auxilio emergencial

Juan Arias: Alguém acha que se Bolsonaro perder as eleições contra Lula irá passar a faixa pacificamente?

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, é capaz de atropelar liberdades e voltar a acariciar seu sonho de uma nova ditadura militar

A possível foto do capitão Bolsonaro passando pacificamente a faixa presidencial ao ex-presidente Lula percorreria o mundo. E é isso que o presidente tentará evitar. Já recém-eleito em 2018 começou imediatamente a colocar em dúvida a legitimidade das urnas e exigiu o voto impresso. Chegou a dizer que se os votos não fossem manipulados ele teria vencido no primeiro turno e que tinha provas disso, mas nunca as apresentou. E desde então deixou claro que se perder o próximo pleito e ainda mais agora com a possibilidade de que Lula seja o vitorioso, não aceitará pacificamente os resultados.

Não por acaso, desde que surgiu de surpresa a possibilidade de que Lula possa disputar as eleições, Bolsonaro tem afirmado que só ele pode impor o estado de sítio no país. Falou novamente da possibilidade de um golpe, de que ele conta com “seu Exército”.

Bolsonaro nunca apareceu tão nervoso e agressivo ao mesmo tempo em que se apresentou de repente como o defensor da vacina, enquanto abre uma guerra contra os governadores aos que acusa de ser os responsáveis pela tragédia da pandemia por permitirem medidas restritivas para tentar conter o drama da covid-19 cada vez mais perigosa e agressiva.

A única coisa que preocupa o capitão desde que foi eleito é assegurar sua reeleição no ano que vem. Contra isso, o presidente é capaz de atropelar todas as liberdades e de voltar a acariciar seu sonho de implantar uma nova ditadura militar. Não é por acaso que a cada dia seu Governo aparece mais militarizado e que no boletim do Clube Militar do Rio de Janeiro tenha se defendido que a maioria dos brasileiros “tem saudade da ditadura”. Algo que todas as pesquisas nacionais desmentem mostrando que 70% dos brasileiros são favoráveis à democracia.

Bolsonaro voltou esses dias à cínica filosofia de que “a liberdade é mais importante do que a vida”. Só que ele falar de liberdade soa a sarcasmo. Pelo contrário, para ele o conceito de liberdade não existe. A primeira vez que ele falou de liberdade significou liberdade para infringir as leis restritivas contra o avanço da pandemia. Bolsonaro não entende de filosofia e não sabe o que é um silogismo e um sofismo. Seu forte não é o raciocínio e a reflexão e sim a impulsividade das armas e a exaltação da violência em todas as suas vertentes.

Quando o presidente defende que a liberdade vale mais do que a vida não está fazendo uma reflexão filosófica. Está só pensando na liberdade que suas hostes negacionistas pedem para desobedecer às normas impostas pela ciência e a medicina em meio à maior tragédia sanitária da história do Brasil.

Bolsonaro tem pavor de perder votos de suas hostes se apoiar as medidas necessárias não só para prevenir o contágio pessoal, como também para impedir o dos outros. Chega a defender que é melhor morrer e expor os outros à morte do que impedir as pessoas de burlar essas normas ao bel-prazer. Sua única obsessão é a de poder perder as eleições e por isso despreza a vida dos outros para salvar seu poder.

Bolsonaro falar da liberdade mesmo à custa de colocar em perigo a própria vida é risível e soa mais à fraude. Se há hoje no Brasil um político que despreza a liberdade é o presidente cujo vocabulário está repleto de palavras como golpe, ditadura, guerra contra a liberdade de expressão e perseguição dos direitos humanos. De guerra contra a liberdade das pessoas de escolher suas preferências sexuais e de negar que os diferentes tenham direito à sua liberdade de sê-lo.

A palavra liberdade na boca do negacionista e genocida já nasce podre e corrompida.

A única forma de liberdade para ele é justamente a de perseguir as liberdades que forjam uma sociedade verdadeiramente democrática onde não existe valor maior do que a vida.

presidente alardeia o uso de Deus para seus planos de poder e para ganhar os votos da grande massa dos evangélicos. Ele, que gostaria de trocar a Constituição pela Bíblia, deveria se lembrar que nos textos sagrados Jesus define a si mesmo como “o caminho, a verdade e a vida” (João, 14,16).

Bolsonaro despreza exatamente esses três conceitos. Em vez de ser o caminho, ou seja, o guia de uma sociedade justa e livre, é o motor da confusão e do desgoverno. Em vez de ser o representante no país da verdade é o semeador da mentira, cultor da nova moda das fake news. E em vez de ser o defensor da vida chama de covardes os que se protegem do vírus e fazem sacrifícios para continuar vivos.

Não existe no presidente que está conduzindo o país a uma catástrofe um só instinto de vida. Seu abecedário é o da morte e da destruição como revela sua paixão pelas armas, expressão da morte e da violência. Que Bolsonaro coloque um falso conceito de liberdade como mais importante do que a vida é a melhor constatação do que já havia confessado: “Eu não nasci para ser presidente. Minha profissão é matar”.

Bolsonaro poderá um dia ser levado aos tribunais internacionais acusado de não ter impedido com sua negação da pandemia e seu desprezo pela vacina encher os cemitérios de mortos. A única verdadeira liberdade que ele pratica é a de abandonar o país a sua própria sorte para não perder o poder.

O certo e cada vez mais indiscutível é que o Brasil, desde o fim da ditadura e volta à democracia, nunca esteve tão perto de uma nova tragédia política. A espada de Dâmocles de um novo golpe militar não é algo hipotético e sim algo bem próximo. E ainda mais com a chegada inesperada de Lula e a deterioração cada dia maior das instituições que deveriam velar pelos valores democráticos como o Congresso e o Supremo onde está ocorrendo uma verdadeira guerra campal entre os magistrados que deveriam colocar todos os seus esforços na defesa da democracia ameaçada.

Por sua vez, os militares que se comprometeram abertamente com o Governo Bolsonaro e suas loucuras antidemocráticas dificilmente aceitarão aparecer como derrotados. E certamente não permitirão perder essa guerra.

As grandes tragédias dos países começam por ser consideradas como catastrofistas e acabam sempre se realizando quando já não há mais tempo de detê-las.

Cuidado Brasil!

Quem mandou matar Marielle?

No último dia 14 de março, completaram-se três anos do atroz assassinato da jovem ativista negra vinda da favela, Marielle Franco, e sobre sua tumba continua ameaçador o silêncio sobre quem foram os mandantes de sua morte. Escrevi em outra coluna que Marielle morta poderia acabar sendo mais perigosa do que viva. Talvez seja necessário uma mudança no Governo de morte de Bolsonaro para que por fim saibamos com certeza quem matou a jovem e por quê. E então o Brasil poderá, por fim, fazer justiça da bárbara execução.

Para isso será preciso que chegue um presidente não comprometido com o submundo das milícias do Rio e que chegue um Governo realmente democrático que descubra o mistério de sua morte e, por fim, faça justiça levando aos tribunais os culpados hoje escondidos nos porões sombrios do poder.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


Felipe Salto: Remendo novo em tecido velho

É a PEC Emergencial. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária

No melhor cenário, a chamada PEC Emergencial mudará muito pouco a gestão das contas públicas. Costumo dizer que o Brasil é pródigo em criar regras fiscais, mas nem tanto em cumpri-las. Desta vez, nem mesmo a criação foi promissora. Eventual ajuste decorrente da proposta de emenda à Constituição só virá em 2025. No caso dos Estados e municípios, as medidas serão facultativas e sua aplicação, incerta.

O teto de gastos foi mantido, mas ficou sem sanção para o caso de burla. Rompê-lo poderia ensejar, a partir de agora, crime de responsabilidade. Os gatilhos – medidas automáticas de ajuste –, que já estavam previstos na regra do teto, serão acionados quando as despesas obrigatórias superarem 95% das despesas primárias (não incluem juros da dívida), ambas sujeitas ao teto. Os gatilhos impedem reajuste salarial a servidores, criação de despesas, correção do salário mínimo acima da inflação e contratação de pessoal (a não ser para repor aposentadorias).

As contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), contudo, mostram que os 95% só seriam atingidos em 2025. Em 2020 o indicador ficou em 92,6% e em 2021 a projeção é de 93,4%. Assim, levando em conta que o objetivo era tomar medidas “emergenciais”, o porcentual proposto foi mal calibrado. Algumas áreas poderão acionar gatilhos mais cedo, já que a regra será aplicada por Poder e por órgão, mas sem efeito agregado relevante.

Então, não haverá reforço do ajuste fiscal. A ideia do Ministério da Economia era trocar o auxílio emergencial pela aprovação de um programa de consolidação fiscal. Isso não ocorreu. O auxílio foi viabilizado pela PEC, mas não haverá contenção adicional do gasto ou geração de novas receitas em horizonte de quatro anos.

Mais do que isso, em 2022, ano eleitoral, a porta para reajustes salariais estará aberta. O teto de gastos precisará ser observado, mas um eventual espaço orçamentário poderá ser canalizado para beneficiar certas categorias do serviço público. Essa não é uma tendência nova sob o atual governo. Basta ver que a reforma da previdência dos militares, em 2019, garantiu reajustes com custo de R$ 7,1 bilhões já em 2021. O restante dos servidores não ganhou o mesmo tratamento.

Durante a votação da PEC Emergencial na Câmara dos Deputados, o governo firmou acordo que enfraqueceu os gatilhos. A possibilidade de barrar as chamadas progressões e promoções dos servidores, no cenário de gatilhos acionados, saiu do texto. Em live do dia 11 de março, o presidente da República destacou essa blindagem, citando servidores da área de segurança pública e das Forças Armadas. A mudança abrange todos, mas essa revelação de preferência é digna de nota.

Na parte que trata do auxílio emergencial, constitucionalizou-se a permissão para financiá-lo por crédito extraordinário. Essa prerrogativa já estava prevista na Constituição, justificadas a imprevisibilidade e a urgência do gasto. Dado o ritmo lento da vacinação, as medidas restritivas à circulação e ao comércio terão de ser mantidas para preservar vidas e evitar o colapso total do sistema hospitalar. Isso retardará a recuperação da renda e do emprego. O risco é claro: para editar um provável novo crédito extraordinário, fora do teto, outra PEC será requerida.

A PEC Emergencial trata também dos chamados gastos tributários, hoje em torno de R$ 308 bilhões – ou 4,3% do produto interno bruto (PIB). São as desonerações, os regimes especiais e as isenções tributárias que o Estado carrega há décadas sem nenhuma revisão ou avaliação. O texto aprovado obriga o governo a enviar ao Congresso, em até seis meses, um plano para redução dessas renúncias. No entanto, foram ressalvados programas que correspondem a 50% do volume total. No primeiro ano ele teria de diminuir 10% e em até oito anos, a 2% do PIB. Não há sanção prevista para o caso de o plano não ser aprovado, como alertou a jurista Élida Graziane.

As regras criadas para os Estados e municípios contemplam gatilhos iguais aos da União, mas o critério é distinto. Se a despesa corrente ultrapassar 95% da receita corrente, as medidas poderão ser tomadas. A escolha será do prefeito ou do governador. Quem não se ajustar não terá mais aval do Tesouro Nacional em operações de crédito, a exemplo de empréstimos em bancos ou organismos multilaterais. No cálculo do Tesouro, 14 Estados já estariam em condição de acionar os gatilhos (95%). Contudo, pelos dados dos Estados, conforme mostrou a economista Vilma Pinto, nenhum governo estadual atingiu 95% em 2020.

Em resumo, o auxílio sairá do papel, autorizado pela PEC, mas poderá ser insuficiente. As compensações, em termos de redução de despesas ou aumento de receitas, não vieram. O arcabouço fiscal ficará mais complexo e, no caso da União, dificilmente produzirá efeitos concretos antes de 2025, véspera do ano em que a regra do teto poderá ser alterada, conforme prevê a Constituição. A PEC é um remendo novo em tecido velho. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária.

*Diretor Executivo da IFI e professor do IDP


Brasil corre risco de ter maior número absoluto de mortes por Covid, diz revista da FAP

Editorial da Política Democrática Online de março critica erros do presidente Bolsonaro

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) errou de forma costumaz na falta de implementação de política nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 e persiste nos seus erros. A análise é do editorial da revista Política Democrática Online de março.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. Todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente na versão flip, disponível na seção de revista digital do portal da entidade.

“Com o sucesso da campanha de vacinação nos Estados Unidos, corremos o risco de ver em pouco tempo nosso país como número um no mundo em número absoluto de óbitos”, afirma um trecho do editorial. A doença já matou mais de 275 mil brasileiros.

“Percurso trágico”
De acordo com a revista, tentar evitar esse resultado é premente para o país. “Igualmente importante, contudo, é deixar claro, para o conjunto dos cidadãos, os verdadeiros responsáveis pelo percurso trágico que estamos a seguir”, enfatiza.

A tarefa de todas as forças democráticas, nos estados, nos municípios, em todas as instâncias do Legislativo, segundo o editorial, é persistir na resistência para suprir a omissão e a oposição do governo para trabalhar em prol de medidas contra a Covid-19.

As medidas, de acordo com a revista, incluem distanciamento social, uso de máscaras, obtenção no número suficiente de doses das vacinas disponíveis, assim como o acesso ao auxílio emergencial por parte daqueles que dele necessitam.

Variantes do coronavírus
“A circulação do vírus por grandes concentrações de pessoas, sem vacina e sem distanciamento social, parece ter propiciado o surgimento das novas variantes, capazes de infectar novamente pacientes já curados”, observa o editorial.

O texto diz, ainda, que a ilusão da imunidade natural da população ao preço alto de milhares de óbitos evaporou-se. “Os óbitos aconteceram, mas nenhum benefício perdurou, e o Brasil é hoje potencial fonte de risco para os países que lograram êxito no enfrentamento da pandemia”, critica a revista.

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Face deletéria de Bolsonaro é destaque da Política Democrática Online de março

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Face deletéria de Bolsonaro é destaque da Política Democrática Online de março

Esperança com a tecnologia de vacinas contra Covid e violação a direitos das Forças Armadas estão entre os 15 conteúdos na nova edição

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

A “face mais deletéria” do presidente Jair Bolsonaro (Sem partido), a política de armamento da população como violação ao papel constitucional das Forças Armadas, a tecnologia de vacina contra Covid como luz sobre doenças graves são os principais destaques da edição de março da revista Política Democrática Online, lançada neste sábado (13/3).

A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. Todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente na versão flip, disponível na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

Nesta edição, análises sobre política nacional e internacional, meio ambiente, economia, ciência, literatura e cinema em 11 artigos, uma entrevista exclusiva, uma reportagem especial, além do editorial e charge de JCaesar.



“Enfraquecimento da democracia”
Principal destaque desta edição, entrevista exclusiva sobre avaliação do governo Bolsonaro foi concedida pelo mestre e doutor em História pela USP (Universidade de São Paulo), Alberto Aggio. Ele é professor titular em História pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália).

“Acho que o Bolsonaro se configura como um governo, se não ameaçador à nossa democracia, pelo menos um governo que visou, desde o início, a um enfraquecimento dela”, critica Aggio. “Bolsonaro é a face mais deletéria, mais grave da política da Nova República”, avalia o professor da Unesp.

No editorial de sua 29ª edição, a revista Política Democrática Online faz crítica incisiva à falta de política nacional de enfrentamento à pandemia da Covid, com reflexos nas mais de 275 mil mortes de brasileiros por causa de complicações da doença.

“Não é possível subestimar a responsabilidade do governo federal pela situação de vulnerabilidade crescente em que os cidadãos brasileiros se encontram hoje”, diz um trecho.  “Todos os itens da agenda negacionista foram por ele perseguidos com empenho”, emenda.

“Novas tecnologias”
Já a reportagem especial desta edição mostra estudos sobre vacinas da Covid em andamento com técnicas genéticas que podem ser aplicadas em tratamento contra doenças graves, como câncer e esclerose múltipla.

“Novas tecnologias para produção de vacinas, notadamente aquelas que usam o material genético do vírus Sars-Cov-2, podem rapidamente ser adaptadas para novos agentes causadores de doenças”, afirma um trecho da reportagem.

Em um dos artigos de destaque, o ex-deputado federal e ex-ministro da Defesa e extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer (MDB) Raul Jungmann diz que o armamento da população, como pretende Bolsonaro, significa também ferir o papel constitucional das Forças Armadas.

Registro de armas de fogo
“Segundo a Polícia Federal, em 2020, o registro de armas de fogo cresceu 90% em relação ao ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica”, afirma. Jungmann também é ex-ministro do Desenvolvimento Agrário e ex-ministro extraordinário de Política Fundiária do governo FHC.

Em um dos artigos, o economista Guilherme Acciolly avalia que o avanço do desmatamento é incentivado por se dar majoritariamente sobre terras públicas e crescentemente sobre áreas protegidas. Portanto, segundo ele, “com custo de aquisição nulo”.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Caetano Araújo, Francisco Almeida e Luiz Sérgio Henriques.

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Alessandro Vieira: Auxílio emergencial - A guerra de narrativas que mata

O Congresso constrói soluções urgentes para o país, como o restabelecimento do auxílio emergencial - essa obra do parlamento em parceria com o Executivo que, em plena pandemia, reduziu a taxa de pobreza do nosso país a níveis históricos. Como é de conhecimento público, fui diagnosticado com covid-19, o que não permitirá, por alguns dias, que eu participe presencialmente das negociações em curso no Senado Federal. Claro que nada disso me impedirá, com a ajuda de minha equipe, de ser parte dessa solução tão importante para o país.

Mesmo à distância, estou defendendo os interesses de quem mais precisa, sem abrir mão da responsabilidade e do rigor técnico.

De cara, reconheço e elogio o esforço do colega senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Emergencial e do líder do Governo, senador Fernando Bezerra (MDB-PE). Porém, mesmo avançando muito, ainda temos problemas relevantes, o que é natural dada a complexidade do tema. Para piorar, vozes externas não têm contribuído com o debate.Leia mais

O ministro Paulo Guedes, por exemplo, nos convida a dar “sinais” para o mercado de respeito à responsabilidade fiscal. Está correto na tese. Não percebe o ministro, porém, que ele mesmo manda “sinais” trocados ao incentivar uma visão catastrófica sobre os impactos da retomada do auxílio emergencial. Da mesma forma, ao insistir em vincular a retomada do auxílio à PEC Emergencial, coisas absolutamente distintas.

Como já demonstraram técnicos relevantes, a exemplo de Felipe Salto, do IFI, da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, não cabe essa vinculação. Se o objetivo desta mistura é pressionar o Congresso, com todo respeito, a tática é tola e com efeitos limitados às já conhecidas guerras de narrativa.

Precisamos urgentemente do auxílio, como precisamos das vacinas, hoje entregues a conta gotas enquanto os hospitais superlotam. E não existe nenhuma divergência sobre essas necessidades.
Já os demais pontos da PEC são medidas de ajuste fiscal que precisam tramitar com celeridade, assim como as reformas estruturantes, mas sem o caráter de calamidade.

Por isso persisto no pedido de “fatiamento”, na linha de emendas minhas e do senador José Serra. Assim teremos a aprovação imediata das cláusulas de calamidade para retomada do auxílio e faremos a remessa das cláusulas de protocolo fiscal para calendário especial na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o que será regrado pelo presidente Pacheco. Registre-se que sugeri duas semanas para essa tramitação especial.

Essa decisão, desde que bem comunicada e com lealdade por parte dos negociadores, será recebida sem sobressaltos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pode firmar calendário estreito, com compromisso de todos pelo não uso de estratégias protelatórias, como aliás fizemos na PEC da Previdência.

O sinal de que o Brasil precisa é o de respeito às vítimas e suas famílias, não de eterno cortejo a especuladores ou a adeptos da narrativa fratricida do nós contra eles.

Já passou da hora do Congresso Nacional demonstrar o alinhamento com as pautas populares e se debruçar no que milhões de brasileiros realmente precisam: o retorno do auxílio e uma vacinação rápida e para todas. Separando as matérias conseguiremos, sem mais atrasos, devolver aos brasileiros a esperança de dias melhores e o mínimo de dignidade que eles merecem.

Cada dia que passa é mais um dia de fome na casa de milhões de brasileiros. E, quem tem fome, tem pressa. Para isso, peço a ajuda e o apoio de cada cidadão brasileiro, esteja onde estiver.

*Alessandro Vieira (SE) é líder do Cidadania.


Zeina Latif: Credibilidade que se esvai

Não deveria ser surpresa a dificuldade do governo Bolsonaro com políticas econômicas de cunho liberal. Além do histórico antirreformas como parlamentar, já na campanha eleitoral seu discurso conflitava com o de Paulo Guedes, que tinha lá suas inconsistências. Como esquecer a inexequível promessa de receita de trilhões com a venda de ativos estatais?

O “piloto automático” no Brasil é o intervencionismo estatal e a expansão de gastos públicos. Romper esse padrão demanda um mínimo de convicção do presidente e, certamente, muita capacidade política.

Depois dos avanços no breve governo Temer, seria importante Bolsonaro ao menos preservar o compromisso com a disciplina fiscal. E não só pelas consequências de curto prazo — já temos assistido aos efeitos do descontrole fiscal no mercado financeiro e no ambiente econômico. É preciso uma sequência de governos responsáveis para consolidar valores da sociedade e boas práticas na gestão pública, de modo afastar desvios perigosos de rota, como o do governo Dilma. Além disso, o compromisso depende de reformas estruturais para conter despesas obrigatórias, o que abriria caminho para melhorar a qualidade do gasto público e, em um futuro ainda distante, reduzir a carga tributária, muito mais elevada do que de outros emergentes.

As despesas obrigatórias comprometem quase a totalidade do orçamento da União e crescem automaticamente — por conta de indexações (como a correção de benefícios previdenciários ao salário mínimo), vinculações e gastos mínimos (como na educação), regras do funcionalismo (ajustes de salários e progressões na carreira) e o próprio envelhecimento da população.

A pandemia agravou o problema fiscal e a falta de perspectivas de superação da crise de saúde alimenta a pressão por aumento de gastos. Para que as novas gerações não sejam prejudicadas ainda mais — crianças e jovens mais pobres já são muito penalizados com a falta de educação e empregos —, é crucial conter o aumento da dívida pública.

A disciplina fiscal não significa fechar os olhos aos vulneráveis. Afinal, os mais pobres não podem arcar com as consequências da temerária gestão saúde agravada pelas atitudes do presidente estimulando o descuido de cidadãos. Tampouco se trata de forçar um ajuste rápido das contas públicas — nem seria possível com regras que regem o orçamento público. A ideia é buscar medidas compensatórias ao socorro aos vulneráveis, mesmo que com efeitos apenas no médio-longo prazo. O importante é mudar o cenário atual de crescimento a perder de vista da dívida pública.

Flexibilizar a regra do teto para retomar o auxílio emergencial sem contrapartidas sólidas será um grande equívoco e é um risco concreto que a PEC Emergencial oferece. Há ameaças de todos os lados. O próprio líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, admitiu, em entrevista à Folha, o risco de outras medidas criadas na crise pegarem carona no projeto.

Enquanto isso as contrapartidas encolhem. A crise atual deveria elevar a barra de exigências, mas o que ocorre é o contrário. O projeto atual preserva, em boa medida, o funcionalismo, diferentemente da proposta original do Executivo, de dezembro de 2019.

A PEC Emergencial apresenta regras demais e instrumentos de menos para o efetivo corte de despesas. A ideia de estabelecer uma trajetória para o endividamento público, por lei complementar, poderá reduzir a força da regra do teto, que, de tantos furos, poderá ter o mesmo fim da “regra de ouro” — descumprida seguidamente, sem maiores consequências.

Além disso, poderá atrapalhar a condução da política monetária pelo Banco Central. Os gatilhos para medidas de ajuste quando as despesas sujeitas ao teto atingirem 95% da despesa total poderão se mostrar inócuos na prática.

O cenário mais provável é que a atual gestão contribua quase nada para o ajuste fiscal, deixando a batata quente para o próximo governo. Além disso, pela proposta, nada impediria novos decretos de calamidade pública adiante, inclusive em 2022, abrindo espaço para mais gastos.

Muitos parlamentares defendem aprovar a liberação de recursos agora e deixar a votação das contrapartidas para depois. A depender do conteúdo final, de tão tímidas as contrapartidas, o fatiamento da PEC não faria grande diferença.

A reação negativa dos mercados poderá constranger Executivo e Congresso. O fato é que os anúncios do governo perdem credibilidade a olhos nus.


Bernardo Mello Franco: O levante dos governadores

Depois de atirar contra o Congresso, o Judiciário e a imprensa, Jair Bolsonaro voltou a culpar os governadores pelo descontrole da pandemia. No domingo, o presidente atiçou sua matilha virtual com números distorcidos. O ministro Fábio Faria completou o serviço. Tuitou que os estados tiveram “tempo e dinheiro sobrando” para conter a tragédia.

As contas do capitão estavam turbinadas. Ele somou repasses obrigatórios, verbas do Fundeb e até royalties do petróleo destinados aos estados. Num dos truques de ilusionismo, Bolsonaro disse aos eleitores que o Espírito Santo recebeu R$ 16,1 bilhões de Brasília. Os repasses extraordinários não passaram de 10% disso, esclareceu o governador Renato Casagrande.

Além de não entregar as vacinas prometidas, a União deixou de financiar cerca de nove mil leitos de UTI desde dezembro, segundo os secretários de Saúde. O dinheiro sumiu no momento em que os hospitais voltaram a lotar. No fim de semana, a ministra Rosa Weber ordenou a liberação dos repasses a três estados. Ainda é pouco para desarmar a sabotagem em escala nacional.

A provocação de Bolsonaro é tosca, mas aumentou a pressão sobre os governadores. Ontem dois deles se deixaram envolver num bate-boca rasteiro. Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, acusou Ronaldo Caiado, de Goiás, de ter “problemas psiquiátricos”. Ouviu de volta que “só pensa em negociatas”. Ambos são aliados do Planalto.

A estratégia de dividir para conquistar ajudou Bolsonaro a vestir a faixa. Ao exagerar na dose, ele arrisca enfrentar um levante inédito. Diante de uma oposição inerte, os governadores começaram a ensaiar uma união para enquadrar o Planalto.

Na segunda, 19 deles acusaram o presidente de fabricar “informação distorcida” para “atacar governos locais”. Entre os signatários da carta, estão três bolsonaristas. O texto foi redigido pelo gaúcho Eduardo Leite, que votou no capitão e agora diz que ele “despreza a sua gente”.


Vera Magalhães: Tribunal da História é já

O que mais se ouve diante da sucessão de imagens e notícias que atestam nossa calamidade é: “Que horror!”. Sim, um horror. Mas que tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.

Sem Jair Bolsonaro, nunca teríamos Eduardo Pazuello como o ministro da Saúde mais longevo de um ano de pandemia desenfreada.

Sem Jair Bolsonaro, já teríamos superado a idade da pedra da pandemia e não veríamos boçais repetirem o presidente em que se espelham e colocarem em dúvida a necessidade básica de usar uma máscara.

Sem Jair Bolsonaro, governadores não ficariam com medinho de adotar medidas mais que urgentes, na verdade atrasadas, para conter internações e mortes, pois não teriam hordas de arruaceiros atrás de si propagando absurdos.

Se é tão óbvia a responsabilidade do presidente da República, por que seguimos bovinamente repetindo “que horror”, em várias esferas da vida nacional, e nada acontece a ele?

Graças a pensamentos como o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem os crimes cometidos pelo capitão são colocados na conta dos “exageros retóricos” ou de “comportamentos pessoais condenáveis”, e qualquer medida de contenção prescrita na Constituição é descabida no momento.

Para Pacheco, a História tratará de apontar as responsabilidades pelos crimes da pandemia. Enquanto isso, a missão do Congresso, segundo ele, é garantir que o auxílio emergencial seja aprovado logo e que as vacinas cheguem em profusão aos braços dos brasileiros.

Se a omissão ao menos levasse a esses objetivos, vá lá. A História trataria de julgar também os parlamentares.

Mas não! A negociação do auxílio está emperrada na absoluta ausência de projeto, que deveria ter sido pensado ainda na virada do ano, para garantir o mínimo de compensação fiscal a que Paulo Guedes tenta se apegar.

Não só não existe essa engenharia, como também nada garante que o pagamento de R$ 250 por quatro meses passará no Congresso sem majoração de prazo e valor. O que levará Guedes, Pacheco e companhia de volta à estaca zero e postergará em dias ou semanas o pagamento.

Da mesma maneira, a tal “planilha” que o imperdoável Pazuello apresentou a Pacheco, Arthur Lira e companhia no domingo não passa de mais um papel de pão sem validade. O Ministério da Saúde não tem como garantir as quantidades de vacinas que tem prometido. Não com os acordos que assinou até aqui, preto no branco.

Existem protocolos de intenções com vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa, e não existe nem sinal de compra daquela única já aprovada em definitivo pela agência, a da Pfizer! Um atestado simples da mais completa incompetência e falência do Plano Nacional de Imunização.

Mas, ainda assim, os órgãos de controle, o Ministério Público, o Congresso e parte da sociedade seguem num misto de pensamento mágico de que tudo vai se resolver, negação da gravidade e ilusão de que seja possível levar uma “vida normal”.

Diante de tal cenário, o ministro da Economia, para justificar seu apego a um cargo de que já foi destituído na prática pelo presidente, pede que lhe apontem se está indo no caminho errado, porque assim ele sairá. É embaraçoso que o responsável pela Economia, no momento de maior solavanco na vida econômica do país, não tenha GPS.

Ainda falta mais de um ano para as eleições, e os que podem agir agora, porque têm mandato e atribuição legal para tal, seguem fingindo que não é com eles.

Enquanto não se exigir de Bolsonaro que pare de sabotar as medidas de distanciamento e o plano de imunização, sob pena de pagar com o que lhe é mais caro, a cadeira, o Brasil seguirá com o nefasto título de pior país do mundo hoje no enfrentamento à pandemia.

Uma música de protesto de um tempo igualmente macabro da vida brasileira dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperar o tal tribunal da História significa assumir e aceitar que pessoas continuarão morrendo aos milhares. E, assim, ser cúmplice de Bolsonaro.


Cristiano Romero: 'O Brasil é administrado por um software'

Vinculação de receitas foi instituída na hiperinflação

Durou poucos dias, menos de uma semana, a chance de o Congresso Nacional analisar a possibilidade de desvincular receitas orçamentárias. O relator da PEC Emergencial no Senado, Marcio Bittar, tirou a proposta da emenda, antes mesmo de levá-la à votação. Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia, largam atrás dos ricos, dos corporativistas, dos donos do Estado, enfim, dos donos do poder.

As vinculações orçamentárias existem há muito no tempo não só na Ilha de Vera Cruz, mas em muitos outros países. No caso brasileiro, o atual sistema de vinculação foi instituído pela Constituição de 1988. Esta, lembremo-nos, foi debatida e formulada na saída de uma longa ditadura, quando, naturalmente, a sede de justiça social neste território marcado secularmente pela iniquidade social estava reprimida.

A Assembleia Nacional Constituinte reuniu as mais díspares forças políticas para escrever a Carta Magna da democracia que teríamos dali em diante. Nasceu, então, a Constituição "cidadã", como a batizou a principal liderança política da Nova República, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, morto num acidente de helicóptero em 1992.

Se por um lado, aproximou-nos de um projeto de civilização ao consagrar como cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais a igualdade entre nós, independentemente da etnia, da origem, do sexo, da idade etc, bem como ao acabar com a censura e ao dar a todos acesso universal gratuito à educação e à saúde, a Constituição de 1988 acolheu interesses de grupos específicos, acostumados historicamente a receber mais do Estado do que a maioria.

A Constituição de 1988 foi elaborada em meio a um contexto macroeconômico aterrador: o descontrole inflacionário, a hiperinflação, as sucessivas derrotas do país no enfrentamento do mal que vinha desorganizando o sistema produtivo nacional, concentrando renda e sabotando o futuro.

É evidente que, num ambiente como aquele, criou-se terreno fácil para a adoção de dispositivos de caráter populista, como a fixação de um limite para a taxa de juros (12% ao ano), a vinculação de receitas para obrigar os governantes a aplicarem recursos em educação e saúde, a indexação do piso da Previdência Social à variação do salário mínimo e a concessão de benefícios impagáveis ao funcionalismo, como a aposentadoria integral, estabilidade no emprego para todas as categorias e a paridade de reajuste salarial entre servidores públicos da ativa e aposentados.

O texto constitucional determina que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída aquela proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o texto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.

A vinculação, talvez, tenha tido seu mérito nos primeiros pós-1988 porque, de fato, era preciso ter mais recursos para cumprir uma das metas fixadas pela nova Constituição: universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental (o antigo 1º grau). No fim da década de 1980, o índice de matrícula nessa faixa estava em 80%, um vexame em qualquer lugar, mas, especialmente, num país que figurava entre as dez maiores economias do planeta. No fim da década de 1990, a taxa subiu para 97%, certamente, uma conquista comemorada por todos.

Nota do redator: em 1953, ano da campanha popular "O Petróleo é Nosso", que resultou no ano seguinte na fundação da estatal Petrobras, detentora de monopólio na exploração de petróleo nos 44 anos seguintes, apenas 25% das crianças estavam na escola. Isso mostra como, na Ilha de Vera Cruz, os mais pobres nunca são consultados sobre quais devem ser as prioridades do país.

O que vemos hoje, porém, é o desgaste do modelo de vinculações orçamentárias. A despesa da União com previdência está hoje em torno de 60% das receitas orçamentárias. Atribua-se a maior parte dessa conta às benesses concedidas ao funcionalismo e o atrelamento do piso do INSS ao salário mínimo, ambos previstos na Constituição de 1988. Some-se a isso as vinculações com saúde e educação, o gasto com pessoal, outras vinculações menores e o sem-número de incentivos fiscais e subsídios concedidos a grupos de interesse específico, o que se tem é um orçamento engessado, onde apenas 5% das receitas são discricionariamente gastas a partir de decisões tomadas pelo presidente eleito pela maioria dos eleitores. A rigidez se repete, evidentemente, nos orçamentos de Estados e municípios.

"O Brasil é administrado por um software", disse, antes de deixar o cargo de secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, numa feliz referência à rigidez orçamentária que nos governa.

A primeira reação ao debate da desvinculação de receitas é: "Os governantes não investirão mais nada em educação e saúde". Ora, isso é uma enorme bobagem, afinal, a despesa deixará de existir? É claro que não! Hoje, a vinculação é um incentivo perverso ao gasto ineficiente, ao desperdício e à corrupção.

No interior do Ceará, modelo de avanço nos índices de atendimento e qualidade na educação fundamental, os municípios com melhor desempenho no Ideb são os que têm desembolsado recursos abaixo da vinculação. Como explicar isso?

Dias e Ferraz (2020) demonstram que pode haver ganhos, ainda que modestos, no número de votos para prefeitos candidatos à reeleição em municípios em que o Ideb foi divulgado e em que houve algum aumento nos índices de qualidade em educação. Da mesma forma, para municípios com escolas com pior desempenho, a divulgação da informação levou a uma redução na proporção de votos recebida pelo prefeito incumbente.


Fernando Exman: Agenda da retomada deixada para depois

Relação federativa enfrenta novas dificuldades

Na primeira quinzena de 2021, talvez ainda comovidos com as festividades de fim de ano e o novo ciclo que se iniciava, alguns governadores demonstravam relativo otimismo em relação ao primeiro semestre.

O programa nacional de imunização contra a covid-19 acabava de ser apresentado pelo Ministério da Saúde, após pressão do Judiciário e intensos embates entre o Executivo, governadores e prefeitos. Havia a esperança de que seria realizada, a curto prazo, uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares para a discussão não só de como rapidamente imunizar a população, mas do reaquecimento da economia.

Embora hoje essa ideia pareça tão distante quanto a imunização total da população brasileira, à época a expectativa era até justificável. Ainda se acreditava na possibilidade de confirmação da tal recuperação em formato de “V”, tão prometida pelas autoridades federais e que depois foi sendo substituído no discurso oficial para algo como “o símbolo da Nike”. Ou seja, uma retomada menos vigorosa, após o fundo do poço ter sido atingido. Ainda se aguarda a concretização desse rebote.

A rápida recriação do auxílio emergencial era vista, pelos governadores, como um pressuposto para que melhores perspectivas surgissem no horizonte. Isso sem contar o fato de que a economia local e a arrecadação de Estados e municípios também dependeriam da manutenção do poder de compra da população. Os governadores estavam confiantes que não haveria muitas dificuldades para o repasse de novas parcelas de R$ 300 para as contas das famílias mais miseráveis do país.

Na sequência, seria natural que governo federal, governadores e prefeitos debatessem em conjunto formas de melhor direcionar o investimento público. Não só as verbas discricionárias dos ministérios, mas também os recursos sob os cuidados dos Estados e municípios, de modo a otimizar esforços, gerar empregos e rapidamente melhorar a imagem do Brasil entre os investidores estrangeiros. Constaria da pauta, ainda, formas de destravar concessões e parcerias-público-privadas (PPPs) - iniciativas que não representariam riscos ao teto de gastos e, ao mesmo tempo, colocariam novamente as engrenagens da economia para se mover nas mais diversas regiões do país.

Era o plano. E o gatilho que gerava esse sentimento entre os governadores era justamente a apresentação do aguardado programa nacional de imunização. Não é de surpreender, portanto, que esse planejamento inicial não se confirmou.

O conflito entre o presidente da República e os governadores voltou à pauta extrapolando os limites antes delineados por Bolsonaro. Seus ataques não se direcionam mais apenas aos governadores que poderiam lhe representar algum risco direto nas eleições de 2022, como João Doria ou Wilson Witzel. Passaram a ser horizontalizados. Colocaram todos os governadores, de partidos aliados inclusive, na linha de tiro.

Primeiro o presidente enviou ao Legislativo um projeto de lei complementar propondo mudanças no cálculo do ICMS sobre combustíveis, uma das fontes de arrecadação dos Estados. O objetivo é dar mais estabilidade aos preços, facilitando principalmente a vida dos caminhoneiros, categoria alinhada a Bolsonaro.

A equipe econômica argumenta que o projeto não gera necessariamente perdas aos Estados e ao Distrito Federal, pois estes manteriam autonomia para fixar alíquotas e garantir os atuais patamares de arrecadação. Por outro lado, o simples ato de apresentar a proposição já gerou um ônus político aos governadores, que irão se ver obrigados a explicar aos eleitores por que o governo federal estaria sozinho na busca para reduzir os preços dos combustíveis. O projeto tenta ressuscitar uma ideia que já foi bombardeada duas vezes no Congresso e acabou não prosperando, mas para o presidente o que interesse mesmo é um álibi a apresentar durante a campanha à reeleição.

Mais deselegante foi a recente postagem de Bolsonaro detalhando repasses federais para cada Estado, entre elas transferências obrigatórias. A publicação incluiu valores para a saúde, a suspensão ou a renegociação de dívidas, até o auxílio emergencial cujo valor foi elevado após pressão dos congressistas. Novamente os governadores ficaram politicamente expostos, mas desta vez o interesse deles se uniu a um movimento já em andamento em Brasília.

Entre a linha de tiro e os alvos do presidente, posicionou-se o Congresso. Bolsonaro ajudou a acelerar as articulações entre os governadores e a nova cúpula do Legislativo, que vem intensificando os esforços para que deputados e senadores tenham cada vez mais poder sobre o manejo das verbas orçamentárias. O que os parlamentares querem acabar é justamente com a personificação das benesses resultantes da execução do Orçamento-Geral da União na figura do chefe do Poder Executivo. Bolsonaro pode acabar facilitando a vida dos defensores da ideia.

Essa aliança tática pode gerar ainda outros constrangimentos a Bolsonaro. Deputados e senadores insistem, por exemplo, no estabelecimento de prazos para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar as vacinas, na liberação da compra dos imunizantes pela iniciativa privada e podem aliviar a situação dos Estados e dos municípios na PEC emergencial.

O governo precisará de apoio para que o programa nacional de imunização, o plano gerido pelo Ministério da Saúde, seja o único instrumento de imunização da sociedade. As discussões sobre “lockdown”, que Bolsonaro tenta evitar, necessariamente passarão por eles.

Prefeitos e empresários pressionam o Congresso para que isso seja flexibilizado. Laboratórios estão sendo procurados para que importem ou produzam de forma autônoma as vacinas o mais rápido possível, inclusive unidades veterinárias que poderiam rapidamente ser adaptadas. Os gestores estaduais também se preparam para os debates que a pandemia fomentará em 2022 e com certeza cobrarão a falta de resposta à agenda de retomada.


Conrado Hübner Mendes: Manifesto alarmista

Para desbolsonarizar o futuro, nada é mais arriscado que o compasso de espera

Há presidentes que governam por decreto. Outros, por iniciativa legislativa, emendas constitucionais, tudo isso combinado e mais um pouco. Jair Bolsonaro governa por crimes comuns e de responsabilidade, na ação e na omissão. Sua insubordinação performática à lei, ao decoro e à civilidade sempre foi tratada como caricata. Na Presidência, rotinizou a agressão à liberdade, à vida e à soberania. Durante a pandemia, a técnica se fez mortífera em massa.

Diante da ameaça que se materializa, para começar, em 260 mil mortes (em parte evitáveis), o alarmismo resta como única postura realista e racional frente aos fatos. Em nome da honestidade, o alarmismo torna-se demanda ética e chamado pragmático de sobrevivência.

O alarmismo pode vir para o bem e para o mal. Pode ofuscar o problema, explodir pontes, produzir pânico, ruído e ação ineficaz. Soar o alarme quando o perigo não existe cobra seu preço. Na história, soar o alarme cinicamente contra os inimigos imaginários levou a golpes, intervenções militares, fúrias redentoras e lavajatistas ou a recusas da vacina chinesa.

A vocação antialarmista, quando fatos desaconselham, também tem custo. Alertava-se, por exemplo, contra os alarmistas dos anos 30. Quando Churchill fez discurso assustado diante da anexação da Áustria, em 1938, um conservador de cachimbo tranquilizou os espíritos: “Ele gosta de sacudir a espada, mas você tem que tratá-lo com um grão de sal”.

O pacto antialarmista vigente, sem nenhum grão de sal, neutralizou a possibilidade de entender o Brasil de hoje e imaginar o Brasil que se avizinha. A esse pacto já se reagiu com mais de 70 pedidos de impeachment, representações criminais, ações judiciais, denúncias internacionais, furos jornalísticos, gritos incrédulos pelos hospitais do país.

Para contar essa história com o devido senso de urgência, esboço aqui um manifesto alarmista. Não é contribuição à literatura distópica, mas crônica realista em pelo menos seis postulados.

1) “O negacionismo mata, a complacência anestesia.” Na enciclopédia do negacionismo brasileiro, não há risco à democracia, nem ameaça sanitária, aquecimento climático, racismo, homofobia, corrupção e violência policial. O ilusionismo sequestra as emoções primárias e espalha violência.

2) “Bolsonaro se fez inimputável, infalível e irresponsável. Só não é inacreditável.” Bolsonaro não está errando e avisou o que faria. Já estava no seu prontuário, na ficha corrida, nos registros parlamentares e na biografia.

3) “A Constituição está sendo revogada.” A campanha de liquidação de ativos constitucionais esvazia seus compromissos civilizatórios sem mudar seu texto.

4) “Instituições de Estado se rendem, em parte, às tentações colaboracionistas e às investidas de cooptação e captura.” Não é só Judiciário e Parlamento. A politização de instituições de Estado atravessa o Ministério Público, a advocacia de Estado, as profissões militares e um grande edifício de instituições de controle dentro do Executivo e políticas públicas.

5) “O mantra ilusionista ‘povo armado não será escravizado’ pavimenta a república das milícias, não a segurança, muito menos a liberdade.” Armamento e degradação ambiental são as linhas vermelhas de Bolsonaro, pelas quais irá às últimas consequências.

6) “Democracia não é máquina de contar quem tem mais votos.” Vamos aprendendo na marra o que a filosofia política e a história já tentaram ensinar: não bastam eleições para se ter democracia nem uma turba qualquer para se ter povo. Tampouco precisa de golpe para se implantar ditadura.

O que vem pela frente será pior. Politicamente, pior que os últimos 30 anos e pior que os últimos dois anos. Do ponto de vista sanitário, 2021 será pior que 2020. Climaticamente, a devastação ambiental contribui para um futuro mais grave que qualquer outro momento da era industrial. As consequências sociais e econômicas cabe a nós imaginar.

Não há vacina para imunização instantânea contra um ethos bolsonarista que sofre mutações e se multiplica. Mas há remédio e terapia para tentarmos desbolsonarizar o futuro. Nada é mais arriscado que o compasso de espera, como se o jogo fosse o mesmo de antes, nos termos de antes.

*Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP, é doutor em Direito e Ciência Política e Embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.