate da dívida pública. Na PEC, estipulam-se várias providências novas em relação a essa exigência: limite do valor da dívida, compatibilidade entre metas fiscais e crescimento da dívida, métodos de ajuste, planejamento de privatizações a fim de abater dívida etc.
Enfim, de principal, a PEC também tenta evitar uma esperteza de municípios e/ou estados: não incluíam na despesa com pessoal os gastos com inativos ou pensionistas. Agora, estaria previsto na Constituição o veto a essa manobra para gastar mais do que permitem os limites de despesa com pessoal.
Pedro Fernando Nery: De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família
Seja via o benefício ou por novo programa social, a população infantil deve ser prioridade do governo
De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família. Embora efetivo em combater a extrema pobreza, o programa só recebe 2% das despesas primárias do governo federal. Para ser expandido, diante da grave restrição fiscal, precisa ocupar espaço de outras políticas mais caras e menos voltadas aos mais pobres – sejam elas pagas pelo Estado diretamente (gasto) ou indiretamente (renúncia de tributos). Poderá a pressão por mais recursos pelos órfãos do auxílio emergencial mobilizar as reformas que permitam a expansão do Bolsa?
Cerca de 50 milhões dos beneficiários do auxílio emergencial não eram beneficiários do Bolsa Família. Como possuem dificuldade de acessar o mercado de trabalho formal – afinal um pré-requisito do auxílio é não ter emprego com carteira –, não são tão alcançados pelo gasto com benefícios previdenciários ou trabalhistas. Eles pressionarão pelo aumento da cobertura da assistência social. Já os beneficiários do Bolsa Família receberam pagamentos bem maiores com o auxílio emergencial. Eles pressionarão pelo aumento do tíquete médio (de R$ 190 por família, mas com piso de meros R$ 41 mensais).
Na pesquisa do Poder360, a rejeição do presidente caiu a 30% no auge dos pagamentos do auxílio. Ele foi reduzido e depois encerrado. Agora, semanas após o encerramento, a rejeição já subiu ao patamar de 50%. Essa trajetória acompanha a montanha russa na renda dos beneficiários, que em alguns casos subiu muito em 2020 e agora cai ao menor nível em anos.
Assim, um desdobramento do auxílio emergencial poderia ser uma mudança no gasto público no Brasil. Esse legado se soma a outros – o mais comentado é o aumento expressivo da dívida pública com os pagamentos. Há ainda um legado positivo, decorrente da elevação temporária da renda dos mais pobres. Como a variação não resultou apenas em aumento na compra de alimentos, pelo menos parte do auxílio de 2020 tem efeitos mais duradouros. É o caso da aquisição de remédios ou do desenvolvimento da infraestrutura do domicílio (gastos com eletrodomésticos e construção que podem melhorar na habitação condições de saúde, de desenvolvimento infantil e de inclusão digital).
Ugo Gentilini, líder global para assistência social do Banco Mundial, analisa o legado que os benefícios temporários da pandemia podem deixar para a rede de proteção social permanente dos países que os implementaram. Condizente com as curvas de popularidade no Brasil e a pressão de um ano pré-eleitoral, Gentilini especula: “O fato de a covid-19 ter alcançado pessoas anteriormente sem cobertura – incluindo grandes parcelas de trabalhadores do setor informal – pode gerar um novo eleitorado exigindo proteção social, possivelmente aumentando a sustentabilidade política de programas de grande escala”.
O economista avalia ainda que a pandemia testou preconceitos associados a transferências de renda, o que pode ter desmistificado os benefícios para segmentos da sociedade. Afinal, a academia e a tecnocracia já sabem há tempos que não procede que os pagamentos sejam mal utilizados e que sejam relevantes para desincentivar o trabalho ou estimular o aumento de famílias.
Para o Bolsa Família, é especialmente importante o reajuste dos valores do benefício variável e da linha de pobreza que dá acesso a ele. Este é o benefício voltado para ajudar crianças. Seja via Bolsa Família ou por novo programa baseado nele, a população infantil deve ser prioridade. Há um notório elevado retorno para a sociedade de garantir o desenvolvimento destes futuros trabalhadores – e o Brasil gasta muito menos de seu PIB do que países ricos com benefícios a famílias com crianças.
Os Estados Unidos, uma exceção, agora discutem seriamente um benefício universal infantil, com apoio inclusive de republicanos estrelados.
Nenhum outro benefício se mostrou no Brasil tão capaz de chegar aos mais pobres, nem de perto, o que dá azo à revisão de outras políticas para que uma transferência de renda como o Bolsa ocupe mais espaço. Não apenas os gastos diretos deveriam ceder recursos, como também os indiretos: as políticas públicas baseadas em corte de tributos para segmentos específicos tidos como “estratégicos”. Como provocou recentemente Carlos Góes, estratégicos são os pobres.
Poderia o auxílio emergencial ser um catalisador dessas reformas, antes associadas apenas à pauta de ajuste fiscal? Gentilini reflete que os avanços na proteção social historicamente aconteceram diante de inesperadas janelas de oportunidade – mas elas se fechariam rapidamente. O debate atual não deve se limitar apenas à renovação temporária do auxílio, mas a mudanças profundas no Orçamento que permitam a expansão da proteção social com responsabilidade fiscal. Quem sabe os mais pobres ganhem mais um ou outro centavo.
*Doutor em economia
Elio Gaspari: Daniel Silveira errou o tiro
Deputado, que se dizia “cagando e andando” para as opiniões do STF, pensou em criar uma crise institucional; deu errado, fosse qual fosse a intenção
Daniel Silveira é um ex-PM do Rio. Em seis anos na corporação, pagou 26 dias de prisão, com 14 repreensões. Antes de entrar para a polícia, ele se valia de falsos atestados médicos fraudados por um faxineiro para faltar ao serviço. Preso na semana passada, manteve dois celulares na sala da Polícia Federal onde ficou, por decisão do ministro Alexandre de Moraes.
Esse personagem, que dias antes se dizia “cagando e andando” para as opiniões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pensou em criar uma crise institucional no Brasil. Ele foi o estuário de uma visão nascida em 2018, quando o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal”. Não bastam.
Ao seu estilo, Daniel Silveira usou a repercussão do depoimento do general da reserva Eduardo Villas Bôas para atacar, em nome de sua agenda pessoal, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os inquéritos sobre mobilizações antidemocráticas propagando mentiras estão na mesa de Moraes. Fosse qual fosse a intenção de Silveira, deu errado.
Na última terça-feira, quando os ataques do deputado chegaram ao conhecimento de ministros do Supremo, vários deles discutiram o caso com Moraes. À noite, ele mandou prendê-lo. Silveira sustenta que o flagrante citado por Moraes não se sustenta. O que não se sustenta é sua jurisprudência. Enquanto uma mensagem está postada pelo autor, o delito está em curso. (Depois que Silveira foi em cana, o vídeo foi apagado.)
Pelo andar da carruagem, ainda nesta semana o doutor poderá passar para um regime de tornozeleira, com limitações cautelares. A partir daí, tudo dependerá do seu comportamento.
A julgar pela sua conduta respeitosa durante a audiência de custódia de quinta-feira, o que foi combinado ficará de pé. Caso Silveira tenha uma recaída, saindo por aí “cagando e andando” por onde bem entende, cairá de novo na jurisdição de Alexandre de Moraes.
Villas Bôas também esperou três anos
O general da reserva Eduardo Villas Bôas ironizou o arroubo do ministro Edson Fachin, que considerou “gravíssima” sua revelação dos bastidores da preparação do famoso tuíte de 2018. Nele, o então comandante do Exército prensou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado em favor de Lula.
Villas Bôas foi breve: “Três anos depois”.
Na mosca. Fachin demorou para ficar indignado, e não foi por falta de exemplo, porque o ministro Celso de Mello repudiou o tuíte no dia seguinte.
“Três anos” também foi o tempo que Villas Bôas demorou para contar como produziu o texto, colocado na sua conta pessoal do aplicativo. Com uma diferença: Fachin demorou, mas pôs a cara na vitrine; Villas Bôas terceirizou parte da iniciativa.
Nas suas palavras:
“O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte — dia da expedição—, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente.”
O general fez dois tuítes, somando 75 palavras. Se elas tomaram todas as horas do expediente, cada uma foi medida. A certa altura, Villas Bôas assegurou que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”. Deu no que deu.
Em outros tuítes, Villas Bôas havia louvado o “soldado Luciano Huck” e uma apresentação de Sabrina Sato na Academia das Agulhas Negras. Noutra ocasião, defendeu o desempenho da atriz Regina Duarte, então secretária de Cultura, numa entrevista, por sua “grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, confiança, doçura, (e) autoconfiança.”
Ao revelar detalhes da edição do tuíte, Villas Bôas compartilhou sua gênese. Chefe militar pode ouvir seus comandados por respeito e até mesmo por cortesia, mas não revela isso três anos depois.
Imaginar comandantes como Leônidas Pires Gonçalves ou Orlando Geisel contando que suas palavras foram submetidas e discutidas com subordinados equivale a imaginá-los de boné num show do cantor Belo na Maré.
Nunca é demais lembrar o papelzinho que o general Dwight Eisenhower guardou no bolso em 1944, durante o dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, caso a operação fracassasse:
“Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.
Deu tudo certo, e em 1953 ele se tornou presidente dos Estados Unidos.
Nunes Marques
Na noite de quarta-feira, os ministros do Supremo achavam que no dia seguinte a Corte sustentaria a decisão de Alexandre de Moraes por 10x1.
Ficaria vencido o ministro Nunes Marques. Feitas as contas do outro lado, entendeu-se que esse resultado seria pior. E assim chegou-se à unanimidade.
Ricardo Boechat
Completaram-se dois anos da morte do jornalista Ricardo Boechat, e o laboratório Libb, que o havia contratado para uma palestra em Campinas, interrompeu as negociações amigáveis para custear a continuidade do tratamento médico de uma das filhas que deixou, estimado em R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais. Enquanto viveu, Ricardo Boechat arcou com essa despesa.
Boechat morreu quando caiu o helicóptero que o trazia de volta a São Paulo, depois de uma palestra no Libb, em Campinas.
Contratualmente, o transporte de Boechat era de responsabilidade do Libb. A aeronave estava bichada, e a empresa contratada não tinha autorização para fazer esse tipo de serviço.
Depois de quatro meses de negociações amigáveis, o laboratório Libb resolveu judicializar a questão. Ele é o oitavo maior do mercado, com o slogan “empresa inspirada pela vida”.
Numa conta de padaria, uma decisão de primeiro grau poderá demorar mais de um ano. Com recursos, pode-se ir a cinco anos.
Turismo irresponsável
Disposto a mostrar que não é um “maricas”, Jair Bolsonaro passou o carnaval na praia, festejando curiosos, sempre sem máscara.
Seu governo lançou a campanha “Turismo Responsável”, criando um selo para agências de serviços e empresas.
Quem vê os vídeos da propaganda do selo pode pensar que está na Nova Zelândia. Lá, sob o comando da primeira-ministra Jacinda Ardern, morreram 26 pessoas, cinco para cada milhão de habitantes. Na terra das palmeiras, onde canta o capitão, morreram mil para cada milhão de brasileiros.
Perseverança
Depois de cinco meses de viagem, o robô Perseverance pousou em Marte.
Completaram-se 14 meses do dia em que o repórter Aguirre Talento revelou a existência de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)que torraria R$ 3 bilhões na compra de equipamentos eletrônicos para escolas públicas. Os 244 alunos de um colégio mineiro receberiam 30.030 laptops.
Ainda não se sabe quem botou esse jabuti na burocracia do FNDE.
A perseverança da Nasa é coisa de principiantes.
Bernardo Mello Franco: O caminho do Capitólio
No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.
Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.
Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.
No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.
O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.
A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.
“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.
Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.
O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.
Velhas novidades
O Partido Novo se diz liberal, mas não perde uma chance de lustrar as botas do capitão. Das 24 legendas na Câmara, foi a única a votar unida contra a prisão de Daniel Silveira.
O deputado Marcel van Hattem ousou comparar o bolsonarista ao ex-deputado Márcio Moreira Alves. Um defende a ditadura e queria surrar ministros do Supremo; o outro denunciou as torturas e foi cassado pelo AI-5.
Van Hattem foi o campeão de votos do Novo em 2018 e se tornou o primeiro líder da sigla em Brasília.