auxilio emergencial

Celso Rocha de Barros: Na falta de golpe, Bolsonaro teve que trabalhar para pobre

Teremos um populismo puro-sangue de conservadorismo moral e intervencionismo econômico?

Enquanto o golpe não voltar ao cardápio, não vai ter jeito: Bolsonaro vai ter que dar uma trabalhada pelos pobres, justo ele, que nunca gostou, nem de pobre, nem de trabalhar.

Para pensar os dilemas atuais do bolsonarismo, pode ser útil ler um ótimo livro que saiu recentemente nos Estados Unidos, “Let Them Eat Tweets”, dos cientistas políticos Jacob Hecker e Paul Pierson. O título —“Que Comam Tweets”— é uma brincadeira com o “Que comam brioches”, atribuído a Maria Antonieta.

A ideia é que, em vez de fazer concessões materiais aos pobres como a direita moderada, “populistas plutocráticos” como Donald Trump tentam satisfazer o eleitorado pobre com conservadorismo moral, racismo, homofobia e teorias da conspiração, enquanto dão aos ricos os cortes de impostos insustentáveis que eles querem.

Se isso não funcionar para sempre, há o risco de os conservadores se voltarem contra a democracia, como vem ocorrendo nos esforços para enviesar ainda mais o sistema norte-americano a favor de áreas de predomínio branco.

O interessante na comparação com o caso brasileiro é que o plano “A” de Bolsonaro já era o ataque à democracia. Os pobres que se divertissem com o conservadorismo por alguns meses, depois do golpe eles perderiam o direito ao voto e ninguém nunca mais voltaria a ouvir falar deles.

A falta de interesse de Bolsonaro pelos pobres chegava a ser chocante. É difícil achar um político brasileiro, nos últimos 15 anos, que tenha manifestado tanto desprezo pela ideia de dar dinheiro aos pobres.

Durante a campanha de 2018, por exemplo, alguém enfiou em seu programa de governo uma proposta de renda mínima. Informado pela imprensa, Bolsonaro compartilhou a notícia no Twitter com o comentário: “Meu Deus KKKKKKKKK é inacreditável”.

Carlos Bolsonaro defendeu que mulheres que recebessem o Bolsa Família deveriam ser obrigadas a fazer laqueadura. Faz pouco tempo, Bolsonaro tentou gastar recursos do Bolsa Família com publicidade oficial.

Mas, no primeiro semestre de 2020, Bolsonaro tentou o autogolpe e fracassou.

Desde então, canta “Lula Lá” e se agarra aos R$ 600 que o Congresso o obrigou a pagar aos pobres brasileiros. Bolsonaro odeia pagar os R$ 600. Não queria pagar nada, aceitou pagar R$ 200, o Congresso o obrigou a pagar R$ 600. Sua função foi só organizar a fila do auxílio na Caixa Econômica Federal, o que fez com a habitual incompetência.

Podemos apostar, nesse cenário, que o populismo plutocrático de Bolsonaro/Guedes vai dar lugar a um populismo “puro-sangue” de conservadorismo moral e intervencionismo econômico? É um cenário possível.

Afinal, o lado “liberal” do projeto bolsonarista vai muito mal. Desde que Guedes virou ministro da Economia, o Brasil privatizou o mesmo número de empresas que a Coreia do Norte.

Os novos gastos com os militares vão pesar no fiscal até alguém ter coragem de mexer com eles. Os pobres podem não saber que foi o Congresso que concedeu os R$ 600, mas os ricos sabem que foi Rodrigo Maia quem reformou a Previdência. A equipe de Guedes se desfaz diante de nossos olhos.

De qualquer jeito, o populismo plutocrático de Bolsonaro e Guedes está em crise. Se o bolsonarismo pós-Guedes der errado, podemos ter uma crise econômica terrível. Se der certo, o golpismo pode voltar a qualquer momento. O equilíbrio promete ser difícil.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Bruno Boghossian: Bolsonaro não mudou, mas aprendeu a ser um populista mais eficiente

Popularidade e aliança com centrão ajudam presidente a manter políticas originais

Jair Bolsonaro enfrentou dois choques de impopularidade depois que chegou ao Palácio do Planalto. O primeiro ocorreu no ano passado, quando ele decidiu brigar com meio mundo para esconder a devastação da Amazônia. O segundo refletiu a condução catastrófica do país na crise do coronavírus.

O vento mudou e a aprovação ao governo subiu, mas o presidente continua o mesmo. Na terça (11), Bolsonaro voltou a brigar com os números e disse que "essa história de que a Amazônia arde em fogo é uma mentira". A ideia é omitir o aumento de 28% nas queimadas na região e facilitar a derrubada da floresta.

A pandemia também segue sua marcha, diante do mesmo Bolsonaro que menosprezou a doença desde o primeiro dia. Em visita ao Pará na última semana, o presidente se manteve na função de garoto-propaganda da cloroquina e tentou, mais uma vez, se eximir da culpa pelas mortes provocadas pelo coronavírus.

Bolsonaro ainda cutuca as feridas que derrubaram seus índices de popularidade no passado, mas agora sua aprovação disparou ao maior nível desde o início do governo. A variação coincidiu com um tom diferente em algumas de suas declarações públicas, mas está claro que ele está longe de ser um moderado.

O presidente não mudou. Ele só aprendeu a ser um populista mais eficiente. Os números da última pesquisa Datafolha estimulam Bolsonaro a manter suas políticas originais, desde que segure a língua, cimente uma base social e busque blindagem no Congresso e nos tribunais.

O salto na aprovação ao presidente entre brasileiros de baixa renda indica que o auxílio emergencial e outras ações ajudam a protegê-lo dos maremotos provocados por ele mesmo —ainda que, para isso, tenha que empurrar Paulo Guedes para fora da Esplanada dos Ministérios.

A aliança com o centrão e o apoio de alguns amigos no Judiciário podem completar essa missão.

Enquanto tiver um punhado de boias de salvação à vista, Bolsonaro não precisa ter medo de pular.


Míriam Leitão: Bolsa Família e Bolsonaro

“O voto do idiota é comprado pelo Bolsa Família”, disse Jair Bolsonaro, certa vez. Ele já definiu esse programa como a forma de “tirar dinheiro de quem produz para dar para quem se acomoda”, e pediu que fosse extinto. Em 2017, em Barretos, afirmou que “para ser candidato a presidente tem que falar que vai ampliar o Bolsa Família”. No mundo inteiro, o Bolsa Família sempre foi elogiado por ter foco, baixo custo, e porque através dele foi criada uma rede de proteção social aos mais vulneráveis no Brasil. Esse presidente, que tem tal desprezo por essa política social, fará agora o Renda Brasil. Seu objetivo é um só: o de se reeleger.

Todas as ações anteriores de Bolsonaro negam qualquer compreensão da importância de políticas de transferência de renda. Em março, foram cortados 158 mil beneficiários do Bolsa Família, 61% eram no Nordeste. Os governadores, então, foram ao Supremo, que na semana passada confirmou a decisão do ministro Marco Aurélio de proibir novos cortes enquanto durar a pandemia. Em junho, o governo tentou tirar dinheiro do Bolsa Família para gastos com publicidade do Planalto. Na quinta-feira passada, o ministro Paulo Guedes, em entrevista a um instituto espanhol, revelou que haverá um acréscimo de seis ou sete milhões de beneficiários. No dia da reunião sobre o teto, Guedes gastou um bom tempo falando no Alvorada que o Renda Brasil será criado. Era uma forma de dizer para o presidente que cortaria gastos, mas daria para ele o Bolsa Família com outro nome.

O mais popular e mais bem-sucedido programa social do Brasil foi tecnicamente bem feito, resultou de estudos de especialistas e nasceu dos programas definidos como Bolsa Escola. Algumas vezes, foi usado nas campanhas, quando se disseminavam boatos de que um determinado candidato acabaria com ele. No caso de Bolsonaro, parecia possível porque ele sempre fez críticas. Mas hoje o programa foi incorporado ao rol das políticas públicas que permanecerão. O que se quer agora é reempacotá-lo para servir à reeleição de Bolsonaro. A equipe econômica tem trabalhado com esse objetivo declarado.

Num vídeo postado por Bolsonaro na segunda-feira, o presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Pedro Guimarães, está no aeroporto, faz uma chamada de vídeo para o presidente e diz: “Tem uma história interessante da dona Maria José aqui.” E, pelo celular, mostra o presidente à mulher. Ela diz que é “apaixonada, louca” por ele. E agradece “tudo o que você tem feito por nós, principalmente os amapaenses”. Pedro Guimarães, no papel de garoto-propaganda, pergunta: “E quanto você vai receber hoje aqui?” Ela diz que são duas parcelas. “Eu vendo bombom trufado aqui no Amapá e tem me ajudado muito a sua ajuda”, ela fala se dirigindo ao presidente. Conta que é evangélica. No encerramento do vídeo, Guimarães, em voz bem alta, em local público, para confirmar com quem está falando, diz: “E aí presidente tudo bem?” Tudo foi filmado por um outro celular, talvez de um assessor de Guimarães. Bolsonaro postou o vídeo com o texto: “Auxílio de R$ 600 salvando vidas.”

Dona Maria José está gerando renda com o auxílio que recebeu, ao fazer o bombom trufado. Um caso realmente interessante, mas Bolsonaro e Guimarães mostram que estão interessados em propaganda eleitoral, em tirar proveito da história dela. O uso político da CEF supera os abusos do passado.

O país precisará de uma ampliação do Bolsa Família. E seria bom que ele ocorresse dentro de um planejamento técnica e fiscalmente bem feito, para continuar sendo sustentável. O palanque, contudo, vai desvirtuar o programa. A pesquisa do Datafolha mostra que o auxílio emergencial, que era de fato necessário, reduziu sua rejeição e aumentou a aprovação.

Bolsonaro é um populista. E tem um projeto autoritário. Como no chavismo, que distribuía o dinheiro do petróleo para se perpetuar. Bolsonaro esqueceu o que dizia do Bolsa Família e usará qualquer programa social que for formatado como alavanca eleitoral. Não é possível deixar os pobres sem proteção. Não é aceitável ver um candidato a ditador usando recursos públicos como se fosse dinheiro dele doado aos pobres, como Bolsonaro e Pedro Guimarães quiseram fazer crer à dona Maria José.


Ascânio Seleme: Bolsonaro tem razão

Ele foi muito claro ao dizer esta semana que “a ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?”. Problema nenhum

O presidente está certo. Não dá para impedir e não há nada de mau que as pessoas debatam questões. Ele foi muito claro ao dizer esta semana que “a ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?”. Problema nenhum. É verdade também que a ideia de que a família Bolsonaro é corrupta também existe. O pessoal debate. Afinal, a casa usou dinheiro vivo e mal explicado para se dar bem. Ao que tudo indica, o dinheiro empregado na compra de imóveis e para pagar contas da família é público. Ou alguém acha que o dinheiro desviado em rachadinhas pertencia aos funcionários que tiveram parte dos salários surrupiada? Claro que não, eram quase todos fantasmas contratados apenas para viabilizar os desvio. Trata-se de dinheiro do contribuinte. Então o pessoal debate, qual o problema?

Foi um festival de gastos com dinheiro vivo que beneficiou Jair, seus filhos, sua mulher, suas ex-mulheres e seus netos. A turma toda tirou lasquinhas do Erário em benefício próprio. Michelle recebeu depósitos de Fabrício Queiroz. As “ex” Rogéria e Ana Cristina também se locupletaram. Ana comprou cinco imóveis com dinheiro vivo. Rogéria, mais modesta, comprou um apartamento em cash. Dois dos três zeros praticaram rachadinha, assim como o pai. Um deles, o zero mais velho, pagou mensalidades escolares dos netos do presidente com dinheiro arrecadado por Queiroz. Ele mesmo comprou uma loja de chocolates para lavar dinheiro. As pessoas estão discutindo isso por aqui. Qual o problema?

Ainda em 2018, soube-se que o então deputado Bolsonaro recebia auxílio moradia da Câmara mesmo tendo imóvel em Brasília. Questionado por um jornalista sobre a irregularidade, respondeu que usava o dinheiro “para comer gente”. O pessoal acha que Bolsonaro usou dinheiro público ilegalmente e de sobra mostrou como é muito mal-educado. Em junho do ano passado, o presidente foi obrigado judicialmente a pedir desculpas públicas à deputada Maria do Rosário, a quem ofendera em 2014 dizendo que não a estupraria por ela ser “muito feia”. E daí surge um outro debate, este sobre a grossura do presidente. Nenhum problema.

O pessoal debate também o espírito antidemocrático de Jair e seus filhos. O fato dele estar calado há um mês e meio é apenas uma cortina de fumaça para esconder a sua natureza profunda e absolutamente autoritária. Ninguém vai se esquecer que ele e seus meninos andaram de braços dados com a turma barra-pesada que falava em fechar Supremo e Congresso e promover uma intervenção militar. Ele entendeu que ficar calado e evitar expor seu lado fascista ajuda. Mas ninguém tem dúvida de que no seu íntimo ele queria mesmo era empastelar jornais, prender e dar porrada em adversários políticos. E até mandar fuzilar alguns privatistas, oras. O pessoal debate isso daí, qual o problema?

No caso do teto dos gastos, o pessoal sabe como pensa o presidente, nem precisa de debate. Ele é da turma do general Braga Netto, do ministro Rogério Marinho e dos ilustres deputados do centrão. Acha que dinheiro público tem que ser gasto, logo e muito. Bolsonaro reconheceu que “há uma briga, no bom sentido” por mais recursos dentro do governo. Poderia ter dito, tratar-se do grupo dele contra o de Paulo Guedes. Ele explicou como entende a questão. “Na PEC da guerra (contra a pandemia), nós já furamos o teto em mais ou menos R$ 700 bilhões, dá para furar mais R$ 20 bilhões?”. E deu a pista de como fazer para gastar acima do autorizado por lei. “Se for para vírus, não tem problema nenhum”. E acrescentou que se for para outra coisa, como água, é só alegar tratar-se da mesma finalidade.

Dez baruscos
A que ponto chegou a corrupção no Brasil. Os valores de desvios medidos há 20 anos chegavam à casa da dezena de milhões de reais. No mensalão petista alcançaram a centena de milhões. No Petrolão, um único homem, Pedro Barusco, cujo nome virou sinônimo de unidade de valor, desviou R$ 100 milhões e os devolveu quando apanhado com a mão na massa. No atacado, chegou-se à casa dos bilhões. Cálculos da Lava-Jato apontam desvios de R$ 6 bi no assalto à Petrobras. Agora, o doleiro Dario Messer, que nunca produziu nem criou nada, nem galinha, vai devolver aos cofres públicos R$ 1 bilhão. Um Messer vale dez Baruscos. Onde vamos parar?

Camaleão
O deputado Ricardo Barros, novo líder do governo na Câmara, é o exemplo mais acabado do que pode e até onde é capaz de ir um membro do centrão. Nunca, em tempo algum, Ricardo Barros trabalhou contra um governo, qualquer governo. Foi a favor e assumiu cargos de liderança com FH, Lula, Dilma e Temer. Agora está com Jair Bolsonaro. Não erra quem apostar que em 2022 estará com quem quer que seja eleito.

Elegante, Salim?
A frase da semana é do ex-secretário da Privatização, o empresário Salim Mattar. Numa entrevista ao GLOBO, quinta-feira, ele disse que Bolsonaro é “elegante, não se envolve e não fica aporrinhando ministro.” Que isso, Salim? Primeiro, Bolsonaro se mete tanto na vida dos ministros que vai derrubando os que não aceitam sua interferência. Casos de Moro e Mandetta, por exemplo. E, fala sério, pode-se chamar o presidente de tudo, menos de elegante.

Mundo da lua
Projeto da Amazon prevê lançamento de três mil satélites na órbita da Terra nos próximos dez anos. Será o que já está sendo chamado de uma constelação de satélites. Hoje, 2,6 mil desses equipamentos, privados e públicos, circulam ao redor do Globo. O projeto Kuiper, de Jeff Bezos, vai mais do que dobrar o tráfego orbital. Faltará espaço no céu para quem gosta de ficar olhando estrelas. Já aquela turma de Brasília que vive no mundo da Lua nem vai se dar conta.

Correção
A coluna da semana passada errou ao não dizer que Lula só estará apto para disputar a eleição de 2022 se o STF entender que também foi parcial o julgamento que resultou na sua condenação pelo sítio de Atibaia. Lula já perdeu em duas instâncias neste caso, o que o torna inelegível.

Ilusionista
O presidente disse, ao final da reunião de quarta-feira com os chefes da Câmara e do Senado e com ministros e líderes parlamentares, que “o Brasil tem como realmente ser um daqueles países que melhor vai reagir à questão da crise”. Mais uma frase para a galera que não se sustenta. Além dos mais de cem mil mortos, o custo da pandemia já chegou aos R$ 700 bilhões. O valor foi calculado pelo jornal “O Estado de S. Paulo” com base em estimativas de bancos e do próprio Ministério da Economia. Significa quase todo o tamanho dos ganhos a serem obtidos com a reforma da Previdência ao longo dos próximos dez anos. As outras reformas imprescindíveis para o crescimento, a administrativa e a tributária, não andam. E tem mais, o governo não zerou o deficit público e não fez as privatizações prometidas na campanha. Mais grave ainda é que, embora diga o contrário, sua excelência está buscando um dinheirinho extra para fazer mais despesas e pagar “bondades”, porque afinal a eleição está logo ali.

Ilusionista 2
O líder da turma da gastança que acha ser esta a melhor fórmula para se garantir a reeleição de Bolsonaro é o ministro Braga Netto. Embora seja reconhecido como bom administrador, não se sabe o que o general entende de economia?

Culpado errado
Paulo Guedes reclamou outro dia do que chamou de resistência do meio político em se engajar na agenda de reformas. Um ingrato, este ministro. Sem o total apoio do Congresso, Guedes jamais teria aprovado a reforma da Previdência. Deveria reclamar de Bolsonaro. As reformas não andam por culpa do governo.

Bobinho
Tem coisa que apenas criança faz para tentar esconder suas traquinices, uma vez que ainda não sabe medir consequências. Ao responsabilizar os governadores pelo número de mortes causadas pela Covid-19, Bolsonaro agiu como um menino. Se há um responsável pelo avanço descontrolado do coronavírus no Brasil, trata-se do próprio presidente, um negacionista de carteirinha. Quase todos os governadores seguiram o receituário da OMS. As medidas de distanciamento social não deram inteiramente certo em parte devido ao discurso da gripezinha.

Ninguém é poupado
Nas últimas duas semanas de julho, 97 mil crianças menores de dez anos foram diagnosticadas com a Covid-19 nos Estados Unidos de Donald Trump.


Merval Pereira: Do bolso ao cérebro

Ao mesmo tempo em que é surpreendente para quem o rejeita, e esses são menos do que já foram, passando de 44% para 34%, a melhora de Bolsonaro na pesquisa Datafolha é explicável. Vale lembrar que essa recuperação de popularidade é em relação à própria performance, mas ele continua sendo mal avaliado em relação aos outros presidentes no mesmo período de governo, só superado por Collor, o que não quer dizer nada se levarmos em conta o confisco da poupança.

O presidente Bolsonaro confiscou nossa auto-estima como povo, transformando o país num pária internacional, mas está recuperando eleitorado em várias frentes, até nas classes mais educadas e mais ricas, porque parou de fazer confusões diárias, reduzindo o grau de incerteza em que acordávamos todos os dias.

Esse apoio tem se mostrado resiliente tanto quanto o ministro da Economia Paulo Guedes, que foi a razão de boa parte do eleitorado, especialmente no Sul e Sudeste, apostar nesse azarão que se mostrou o único viável para derrotar o PT e, ao mesmo tempo, retomar uma política econômica liberal que havia sido perdida desde a saída do PSDB do poder em 2002.

Mas esse apoio provavelmente será revertido caso o ministro Paulo Guedes saia do governo, ou se ficar sem forças para barrar as manobras para furar o teto de gastos, e outras ações que abalam a credibilidade financeira do país.

O impressionante é que esse eleitorado, a suposta elite nacional, não tenha reagido às mais de 100 mil mortes pela Covid-19, preferindo a tese bolsonarista de que a economia tinha que ser reaberta mesmo sem segurança. Mais inexplicável do que a aceitação da volta ao trabalho dos precarizados e desempregados, de menor renda, que dependeram do auxílio emergencial e do funcionamento da economia para sobreviver. A conversa de Bolsonaro de que estava mais preocupado com a vida dos cidadãos, e por isso queria abrir tudo, bateu forte nesse eleitorado.

Acredito que possa acontecer com Bolsonaro o mesmo que aconteceu com Lula: vai perder as classes média e alta, ganhar nas regiões menos favorecidas, como Norte e Nordeste, e continuar competitivo. Lula perdeu o apoio desse eleitorado por causa do mensalão, mas se firmou no nicho nordestino devido ao Bolsa-Família, que agora Bolsonaro quer tomar dele com o Renda Brasil.

O auxílio emergencial, que o Congresso turbinou para R$ 600 quando Guedes queria dar apenas R$ 200, trouxe a Bolsonaro um alívio e uma certeza de que esse é o caminho para a reeleição. Mas o fiscalismo de Paulo Guedes não serve nesse modelo. O eleitorado que votou por ver no atual ministro da economia uma garantia de que as reformas seriam feitas vai refluir.

Boa parte achava que Guedes ia mandar em Bolsonaro, que gostava de alardear que não entendia nada de economia, que estava terceirizando para o seu Posto Ipiranga as decisões. Mas agora que o presidente descobriu que pode mandar, com apoio do centrão, acostumado a gastos do governo, a não perder os cargos das estatais, e dos militares, dificilmente vai ser controlado.

Golbery do Couto e Silva, o feiticeiro do governo Geisel, dizia a respeito de Figueiredo que quando o presidente eleito sobe aquela rampa do Palácio do Planalto, com todas aquelas honras e cornetas, chega lá em cima convencido de que está lá por mérito próprio. E sempre tem um áulico para dizer que ele tem razão. Bolsonaro, a esta altura, deve estar convencido de que já entende de economia o bastante para, pelo menos, buscar novos conselheiros.

Como o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de quem o próprio Guedes lhe falou maravilhas na aprovação da reforma da Previdência. Bolsonaro aprendeu a comer pelas beiradas nessa nova fase, e deixou de bravatear sua força. Foi passando as boiadas, em silêncio, e, bom cabrito, já não berra ao ser derrotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelo Congresso.

O teto de gastos vai sendo minado dia sim, outro também, na dubiedade que o caracteriza. No Congresso, vai para frente e para trás na relação com o presidente da Câmara Rodrigo Maia, hoje o único apoio que Guedes tem para resistir aos desenvolvimentistas irresponsáveis. Mas, e se Rodrigo Maia sair da presidência, terá condições de eleger um sucessor tão comprometido com as reformas e o controle fiscal, ou o Centrão fará o sucessor?

Como escrevi no início, a melhora de Bolsonaro é explicável.Um velho adágio político diz que a decisão do eleitor para votar passa primeiro pelo bolso, depois pelo estômago, em seguida pelo coração e, por fim, pelo cérebro.


El País: Brasil se apoia na muleta do auxílio emergencial para economia caminhar

Enquanto Governo fala em retomada em “V da Nike”, economistas são mais cautelosos e citam que desempenho mais favorável de indicadores foi anabolizado por transferência de renda

A economia brasileira começa a mostrar alguns sinais positivos após ter despencado nos meses de março e abril, em meio às medidas de isolamento social impostas pela pandemia do coronavírus. A produção industrial brasileira, por exemplo, avançou 8,9% em junho, na comparação com maio, segundo informou o IBGE. É a segunda alta seguida da indústria, mas ainda insuficiente para eliminar a perda de 26,6% acumulada nos dois primeiros meses de paralisia da quarentena. Um dos principais destaques foi a produção de veículos. Também contribuíram para o resultado do mês os segmentos de bebidas e de indústrias extrativas.

ministro da Economia, Paulo Guedes, avalia que os indicadores são sinais de que o Brasil está se recuperando em uma trajetória semelhante ao que chamou de “V da Nike”. O logotipo da marca esportiva tem a segunda perna mais deitada, sugerindo uma recuperação mais lenta do que a queda. “Não volta com a mesma velocidade que caiu, mas está subindo mês a mês”, disse Guedes em audiência pública da comissão mista da reforma tributária no último dia 5. “O ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] está 3% ou 4% abaixo do primeiro semestre do ano passado. Ou seja, a recuperação está vindo com relativa força”, completou.

O mercado financeiro projeta um recuo de 5,62% para o Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, segundo o primeiro Boletim Focus, divulgado nesta segunda-feira, que reúne as previsões de mais de cem entidades financeiras compiladas pelo Banco Central. Para 2021, o relatório manteve pela 11ª semana consecutiva a projeção da economia brasileira em expansão de 3,50%. No mês passado, o Governo estimou um recuo de 4,7% para o PIB brasileiro este ano. Já o Fundo Monetário Internacional projeta um tombo maior, de 9,1%.

Economistas ouvidos pelo EL PAÍS afirmam, no entanto, que falar em recuperação da economia brasileira ainda é precipitado em um cenário de fortes incertezas em relação ao desenvolvimento da pandemia. Eles avaliam, ainda, que o desempenho mais favorável de alguns indicadores foi anabolizado em grande parte pelos programas de auxílio do Governo às empresas e também pela transferência de renda do programa de auxílio emergencial, que em junho, chegou a quase metade dos lares brasileiros.

“A verdadeira dimensão do choque causado pela pandemia na economia você perde, porque ele está sendo, de certa forma, amenizado”, diz a economista Silvia Matos, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV Ibre, para quem há um termômetro um pouco nebuloso neste momento. “Não se pode ficar muito animado com um resultado melhor do terceiro trimestre, como está sendo projetado. É preciso ver o que vai acontecer no fim do ano quando os benefícios forem cortados ou pelo menos reduzidos, e a renda diminuir”, completa. O Itaú projeta alta de 8,5% para o PIB do terceiro trimestre e de 1,9% nos três meses seguintes.

O fim do auxílio emergencial pode gerar, por exemplo, uma escalada da taxa de desemprego, que fechou o segundo trimestre em 13,3%, atingindo 12,8 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Uma alta de 1,1 ponto percentual em relação ao trimestre encerrado em março, o que mostra um cenário relativamente estável. “Mas hoje essa taxa de desemprego é um dos indicadores menos reais, já que muitas pessoas não estão procurando emprego e não são consideradas oficialmente desempregadas. Muitas foram demitidas durante a pandemia e, como estão recebendo os 600 reais, estão esperando a pandemia passar para buscar uma nova recolocação”, diz Mattos.

Para se ter uma radiografia melhor do atual momento do mercado de trabalho é preciso analisar o número de pessoas ocupadas no país. Sob essa perspectiva, há uma queda histórica no segundo trimestre, uma redução de 9,6% em relação ao período anterior. Em três meses, quase 9 milhões de brasileiros ficaram sem trabalho no país, a maioria eram trabalhadores informais.

O economista Eduardo Correia, do Insper, também concorda que é preciso cautela na hora de olhar os dados da recuperação. Como, por exemplo, as vendas no varejo, que começaram a subir em maio após os meses de paralisia. “Houve uma demanda represada. Quando veio a pandemia, ninguém saía de casa e segurou o consumo com medo de perder o emprego. Mas quando a quarentena se alongou, algumas pessoas voltaram a realizar compras que já estavam programadas”, diz Correia. “Ao mesmo tempo, a chegada do auxílio emergencial aos mais vulneráveis aumentou a renda dessas famílias, que começaram a consumir. Mas e quando essa renda acabar? ”, questiona.

Há ainda uma forte incerteza sobre o quanto irá durar esse movimento de abertura comercial durante a pandemia, segundo Correia. “A dúvida é se os casos da covid-19 não irão avançar rapidamente com o retorno das atividades. O uso de máscaras e de certas regras de distanciamento serão suficientes? Se sim, podemos começar a falar em retomada econômica antes da existência de uma vacina para o coronavírus ”, diz. Caso contrário, alerta, podem se tornar comuns novos fechamentos das atividades e, nesse caso, o fundo do vale vai perdurar.

Para Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados, nunca houve uma possibilidade de uma recuperação em V ― ou seja, de forma rápida ― para a economia brasileira, que já caminhava de lado mesmo antes da crise sanitária e registrou recuo no primeiro trimestre. “As pessoas ainda estão com muito receio, muitos negócios que geram aglomeração ― como os de entretenimento, transporte e turismo― estão abrindo parcialmente e alguns nem vão conseguir abrir. Era impensável uma recuperação rápida”, diz Vale.

Ônus fiscal da pandemia

Ainda que a expectativa seja de que a recessão mais profunda tenha se concentrado no primeiro semestre deste ano, o ônus das medidas de combate aos efeitos gerados pela pandemia será carregado ainda por muito tempo. “A situação das contas públicas do país que já era ruim ficou pior ainda com o tamanho da nova dívida. Novamente será preciso um ajuste fiscal muito grande. Sem falar que ainda não estávamos recuperados da recessão monumental de 2015 e 2016. Desde 2013, os investimentos começaram a desacelerar e a economia tem passado por tempestades contínuas, o que é ruim para a estabilidade de qualquer negócio no país”, diz.

O economista considera que já de olho na reeleição, o Governo de Jair Bolsonaro tenta aumentar sua popularidade com a criação de um novo programa de transferência de renda — o Renda Brasil ― e já não se preocupa como deveria com a dificuldade fiscal que o país enfrenta. “O Governo não está olhando isso de forma adequada” diz. Vale ressalta que essa conduta pode, inclusive, gerar mais estresse do mercado financeiro com a gestão de Bolsonaro nos próximos meses. “O que gera consequências, taxa de câmbio mais depreciada, risco Brasil mais alto. Entra em um cenário mais difícil”.

A própria perspectiva para o curto prazo não é alentadora, segundo Vale. “Mesmo saindo da atual crise, voltaremos provavelmente para uma economia com muito baixo crescimento. Se de um lado houve um avanço com a reforma da Previdência no ano passado, o que se ganha é destruído com os novos gastos. A reforma tributária ainda levará um tempo e com toda a instabilidade, como os investimentos voltarão?”, questiona. Matos, do Ibre, concorda que enquanto o investimento não reagir não há como falar em uma retomada forte. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os investimentos recuaram 1,3% em junho, frente a maio, e 15,6% em comparação ao ano passado. Com isso, o segundo trimestre apresentou recuo de 24,5% sobre o período anterior e de 23,1% sobre o mesmo período de 2019. “O investidor vai continuar em compasso de espera se não enxergar um horizonte. A economia precisa de estabilidade de regras, de baixa fricção política e alguma solidez fiscal. Sem isso, continuarmos a assistir voos de galinha”, diz a economista.


Julianna Sofia: Auxílio à reeleição

Guedes vai ter de arrumar mais um dinheirinho, disse um influente senador

O candidato à reeleição Jair Bolsonaro liberou nos bastidores sua equipe econômica a estudar a extensão até dezembro do auxílio emergencial, previsto para terminar neste mês. O presidente da República, todavia, declara publicamente que é preciso ir devagar com o andor: "não dá pra continuar muito" devido ao alto custo. "Por mês, são R$ 50 bilhões. Vão arrebentar com a economia do Brasil."

Os ganhos de popularidade obtidos por Bolsonaro com o auxílio emergencial de R$ 600, pago até agora a 65 milhões de brasileiros, alimentam o movimento dúbio —dubiedade essa que se tornou estratagema do bolsonarismo desde que o capitão reformado se aboletou no Palácio do Planalto.

A prorrogação do auxílio é inevitável, porque seus dividendos políticos fizeram do governo refém. São favas contadas, talvez em cifras menores, como os R$ 200 ou R$ 300 que Paulo Guedes (Economia) defende e que exigiriam a aprovação do Congresso. Com o libera geral das regras fiscais neste ano em razão da pandemia, não se pode descartar até mesmo a extensão do benefício no valor atual, jogando o gasto de R$ 254 bilhões para R$ 450 bilhões.

O gran finale planejado para o auxílio emergencial, o Renda Brasil, enfrenta dificuldades para ser formatado. O novo Bolsa Família pode beneficiar 26 milhões de pessoas e deve se tornar peça estratégica no marketing da campanha à reeleição, mas encontra no arrocho orçamentário dos próximos anos um entrave. Para bancá-lo, o Planalto precisará buscar receitas (nova CPMF?) e cortar despesas (abono salarial e seguro defeso?) a fim de cumprir os parâmetros fiscais (ou alterar os parâmetros?).

Com o avanço da corrida eleitoral de 2022, a pressão por gastos que opõe a ala econômica a ministros políticos e militares tende a crescer, acirrando a disputa por recursos para programas sociais e obras.

Nas palavras de um influente senador, "Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho". Pitaco despretensioso de Flávio, o 01.


Zeina Latif: Já assistimos a esse filme

Guedes enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos

O presidente Bolsonaro sentiu o gosto do impacto do auxílio emergencial sobre sua popularidade. Não será mais o mesmo, o que implica maior risco fiscal daqui para frente.

A sensação é de déjà vu. Uma grave crise justificando políticas de estímulo econômico, em meio a demandas legítimas ou não. Na corrida em que ninguém quer ficar para trás, a classe política se regozija com as frentes de negociação abertas e as benesses a vários grupos organizados. A maioria aplaude; os críticos ora são ignorados, ora taxados de pessimistas, ora acusados de insensíveis. Cedo ou tarde, a conta chega.

A crise de 2008 foi gatilho para uma miríade de medidas de estímulo. Não tardou para excessos serem cometidos, quando já se recomendava a suspensão das políticas. A disciplina fiscal, pilar dos primeiros anos do governo Lula, foi para as calendas. O crescimento de 7,5% do PIB em 2010 foi, em boa medida, artificial. Eleição vencida.

Dilma dobrou a aposta com estímulos e artificialismos para todo lado. Cruzou o limite da responsabilidade. Vale o dito: remédio demais é veneno. A reeleição foi garantida em 2014 e se adiou uma recessão contratada.

O início daquele filme guarda semelhanças com o momento atual.

Bolsonaro não é afeito a reformas – declarou que fazia a da Previdência a contragosto – e repetidamente freia o Ministério da Economia – como ao evitar reformas que afetam o funcionalismo – e os técnicos do governo – como ao ameaçar demitir quem questionasse o fim do subsídio à energia solar. Seu comportamento influencia o Congresso. Afinal, por que ser mais realista que o rei?

A concorrência na política, um pilar da democracia, se distorce quando o assunto é aumentar gastos. A descrença da sociedade no Congresso exacerba a dificuldade de defender a disciplina fiscal. 

Já nos EUA, há o saudável debate no Congresso sobre a extensão do benefício aos desempregados. E os republicanos, disputando a reeleição de Trump, defendem a interrupção em setembro! Aqui, nem sombra disso.

Como se não bastasse, o presidente está em mutação. Populista e pragmático, ele se molda aos novos tempos. Especialistas, como Maurício Moura, apontam mudanças na sua base de apoio: saem os decepcionados das classes mais favorecidas e entram os estratos mais populares beneficiados pelo generoso auxílio emergencial. Essa nova dinâmica poderá implicar inflexão da agenda econômica.

Faltam fiadores da disciplina fiscal no governo. Paulo Guedes, isolado, enfrenta uma queda de braço com ministros que pressionam por mais gastos. Não falta criatividade para evitar as amarras fiscais previstas em lei. Chegou-se a imaginar uma conta de restos a pagar às avessas: libera-se o recurso para investimento em infraestrutura e habitação este ano, por meio de crédito extraordinário para emergências e executam-se as obras depois. Dupla criatividade: nem seriam gastos elegíveis a crédito extraordinário, nem faria sentido liberar o recurso antes da execução.

A lista de pedidos é extensa, incluindo a capitalização de estatais ligadas ao Ministério da Defesa; vinculação de 2% do Orçamento para as Forças Armadas; prorrogação da desoneração da folha; e criação da renda básica (meritória, desde que bem desenhada). Fora o que já foi aprovado, como a expansão do BPC e o novo Fundeb.

Especula-se estender o período de calamidade pública (implica suspensão das regras) para cobrir as medidas de caráter temporário. E as de caráter permanente? Há cheiro de flexibilização da regra do teto e de aumento de carga tributária (para atender à Lei de Responsabilidade Fiscal) no ar. Não há propostas de contenção de gastos obrigatórios.

Não estamos diante de riscos extremos, com a revogação da regra teto e desrespeito explícito à LRF, a julgar pela reação dos investidores e das instituições de controle (TCU). Seria algo intermediário, tentando preservar as aparências, mas preocupante diante da grave situação fiscal.

É preciso mudar o enredo desse filme.


Maria Cristina Fernandes: O Centrão virou um Congressão

Criação da renda básica permitiu a Maia ampliar o Centrão à esquerda e criar um Congressão

A miséria atingiu o menor patamar das últimas quatro décadas no momento em que a economia tem o maior derretimento da história. A necessidade de amparo a milhões de desassistidos pela pandemia é tão imperativa quanto insustentável é mantê-lo sem atividade econômica. O racha do Centrão é a disputa pela arbitragem da porta de saída desta distopia.

A saída, por enquanto, dá num beco. A proposta do governo é de um imposto sobre transações eletrônicas, uma espécie de CPMF com uma base ampliada pela digitalização da economia durante a pandemia. O Congresso não quer saber de aumentar imposto, embora seja crescente o interesse em encontrar uma maneira para perpetuar o auxílio emergencial, a verdadeira poção mágica que o presidente Jair Bolsonaro tanto procurou na cloroquina.

Vice-líder do governo, Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) encomendou uma pesquisa numa cidade de 20 mil habitantes do agreste pernambucano, região petista por excelência e governada por uma aliança entre PSB e PT. Antes do auxílio, Luiz Inácio Lula da Silva registrava lá 75% de aprovação e Bolsonaro, 82% de rejeição. Hoje a aprovação do ex-presidente caiu para 44% e a rejeição do atual, para 42%.

O que vale, diz o deputado, é o último favor. Na ausência de empregos, é neste elixir que o Congresso está agarrado não apenas para atravessar as eleições municipais, mas para o segundo biênio bolsonarista. Ainda que esta renda básica com a qual se renomeará este Bolsa Família encorpado dê sobrevida a Bolsonaro, não há hoje viabilidade para que qualquer partido se oponha à sua implementação.

É pela “pedalada assistencialista” que a relação entre Executivo e Congresso pode ser repactuada. Ainda não há uma equação que abrigue a poção mágica do bolsonarismo nos limites fiscais, mas há alguma boa vontade no Congresso para encontrá-la, até porque este governo, ao contrário daquele da outra presidente pedaleira, converge na agenda de manter o Ministério Público e a Polícia Federal sob rédea curta, além do ex-ministro Sérgio Moro fora do jogo eleitoral.

Ao liderar o desembarque do DEM e do MDB do Centrão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), aposta na reforma tributária em tramitação na Casa como uma oficina desta porta de saída. O presidente desta comissão e autor da proposta de emenda constitucional de reforma tributária que mais avançou na Casa, deputado Baleia Rossi (MDB-SP), é um dos cotados da extensa nominata de candidatos à sua sucessão.

O fim do recesso do judiciário inviabilizou a última chance de qualquer liminar que abrigasse mudança nas regras do jogo na sucessão das mesas do Congresso para permitir a recondução dos atuais presidentes. Em plenário cheio, ainda mais numa Corte em transição de comando, a acolhida de um casuísmo do gênero parece inviável.

Seria o caminho mais curto para transformar o Congresso Nacional numa Assembleia Legislativa do Amapá ou do Rio de Janeiro. Desmoralizaria quaisquer esforços de o STF se opor a desatinos presidenciais, em quarentena por ora, mas suscetíveis a uma reinfestação a qualquer momento.

Somem-se aí os erros cometidos pelo deputado Arthur Lira (PP-AL) que, subitamente transformado em interlocutor preferencial de Bolsonaro no Congresso, cresceu os olhos e antecipou sua pré-candidatura à cadeira de Maia antes de aparar as arestas que cercam seu nome.

A condição de réu no Supremo em ação penal por corrupção impõe um selo de desqualificação a um parlamentar que pretende ocupar a segunda vaga na linha sucessória da Presidência da República. Ainda mais porque o deputado não goza das mesmas prerrogativas que permitiram ao senador Renan Calheiros (MDB-AL) articular, no Supremo, uma saída que, ao mesmo tempo o manteve na presidência do Senado, em 2016, e o excluiu da sucessão na República.

A desconfiança em relação às chances de Lira emplacar o cargo levaram o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto a lançar pontes com o DEM, por meio do ex-líder Elmar Nascimento (BA), um dos mais discretos pré-candidatos. Fez ainda com que o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), outro postulante, tomasse distância. O único imperativo que, de fato, importa, para os partidos é não ficar de fora da mesa diretora. São esses cargos que lhes dão condições de operar. Para isso, se compõem com quem for preciso.

O racha foi a saída para manter o Centrão unido. Sem DEM e MDB, o bloco não existe. São esses partidos que lhe permitem ter acesso às antessalas do PIB nacional. Sob Rodrigo Maia, porém, o bloco vai além. Virou um Congressão. Isso ficou patente não apenas no acachapante quórum de renovação do Fundeb como também na distribuição de tarefas-chave na Casa.

Ao mesmo tempo em que entregou a uma deputada do PP do Piauí, Margarete Coelho, a missão de coordenar um texto para modernizar o SUS, Maia deu asas ao protagonismo do deputado João Campos (PE), filho do ex-governador Eduardo Campos, e maior aposta do PSB no seu Estado, na discussão do projeto de renda básica.

Assim como o Centrão abrigou-se no Bolsa Família do lulismo, a esquerda vai buscar um lugar à sombra na renda básica do bolsonarismo. Seu avanço no Nordeste não poderia ser melhor exemplificado do que pela recepção que Bolsonaro terá hoje no sertão da Bahia, maior Estado governado pelo PT no país. O presidente retomará suas viagens pós-convalescença com a inauguração de uma adutora em Campo Alegre de Lourdes, município governado por Enilson Macedo, do PCdoB, partido do governador Flávio Dino, pré-candidato da esquerda em 2022 mais enturmado com o centro.

O desafio de Maia é agregar o apoio que tem em toda a esquerda, inclusive no PT, ao nome que vier a escolher. Se em sua primeira disputa pelo cargo, em 2017, o presidente da Câmara só garantiu o apoio do seu próprio partido, na véspera, e do PSDB, no dia da eleição, não dá para esperar que, desta vez, a coisa se resolva com brevidade.

A única aposta que dá pra fazer é que o presidente da República terá que repartir sua poção mágica com mais gente. Se vai dar pra todo mundo e vai render até 2022 é outra história.


Alessandro Vieira: Depois que o auxílio emergencial acabar

Pandemia exige soluções estruturais

A pandemia de Covid-19 jogou luz e agravou antigos, mas persistentes, problemas brasileiros: a pobreza e a desigualdade. Tardiamente, boa parte do país — incluindo aí autoridades da República — descobriu que há milhões de cidadãos invisíveis às estatísticas oficiais, como mostraram os inconsistentes cadastros sociais para o pagamento do auxílio emergencial. Esses esquecidos são, agora, as maiores vítimas da doença e os mais vulneráveis a suas dramáticas consequências, como o desemprego e a crise econômica.

O drama tem cor e endereço. A imensa maioria das 14 milhões de pessoas que estão hoje na linha da extrema pobreza é preta ou parda, e quase metade delas vive no Nordeste, onde mais de 80% dos mortos pela Covid-19 correspondem ao mesmo perfil.

O desastre econômico provocado pela pandemia já deixou mais de 12 milhões de pessoas desempregadas no país, segundo dados de junho. Há 17,8 milhões que sequer procuram trabalho. Os sinais de reação da economia são extremamente tímidos e não podem servir para criar falsas esperanças de uma retomada surpreendente. A recuperação será, sim, muito longa. O auxílio emergencial — uma ideia do Congresso acolhida pelo Executivo — aliviou a situação em 38,7% dos domicílios brasileiros, com valor médio de R$ 847. Não apenas desempregados fizeram filas para receber o pagamento, mas também diaristas, feirantes, motoristas de aplicativo, entregadores de encomendas. Trabalhadores informais de baixa renda, ou até mesmo com carteira assinada, mas cujo salário é insuficiente para uma vida digna para si ou seus familiares.

Mas o auxílio é emergencial e tem prazo: termina em setembro. Abre-se um cenário desafiador, que exige soluções não mais emergenciais, mas estruturais. Os programas sociais do país formam hoje uma colcha de retalhos insuficiente para suprir as necessidades dos mais pobres, que vivem majoritariamente da economia informal e têm renda de alta volatilidade. O principal deles, o Bolsa Família, atende a cerca de 40 milhões de brasileiros. Entretanto, seus benefícios não foram reajustados e sequer existe previsão de indexação à inflação. Apesar de todos os méritos e bons resultados comprovados, após mais de 15 anos de sua criação, está defasado.

O socorro aos mais vulneráveis na pandemia mostrou, de forma inequívoca, que as necessidades do país ultrapassam, em muito, a capacidade do Bolsa Família. Por isso, temos uma decisão a tomar: aceitar ver mais de 60 milhões de brasileiras e brasileiros amargarem a pobreza nos próximos meses e anos, que serão duríssimos, ou trabalhar com rapidez para oferecer uma resposta do Estado a esses cidadãos.

A primeira tarefa é evitar o falso dilema entre responsabilidade fiscal e o gasto na criação de um programa de renda básica que promova dignidade para milhões de mulheres, homens e crianças. Precisamos enfrentar a questão, colocar de lado possíveis diferenças e formar um movimento efetivo e urgente que garanta aos brasileiros condições reais de cidadania.

Com esse espírito, e diante dessa imensa tarefa, lançamos no último dia 21 de julho a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica. Somos parlamentares de todos os estados e de 23 dos 24 partidos presentes no Congresso Nacional. Contamos com o apoio de especialistas e representantes da sociedade civil. Pautada num diálogo amplo e acima de interesses partidários ou vertentes ideológicas, a Frente tem a missão de avaliar o melhor desenho para um programa de rendabásica e debater todas as alternativas responsáveis para seu financiamento.

Sabemos que será um grande desafio, sobretudo para garantir sua sustentabilidade ao longo dos anos. Trata-se, no entanto, de uma tarefa inescapável de nossa geração: nenhum brasileiro pode viver abaixo da linha da dignidade. A coragem e a sensibilidade social precisam guiar nossas ações. A tão desejada renovação política precisa, também, se traduzir em novas soluções para esses problemas tão antigos. A desigualdade social é um flagelo que marca a História do Brasil. Mudar esse enredo é decisão nossa.

*Alessandro Vieira é senador (Cidadania-SE)


RPD || Reportagem especial: Busca por auxílio emergencial revela legião de brasileiros na invisibilidade

No total, mais de 46 milhões de brasileiros não estão em nenhuma lista do governo e correm para conseguir benefício durante pandemia do coronavírus

Cleomar Almeida

Na geladeira da faxineira Marizete Coelho (37 anos), duas garrafas de água. É só o que tem. Mãe solteira, ela e os dois filhos (8 e 9 anos) sobreviviam com 800 reais mensais que conseguiam com bicos de limpeza em espaços de festas e eventos, que foram suspensos por causa da pandemia do coronavírus. Metade do dinheiro era para o aluguel do barracão de três cômodos onde moram, em Santa Maria, a 26 quilômetros de Brasília. Até hoje, ela não conseguiu se cadastrar para receber o auxílio emergencial de 600 reais.

Assim como milhares de brasileiros, Marizete já passou vários dias em grandes filas da Caixa Econômica Federal para tentar regularizar sua situação, mas sem êxito. Ela não está em lista alguma do governo. Não recebe nem Bolsa Família porque os filhos não estudam. Não tem CPF ativo nem conta bancária, que são exigidos para conseguir a ajuda de emergência. “Minha renda sempre foi da faxina pra colocar a comida em casa. Também nunca tive patrão para pedir documento, porque sempre trabalhei para fazer bico com ajuda de pessoas que já me conheciam”, diz ela.

A situação de Marizete não é isolada. No total, segundo dados oficiais, mais de 46 milhões de brasileiros não se enquadram nas regras e não estão em qualquer lista do governo. São trabalhadores informais que ficaram sem renda por causa da pandemia e dependem dessa ajuda para sobreviver. São os invisíveis do Cadastro Único do Governo Federal. Muitos não têm nem acesso à internet para se regularizar. 

O efeito da pandemia sobre a vida das pessoas é ainda mais trágico se considerados os 12,9 milhões de desempregados em março, conforme dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apenas nos três primeiros meses deste ano, 2,3 milhões perderam o emprego, sendo 1,9 milhão de informais, o que reforça o peso catastrófico da pandemia sobre esse grupo. As principais pesquisas sobre ocupação da população foram interrompidas ou enfrentam problemas.

O primeiro desafio do governo era inscrever 11 milhões que não estavam no Cadastro Único, mas têm direito ao benefício, segundo cálculo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O segundo era fazer o pagamento. Para quem não tem conta em banco, a Caixa Econômica Federal prometeu criar 30 milhões de poupanças digitais, movimentadas via aplicativo.

De acordo com pesquisa do Instituto Locomotiva, mais de 5,5 milhões de brasileiros com renda de até meio salário mínimo, elegíveis para receber o benefício, não têm nem conta em banco ou acesso regular à internet.  São eles que correm o maior risco de não receber o auxílio. “A crise do coronavírus tirou renda e jogou para a pobreza muita gente que tinha pouco, mas não era alvo de programas sociais. O vírus joga luz a problemas que já existiam, como a baixa renda dos informais, e acentua uma desigualdade histórica”, diz o presidente do instituto, Renato Meirelles.

Pesquisadores do IPEA defendem ações urgentes e integradas entre União, Estados e municípios para socorrer os invisíveis. “O fundamental é partir da estrutura que já construímos, para atender de imediato às famílias mais pobres. Do contrário, o risco é de só conseguirmos operacionalizar o benefício tarde demais”, alerta o representante do IPEA, Pedro Ferreira de Souza. “Nossas simulações mostram que é possível garantir renda mínima para famílias vulneráveis com custos relativamente baixos, considerando a gravidade da situação”, diz.

O furacão de invisíveis, que aumenta cada vez mais, tem engolido até as expectativas do próprio governo. “Temos um volume muito grande de pessoas que literalmente trabalham durante o dia para comer à noite. Para atender a esse problema, saímos em busca dos que eram considerados invisíveis, os informais, que não têm uma atividade formalizada, organizada. Tínhamos a expectativa, a FGV [Fundação Getúlio Vargas] e outros institutos, de encontrar sete ou oito milhões desses invisíveis. Já encontramos 20 milhões", disse o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, no início de abril.

No dia 20 de abril, o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, reconheceu a dimensão ainda maior da população até então inexistente para o governo, em entrevista à imprensa. “Esses invisíveis hoje são 42,2 milhões de brasileiros e nós estávamos conversando, pensamos que chegaremos a 50 milhões de brasileiros. É um número maior do que imaginávamos”, afirmou.

O desespero dessas pessoas faz diminuir ainda mais o isolamento social, medida preventiva ao coronavírus, já que, na ânsia de conseguirem os 600 reais, têm de correr para as filas das agências da Caixa, para tentarem regularizar sua situação e serem vistas oficialmente pelo governo. A realidade socioeconômica torna essas pessoas ainda mais vulneráveis.

A professora Ana Carolina de Aguiar Rodrigues, do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da Universidade de São Paulo (USP), diz que, no Brasil, diferentemente de outros países, medidas de isolamento também devem passar por questões socioeconômicas. Ela ressalta que esse aspecto deveria moldar as diretrizes e ações a serem tomadas pelos governos no país. 

“Definitivamente, esse valor não é suficiente”, diz ela, referindo-se aos 600 reais do auxílio emergencial. “Mas é importante dizer que, na hora que esse dinheiro cair na conta, as pessoas vão reduzir suas saídas de casa”, avalia a professora da USP. O técnico do IPEA Pedro Herculano de Souza, que estuda desigualdade de renda, concorda: "O auxílio é bem desenhado. O desafio é chegar a todos".

É exatamente isso que Marizete almeja. A faxineira conta que não vai sossegar em casa enquanto não conseguir regularizar sua situação junto ao governo. “Tenho dois meninos para criar, a geladeira está vazia. Não temos o que comer”, diz.  Durante a pandemia, ela sobrevive com ajuda de vizinhos e de grupos de doação. “A gente sabe que o melhor é não sair de casa, mas hoje existir nos registros do governo é questão de sobrevivência. Só assim eu vou conseguir ter alguma ajuda nessa crise do coronavírus”, afirma.


Solidariedade socorre desassistidos pelo governo

Na ausência do Poder Público, a solidariedade tem-se tornado o melhor remédio de força para comunidades inteiras se ajudarem e passarem o período da pandemia do coronavírus. Em diversos Estados, grupos de vários segmentos da sociedade se unem para amenizar a fome ou auxiliar pessoas sem acesso à internet a fazerem o registro no Cadastro Único.

Em Goiânia, após a confirmação da progressão geométrica de casos de pessoas contaminadas pelo coronavírus, um grupo de amigos passou a se mobilizar pelas redes sociais para juntar alimentos e doá-los a quem necessita. Os beneficiados são, principalmente, pessoas consideradas invisíveis, de acordo com um dos organizadores.

“Muita gente não tem nada em casa nem perspectiva de quando vai receber algum dinheiro do governo. Já encontramos situação de trabalhadores do lixão que sequer tinham RG ou CPF. Parece inacreditável, mas é preciso visitar os lugares mais esquecidos para enxergar a realidade”, afirma o dentista Rogério Leal, voluntário do projeto. “Toda semana, entregamos cestas básicas a mais de 100 famílias desamparadas. Essa ajuda só é possível graças à sensibilidade de donos de supermercados”, diz ele.

Em Belo Horizonte, outro grupo tem-se reunido durante a semana, para ir até a casa de moradores da periferia e leva-los de carro até agências da Caixa Econômica Federal, para que consigam cadastrar a solicitação do auxílio emergencial. “Muita gente não tem pão para o café da manhã, muito menos vale-transporte para pegar ônibus e ir até uma agência”, afirma o advogado Lucas Mendonça, que se mobiliza com um grupo de evangélicos para auxiliar famílias carentes. “Nosso intuito é amparar da melhor forma possível. Se temos carro, usamos o veículo para ter função nas comunidades”, pondera.

No Rio de Janeiro, uma associação de camelôs cadastra e faz o acompanhamento do pedido do auxílio emergencial de 600 reais para colegas sem internet ou conta em banco. "Fazemos o pedido e monitoramos o andamento", conta a ativista Maria de Lourdes do Carmo. "Se a gente não se unir, todo mundo vai sofrer", acentua. Segundo ela, mais de 100 pedidos do benefício realizados por meio da associação já foram aprovados.

Além de grupos de amigos, a ajuda vem de Organizações Não-governamentais (ONGs) e associações que nunca tiveram a simpatia deste governo, na avaliação do diretor da FGV Social, o economista Marcelo Neri. "É preciso agir: a crise chegou após cinco anos de aumento da pobreza. No fim de 2019, a desigualdade de renda do trabalho, enfim, parou de subir, mas deve voltar a crescer”, alerta.


Número de auxílios liberados é três vezes maior que o projetado

O número total de auxílios emergenciais liberados a trabalhadores informais até a primeira quinzena deste mês já é o triplo do previsto pelo governo em março e deve aumentar ainda mais ao longo deste ano. A Caixa Econômica Federal informou que, até este mês, 58,7 milhões de trabalhadores informais tiveram o benefício autorizado.

A projeção inicial do Ministério da Economia era de que até 20 milhões de pessoas seriam beneficiadas pelo auxílio emergencial, o que, segundo o órgão, geraria custo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos. Com o passar dos dias, as autoridades foram surpreendidas pelo crescente número de brasileiros que se enquadravam nos critérios do benefício.

Depois, o próprio governo teve de fazer novos cálculos e liberar novo crédito, que passou para próximo de R$ 124 bilhões. O prazo para os interessados se cadastrarem no programa vai até o mês de julho, o que ainda deixa o governo em alerta sobre possíveis aumento nos dados.

Diante do cenário de incerteza, a equipe econômica quer incluir no debate a possibilidade de revisão do que chama de gastos ineficientes. Os técnicos querem reavaliar gastos como abono salarial, seguro-defeso (pago a pescadores artesanais no período de reprodução dos peixes, quando a pesca é proibida) e farmácia popular.

Na avaliação da equipe econômica, a revisão nesses benefícios poderia abrir espaço no Orçamento para acomodar renda básica à população ou outra proposta de fortalecimento das políticas sociais no Brasil. No formato atual, o auxílio emergencial custa cerca de R$ 45 bilhões ao mês, uma despesa que, na avaliação dos técnicos, não cabe no Orçamento nem no teto de gastos, mecanismo que limita o avanço das despesas à inflação.

A manutenção do auxílio emergencial de R$ 600, além dos três meses definidos inicialmente pelo governo, já é defendida por parlamentares e entrou na conta das projeções de mercado para o resultado fiscal do Brasil em 2020. No entanto, economistas alertam para o risco de o país repetir os erros da crise de 2008, quando políticas temporárias para resgatar empresas e famílias se tornaram permanentes e contribuíram para o processo de deterioração das contas públicas.

No Congresso, o argumento de parlamentares é evitar que as famílias fiquem sem renda alguma em um momento em que a circulação do coronavírus no país ainda poderá inviabilizar a retomada plena das atividades e do emprego.