auxilio emergencial

Fernando Gabeira: Dinheiro, não, um certo rumo

Salário mínimo não tem aumento. Debate é se militares podem passar o teto do funcionalismo

Neste momento se discute muito o Orçamento. É uma discussão tediosa se nos concentramos apenas nos números.

Na verdade, o que se discute agora é basicamente a ajuda emergencial até dezembro. Não dava para pagar os R$ 600. Caiu para R$ 300. Daqui a pouco surgirá a nova discussão, agora sobre o programa Renda Brasil, que pretende ser um serviço continuado, nos moldes do Bolsa Família.

Tudo isso é estimulado pela campanha à reeleição de Bolsonaro. Esses programas foram sempre necessários, mas no passado ele se opunha a eles, chamava-os de Bolsa Farinha e os via como uma forma de comprar votos. É sempre assim: no governo dos outros é suborno, no nosso é medida necessária para atenuar as duras condições de vida da população mais pobre.

Por causa do seu apelo eleitoral, só se discute mais intensamente a ajuda aos pobres. Mas sabemos que, apesar de garantir votos, o Brasil precisa de mais: de um projeto de retomada econômica com abertura de empregos.

Ainda assim, é pouco. Em cada momento histórico é preciso definir um rumo, sobretudo depois de uma tenebrosa pandemia, com todas as suas consequências.

Ter um rumo correto faz a diferença. Os europeus optaram por uma retomada verde e também por avançar no processo de modernização digital. Isso define investimentos e repercute até nas decisões tributárias, que estimulam as atividades de baixo carbono e penalizam as mais problemáticas numa época de aquecimento global.

Não se trata de afirmar que o Brasil precisa ter o mesmo rumo, embora esteja envolvido no mesmo contexto globalizado. É um dos raros países que são uma potência ambiental, não poderia perder esse bonde, uma vez que dificilmente passará outro tão promissor nas próximas décadas.

Uma das lacunas na chamada reforma tributária, em nosso país, é ser vista apenas sob um ângulo superficial da racionalização. O único objetivo parece ser a simplificação, que já é algo importantíssimo para o crescimento. Mas crescer para onde? E como crescer?

Tradicionalmente, as questões ambientais ficam um pouco à margem do debate tributário. Às vezes o simples princípio poluidor pagador já é visto como uma grande vitória.

No entanto, a questão das atividades de baixo carbono passa a ocupar um espaço novo. O aquecimento global transformou o carbono neutralizado numa espécie de moeda. Alfredo Sirkis, amigo morto recentemente, tinha o sonho de transformar o carbono numa referência monetária, como foi o ouro até a conferência de Bretton Woods.

Existe outro ponto em que o Orçamento se poderia transformar de discussão burocrática em debate vivo. Refiro-me também ao dinheiro destinado à defesa nacional. Ele foi ampliado por Bolsonaro, embora não a ponto de suplantar educação ou saúde, como o presidente queria.

Não custava nada um debate sobre as verbas da defesa não escorado apenas em cifras, mas em rumos. Que tipo de guerra esperamos, como nos preparamos para ela, os recursos são adequados? Parece uma heresia trazer esse debate da defesa para a sociedade.

Sabemos que os militares se preocupam com a defesa da Amazônia, num momento em que o mundo está muito interessado no destino da região.

Até que ponto vão investir na Amazônia? Que concepção de defesa têm para a área?

Teoricamente, fica mais fácil tomar conta de uma região sem a floresta em pé. Mais simples ainda seria essa tarefa se os povos indígenas fossem fundidos num só povo, o brasileiro.

Mas o problema central é que a floresta terá de ser explorada sem destruição e os povos indígenas são considerados hoje também uma riqueza da humanidade. Aliás, essa já é uma visão mais antiga. Durante a conferência de 1992 no Rio, houve o encontro dos líderes mundiais e um encontro paralelo, no Aterro do Flamengo, reunindo organizações e personalidades. Neste encontro foi definido que a diversidade cultural é tão importante para o futuro comum como a biodiversidade.

É esse quadro complexo de biossociodiversidade que a defesa da Amazônia nos apresenta. Nada mais interessante antes de abordar cifras do que conhecer exatamente o tipo de escolha que o Brasil fará. Mesmo porque as notícias que surgem são muito inquietantes. Fala-se na compra de um satélite de R$ 145 milhões, quando sabemos que o Inpe monitora adequadamente a região. Por que essa redundância? No passado fizemos um investimento gigantesco para a época no Sivam, o Sistema de Vigilância da Amazônia. Fala-se muito pouco dele, mas seria um instrumento até mesmo de nossa diplomacia amazônica, por sua possibilidade de coletar e compartilhar dados.

Enfim, todas essas dúvidas são pertinentes para quem se interessa em examinar como o País gasta o seu dinheiro. Vimos que a economia é bastante severa quando se trata de salário mínimo: não há aumento real. No entanto, o debate é se os militares podem ou não ultrapassar o teto do funcionalismo público. Isso é tão desapontador que prefiro acreditar que um verdadeiro debate sobre Orçamento ainda virá, ou já existe e minhas antenas ainda não o captaram.


Valor: Diminuição de auxílio vai gerar frustração e aversão a Bolsonaro, diz Sérgio Abranches

Para Sérgio Abranches, vive-se hoje no tempo dos governos incidentais, que representam rupturas, mas com tendência de serem efêmeros

Por Diego Viana, Valor Econômico

SÃO PAULO - Em 2017, o cientista político Sérgio Abranches se referiu à atualidade, no título de um livro, como a “Era do Imprevisto”, por ser uma fase de transformações profundas. Em política, o imprevisto leva à emergência de um personagem particular, que se traduz como “O Tempo dos Governantes Incidentais” (Companhia das Letras, 304 págs., R$ 69,90). Com os sistemas políticos desadaptados às mudanças velozes, esses líderes surgem das franjas do sistema, com um discurso fomentado pela frustração e alicerçado na aversão aos políticos estabelecidos. No entanto, como prometem transformações que não são capazes de entregar, essa mesma base afetiva os torna efêmeros.

O “governante incidental” é marca de um período de “interregno”, quando uma ordem global perdeu o vigor sem que sua substituta esteja em pleno funcionamento. Em parte, esse estágio transitório explica traços comuns a muitos incidentais, como o negacionismo climático. A formação de novas lideranças, capazes de gerar propostas adequadas aos novos tempos, é o caminho para superar o momento das lideranças incidentais, para Abranches.

No entanto, o cientista político aponta que o Brasil é um país em que o surgimento de novos quadros é lento, em razão do caráter oligárquico e enrijecido dos partidos e outros centros de formação. Essa é uma vantagem do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao mesmo tempo, o apoio recém-conquistado graças ao auxílio emergencial é uma faca de dois gumes: reduzi-lo para garantir equilíbrio fiscal causaria novas frustrações; expandi-lo pode levar à perda da simpatia dos mercados.

A pandemia de 2020 acelera alguns processos em curso. Um deles é a percepção de que políticas sociais e de bem-estar não podem ser inteiramente abandonadas, mesmo com a ênfase no equilíbrio fiscal. Outro é a gradual adoção de algo como o projeto americano do Green New Deal, um conjunto de investimentos para acelerar a transição rumo à economia verde e, ao mesmo tempo, garantir empregos e justiça social.

Veja a seguir os principais tópicos tratados na entrevista.

Governantes incidentais
“A ascensão desses políticos é mais do que uma manifestação da era do imprevisto. É uma reação a ela. As eleições que produzem vitórias dos incidentais representam rupturas com os padrões eleitorais. As sociedades estão reagindo com medo, insegurança, incerteza e ressentimento às mudanças estruturais que os países atravessam. Não é trivial que parte da classe média americana branca tenha se empobrecido por conta da destruição de empregos qualificados tradicionais. Quando buscam o bem-estar social, essas pessoas encontram um sistema que não está sintonizado para o branco.

De repente, chega muita gente da classe média branca querendo cheque de desemprego ou entrando nos outros serviços de proteção social, que estão calibrados para os negros e latinos. Essas pessoas ficam ressentidas de ter de entrar em uma fila com gente que consideram inferior. Gente que antes trabalhava para eles. Produz-se, assim, um setor da classe média branca americana raivoso, uma das bases eleitorais de Donald Trump.”

Ruptura eleitoral
“Um elemento central da ruptura eleitoral é a frustração constante. Já há algum tempo, os ciclos econômicos são tais que as expectativas nunca são cumpridas. Os eleitores ficam frustrados, porque o que imaginavam estar comprando com o voto não é entregue. Além de produzir vitórias incidentais, a frustração garante que esses líderes são efêmeros. Eles geralmente vêm da margem ou de fora da política, mas também geram expectativas que não se realizam. E produzem frustração. É quase uma lei da política: a frustração das expectativas eleitorais se transforma em aversão e rejeição, ou seja, em voto contra, na fase seguinte. Na Itália, o afastamento de [Matteo] Salvini levou os populistas do Movimento 5 Estrelas a se alinharem à política clássica. Mas eu me preocupo com o caso brasileiro, porque não estamos produzindo novas lideranças. No próximo ciclo eleitoral, tudo indica que vamos ter mais do mesmo e pode estar se criando o espaço para que surja um novo populista.”

Bolsonaro e Guedes
“Trump não recuperou a popularidade, mas Bolsonaro, sim, por efeito do auxílio emergencial. No meio de uma grande recessão, com uma taxa avassaladora de desemprego, de repente o governo despeja dinheiro nas mãos das pessoas, e ele faz a diferença, de fato. Mas quanto isso dura? O governo não tem fôlego fiscal para manter esse nível de auxílio. Pode prorrogá-lo por mais dois meses, a um custo alto, mas não pode continuar no ano que vem. Pode tentar mudar o nome do Bolsa Família, para marcar como concessão pessoal de Bolsonaro, mas vai ser um valor menor. Quando o governo dá algo e depois reduz a dádiva, gera frustração e aversão.

Quando cair de R$ 600 para R$ 300, ainda mais com um processo de recuperação duvidoso, isso vai produzir frustração, voltando ao ciclo de gerar expectativa e entregar frustração. Já o apoio do mercado financeiro é essencial para Bolsonaro. Significa a garantia de ter fluxo de investimento. A pergunta é até que ponto o mercado vai crer religiosamente no liberalismo do governo, que já deu seguidas demonstrações de que não é liberal, nem tem compromisso com o rigor fiscal.”

Governo e mercado
“As âncoras de Bolsonaro com o mercado ainda são Paulo Guedes e Roberto Campos Neto. Mas o conflito permanente entre o gastador e o austero sempre acaba produzindo a saída de alguém. Não tem como sustentar por quatro anos um atrito permanente. Por outro lado, Guedes tem uma atitude ambivalente. Em geral, defende a austeridade para certas plateias. Mas quando fala para plateias mais políticas, tem um discurso populista. ‘Vamos gastar para eleger o presidente’… Qual é o Guedes que vai prevalecer? Ele também cria mais expectativa do que pode entregar. Na fábrica de reformas do ministro, tem muito menos do que é prometido. O discurso é de reforma tributária e descentralização; na prática, o projeto é mudar dois impostos e recriar a CPMF.”

Presidencialismo de coalizão
“O modelo do presidencialismo de coalizão não acabou. Ele gera efeitos para Bolsonaro. O fato de não ter uma coalizão tem consequências políticas para ele. Falhou o projeto de usar a relação direta com a população para forçar o Congresso a fazer o que ele quer. A aproximação com o Centrão é um ponto de inflexão pessoal, não político. Bolsonaro se aproxima do Centrão quando as investigações sobre a rachadinha ameaçam sua família. Ele vai em busca de uma aliança com o Congresso pela imunidade, contra um pedido de impeachment. Enquanto Rodrigo Maia (DEM) não vir os evidentes crimes de responsabilidade que o presidente comete em série, não tem impeachment.

Bolsonaro tem que manter alguma relação amistosa com ele para manter sua imunidade. Com isso, teve que desarmar, dentro da estrutura do governo, o aparato da Lava-Jato. Houve uma janela aberta para um impeachment, mas ela não foi aproveitada. Agora, certamente a probabilidade diminuiu. Mas pode ressurgir. Como as investigações continuam pressionando a família Bolsonaro, ele precisa de uma base no Congresso que seja capaz de vetar um pedido de autorização para ser processado.”

Pauta de costumes
“Bolsonaro tem perdido todas as disputas nas suas pautas mais caras, dos chamados ‘costumes’, por exemplo. Armas, religião, moralismo. Nas políticas públicas, o que ele tem feito é se aproveitar do que o Congresso faz. Ele não fez nenhuma grande proposta. As reformas da previdência e a do saneamento básico estavam prontas. O saneamento só foi salvo porque Tasso Jereissati (PSDB) resolveu assumir a liderança do processo. O auxílio emergencial também. O Congresso se tornou o gerador de políticas públicas, que depois Bolsonaro assume como se fossem dele.”

Relação com os EUA
“A presença de Trump na Casa Branca é indispensável para Bolsonaro por várias razões, a primeira sendo que ele o copia o tempo todo. Com Joe Biden, Bolsonaro perderia seu modelo. Outro ponto é que, se Biden for eleito, os EUA retornam imediatamente ao Acordo de Paris. O Brasil não chegou a sair do acordo, mas sua atitude se tornou hostil. A volta dos EUA nos deixaria na posição de pária, com Arábia Saudita, Bolívia, Venezuela. Está em jogo a projeção internacional do Brasil, que já vinha em declínio acelerado por conta do desmantelamento do Itamaraty, da saída de cena dos diplomatas profissionais, que sempre foram um recurso fundamental de influência internacional do Brasil.

O Brasil tinha uma reputação internacional muito boa por causa do ‘soft power’. A ciência brasileira se destaca com ilhas de excelência importantes, participando dos principais projetos científicos globais. A diplomacia brasileira era uma das mais profissionais, conferindo uma capacidade de intermediação e negociação internacionais e uma presença global muito fortes. Com esse declínio, se os EUA mudam de posição e deixam de dar cobertura, o Brasil perde muito. O mesmo vale na questão comercial. Trump, pelo menos, tem um discurso de boa vontade com o Brasil, embora seja duvidoso na prática. Com um governo Biden, vai ser como é com a Europa. O acordo com a União Europeia já subiu no telhado. Se o governo americano também decretar que só tem tratado comercial com proteção da Amazônia, acabou.”

Pós-pandemia
“Alguns eventos ainda em curso vão ser determinantes. O que podemos ver agora é como as sociedades estão reagindo. Nos EUA, a popularidade de Trump caiu fortemente. Parece que a onda populista que o elegeu (e que já começava a declinar) vai ser interrompida. Outra coisa que estava em declínio e parece a caminho de ser superado é o processo de austeridade. Não a ponto de romper com a ideia de que deve haver equilíbrio fiscal. Mas a austeridade que vinha sendo imposta era ultraliberal, cortando direitos sociais básicos. Vimos que os países que se deram melhor na pandemia foram os que deixaram a saúde pública funcional, como Portugal e Alemanha.

No Reino Unido, o primeiro-ministro conservador declarou que sua vida foi salva pelo serviço nacional de saúde. E os conservadores vêm enfraquecendo esse sistema desde o tempo de Margaret Thatcher [primeira-ministra de 1979 a 1990]. A Espanha, que enfraqueceu muito seu serviço de saúde, se saiu mal. Nos EUA, ficou claro que o sistema estritamente privado não funciona em casos assim. Em Nova York, ele não resistiu a 15 dias de pandemia. Ficou claro que é preciso preservar serviços sociais e redes de proteção, neste mundo cheio de imprevistos. Não é só uma questão de justiça social: tem custos econômicos e políticos.”

Green New Deal
“O Green New Deal é uma combinação de duas coisas. O lado ‘new deal’ é a necessidade de uma rede de proteção social que alcance os novos desprotegidos, que não estão contemplados pelas redes tradicionais. Tem um processo de mudança nos empregos e negócios em que a destruição é mais rápida do que a criação. Só se diz isso no campo do emprego, mas é verdade também para empresas: os novos negócios, como os novos empregos, exigem qualidades distintas das tradicionais. A sociedade está enfrentando o desafio de se reeducar, seja para ser empresário, seja para ser trabalhador. É um processo demorado, com muitas perdas no caminho. Algum tipo de proteção para esse contingente, que fica inesperadamente fora do jogo, vai ser necessário para evitar uma convulsão social.

A parte do ‘verde’ se impõe pelo fato de que a mudança climática está aí. Nos EUA, a indústria de seguros se deu conta de que estava no meio do caminho da mudança climática, não quando um furacão atingiu New Orleans, porque atingiu a parte pobre, que não era segurada, mas quando uma tempestade atingiu Chicago e Nova York. As seguradoras passaram a exigir dos clientes mais responsabilidade climática e transparência com o risco climático.”

A economia e o clima
“Era inevitável que os fundos de investimentos dissessem: sem cuidado com a mudança climática, não invisto. A poupança da indústria de seguros e previdenciária é a grande fonte de recursos financeiros. É indissociável a questão econômica da climática. Ao mesmo tempo, a mudança estrutural torna indissociável a questão social das carências que essas transformações produzem. Assim se associam o ‘green’ e o ‘new deal’. Tecnicamente, temos condições de atingir carbono zero no curto prazo. Se os países quisessem fazer uma transição rápida, poderiam. Temos a tecnologia para isso.

O problema é a resistência de parte do grande capital, associado à indústria fóssil. Nos EUA, as Indústrias Koch são grandes financiadoras do trumpismo porque sabem que seu negócio está com os dias contados. Temos substitutos funcionais para o petróleo na energia: carros elétricos, vento, sol, biomassa. Podemos ter uma matriz energética diversificada, deixando o petróleo só como matéria-prima, onde tem muitas aplicações ainda em que ele não é substituível.

O fato é que poderíamos estar fazendo a transição muito mais rápido. Não estamos por causa das condições políticas. Há um descompasso entre o poder e a influência política que as novas forças têm, ligadas por exemplo, à energia eólica ou solar, e as velhas, ligadas à siderurgia ou ao petróleo. São décadas de lobby. Esse descompasso trava a mudança.”

Novas lideranças
“Mobilizações como a de Greta Thunberg têm um poder importante, porque geram novas lideranças. Uma coisa é certa: quando ocorrer a transição de geração no poder, o mundo vai ser sustentável. Os valores já mudaram na base da sociedade, só que eles ainda não têm poder político. As novas gerações ainda não estão no poder. Esses movimentos estão ampliando o espaço de criação de lideranças. No mundo inteiro, e no Brasil desde a época da ditadura, os centros tradicionais de formação de lideranças se tornaram centros de perpetuação de oligarquias. Quem está produzindo novas lideranças são os movimentos sociais, sobretudo os ambientais, assim como o movimento negro e outros. O problema é que produzem lideranças com muita identidade própria, mas pouca capacidade de aglutinar forças. Esse processo ainda está em curso.

No Brasil, desde o princípio, nossa democracia não se preocupou com a formação de lideranças. Mesmo hoje, os movimentos fora da estrutura partidária de criação de lideranças, dos quais saíram nomes importantes, são vistos com preconceito nos partidos, seja porque têm influência econômica ou outra razão. As oligarquias resistem. O surgimento de novas lideranças significa a circulação das elites: uma parte sai do poder para que ele seja ocupado por uma nova liderança. No Brasil, os canais foram obstruídos, e os partidos estão oligarquizados.

Mas esse também é um problema nos outros países. Pelo menos têm surgido lideranças novas fora da estrutura partidária dominante, como os Verdes na Europa. Na Espanha, o vice-primeiro-ministro veio dos movimentos de rua. Esse processo é universal. A democracia tem ciclos de realinhamento partidário. A partir de determinado momento, a estrutura partidária fica tão ossificada que novas forças buscam rompê-las. Esse processo está em curso no mundo inteiro.”


Folha de S. Paulo: Bolsonaro caiu em uma armadilha com auxílio emergencial, diz Sérgio Abranches

Cientista político que cunhou o termo presidencialismo de coalizão avalia que presidente ignora o modelo e vai ao centrão 'em busca de imunidade'

Guilherme Magalhães, Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Referência na análise do sistema político brasileiro pós-redemocratização, marcado pelo que chamou de presidencialismo de coalizão, o cientista político Sérgio Abranches, 70, avalia que o modelo não acabou com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

O presidente, porém, "tem desconsiderado as regras do modelo", escreve Abranches em seu novo livro, "O Tempo dos Governantes Incidentais", recém-lançado pela Companhia das Letras.

Para ele, que posiciona Bolsonaro sob o pano de fundo da ascensão de líderes populistas em diversos países em uma década de vertiginosas mudanças socioeconômicas, esse tipo de governante é efêmero, o que não significa que não cause estragos por onde passa.

A aproximação de Bolsonaro em direção aos partidos do centrão indica que o presidente passou a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão?

Não, porque o presidencialismo de coalizão é um modelo transacional. Há uma troca entre governo e Legislativo no sentido de uma certa transferência de poder do Executivo não para o Legislativo, mas para os membros da coalizão. E ele tem uma vocação majoritária, é uma busca de uma aliança para poder governar.

No caso do Bolsonaro, ele foi na direção do Congresso em busca de imunidade, quando se sentiu ameaçado pela questão do impeachment, pelo processo da "rachadinha".

Agora, na verdade, ele está fazendo uma transição do modelo autocrático voluntarista para um modelo autocrático populista. Por isso ele está lançando a extensão do auxílio emergencial. Isso ele descobriu por acaso, teve que aceitar o auxílio emergencial forçado pelo Legislativo. Aí viu como oportunidade capturar o auxílio para ele, e ao ver o impacto disso na popularidade, resolveu prolongar.

Mas ele caiu numa armadilha, porque de um lado, para manter esse grau de satisfação que ele conseguiu com o auxílio, tem que manter no mesmo plano para que não haja perda de renda real. Mas tem uma limitação fiscal, ele tem que arrebentar o teto de gastos e se desavir com uma parte do Congresso e com o mercado financeiro que o sustenta.

A última pesquisa Datafolha apontou que Bolsonaro está com a melhor avaliação desde o início de seu mandato. Como o sr. avalia essa queda na rejeição ao presidente?

Claramente Bolsonaro se beneficiou do auxílio emergencial e está se beneficiando dessa naturalização da doença [Covid-19]. Os EUA estão discutindo a ameaça existencial à democracia que o Trump representa, e aqui estamos sob a mesma ameaça existencial, tanto da democracia como do nosso modo de vida, e a gente não reage da mesma forma. Não há o nível de indignação e mobilização e acho que nem a mesma clareza das lideranças.

Estava vendo na coluna do Conrado [Hübner Mendes], ele discutindo esse papel da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da República e do Ministério da Justiça na questão do dossiê antifascista.

Todos os três fugiram da finalidade das suas instituições. E essa é a maneira pela qual esse novo autoritarismo se firma, carcomendo por dentro as instituições de freios e contrapesos e aumentando o poder discricionário do presidente. Vamos ter de pensar remédios para isso.

Essa é a questão fundamental do Brasil. A gente ainda não se deu conta de que tem coisas anormais demais acontecendo, ameaçando a sociedade brasileira, o padrão de convivência minimamente civilizado que a gente estava construindo, ainda com todos esses problemas que eu falei, e a nossa democracia.

Neste mês, o ministro Dias Toffoli passa o comando do STF a Luiz Fux. Qual o legado que Toffoli deixa e o que esperar da nova gestão?

O Toffoli deu um péssimo exemplo de como ser presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele se envolveu com os chefes do Poder Legislativo e Executivo para fazer pacto de políticas públicas, algo absolutamente impensável pro chefe do Poder Judiciário.

Ele vai analisar a constitucionalidade das políticas públicas. Não pode autocraticamente dar um aval, não pode assinar em nome dos outros dez ministros do Supremo um pacto em favor de coisa nenhuma, a não ser a favor da democracia e da Constituição.

O presidente do Supremo tem que manter uma certa distância cerimoniosa dos chefes dos outros Poderes. Não é que ele deve ser adversário ou não ter uma relação cordial ou não comparecer a cerimônias oficiais, nas quais o protocolo diz que os chefes dos Poderes devem estar juntos. Agora, posse banal de ministro do Executivo, coisa em quartel, não faz o menor sentido.

Toda democracia precisa de um certo grau de formalismo. Ela requer certas formalidades. O presidente da República não pode atravessar uma rua e se sentir bem recebido, como amigo, na posse de um procurador-geral da República.

Um procurador-geral da República não pode sair da sede da Procuradoria e fora da agenda, à noite, ir visitar um presidente para conversar sobre assuntos que ninguém fica sabendo quais foram. Isso aconteceu entre a Raquel Dodge e o Temer, não é só o Augusto Aras. O Aras entrou pela porta dos fundos, é um caso muito pior.

Imagino que o Fux vá ter um comportamento mais afastado do Executivo porque ele tem mais experiência de magistratura do que o Toffoli. O Toffoli era um advogado político que virou ministro do Supremo.

Enquanto isso, Bolsonaro vem dando sinais de que pode reatar com seu antigo partido, o PSL, depois do fracasso da tentativa de reunir o bolsonarismo no guarda-chuva da Aliança pelo Brasil. É puro pragmatismo tendo em vista a eleição municipal e o fundo eleitoral do PSL ou o sr. enxerga algo mais nisso?

A motivação principal é grana, é o dinheiro do fundo, e as eleições municipais. Porque, na verdade, essa é a primeira eleição que efetivamente o PSL vai disputar. Ela que vai definir se ele vai virar partido ou não. Porque até hoje ele é uma casca improvisada, inchado.

A gente já viu isso. O PRN do Collor inchou e desinchou rapidamente. Claro que a gente está num processo de realinhamento partidário, as bancadas perderam tamanho. Mesmo o PT, que ficou com a maior bancada da Câmara dos Deputados, é metade do que já foi.

Todos os partidos estão em teste. Os tradicionais têm que mostrar que têm capacidade de renovação, de revitalização. E os novos têm que demonstrar capacidade de permanência. Dos novos o que tem mais que provar é o PSL, inclusive por isso, foi do Bolsonaro, deixou de ser do Bolsonaro, volta a ser do Bolsonaro.

O sr. argumenta que a onda populista já começou a perder força em alguns países europeus porque é inevitável que os eleitores que os elegeram se frustrem ao longo do caminho. Mas para a democracia emergir revigorada é preciso que, nesse refluxo, alguma inteligência política seja capaz de recentralizar o sistema. O sr. enxerga sinais dessa inteligência no horizonte brasileiro num eventual refluxo do bolsonarismo?

Por exemplo, o Partido Democrata dos EUA. O fato de lideranças muito jovens, como a Alexandria Ocasio-Cortez, e outras já experimentadas, como o Bernie Sanders, da esquerda do partido, se unirem para dizer o seguinte: desta vez a gente precisa de um cara como o Joe Biden, porque a gente precisa unir conservadores, moderados e progressistas contra essa ameaça à democracia americana.

Isso não tem aqui no Brasil. Acho que essa inteligência tem. Há lideranças jovens, inclusive no Congresso, que têm essa visão, que o Brasil precisa parar de ficar brigando brigas velhas e olhar para frente.

Parar de fazer política pelo retrovisor, como a gente tem feito desde sempre. A gente fez a Constituição de 1988 olhando para o retrovisor, para evitar o retorno do autoritarismo. Era preciso que alguém olhasse mais para frente, mas tinha a hiperinflação. A gente tinha que resolver esse legado.

A gente vem suprindo os déficits do passado, lutando contra a parte negativa do nosso legado, e deixando de olhar para frente. Enquanto isso o mundo foi mudando de forma vertiginosa. Agora estamos com um dilema na mão. Continuamos com os passivos, porque não fomos capazes de resolver nenhum deles, exceto talvez a inflação. E mesmo a democracia estamos vendo que não.

Estamos com o desafio de construir um Brasil que seja viável no século 21 e esse desafio é grave demais para não termos nenhuma liderança entre as mais experimentadas do país com clarividência para ver que está na hora de buscar essa inteligência na sociedade brasileira.

Isso que me espanta. Não ter lideranças com essa visão de que o futuro já está aqui e ele não é uma coisa que chega e a gente adere, é uma coisa que a gente constrói. E não é fácil construir um futuro num mundo que está mudando tão radicalmente quanto este. Um futuro com paradigmas novos e a gente ainda não conseguiu se libertar dos problemas velhos. É um grande desafio e me angustia muito, não vejo nenhuma liderança com essa visão.

RAIO-X
Sérgio Abranches, 70

Nascido em Curvelo (MG), é cientista político, sociólogo e escritor. Autor de, entre outros, "A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século 21" e "Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro", ambos publicados pela Companhia das Letras

O TEMPO DOS GOVERNANTES INCIDENTAIS
• Preço R$ 69,90 (304 págs.) e R$ 39,90 (ebook)
• Autor Sérgio Abranches
• Editora Companhia das Letras


William Waack: ‘Acabou o auxílio, volta pra miséria’

O governo está entre a alegria do momento e o pesadelo de amanhã

A dupla crise de saúde pública e econômica colocou Jair Bolsonaro diante de opções aparentemente irreconciliáveis. Ele ainda não encontrou o caminho para prosseguir naquilo que as circunstâncias o obrigam: a) continuar prestando ajuda emergencial a milhões de necessitados, um reconhecido imperativo político e humanitário e b) investir em obras públicas para retomada da economia, que precisa de estímulos para crescimento.

Note-se que não é uma escolha entre um ou outro. Não há recursos para um nem para outro dentro dos limites impostos pela crise fiscal.

Parece cansativa a repetição, mas é necessária: a questão fiscal domina totalmente nossa política. E, como assinalou o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, o problema central não é a existência do teto de gastos, mas o crescimento dos gastos obrigatórios.

Para agravar, há prazos curtos a serem respeitados (MPs que caducam, fim do período emergencial, aprovação do Orçamento, por exemplo) e números recentes compilados pela FGV escancaram a urgência imposta pela realidade social e suas temidas consequências políticas. São números de enorme crueldade, acentuada pela pandemia (aliás, os mesmos números indicam que a medida mais eficiente de confinamento foi pagar para as pessoas não terem de sair de casa).

Graças ao auxílio emergencial não se registrava desde 1986, época do Plano Cruzado (congelamento de preços), movimento tão acentuado de pessoas saindo de uma faixa socioeconômica (a dos paupérrimos) e indo para um degrau acima. O economista Marcelo Neri, que compilou os dados, foi, porém, contundente: “Acaba o auxílio, esses milhões descem de volta para onde estavam”.

É um sinal eloquente da nossa pobreza quando R$ 600 dados de mão beijada fazem tanta diferença nas estatísticas sobre faixas de renda. Ocorre que a manutenção desse auxílio não é possível com a situação fiscal presente. Bolsonaro livrou-se de um dilema inicial ao suspender a ideia de Paulo Guedes (correta em princípio) de remanejar recursos de programas sociais menos eficientes e dirigi-los a um programa de renda básica batizado como se quiser. “Seria tirar de pobres para dar a paupérrimos”, reconheceu o presidente, que, nesse ponto, demonstrou percepção política mais aguçada que a de seu principal ministro até aqui.

Livrou-se de um dilema, mas não do problema. A montagem dos programas de assistência na base da ampliação da renda além do Bolsa Família, a cada dia mais urgentes, depende do progresso em outras frentes políticas, como a negociação de reformas de altíssima complexidade. E que estão ligadas umas às outras: a tributária depende do Pacto Federativo que está sendo ligado à PEC emergencial, e tudo também depende de uma reforma do Estado via reforma administrativa, por exemplo. Sem criar impostos, sem furar o teto.

O maior perigo tem sido vocalizado também por forças políticas que apoiam o governo no Congresso e têm bom trânsito com a equipe de economia. O senador Marcio Bittar (MDB-AC), por exemplo, relator da PEC do Pacto Federativo, anda preocupado em se “tentar dar uma alegria no momento criando, em troca, um pesadelo por muitos e muitos anos”, declarou. Ou seja, continuar ajudando os 10 milhões de invisíveis às custas de qualquer responsabilidade fiscal.

É nesse contexto que ganha um significado muito maior a expressão “articulação política”. Pois não se trata de “apenas” conseguir votos para aprovação de matérias ou a manutenção de vetos (como ocorrido na Câmara recentemente). Talvez a palavra em espanhol “concertación” expresse melhor o que significa “articulação política” em época de opções irreconciliáveis: é um esforço político coletivo, coordenado, dirigido e com um foco preciso.

É óbvio que esse esforço no momento é muito acanhado. E sofre a concorrência de um comportamento típico de décadas de decisões políticas no Brasil: livrar-se de um pesadelo do momento jogando-o para o futuro.


Eliane Cantanhêde: Guedes, o mágico

Bolsonaro abre o cofre e está no seu melhor momento, mas tem muito o que explicar

Depois de calar a boca, mergulhar na campanha no Nordeste e subir nas pesquisas, o presidente-candidato Jair Bolsonaro dá aval ao ministro Paulo Guedes para assumir o governo e atuar em duas direções conflitantes: manter formalmente o teto de gastos, tão caro ao mercado, e jorrar dinheiro em alvos específicos, fundamentais para a reeleição em 2022.

Encontrar o ponto de equilíbrio entre economia e política passa por uma terceira área: a jurídica. É preciso desbravar as brechas da legislação para estourar o teto sem dar na cara e despejar recursos no Nordeste, nos desempregados, nas faixas de menos escolaridade e renda, nas pequenas e médias empresas. A atração de investimentos privados é uma das chaves nesse processo. O corte de gastos públicos é outra.

A inteligência disso tudo é ficar imune a críticas. Quem pode ir contra o auxílio a pessoas, empresas, empregos? A oposição não tem como atacar. Nem o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que é crítico de Bolsonaro, mas aliado da política liberal de Guedes. E não pode condenar investimentos justos e neste momento absolutamente essenciais.

Com isso, Guedes promete a mágica de manter o teto, mas soltando a grana, e ganha a guerra interna no governo. Lança um pacote de renda e obras nesta semana, com um anúncio de grande repercussão política na terça-feira: o Renda Brasil, confirmando que, também em política, nada se cria, tudo se transforma. Fernando Henrique lançou o Bolsa Escola, Lula atualizou para Bolsa Família e Bolsonaro rebatiza de Renda Brasil. Tem sido tiro e queda para reeleições.

Há uma avalanche de anúncios isolados que se somam: auxílio emergencial para informais e desempregados até dezembro, mais dois meses de redução de jornada e de renda para beneficiar empresas e trabalhadores da iniciativa privada, o pacote de R$ 60 bilhões para Estados e municípios durante a pandemia, o veto de Bolsonaro, devidamente mantido pela Câmara, ao aumento de salário do funcionalismo público em tempos de guerra contra o vírus. Tudo isso enquanto a vacina salvadora da Pátria não vem.

Jair Bolsonaro, portanto, está no seu melhor momento, pronto para colher manchetes positivas. Fechou a boca – em boca fechada não entra mosca –, já foi a cinco dos nove Estados do Nordeste e reabasteceu o Posto Ipiranga, mas dando gás à ala gastadora do governo. Na sexta-feira, foi ao Rio Grande do Norte com o gastador-mor, o potiguar Rogério Marinho.

O Nordeste é estratégico para Bolsonaro porque tem 27% do eleitorado do País e foi a única região onde perdeu em 2018. Todos os Estados são governados pelo PT, seus aliados e apêndices. Para combater o PT ali, as armas do próprio PT: distribuição de bolsas e vales na veia. Com excessiva dependência do Estado, a base nordestina sustentou a Arena e o PDS do regime militar, migrou para Sarney, Collor e FHC, um atrás do outro, e concentrou-se no PT. É a vez de Bolsonaro?

Se tudo parece ir tão bem, não custa lembrar que são mais de 114 mil mortos de covid, com desdém do presidente e sem coordenação federal; Amazônia, cerrado, Ibama, ICMBio e Ministério de Meio Ambiente estão em chamas; líderes e aldeias indígenas estão ameaçados; a Cultura é uma vergonha; a Educação não existe; o Centrão está com tudo e está prosa.

Mais: o Ministério da Justiça faz dossiê contra policiais e professores, as Forças Armadas atraem holofotes na hora errada, da forma errada, pelas causas erradas e a reeleição de Trump nos EUA balança. Logo, Bolsonaro melhorou sua posição, mas não está no paraíso. E tem aqueles probleminhas: fantasmas, rachadinhas, lojas de chocolate, milicianos, nuvens de dinheiro vivo. Não é só no Nordeste que Bolsonaro replica a “velha política”.


Alon Feuerwerker: E depois de dezembro?

Há uma explicação fácil para a resiliência de Jair Bolsonaro: ele estaria sobrevivendo às más notícias porque a boa vontade do povão vem sendo comprada por meio do auxílio emergencial. Diz o ditado que para toda questão complexa há sempre pelo menos uma explicação simples, e errada. Parece ser o caso aqui.

A aprovação a Bolsonaro é sim maior entre os beneficiários do auxílio, mas isso não explica por que o presidente resiste em torno de um terço de bom e ótimo e uns 40% de aprovação. Talvez seja mais útil inverter a pergunta: por que exatamente o eleitor de Bolsonaro deveria ter desistido dele após um ano e meio de governo?

Sim, porque a fatia dos que o consideram ótimo ou bom corresponde grosso modo ao eleitorado que votou no presidente no primeiro turno, e o percentual de “aprova” cobre o apoio no segundo turno. Houve alguma troca, de alguns "ricos" por pobres, de alguns mais escolarizados por outros menos, mas nenhum terremoto político-eleitoral.

Verdade que um pedaço se agastou na demissão de Sérgio Moro. Mas as pesquisas, todas elas, são cristalinas: o sofrimento político de Bolsonaro com a cisão morista não esvaziou a base social de apoio ao presidente da República. A principal dificuldade de um eventual candidato Moro não estaria no segundo turno, mas no primeiro.

O bolsonarismo é hoje um exército de ocupação desde o centro até os confins da direita. Mas ainda faltam dois anos e tanto para a eleição, e tem água para correr sob a ponte. O desafio mais imediato do governo é encontrar um jeito de pousar o avião do auxílio emergencial de um jeito suave. O contrário provavelmente terá, aí sim, efeito negativo, e não apenas no universo de quem hoje recebe o dinheiro.

A explicação simples, e errada, diz que o governo comprou a simpatia do eleitor por 600 reais ao mês. Talvez a explicação certa seja mais sofisticada. O auxílio ajudou a evitar um colapso econômico e social com repercussões muito além da população que recebe o benefício. Pois a economia continuou rodando e a recuperação parece mais rápida que o esperado.

O desafio do governo é ir retirando o auxílio sincronizadamente com a retomada da atividade e, principalmente, do emprego. Este, aliás, já vinha capengando mesmo antes da Covid-19. Como o governo vai fazer, só ele sabe, se é que sabe. Mas é uma operação estratégica, a não ser que o Planalto queira repetir as experiências de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.

Ambos surfaram em planos econômicos que melhoraram o poder aquisitivo da massa, e foram esticados para influir em eleições. Fizeram a colheita eleitoral, mas precisaram dar um choque de realidade na sequência. A popularidade deles foi ao buraco e só resistiram na cadeira por terem amplíssima base política e simpatia irrestrita no establishment. Coisas que Jair Bolsonaro não tem.

E talvez o mais importante: eram tempos em que ou não tinha internet (Sarney) ou ela era tão incipiente que nem fazia cosquinha nos políticos e nos governos (FHC). Definitivamente, não é o caso agora.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado originalmente na revista Veja 2.701, de 26 de agosto de 2020


Maria Cristina Fernandes: Auxílios contaminam disputa municipal

Prefeitos e vereadores aprovam versões semelhantes à ajuda federal e podem fazer desta eleição a mais favorável aos detentores de mandato desde a redemocratização

O bônus que o auxílio emergencial trouxe para a popularidade do presidente da República inspirou prefeitos e vereadores que disputarão as eleições de novembro a criar programas parecidos ou incrementar aqueles já existentes nos municípios. A implantação do benefício é apenas mais um de conjunto de fatores que pode fazer desta eleição a disputa mais favorável, desde a redemocratização, para aqueles que já detêm mandato no Executivo ou Legislativo.

Entre os municípios que adotaram a medida contam-se tanto aqueles que criaram o benefício por lei aprovada nas Câmaras de Vereadores com duração prevista para a pandemia, como Altamira (PA), Niterói (RJ), Serra (ES) e São Cristóvão (SE), quanto outros que aumentaram a base de beneficiários de programas já existentes, como Campinas (SP). Contam-se também aqueles com benefícios destinados a categorias profissionais específicas, como em São Paulo (SP) e Campina Grande (PB).

A criação do benefício, porém, está longe de ser pacífica nos municípios. Em Serra, por exemplo, município da Região Metropolitana de Vitória, cuja população de mais de meio milhão de habitantes supera a da capital capixaba, colocou prefeitura e Câmara em lados opostos.

Os vereadores aprovaram o benefício municipal de R$ 500 por três meses para trabalhadores informais com renda de até três salários mínimos, com previsão para atingir 42 mil famílias. O prefeito Audifax Barcelos (Rede), que ruma para concluir seu segundo mandato, barrou e os vereadores derrubaram o veto.

A prefeitura alegou que a Câmara não pode criar despesas - esta onerará os cofres municipais em R$ 63 milhões - e os vereadores rebateram com o argumento de que a emenda constitucional que estabeleceu o estado de calamidade pública no país abriga sua vigência.

O benefício causa conflitos até mesmo em municípios em que prefeitos e vereadores disputam a atenção dos eleitores, como Altamira. Domingos Juvenil (MDB) é candidato à reeleição na cidade que fica a 816 quilômetros de Belém, tem 115 mil habitantes e apenas nove leitos de UTI. Enviou para a Câmara projeto que contava, para sua viabilidade, com recursos das emendas impositivas dos vereadores para somar R$ 2 milhões. Previa-se a destinação de R$ 900, em três parcelas, para o pagamento a cinco mil pessoas.

Definiram-se como elegíveis para o recebimento feirantes, carroceiros, catadores, ambulantes, taxistas e mototaxistas, motoristas de aplicativos e pequenos produtores rurais. No decreto que regulamentou a distribuição do benefício, porém, a prefeitura determinou que apenas aqueles que não tivessem sido agraciados com o auxílio emergencial federal poderiam receber o benefício municipal

A regulamentação gerou revolta entre moradores e troca de acusações entre vereadores e prefeito. Como o benefício foi regulamentado apenas em meados de julho, a grande parte dos elegíveis tinha a expectativa de que o programa pudesse esticar o período em que receberiam ajuda, iniciado em abril com a primeira parcela do programa federal. Reportagem da TV Vale do Xingu, afiliada do SBT, deu conta de que se não for possível acumular, apenas 20 mototaxistas receberão o auxílio municipal.

Dois municípios que aprovaram o benefício para catadores de materiais recicláveis, São Paulo e Campina Grande adotaram critérios distintos. No mesmo valor de R$ 600 e pela mesma duração de três meses, o benefício poderá ser acumulado com o auxílio federal na capital paulista, mas não na cidade paraibana.

Em grande parte dos municípios, os projetos foram aprovados em julho, com validade até o período que antecede as eleições. Em Niterói, porém, tramitação e aprovação do benefício foram concomitantes às do auxílio federal, com a conclusão de ambos no fim de março.

Além do benefício de R$ 500 para famílias de baixa renda ao longo de três meses, ao custo de R$ 54 milhões, a Prefeitura de Niterói também enviou para a Câmara um crédito especial para pequenas empresas e cooperativas, de até R$ 250 mil, além de profissionais liberais, de até R$ 25 mil.

O programa, com custo de R$ 35 milhões para os cofres municipais, cobrirá os juros dos empréstimos realizados durante a pandemia. O terceiro projeto enviado e aprovado pela Câmara Municipal foi o financiamento do salário de funcionários para empresas que se comprometeram a não demitir. Os programas concorrem com o do governo federal no escopo e na vigência. O prefeito, Rodrigo Neves (PDT), está no segundo mandato.

As entidades que agregam gestores municipais, como a Frente Nacional de Prefeitos, não têm levantamentos sobre o número de cidades que adotaram programas do gênero. Seu presidente, Jonas Donizette (PSB), prefeito de Campinas, diz que grande parte dos municípios adotou alguma ação de complementariedade de renda, ainda que a maior parte o tenha feito de maneira mais focalizada que o governo federal.

Em Campinas, por exemplo, cidade do pioneiro Bolsa Escola, programa anterior ao Bolsa Família, a prefeitura ampliou a base de beneficiários de um auxílio alimentação (R$ 94) de seis mil para 26 mil pessoas e facultou seu uso também para a compra de produtos de higiene.

São Cristóvão, na Região Metropolitana de Aracaju, também optou por um programa focalizado. O projeto aprovado pela Câmara Municipal em maio contemplou servidores que tiveram seus contratos suspensos na pandemia, como professores, motoristas e merendeiros. A prefeitura se comprometeu a pagar 30% do salário base desses profissionais por três meses e recontratá-los com a volta das atividades.

A adoção de programas de transferência de renda por prefeituras alinhadas aos partidos da base do presidente Jair Bolsonaro foi facilitada pelo favorecimento nos repasses. Como mostrou “O Globo” (17/8), a média de verba por habitante liberada para prefeitos de centro ou direita até julho foi 56% maior do que aquela enviada a municípios comandados por legendas de oposição.

O pagamento desses benefícios, ainda que muito distintos em valor e amplitude, complementará uma gama de outros incentivos para a vantagem do detentor de mandato. Fica mais difícil distinguir a distribuição de cesta básica para famílias afetadas para a pandemia daquela destinada à arregimentação do voto. A pandemia dificulta, por exemplo, a campanha de quem pretende se fazer conhecido porque inibe reuniões e o corpo a corpo tradicional das eleições municipais. Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Lara Mesquita diz que a imprevisibilidade da pandemia sobre o resultado das eleições é comparável àquela que sobreveio à facada sofrida pelo presidente Jair Bolsonaro na disputa presidencial.

À força redobrada do situacionismo, num período em que a máquina pública ganhou peso no giro da economia, somem-se as dificuldades da campanha virtual para aqueles que disputam pela primeira vez. Por mais que a internet barateie a divulgação das campanhas, muitos segmentos de mais baixa renda ainda têm limitação de acesso.

São pessoas que não conseguem baixar o aplicativo da Caixa Econômica Federal para fazer o cadastro do auxílio emergencial ou para que os filhos acompanhem aulas A distância, o que dirá para seguir campanhas eleitorais, diz Lara. Além disso, as novas normas eleitorais também restringiram o alcance tanto do WhatsApp quanto do Facebook nas campanhas.

Essas dificuldades podem vir a colocar em xeque a previsão, feita por muitos analistas, de que a campanha de 2020 seria recordista em número de candidatos. A previsão se baseia nas mudanças já aprovadas para a eleição de 2022, o fim das coligações nas eleições proporcionais e a cláusula de desempenho. Ambas as mudanças pairam como uma guilhotina não apenas sobre a existência de pequenos partidos mas também sobre os planos de expansão das legendas médias.

Ex-deputado federal, articulador, nos anos 1980 da Frente Liberal que elegeu Tancredo Neves e criou o PFL, além de fundador do PSD, Saulo Queiroz conhece como poucos as armadilhas do mercado eleitoral. E diz que os partidos terão que fortalecer seus quadros municipais porque atingir o coeficiente eleitoral numa disputa de uma eleição sem coligações, como a de 2022, vai ser muito mais difícil.

A disposição para disputar mesmo com chance nula de eleição é tarefa de militantes locais dos partidos. É a formação dessa militância que está em jogo nessas eleições. Vem daí a expectativa de que aumente o número de candidaturas. A Proposta de Emenda Constitucional que adiou as eleições municipais para novembro, estabeleceu 26 de setembro como data limite do registro de candidatos na Justiça Eleitoral.

Incentivos, portanto, para uma campanha com número recorde de candidatos não faltam. Só que ninguém contava com a pandemia. O espraiamento da doença, especialmente em comunidades mais pobres, fez surgir novas lideranças que atuam na mobilização de moradores para a proteção de suas famílias, na arregimentação de doações e na pressão sobre o poder público.

Por mais que o coronavírus tenha feito surgir uma nova geração de militantes locais empenhados na defesa de suas comunidades, o desestímulo pode ser ainda maior - a começar do reforço inédito, para aqueles que são candidatos à reeleição, dos pacotes de transferência de renda.

É uma sinuca tanto para os vereadores, que aprovaram a maioria desses pacotes, mas que não recebem crédito por eles, como também para aqueles que querem entrar no jogo e não são identificados como aptos a batalhar pela manutenção, cada vez mais em risco, dos benefícios.


Sergio Fausto: A aposta de Bolsonaro

Para reeleição, presidente conecta-se aos pobres pela via do conservadorismo de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia

Seis meses e 100 mil mortos depois do início da pandemia, Bolsonaro segue vivo e competitivo para a disputa presidencial de 2022. Continua a manter entre 30% e 35% de apoio nas pesquisas de opinião. Mas sua base social está se deslocando: ao longo dos últimos meses, o presidente perdeu terreno nas faixas de renda e educação mais altas e ganhou espaço em setores mais pobres da população, graças ao aumento da transferência direta de renda para esses setores.

Também sua base política se alterou, com redução do peso relativo dos fiéis de primeira hora e ampliação da presença de parlamentares ligados à política tradicional. São movimentos incipientes, que mal comparando lembram os que Lula levou a cabo com maestria para sair do córner político na crise do mensalão e reeleger-se com folga dois anos depois. Eles coincidem com um recuo na escalada de confrontação contra o STF, governadores e prefeitos em que se engajou Bolsonaro a partir do início da pandemia.

Estaria em curso um processo de ajustamento do atual governo a padrões mais normais, no sentido de frequentes, na história brasileira? Não creio.

Longe de ser uma decisão estratégica, o recuo na escalada de confrontação é tático e circunstancial, provocado pelo medo decorrente de investigações que apontam para o núcleo de articulação da rede bolsonarista, no qual figuram com destaque os seus filhos. A interação entre os processos investigatórios e a dinâmica política é um jogo de vários lances, apenas iniciado. Um jogo no qual Bolsonaro jogará pesado, pois sabe o que está em jogo.

Tampouco o deslocamento da base social de apoio ao presidente é fruto de uma decisão estratégica. Foi do Congresso a proposta de triplicar o valor do programa de auxílio emergencial proposto pelo Executivo, contra a vontade do Ministério da Economia. Bolsonaro intuiu a oportunidade e agarrou-se a ela. Sem o bote salva-vidas do auxílio emergencial, sua popularidade se situaria hoje abaixo da linha d’água dos “mágicos” 30%.

Em que pese ter sido ampliada, a base parlamentar de Bolsonaro é volátil. Quando o bote salva-vidas do auxílio emergência for desinflado, pela impossibilidade fiscal de manter a transferência de renda nos níveis atuais, os cálculos políticos podem ser refeitos. Será conflituoso, dentro e fora do governo, o embate em torno do nível e da composição do gasto “sustentável” ao fim do estado de calamidade pública.

Sabe-se que mediar conflitos não é uma especialidade do presidente. Nem dentro do sistema político, nem na sociedade, muito menos quando se somarem essas duas fontes de pressão, como é previsível quando passarmos da emergência econômica e sanitária à fase crônica da crise e da pandemia, com mais pobreza e mais desemprego do que até aqui se viu e sem estado de calamidade pública para poder gastar sem limite.

Antecipando dificuldades políticas, Bolsonaro se prepara. O recado dado pelo presidente a seus ministros na famigerada reunião de 22 de abril - “o meu sistema pessoal de informação funciona, mas o oficial desinforma” - foi entendido. Decreto do fim de julho oficializou a reestruturação da Agência Brasileira de Inteligência para dotá-la das competências destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”.

Há razões para ver nas mudanças na Abin a preparação do governo para possíveis cenários de aguçamento do conflito social e político. O dossiê preparado pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça sobre 579 pessoas, a maioria servidores públicos, conhecidos por suas posições contrárias ao atual governo, é um preocupante sinal antecedente.

Em paralelo, assiste-se à crescente militarização do governo. Com a nomeação do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde, a presença de militares no ministério alcançou a marca dos dois dígitos. Segundo levantamento do Tribunal de Contas, o número de integrantes das Forças Armadas com cargos no governo mais do que dobrou desde 2018.

Em que pese o comportamento exemplar dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, tornou-se difícil separar com clareza o governo das Forças Armadas. O presidente tudo faz para identificar a sua administração com os militares. De um lado, para se aproveitar do prestígio das Forças Armadas. De outro, para manipular o medo de uma intervenção militar na vida política.

Em meio a uma pandemia que no Brasil não parece ter fim e sem recuperação econômica importante à vista, temos um governo sem projeto, chefiado por um presidente que se divide entre dois objetivos: proteger a si e aos seus e viabilizar sua reeleição. A chamada “agenda Guedes” feneceu antes de ter florido. A sétima cavalaria dos investimentos estrangeiros não dá sinais de que virá salvar o país da recessão ou do baixo crescimento.

Para navegar contra vento e maré, agarrado ao mastro oscilante do “centrão” e ao que sobrar do bote salva-vidas do auxílio emergencial, o capitão lança ao mar as bandeiras da luta anticorrupção e da antipolítica (já bem esfarrapadas), além da “agenda Guedes”. A identificação com os militares terá custos crescentes para a instituição das Forças Armadas e rendimentos decrescentes para o presidente, pois aquelas não escaparão do desgaste de se misturar ao governo.

Contudo, Bolsonaro conta ainda com trunfos, além da vantagem de ser o incumbente. Das três bandeiras que o elegeram, a “proteção dos valores da família” por ora continua firme em suas mãos. Se o liberalismo econômico com verniz acadêmico perde valor, um livre-mercadismo mais primitivo e rudimentar se apresenta como alternativa. Bolsonaro o tem cultivado nas críticas às restrições sanitárias, o que encontra apoio em uma sociedade na qual trabalhar em casa é privilégio de uma minoria e o respeito às regras coletivas em nome do bem comum está longe de ser generalizado.

O terceiro trunfo é a pobreza, que vem aumentando e aumentará ainda mais, ampliando a potência eleitoral do que um jornalista sagaz, Bernardo Mello Franco, apelidou de “Bolsa Capitão”. Seu maior trunfo, no entanto, é ter até aqui jogado sozinho, sem adversário político à altura.

Se ainda é cedo para fazer prognósticos certeiros para 2022, já se pode ver a aposta que Bolsonaro fará em busca da reeleição: conexão direta com as massas pobres e microempreendedores invisíveis pela via do conservadorismo moral de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia.

Em meio a muita incerteza, uma coisa me parece certa: Bolsonaro terá dificuldades para unificar o campo conservador, pelo enfraquecimento do PT, de um lado, e pelo surgimento de alternativas no campo da centro-direita, de outro. Ao degolar Luiz Henrique Mandetta e peitar Sergio Moro, o capitão pode ter cometido seu maior erro político.

*Sergio Fausto é cientista político


Fernando Gabeira: A escolha dos pobres

Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho a ajuda emergencial

A divulgação da pesquisa com aumento da popularidade de Bolsonaro não deveria surpreender tanto. A negação da pandemia de coronavírus, para muitos de nós, parecia um fator de desgaste. Mas nem isso colou, pois 47% dos entrevistados consideram que Bolsonaro não tem culpa pelo fracasso nacional diante da pandemia.

O ponto elementar do aumento do prestígio de Bolsonaro é a ajuda emergencial. No início queria que fosse de R$ 200, mas as negociações com o Congresso acabaram elevando-a para R$ 600. Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho essa extraordinária transferência de renda, que salvou muita gente e em alguns pontos do Nordeste melhorou as condições de vida.

Isso tudo, num momento em que discutimos a democracia e seus limites, deveria ser visto com bastante calma. Em primeiro lugar, é comum em todos os estudos da democracia apontar um apoio maior ao governo em regiões que dependem da assistência oficial. Tem sido assim no Nordeste. De modo geral, é a última região onde os governos perdem força.

Os anos em que a esquerda esteve no poder deram-lhe a sensação de que estava selada entre ela e a população mais pobre uma aliança histórica irreversível. Há muita ilusão nessa ideia. Alguns críticos da esquerda afirmam que ela errou por considerar apenas o aspecto fisiológico da aliança, sem avançar na educação política. Pessoalmente, acho que errou apenas ao enfatizar as melhorias no aumento de um tipo de consumo, deixando de lado alguns avanços que seriam vitais para os pobres, como, por exemplo, o saneamento básico.

Uma questão que se coloca para a democracia é até que ponto as limitações econômicas não transformam em fantasia a ideia de que as pessoas escolhem livremente seu caminho. Ou, em outras palavras, enquanto houver pessoas abaixo da linha de pobreza não há escolha para elas senão tentar escapar dela.

As pesquisas fora do Brasil que mostram a decadência da democracia entre gente da classe média e jovens são eloquentes nesse sentido. Em muitos lugares há uma tendência crescente a aceitar um governo autoritário e mesmo uma ditadura militar. Não é a extrema pobreza que produz esse sentimento. Em muitos casos a decadência da adesão democrática se dá apenas porque foi interrompido o processo de melhoria de vida. Em outros casos, os entrevistados dizem que estão bem de vida, mas abandonam a crença na democracia porque uma cidade vizinha ficou pobre ou porque um bairro próximo apresenta altos níveis de violência.

Em síntese, se setores da classe média orientam suas posições por um pressentimento quanto ao futuro, como questionar que pessoas em extrema dificuldade canalizem seu apoio político diante de algo mais essencial, que é a sobrevivência física?

Certamente outras políticas públicas têm peso na vida dos mais pobres. A de saúde é uma delas. Acontece que neste período de pandemia, apesar da corrupção, houve aumento de vagas em hospitais e uma sensação de que a maioria dos pacientes foi atendida. Alguns erros, como a não hospitalização mais precoce, não chegaram a ser sentidos com clareza. Muito menos a incidência maior de mortes em regiões mais pobres foi politizada, uma vez que a vimos com a habitual resignação diante de problemas estruturais.

Outra política que influencia a vida das pessoas mais pobres é a de educação. No período da pandemia o setor ficou congelado. Mesmo a educação privada sofreu o impacto e conseguiu se sair melhor com o trabalho a distância. Mas também essa diferença foi atenuada pelo fato de que nos acostumamos com o desnível estrutural entre o ensino particular e o público.

Um dos pontos que não foram articulados na análise da pesquisa é até que ponto a política assistencial de Bolsonaro será sustentável. Os dados que complementam a análise mostram que há uma previsão de queda de 11% na atividade econômica do segundo semestre. O País poderá com isso entrar em recessão.

Em que bases o governo consegue ser popular numa recessão? Precisaria de muito mais estudo para formular a saída. O único exemplo de governo que se sustenta apesar do avanço da pobreza é o da Venezuela. Ali se combinam dois fatores importantes. Uma parte da população se sente contemplada. E as Forças Armadas, sócias do chavismo e das benesses do governo, são de uma fidelidade até o momento inabalável.

A decisão de destinar mais dinheiro à Defesa do que à Educação e à Saúde revela que o caminho de se associar às Forcas Armadas Bolsonaro adotou desde o início. O que há de novidade é a ajuda assistencial, que ele sempre considerou uma forma de a esquerda comprar votos, passar a ser a principal esperança de sua sobrevivência política.

A esquerda tem dificuldade de aceitar que as massas apoiem a direita por causa da ajuda assistencial. E a direita sempre atacou o Bolsa Família como se fosse algo que entorpecia não só a escolha política, como o desejo de trabalhar e empreender.

Parece que, em certos casos, pouco importa ser de esquerda ou de direita, a história já está previamente escrita.

*Jornalista


Míriam Leitão: O insustentável peso do auxílio

A Petrobras valia ontem a preço de mercado R$ 300 bilhões. O auxílio emergencial custa o dobro disso em um ano. Se fosse mantido por doze meses, seriam R$ 600 bilhões. Vinte vezes mais do que o Bolsa Família, que no mesmo período consome R$ 30 bilhões. O auxílio que tem tal peso nas contas é o que encanta o presidente Bolsonaro. O ministro Paulo Guedes oferece um prêmio de consolação: o Renda Brasil. Ele será insuficiente para manter a sensação dada a quem recebeu o auxílio nesta pandemia.

Esse é o centro de um dos dilemas de Paulo Guedes. O auxílio reduziu o peso da recessão e aumentou a popularidade do presidente. Contudo, tem um custo impagável. O outro dilema são os investimentos pedidos pelos militares e as obras defendidas pelos ministros setoriais. Separadas podem ter boas justificativas, todas juntas serão a pá de cal no programa que o ministro vendeu ao mercado como aquele que seria aplicado durante o governo Bolsonaro. Resta pouca coisa do programa original. Não foi feita a privatização, a reforma administrativa mofa na gaveta presidencial, a capitalização foi derrubada pelo Congresso, a abertura comercial virou um acordo com a União Europeia de incerta homologação. Se descarrilhar o gasto, nada restará.

Agosto é mês em que todo ministro da economia fica sob pressão porque fecha-se o orçamento e cada área quer evitar cortes. Desta vez é pior porque a situação é muito mais complicada. A pandemia elevou espantosamente os desafios fiscais do país. Luta-se pelo gasto imediato e pela despesa do ano que vem.

Renda Brasil: Mais de 20 milhões de famílias com benefícios de R$ 300
Há uma velha lei da selva brasiliense. Toda vez que o presidente tem que dizer que alguém está prestigiado é porque este alguém está sob ataque. Quem está forte não precisa ser fortalecido. No caso de Paulo Guedes, ele sentiu necessidade de reforçar a si mesmo e disse que Bolsonaro tem confiança nele e ele tem confiança no presidente.

O maior ataque ao ministro vem do próprio presidente. Guedes pode vencer as quedas de braço parciais contra os ministros Rogério Marinho, Tarcísio de Freitas ou até o general Braga Netto. Mas não será possível vencer um presidente em campanha eleitoral, enamorado de si mesmo, e com ouvidos abertos aos que prometem que todo aquele eleitorado será dele se ele continuar gastando, dando auxílios e inaugurando obras, mesmo as que não foram feitas por ele.

Bolsonaro não sabe governar. Sua agenda se resume à defesa dos clubes de tiro, onde seus filhos gostam de brincar, ao desregramento do trânsito, às vantagens corporativas de militares e policiais. Presidentes assim em épocas difíceis costumam criar falsos adversários, mentir sobre a realidade e entrar em campanha. Bolsonaro usou as três técnicas e com elas tenta encobrir sua incapacidade administrativa.

Entre Bolsonaro e seu objetivo há o tempo e os limites dos cofres públicos. Mesmo que o ministro da Economia aceite ceder, ele sabe que não pode ser por muito tempo. O Renda Brasil não terá o mesmo valor, nem a mesma amplitude do auxílio. Vai decepcionar muita gente. Para ter recursos precisará acabar com benefícios que tem defensores. O abono salarial, recebido por trabalhadores que ganham até dois pisos salariais, o seguro defeso, dado a pescadores em época de desova dos peixes, e a farmácia popular, que reduz o preço dos remédios para determinada faixa da população. Para acabar com esses programas será preciso travar batalhas difíceis.

Paulo Guedes é um defensor dos cofres públicos incomum. Ele cede mais facilmente aos argumentos do presidente. Bolsonaro pode dizer a ele que em 2023, depois de se reeleger, ele então privatizará, diminuirá o tamanho do Estado, abrirá a economia, mas que agora não dá porque precisa lutar contra os inimigos da esquerda que atacam seu governo. O ministro é inteligente, mas cairá nesta conversa facilmente.

Entretanto, chegará o dia em que o mercado verá que o rei está nu. Bastará olhar os números. A despesa primária este ano está indo para R$ 1,98 trilhão, o que é 27,6% do PIB. No ano que vem, terá que ser reduzida para 19,6% do PIB, em 2022, para 19,2%. Isso acontecerá por força do teto de gastos. Parte do governo quer que essa queda seja mais lenta. Mas a dívida está indo para 98% do PIB. E os juros futuros já ligaram o pisca-alerta.


Bruno Boghossian: Guedes ganha sua sétima vida, mas se torna o ministro mais frágil do governo

Com garantias de permanência do auxiliar, Bolsonaro força recuos e mantém ruídos na relação

Ainda na eleição, Jair Bolsonaro tentou abafar os primeiros rumores de que Paulo Guedes deixaria sua equipe. O economista era alvo dentro do comitê de campanha por sugerir a criação de um imposto nos moldes da velha CPMF. “O Paulo segue firme”, afiançou o candidato.

Apesar do aval público, o presidente manteve o conselheiro sob risco permanente. Bolsonaro precisou defender o auxiliar outras seis vezes. Negou sua demissão e simulou apoio a sua agenda. Em quase todos os casos, porém, forçou o ministro a recuar e preservou os ruídos da relação.

Quando o fantasma do novo imposto incomodou a campanha de Bolsonaro, após o primeiro turno, o candidato quis proteger o economista. Disse que a ideia da CPMF era “um ato falho” e que não criaria novos tributos. Guedes ainda insiste, mas o chefe nunca abraçou o plano.

Na largada do mandato, os atritos da reforma administrativa levaram o presidente a repetir o script. Em outubro, Bolsonaro defendeu a pauta do ministro e disse que havia “100%” de confiança entre os dois.

Dois meses depois, disse estar “muito feliz com esse casamento hétero com o Paulo Guedes”, mas mandou abrandar a proposta que mudaria as regras do funcionalismo. “A equipe econômica entendeu”, comunicou. O texto foi para a gaveta.

No Carnaval seguinte, Guedes voltou a ser um problema. O ministro chamou servidores de parasitas e disse que, se o dólar estivesse mais barato, as empregadas domésticas iriam à Disney. “Ele vai ficar conosco até o último dia”, reagiu o presidente.

Bolsonaro refez o teatro em abril, na disputa entre o economista e os ministros que pediam mais dinheiro para obras. “O homem que decide a economia no Brasil é um só”, sentenciou. O presidente, logo depois, se juntou ao coro dos gastadores.

Sob pressão para abrir o cofre, Guedes ganhou sua sétima vida na segunda (17). Desta vez, Bolsonaro disse que a saída do auxiliar “nunca foi cogitada”. Com tantas garantias de permanência, ele se tornou o ministro mais frágil da Esplanada.


Pedro Fernando Nery: O Brasil do auxílio

A população precisa de políticas de emprego e benefícios robustos. Não de preconceito

Os últimos dias foram de discussões acaloradas sobre o auxílio emergencial, à medida que em plena pandemia ele alavancou a popularidade do presidente em locais em que ele não foi bem votado em 2018. De fato, o impacto dos R$ 600 no Nordeste e no Norte é mesmo gigantesco. A concentração do auxílio em algumas partes do Brasil é corolário da concentração do emprego com carteira assinada e gastos previdenciários em outras.

Menos de 20% dos catarinenses receberam a nova renda básica, mas mais de 40% dos roraimenses a receberam. Os valores pagos também tenderam a ser maiores nas regiões mais excluídas, que concentram crianças e, por isso, mais mães-solo (que receberam R$ 1.200).

Comparemos os municípios de Agrolândia e Agricolândia. Parecem parecidos? Na verdade, estão em regiões muito distintas: o primeiro pertence a um dos nossos Estados mais ricos, Santa Catarina, o outro a um dos nossos Estados mais pobres, o Piauí. Para comparar os municípios que têm números de habitantes diferentes, vamos dividir os valores pagos da renda básica emergencial pela população. Em Agrolândia, a mais próspera, o valor recebido por habitante foi três vezes menor do que na prima Agricolândia. Uma desproporção ainda maior se observa entre Água Doce, também em Santa Catarina, e em Água Doce do Maranhão. A transferência por água-docense foi quatro vezes maior no município maranhense.

Nessas cidades em que os trabalhadores não conseguem se inserir no mercado de trabalho nos moldes exigidos pela CLT e Previdência tradicionais, as transferências do INSS são menos relevantes – já que ele gasta mais onde há mais emprego e salários maiores. Por isso, garantir uma Previdência menos desequilibrada e focar recursos na assistência social é tão importante. Chegamos então à minha comparação preferida – e prometo que é a última.

O Bom Jesus gaúcho pertence ao terço de municípios mais ricos do Brasil. Já o Bom Jesus potiguar está entre os 15% mais pobres do País. Na cidade do Sul, a Previdência despende quase R$ 50 milhões por ano. Na cidade do Nordeste, despende cerca de R$ 10 milhões, ou cinco vezes menos. Lembre-se: eles têm a mesma população. E no auxílio emergencial? A situação se inverte. Bom Jesus do Rio Grande Norte recebeu 50% mais do que Bom Jesus do Rio Grande do Sul.

Essa concentração regional da Previdência – e em decorrência da nossa rede de proteção social tradicional – existe porque no Centro-Sul há mais idosos e também mercados de trabalho mais fortes, com mais emprego formal. Já o auxílio emergencial tem como pré-requisito ter renda baixa (o que exclui boa parte das famílias com aposentados e pensionistas) e não ter emprego formal (condição para acessar a Previdência urbana).

Esse grupo é excluído do orçamento da Seguridade Social no Brasil: na comparação com Estados de bem-estar social de democracias desenvolvidas, gastamos muitíssimo menos com benefícios para as famílias com crianças ou políticas de emprego.

Entre outros, um influencer comentou os dados do DataFolha: “Conclusão: o brasileiro é corrupto”. A pobreza extrema no menor nível já registrado. A desigualdade de renda idem. Dezenas de milhões poupados de cair na pobreza, e alguns outros milhões levantados temporariamente dela. O comércio com dados melhores que o da China. O efeito dos R$ 600 na vida dos brasileiros mais vulneráveis é real.

Os desdobramentos do auxílio na popularidade do presidente são um choque de Brasil para tantos que bradavam que os mais pobres eram os prejudicados pela reforma da Previdência urbana ou pela reforma trabalhista. Ao contrário, quem não tem emprego formal pode se beneficiar de mudanças inclusivas nos gastos do governo e na legislação do trabalho.

Mesmo nos últimos meses, a única proposta relevante para aumentar os números insignificantes de emprego formal nos lugares mais pobres do País é a tal carteira de trabalho verde e amarela de Paulo Guedes. A população que agora ficou menos invisível por conta do DataFolha precisa de políticas de emprego e de benefícios robustos voltados às famílias com crianças – não de mais preconceito.

*DOUTOR EM ECONOMIA