auxilio emergencial
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro tomou vacina contra o horror que promove no país
Base social do presidente mudou, mas é incerto que crise de 21 abale avaliação
Pelo menos desde o início da epidemia, a oposição a Jair Bolsonaro espera que a popularidade do capitão da extrema direita descambe para um nível crítico. Não aconteceu até agora.
O motivo da resistência bolsonariana seria o auxílio emergencial, argumenta-se com obviedade. Uma vez findo o benefício, a pobreza renovada e ampliada deve se voltar contra Bolsonaro, ainda mais porque sua base mudou desde o início do ano, sendo agora majoritariamente composta de pessoas de renda menor.
Pode até ser. Mas o argumento supõe que o auxílio emergencial faz com que muito brasileiro seja indiferente à selvageria, à negligência e à incompetência de Bolsonaro ou as tolere (aqueles 30% que o avaliam como “regular”). Se é verdade, temos problema mais profundo. Além do mais, o prestígio resistente mesmo depois de tanta atrocidade faz lembrar de Donald Trump e de sua votação imensa na eleição deste ano, fenômeno que escapa a explicações econômicas, sociais ou regionais rudimentares.
Além de aprovação, há identificação com o jeito e as causas de Bolsonaro, mostram sociólogas e antropólogas, coisa difícil de medir, no entanto; seu governo tem bem mais aprovação de homens do que de mulheres.
Popularidade, de resto, depende de haver alternativas, reais ou imaginárias. O prestígio de Dilma Rousseff, que andava pela casa de 60% em junho de 2013, caiu pela metade em duas semanas, quando os brasileiros descobriram que eram infelizes e não sabiam, na frase do cientista político André Singer. Mas não há liderança política alternativa, oposição ou um convite a imaginar vida diferente desta sob Bolsonaro e seu governo militar.
O prestígio de Bolsonaro jamais foi tão alto, segundo o Datafolha, 37% de “ótimo/bom”. Mas está mais ou menos onde sempre esteve. A média desde o início do mandato é de 33%. Bolsonaro teve 36% dos votos no primeiro turno de 2018.
Não se trata, porém, das mesmas classes de brasileiros. Da eleição até o fim de 2019, em torno de 30% daqueles que apoiavam Bolsonaro eram os mais pobres, que ganham até 2 salários mínimos. Passaram a 50% desde meados do ano. De modo menos marcado, a base bolsonariana passou a ter mais pessoas com ensino fundamental ou menos.
Foram abalados pela economia? A inflação da comida chegou agora aos 21% ao ano, inédito desde 2003. Aumentou o desemprego, um dado muito distorcido pelo ambiente de epidemia, porém. O auxílio emergencial caiu pela metade.
Por outro lado, a população com algum trabalho começou a aumentar desde agosto ou setembro, quando também houve alguma reabertura econômica; o comércio recuperou as perdas da epidemia.
Virado o ano, o auxílio será zerado, não haverá emprego para a dezena de milhões de desocupados deste 2020 e a comida cara pesará ainda mais. Mas, se Bolsonaro perder todos os pobres que agregou à sua base neste ano, sua popularidade ainda estará perto de 30%, tudo mais constante.
Os 180 mil mortos da epidemia não abalaram de modo decisivo a popularidade do capitão. A negligência com as vacinas pode ser fatal? E se Bolsonaro conseguir fazer um show mínimo de vacinação, o povo miúdo entenderá o problema? O povo soube que o auxílio emergencial foi obra do Congresso, não de Bolsonaro? O 30% de bolsonarismo raiz se importa com o estelionato eleitoral de o governo se entregar ao centrão, achincalhado em 2018? De Sergio Moro ter sido escorraçado (afora o lacerdismo de classe média alta e ricos minoritários)? De não haver governo além daquele tocado pela burocracia?
Hum.
Pedro Fernando Nery: Rejeição oculta
A alegria de ganhar é menor do que a tristeza de perder, mesmo sendo um valor igual
A teoria da perspectiva (prospect theory) é uma das contribuições do psicólogo israelense Daniel Kahneman que renderam a ele o Prêmio Nobel em Economia. Kahneman foi premiado por integrar a psicologia à ciência econômica no estudo de como formamos nossos juízos. A teoria da perspectiva trata de como reagimos a ganhos e perdas. Simplificadamente, descreve que a alegria de ganhar é menor do que a tristeza de perder, mesmo se tratando de um valor igual. Esta coluna é sobre o fim do auxílio emergencial.
Dezenas de milhões de brasileiros pobres tiveram em 2020 mais renda do que em 2019, apesar da crise. Isso decorreu de dois atributos do auxílio emergencial. Um é o valor bem maior do que o do Bolsa Família: foi de R$ 600 (R$ 1.200 para mães solo, mais comuns na demografia de Norte e Nordeste). O segundo atributo é a amplitude da linha de pobreza que deu acesso ao benefício, mais generosa do que os limites draconianos do Bolsa Família: fez com que muitos brasileiros pobres que não recebiam nenhuma transferência passassem a receber.
O auxílio emergencial acabará no dia 31 deste mês e terá transferido um montante de recursos superior a dez anos de Bolsa Família. Ele é considerado parte da explicação pela alta da popularidade do presidente Bolsonaro, enquanto a pandemia matava dezenas de milhares de brasileiros. Um crescimento de popularidade que aconteceu ainda com a queda do PIB e a saída do seu ministro mais popular.
O aumento da avaliação positiva total do presidente esconde a queda que teve em alguns estratos de renda e regiões do País que antes o apoiaram. Na pesquisa Ibope-CNI de setembro, a taxa de ótimo/bom em sua avaliação avançou cerca de 30% na comparação com mesmo período de 2019. No Nordeste, o crescimento da taxa foi de mais de 60%. A “troca” de apoiadores pareceu positiva.
No auge do auxílio, a pobreza caiu em todas as regiões do País em relação às taxas de 2019, mas a variação foi tímida, talvez uma oscilação, nas regiões que elegeram Bolsonaro. Foi no Nordeste e no Norte que os efeitos do auxílio foram mais sentidos, com taxas de pobreza despencando mais de 10 pontos porcentuais. Muitos desses brasileiros que saíram dessa linha de privação parecem ter mudado sua avaliação do presidente. Lembremos que Bolsonaro fez poucos votos em todos os Estados do Nordeste e no Pará e Amazonas.
O auxílio emergencial não entrará em 2021. Ainda que haja alguma prorrogação por algumas semanas, há um encontro marcado com o seu fim. Qualquer reforma do Bolsa Família ou criação de novo benefício envolverá valores muito mais modestos. Com o fim do estado de calamidade, voltam a valer restrições fiscais.
Voltemos a Kahneman. O que vai sobrar da avaliação positiva do governo entre os que recebiam o auxílio emergencial? Pela teoria da perspectiva, poderíamos especular que a perda de popularidade pode ser inclusive mais rápida e intensa do que o ganho que ocorreu. Ainda que recursos sejam direcionados para esse público, eles serão necessariamente bem menores e necessariamente desagradarão outro grupo.
O presidente já manifestou ao longo do ano compromissos com grupos que o apoiaram, no tocante ao financiamento de um novo benefício social. Fez compromisso com o teto (mercado), com o abono salarial (assalariados no Centro-Sul) e contra mudanças para a atual geração de servidores e de aposentados. Sem brigar com nenhum desses, vai gerar insatisfação na nova base galvanizada pelo auxílio. Brigando, perde apoio em outro lugar.
É plausível, portanto, o cenário em que Bolsonaro viva seus piores índices de aprovação em 2021, e que chegue em 2022 até como o presidente mais impopular a disputar uma reeleição na Nova República.
Nas últimas semanas, muito se discutiu sobre um Biden brasileiro. Para muitos, alguém capaz de reunir todas as forças que perderam em 2018. Para outros, alguém mais ao estilo “você não gosta de mim, mas a sua tia gosta” – capaz de conseguir votos à direita, entre quem digitou 17. Mas não será preciso um Biden brasileiro se não houver um Trump a bater. O presidente americano manteve ao longo do mandato o entusiasmo de muitos grupos que o elegeram, entregando promessas de campanha. Não parece ser o caso aqui, e diante do complicado labirinto da política econômica talvez só reste ao presidente resgatar a agenda de costumes e de encarceramento.
Economistas projetaram um elevado “desemprego oculto” neste ano. É uma taxa bem acima da estatística oficial de desemprego, pois inclui os milhões que perderam emprego, mas não passaram a procurar um. Em breve estarão mais visíveis. Podemos imaginar que algo parecido acontecerá com a rejeição ao presidente. O fim do auxílio pode evidenciar as sequelas de 2020 na avaliação dos eleitores e revelar o que o pagamento escondeu: sua rejeição oculta.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Bruno Boghossian: Bolsonaro ainda não conseguiu dimensionar buraco da economia em 2021
Sem auxílio emergencial, governo deposita uma confiança exagerada na recuperação do emprego
Jair Bolsonaro ainda não conseguiu dimensionar o choque que a economia do país deve sofrer na virada do ano. O governo já sabe que o fim do pagamento do auxílio emergencial será um problema, mas não tem ideia do que fazer com os milhões de brasileiros que ficarão com pouco ou nenhum dinheiro.
O presidente repete a ideia de que o socorro aos mais pobres não deve ser prorrogado. Na terça (1º), ele disse que “alguns querem perpetuar tais benefícios” e emendou: “Ninguém vive dessa forma. É o caminho certo para o insucesso”. Já se sabe que um novo programa social não cabe no Orçamento, mas faltou apontar a direção de uma outra estrada.
Bolsonaro falou sobre o auxílio durante um evento na fronteira com o Paraguai. O recado veio segundos depois que ele fez um aceno aos “humildes funcionários” da obra de uma ponte. O receituário para a economia saiu na forma de um clichê: “Nada dignifica mais o homem do que o trabalho. É o que nós precisamos”.
A doutrina bolsonarista costuma contrapor proteção social ao trabalho. No passado, o presidente dizia que o Bolsa Família era “um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dar a quem se acomoda”. Em maio, Paulo Guedes (Economia) torcia o nariz para a prorrogação do auxílio, porque “aí ninguém trabalha”. “O isolamento vai ser de oito anos, porque a vida está boa”, declarou.
Esticar o auxílio emergencial indefinidamente não é uma solução plausível, mas o governo parece depositar uma confiança exagerada na recuperação do mercado de trabalho. O número de pessoas procurando emprego já aumentou, e há poucos sinais de que a economia terá capacidade de absorver aqueles que ficarão desamparados daqui por diante.
Até agora, o governo não ofereceu um plano razoável para melhorar esse ambiente. Quando os brasileiros começaram a morrer de complicações provocadas pelo coronavírus, Bolsonaro lançou a infame declaração: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Na fila do desemprego, esse slogan também não vai colar.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro vai congelar aposentadoria para recriar auxílio emergencial?
Até para achar um dinheirinho para o 'renda básica' será necessário corte duro
Imaginem a seguinte manchete: “Bolsonaro quer congelar aposentadorias do INSS”. A seguir, viria outra, mais ou menos assim: “Governo propõe corte de salários de servidores do Brasil inteiro”.
Antes de discutir se tais ideias prestam ou o que significam, suponha-se o que Jair Bolsonaro vai achar disso, ainda mais se as notícias da baixa de sua popularidade em grandes capitais se confirmarem pelo resto do país.
Essas são algumas ideias em discussão para que se arrume algum dinheiro para o “Renda Brasil”, Bolsa Família encorpado, o nome que se dê, algo que substitua o auxílio emergencial. Além de todos os problemas fiscais, técnico-legais, de disputas no Congresso e de pressões dos donos do dinheiro, há o fator Bolsonaro. Olhando as pesquisas de popularidade de dezembro, vai tomar qual medida?
Vai haver dinheiro para atenuar a pobreza e a miséria que virão com o fim do auxílio emergencial e a persistência do desemprego? Lembrete: antes da epidemia, havia 92 milhões de pessoas ocupadas no país. Os dados recentes não são muito precisos (nem recentes), mas a população ocupada deve andar pela casa de 83 milhões ou 84 milhões. Vai haver emprego para 8 milhões de pessoas até janeiro? Não. Para as pessoas que chegaram ao mercado de trabalho neste ano? Não. A renda do trabalhador informal miudinho vai se recuperar com a epidemia ainda fervendo? Não.
O congelamento das aposentadorias valeria apenas para benefícios com valor maior do que um salário mínimo (Bolsonaro havia vetado o congelamento geral do valor de aposentadorias e outros benefícios do INSS). “Congelamento” significa que os benefícios não teriam reajuste nem pela inflação. Dos 35,8 milhões de benefícios pagos por mês, 11,7 milhões valem mais de um salário mínimo, cerca de um terço deles (que absorvem 53% da despesa, porém). Parece o suficiente para causar sururu político.
Reduzir jornada e cortar salário de servidor (não apenas os federais) é um plano do Ministério da Economia desde o final do ano passado e uma medida prevista pelas normas do “teto” de gastos, as quais precisam de regulamentação, no entanto. Bolsonaro tem vetado medidas que afetem os servidores atuais.
De novo, veio a conversa de cortar subsídios: isso não permite mais despesa (por causa do teto), a não ser que se trate de subsídios de crédito, em que Bolsonaro não deve mexer, pois daria problema com seus amigos e renderia pouco, de resto.
Ou Bolsonaro aceita os cortes de despesa para financiar algum (pequeno) “Renda Qualquer Coisa” ou Bolsa Família gordo, ou não terá nada. Nada a não ser que adote a gambiarra da extensão do auxílio emergencial, que dependeria da extensão do período de calamidade, o que Paulo Guedes disse não querer, exceto em repique maior da epidemia. Nem Guedes nem Rodrigo Maia, presidente da Câmara, gostam da ideia. Mas o centrão gosta.
Em resumo, a discussão está praticamente na mesma de agosto e setembro, quando Bolsonaro vetou cortes de despesas sociais e os credores do governo elevaram as taxas de juros por causa da ameaça dos “fura teto”. Desde então, apenas ficou mais claro que o dinheiro que houver para auxílio, dados os impasses, será bem pequeno.
Com auxílio ou “renda básica” pequenos, tende a haver problema político-social e alguma desaceleração no consumo. No trimestre junho-agosto, o pagamento médio mensal dos auxílios foi de R$ 45,3 bilhões por mês. Em setembro, de R$ 24,2 bilhões. Em janeiro, quase nada. É problema.
Adriana Fernandes: Prorrogação do auxílio
Experientes observadores do jogo político dão como alta a probabilidade de o benefício emergencial continuar a ser pago
A prorrogação do auxílio emergencial por mais alguns meses já está na mesa. O ministro Paulo Guedes dificilmente conseguirá escapar desse caminho. Vai se consolidando uma convergência política para garantir a prorrogação do benefício, mesmo que pequena (no máximo dois meses).
Experientes observadores do jogo político dão como alta probabilidade a prorrogação. Essa percepção também foi passada pelo diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, durante apresentação de relatório mensal do órgão do Senado que avalia as contas públicas. Por enquanto, o movimento se dá nos bastidores das negociações políticas que envolvem também as votações de fim de ano e a eleição para a sucessão dos presidentes da Câmara e do Senado.
Mas qual a razão para a prorrogação?
A resposta é que nem o governo nem o Legislativo encontraram outra saída, nem de transição nem estrutural, para o dia 1.º de janeiro, quando acaba o auxílio. Faltam apenas 40 dias.
As incertezas geradas pela velocidade assustadora da alta de casos da covid-19 nos últimos dias empurram a decisão também nessa direção. A prorrogação do auxílio pode ser feita por crédito extraordinário, sem orçamento de guerra, e com o gasto fora do teto. A Emenda Constitucional 95 prevê essa válvula de escape.
O governo preferiu, nos últimos meses, jogar na retranca por causa das eleições, deixou de lado a discussão do novo programa social. Sem conseguir consenso para as medidas impopulares, Guedes passou a apostar na continuidade do programa Bolsa Família, sem grandes reforços – um refresco para a pressão “fura teto de gasto” que parte do governo. O mercado financeiro gostou e se acalmou.
O inusitado é que, agora no mercado, cresce também a corrente de que a prorrogação pode ser uma saída melhor do que dar espaço para furar o teto numa votação no afogadilho de fim de ano. “Com a pressão por causa do auxílio emergencial e a incerteza da atividade no ano que vem, e abrir uma discussão de PEC agora no final do ano, a chance de entrar uma derrapada fiscal é grande”, resume o economista-chefe da XP, Caio Megale. Para ele, melhor jogar para 2021 e discutir com mais calma o programa social.
Com PECs abertas para votação para cortar gastos, a possibilidade de se aprovar uma exceção no teto para o novo programa social não poderia ser descartada. É só ver a lista de lideranças influentes que apoiam deixar o programa social fora do teto, combinado com corte de renúncias tributárias para aumentar a arrecadação ou tributação do andar de cima, como defende a oposição.
Como a hora da verdade para as reformas estruturantes não chegou depois do primeiro turno das eleições municipais e nem vai chegar com o fim do segundo turno, o pensamento no mercado tem sido que é melhor empatar o jogo nas poucas semanas que faltam até o início do recesso parlamentar. Ninguém perde ou ganha e fica tudo para o início de 2021.
O que se pode esperar até o fim do ano é um avanço na aprovação de novos marcos regulatórios e outros projetos, que, embora não sejam PECs, são também importantes. Além da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Já o Orçamento deve ficar para o ano que vem. Para o primeiro semestre do ano, sobraria a última janela de avanço das reformas no governo Bolsonaro.
“O cenário pode abrir uma janela de oportunidade no início de 2021 para avançar na PEC emergencial, importante para blindar o arcabouço fiscal em 2022, ano eleitoral”, avalia.
Ponto importante que mostrou reportagem do Estadão de sexta-feira é o acordo do governo e lideranças políticas com o TCU para uma regra de transição para abrir caminho ao empenho de recursos na reta final do ano para obras que serão executadas ao longo de 2021. O jeitinho que foi cobrado pelos parlamentares, com crítica ácida ao TCU de “apagão de canetas”, está se consolidando.
Enquanto a prorrogação do auxílio não sai, o debate do momento tem sido de que houve exagero na concessão da ajuda e que muita gente recebeu sem precisar. É bom lembrar, no entanto, as condições de urgência em que ele foi montado e também reforçar que o auxílio não tinha como foco somente a contenção da pobreza.
O objetivo do auxílio foi, sim, conter a queda de renda dos informais, mas de modo a propiciar condições para que eles cumprissem o isolamento. O auxílio não seria efetivo como estímulo ao isolamento caso fosse só para pobres ou tivesse valor muito baixo, ainda mais nas metrópoles, onde informais auferem rendimentos maiores e são exatamente os locais de maior aglomeração urbana. Se a piora da pandemia acelerar nos próximos dias, o anúncio da prorrogação pode até vir antes.
Sergio Lamucci: O contraste entre 2021 e o cenário de curto prazo
Economia foi bem no terceiro trimestre, mas o quadro para o futuro continua incerto
O crescimento da economia brasileira no terceiro trimestre saiu melhor que a encomenda. As estimativas apontam para uma expansão na casa de 9% em relação ao trimestre anterior, feito o ajuste sazonal. Além da reação ao tombo violento dos três meses anteriores, quando houve o impacto mais forte da pandemia, o efeito do auxílio emergencial foi significativo, e setores como construção civil e agronegócio vão bem. No ano, é possível uma queda do PIB na casa de 4% ou até menos, um recuo significativo, mas bem menor do que a retração de 9,1% que o Fundo Monetário Internacional (FMI) chegou a projetar em junho.
Esse bom resultado de curto prazo, contudo, não assegura que o ritmo de crescimento vai continuar firme nos próximos meses. Mais uma vez, o governo de Jair Bolsonaro age para produzir incertezas, em vez de buscar diminuí-las. Primeiro, não há clareza sobre o quadro fiscal que vai prevalecer em 2021, a um mês e meio do começo do ano. A definição do Orçamento deve ficar para o primeiro trimestre do ano que vem. Não se sabe se um programa mais amplo de transferência de renda será criado, por exemplo.
Além disso, Bolsonaro politiza ao máximo a pandemia, como ficou mais uma vez evidente na semana passada, quando o presidente comemorou a interrupção dos testes com a vacina Coronavac, determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para completar, o país caminha para ficar mais isolado no cenário externo. Com Joe Biden na presidência dos EUA, a política ambiental do Brasil estará na mira de outra grande potência, além da União Europeia (UE). A insistência de Bolsonaro nas atuais diretrizes para o ambiente poderá afetar as exportações brasileiras e afastar parte do investimento estrangeiro do país.
Essas incertezas atrapalham a economia num cenário em que os ventos externos podem se tornar mais positivos. A possibilidade de que esteja disponível em não muito tempo uma vacina com eficácia elevada melhora as perspectivas para a economia global, embora a segunda onda da covid-19 em alguns países abale a atividade no curto prazo, como ocorre na Europa. A tendência de juros baixos nos principais países avançados por um longo período, por sua vez, favorece mercados emergentes como o Brasil. Por fim, o governo de Joe Biden não deverá ser uma fonte de volatilidade e preocupação para a economia global como foi a administração de Donald Trump, ainda que a rivalidade entre os EUA e a China deva continuar intensa.
Desse modo, o bom momento da economia brasileira no curto prazo contrasta com o cenário para 2021, totalmente indefinido por causa dessas várias incógnitas. O Indicador de Incerteza da Economia (IIE-Br) da Fundação Getulio Vargas (FGV) deve voltar a subir neste mês, uma notícia ruim para o investimento, que depende de um horizonte de maior previsibilidade para deslanchar.
Divulgada na sexta-feira, a prévia do índice de novembro mostra uma alta de 7,6 pontos, para 151,4 pontos. Se confirmado, será o primeiro aumento depois de seis quedas seguidas. As dúvidas em relação à trajetória das contas públicas contribuem para elevar o indicador de incerteza. No auge do impacto da pandemia sobre a atividade, em abril, o IIE-Br bateu em 210,5 pontos, mas o nível sugerido pela prévia de novembro é muito alto - o recorde anterior à eclosão da covid eram os 136,8 pontos de setembro de 2015.
Nesse quadro, a economia tende a perder dinamismo, podendo patinar em 2021. O auxílio emergencial, cujo valor já foi reduzido de R$ 600 para R$ 300, deve expirar em dezembro. Não parece haver tempo suficiente para que se monte um programa de transferência mais amplo até o começo do ano. O ideal seria unificar programas sociais existentes ao Bolsa Família, o que seria possível fazer respeitando o teto de gastos, mas é algo que não está no radar, pois o governo resiste a tomar medidas nessa linha.
Já prorrogar o auxílio por poucos meses até que se encontre uma solução para o sucessor do Bolsa Família tende a ser juridicamente complicado e pode causar ruídos, se for feito fora do teto e sem o compromisso com uma agenda de reformas que combatam a expansão de gastos obrigatórios.
Nesse ambiente, é importante que, passado o primeiro turno das eleições municipais, seja feito um esforço para dar um rumo claro à condução das contas públicas em 2021. Há o risco de que haja uma retirada de estímulos muito abrupta se o auxílio emergencial for encerrado e nada for colocado em seu lugar. Ao mesmo tempo, há o risco de perda de credibilidade da política fiscal se o teto de gastos for abandonado e não ficar claro que reformas serão aprovadas. O câmbio pode se desvalorizar mais, tornando mais duradouras as pressões sobre a inflação que, por enquanto, são temporárias e localizadas.
Também causa muito ruído a atitude de Bolsonaro em relação à pandemia. Desde o começo, o presidente negou a gravidade da doença e acusou os governadores pela adoção de medidas de distanciamento social. Agora, bombardeia a vacina produzida pela chinesa Sinovac e pelo Instituto Butantan, por causa de sua rivalidade com o governador João Doria (PSDB). Em vez de apostar na coordenação de ações com Estados e municípios no combate à covid-19, Bolsonaro opta pelo conflito.
A resistência em cumprimentar Biden pela vitória e os sinais de que não haverá mudança na política ambiental tambem são negativos para a economia brasileira. O Brasil fica mais isolado no cenário internacional, havendo um risco de que as exportações do país sejam afetadas. O fluxo de investimento externo também pode minguar, num momento em que empresas e fundos estrangeiros dão cada vez mais importância à questão da sustentabilidade.
Se essas incertezas forem reduzidas, especialmente no front fiscal, o país poderá ter um crescimento na casa de 3,5% em 2021, estimulado por juros ineditamente baixos. Caso elas permaneçam, porém, uma expansão em torno de 2% tende a ser mais provável, um ritmo muito fraco depois do tombo deste ano e do desempenho medíocre dos anos anteriores.
Míriam Leitão: Banco Central e o alerta fiscal
O Banco Central decide hoje a taxa de juros em um cenário bem diferente da última reunião. Não há aposta em novo corte da Selic. A discussão no mercado financeiro é quando a taxa voltará a subir com a piora do quadro fiscal. A inflação acelerou. O setor de gás passará por uma onda de reajustes em patamar de 25% em muitos estados, como Bahia, Santa Catarina e Rio de Janeiro. Os juros futuros subiram porque há enorme dúvida sobre o financiamento da dívida pública.
Hoje a decisão está dada. A Selic será mantida em 2%. Ano que vem ela aumenta, dizem os bancos. Há poucos meses, o Banco Central passou a adotar uma comunicação com detalhamento mais claro sobre os seus próximos passos, o que eles chamam de forward guidance. O objetivo é evitar surpresas na condução da política monetária. Mas se for para seguir direito essa estratégia precisa dizer com todas as letras que as condições de financiamento da dívida pioraram, e as expectativas de inflação subiram. Terá o BC autonomia para dar um recado duro ao governo sobre a gravidade do momento? Não basta colocar na agenda do Congresso o projeto de independência do BC. Autonomia se mostra na prática. Adianta pouco falar mais uma vez que o cenário é “desafiador”. O FMI diz que o Brasil é o país emergente com pior desempenho fiscal nesta pandemia.
A inflação surpreendeu nas últimas semanas. As projeções dos bancos e consultorias perderam para a realidade. Os IGPs, que medem a inflação no atacado, estão com variações em dois dígitos. Os preços da soja (83%), do milho (75%) e do trigo (40,9%) dispararam para os produtores, e isso significa alta de alimentos importantes da cesta básica, como carnes, pães, massas e óleos de cozinha. Arroz (122%) e feijão (28%) também subiram muito no atacado. Segundo a MB Agro, a alta dos alimentos acontece pelo aumento do dólar, dos preços internacionais das commodities e pela demanda no Brasil turbinada pelo auxílio emergencial.
Na taxa em 12 meses, o IPCA acelerou de 1,88%, em maio, para 3,14% em setembro. Ainda está abaixo da meta. A prévia de outubro foi um espanto: 0,94%. A MB Associados projeta que a inflação continuará subindo até 5,4% em maio do ano que vem, segundo o economista Sérgio Vale. Ou seja, mesmo se o governo começar a enfrentar a crise fiscal, já há uma alta da inflação contratada. Se cometer erros, o risco é de uma nova disparada do câmbio, com pressão ainda maior sobre os preços. Ontem, o Bradesco reviu sua projeção para a inflação, com aumento da Selic pelo Banco Central a 3,5% até o final do ano que vem. O banco alerta, porém, que nesse cenário não está contando com “qualquer flexibilização do teto, postergação do estado de calamidade ou eventual extensão do auxílio emergencial fora do teto de gastos.” Ou seja, esse é o cenário benigno. Se o governo adotar qualquer saída populista, ou inventar uma contabilidade criativa, haverá uma mudança total no preço dos ativos.
Segundo a Abrace, Associação dos Grandes Consumidores de Energia, após as quedas nos preços do gás durante a pandemia o que se espera agora é uma enxurrada de reajustes em 18 estados. São Paulo deve ter alta de 8,8%, mas os demais terão aumento nas tarifas na casa de dois dígitos, chegando a 30% em Minas Gerais e Pernambuco, e 25% no Rio, Bahia e Santa Catarina. Essas altas seriam decorrentes da subida do dólar, que ontem chegou a R$ 5,68, e da elevação do preço do petróleo no mercado internacional. A reação ideológica do Itamaraty na eleição de Luis Arce na Bolívia torna mais difícil uma boa solução na renegociação do gás com o país vizinho.
A economia está na seguinte situação: a queda do PIB foi atenuada pelo auxílio emergencial, mas todo o gasto da pandemia piorou muito a situação fiscal. O governo não sabe ainda como vai financiar o novo programa social ou a ampliação do Bolsa Família. Neste momento de juros baixos, em 2%, há uma janela para fazer o ajuste. Mas o governo não enviou reformas que mudem o quadro de verdade. O presidente é populista e nunca teve real aderência à agenda de equilíbrio fiscal. Bolsonaro não mexeu no teto com medo de que isso o leve a um impeachment. Se seus conselheiros o convencerem do contrário, ele, sim, mexerá no teto. Aí a casa cai no mercado financeiro.
Vinicius Torres Freire: Calote em bancos está na mínima histórica, mas refresco pode acabar no Natal
É um mistério o que vai ser da economia e da política brasileiras se e quando o auxílio emergencial e outras ajudas acabarem, no final do ano. Uma das dúvidas é o que o vai acontecer com a inadimplência, atrasos no pagamento e calotes de empréstimos bancários.
A inadimplência jamais esteve em nível tão baixo desde março de 2011, o registro comparável mais antigo. O motivo não é difícil de entender, mas a situação ainda assim é impressionante, de modo positivo, dado o tamanho da calamidade neste 2020.
Dados do Banco Central, dos bancos e da Febraban indicam que o aumento do prazo de carência e outras renegociações aliviaram pelo menos temporariamente o serviço das dívidas, em particular para famílias de menor renda e empresas pequenas. Facilidades de empréstimos bancados ou regulados pelo governo também ajudaram, além do fato das taxas de juros mais baixas. O auxílio emergencial e o auxílio-salário seguraram a renda das famílias. Tudo isso em tese começa a vencer em dezembro.
Ainda assim, os bancos concedem mais crédito. O valor total dos empréstimos de dinheiro novo para as famílias cresce quase nada em relação ao ano passado, mas está em níveis próximos do que se viu nos meses pré-epidemia. No total, o valor das concessões de empréstimos do trimestre julho-setembro é maior do que no mesmo período do ano passado. O nível de endividamento das famílias (total de empréstimos em relação à renda) também é o mais alto desde 2005, quando começa essa série de dados do Banco Central.
Em suma, os bancos não apertaram a corda. Ao contrário.
Diz-se por aí que o valor das provisões bancárias aumentou –trata-se do dinheiro que os bancos separam para cobrir calotes, grosso modo. É verdade. Mas, pelo menos na média dos bancos, vem caindo desde junho (pela medida das provisões como proporção do total de empréstimos). Além do mais, as provisões subiram menos e para níveis relativamente mais baixos do que os registrados nas crises de 2008-2009 e no fundo da recessão de 2016.
Esses eram os números até setembro, segundo as estatísticas do Banco Central. Se essa situação vai durar é um mistério, como se escrevia no início destas linhas. Como também tantas vezes já se escreveu por aqui, o possível tombo de 2021 depende: 1) Da recuperação do emprego: haverá gente trabalhando e ganhando a ponto de compensar o baque do fim do auxílio? 2) Se haverá confiança para gastar a poupança acumulada pelas famílias, na média, neste ano; 3) Se os mais pobres, que gastam toda ou quase toda sua renda, puderam guardar algum; 4) Se famílias e empresas continuarão a tomar empréstimos, incentivadas por juros menores; 5) Duração da epidemia.
Entre os donos do dinheiro grosso, a confiança caiu, o que está explícito na alta das taxas de juros no atacadão de dinheiro, desde agosto, e no preço do dólar ainda nas alturas do degrau de R$ 5,60. Essa pressão financeira pode desanimar investimentos produtivos. A balbúrdia do governo pode assustar também consumidores. Os mais pobres terão ainda mais problemas se a carestia da comida continuar depois que o dinheirinho do auxílio acabar.
Praticamente não há governo nem para cuidar das emergências financeiras de curto prazo, menos ainda projeto de política econômica. Apenas depois da eleição vai se saber o que Jair Bolsonaro e turma vão aprontar. Por enquanto, estão ocupados com o dote do casamento com o centrão (ministérios) e, como sempre, com problemas policiais.
O risco feio, enfim, é esse, como de costume: Bolsonaro.
Pedro Fernando Nery: A pandemia vai começar
Números de pobreza e desigualdade podem disparar em 2021
Quase 20 milhões de brasileiros foram salvos de cair na pobreza neste ano com o auxílio emergencial. Outros 10 milhões saíram temporariamente dela em 2020 por conta do benefício. São algo como 30 milhões de pessoas em risco com o seu fim em 31 de dezembro. O auxílio segurou os efeitos devastadores que a pandemia poderia ter no sustento das famílias mais pobres: com o seu fim abrupto, parte desses efeitos terão sido meramente adiados.
Os dados do parágrafo anterior foram calculados para o mês de julho pelo pesquisador Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole. Ele estimou também haver uma taxa de desemprego oculto de quase 40% entre os mais pobres. Esse número não é captado nas formulações tradicionais (taxa de desemprego aberta), porque inclui os trabalhadores que gostariam de um emprego, mas não procuraram um no isolamento. A partir de 1.º de janeiro, uma multidão sem renda deve passar a procurar ativamente emprego, o que pode provocar uma alta expressiva nos números oficiais de desocupação.
Em 2021, um terço dos brasileiros poderá estar vivendo com menos de meio salário mínimo – projeta Marcelo Neri, da FGV Social. Barbosa, Letícia Bartholo, Monica de Bolle e Pedro Souza estimaram proporção semelhante, mas para o número de cidadãos com renda inferior a um terço do mínimo.
Por isso, é extremamente preocupante a abordagem conformista externada pelo ministro da Economia em live da XP Investimentos, na sexta-feira. Diante das dificuldades de financiar um programa permanente para substituir o auxílio emergencial, afirmou que “é melhor voltar ao Bolsa Família do que fazer um movimento louco e insustentável”.
É preciso ficar claro: o Bolsa Família já estava em crise antes da crise. Apesar da retomada do PIB, havia 3 milhões de pessoas habilitadas para o programa em uma espécie de fila de espera por falta de orçamento. Se a fila fosse física, iria de Brasília a São Paulo. Para além disso, o programa convivia com valores muito modestos tanto no tocante aos valores pagos quanto aos dos critérios para receber o benefício.
Vejamos: uma mãe com renda de R$ 300 por mês vivendo com um filho recebeu R$ 1.200 por mês no auxílio emergencial. No Bolsa Família, seriam R$ 41 mensais. Se a renda dela fosse um pouco maior, de R$ 400, o valor recebido no Bolsa seria zero: a família não seria pobre o suficiente para receber qualquer valor. Frise-se que para receber o auxílio emergencial essa família de duas pessoas poderia ter renda de até R$ 1.000.
É evidente que um benefício generoso como o auxílio emergencial é atualmente impagável, o que não quer dizer que os valores envolvidos no Bolsa Família não sejam draconianos. Como Rogério Barbosa mostra, os números do Bolsa estão há anos muito atrás da inflação (o pico do valor médio foi em 2014, e o da linha de pobreza em 2010).
Existem muitas possibilidades de avançar. Uma em voga nas últimas semanas é a proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), que propõe fazer mais com a mesma quantidade de recursos empregadas hoje em programas como o abono salarial. No entanto, exigiria que o presidente da República voltasse atrás quanto a sua negativa para a reforma do abono.
Uma possibilidade, mais progressiva do ponto de vista da distribuição de renda, foi a levantada na última semana pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Gastos com benefícios de servidores e militares poderiam ser suspensos para fortalecer a política social. Exigiria que o presidente revisse o posicionamento de que os atuais servidores não devem ser afetados por mudanças.
Há ainda um conjunto de propostas no Congresso com interpretações menos conservadoras sobre o teto de gastos, admitindo a possibilidade de que a despesa com um programa como o Bolsa Família possa ultrapassar o teto – compensado por ganhos de arrecadação sobre os mais ricos.
É intuitivo que os padrões de distanciamento social nos próximos meses vão ditar a magnitude da alta do desemprego e da pobreza com o fim do auxílio. Por ora, o aumento parece inevitável: trabalhos como o de ambulantes não se adaptam ao Zoom.
Dez milhões de pessoas deixaram de trabalhar em 2020 e é improvável que com o encerramento dos programas temporários todas voltem rapidamente aos postos anteriores.
Se o auxílio emergencial pode ter sido sobredimensionado para uma crise econômica que até agora foi menos severa do que poderia ter sido, o fato é que somente “voltar ao Bolsa Família” pode representar um choque imenso. Em 2020, com o auxílio emergencial, o Brasil observou mínimas históricas na desigualdade e na pobreza extrema. A partir de 2021, pode observar um movimento rápido e expressivo no sentido contrário: números de pobreza e de desigualdade como não víamos há anos ou mesmo décadas. Um movimento insustentável.
*Doutor em economia
Fabio Graner: O desafio de manter a retomada da economia
Parte da reação mais rápida do que o previsto se deve ao pagamento do auxílio emergencial, que deve terminar abruptamente na virada do ano
Em meio à tristeza de 150 mil mortes pela covid-19, a economia brasileira apresentou nas últimas semanas uma série de dados positivos. Números como a alta recorde das vendas do varejo motivam revisão generalizada de previsões para o PIB.
O movimento mais recente foi do Banco Mundial, que havia irritado o governo com sua catastrófica projeção de queda de 8% e que passou a prever recuo de 5,4% no ano. Ainda é um tombo feio, mas embute uma recuperação bem mais rápida.
Nos bastidores, a equipe econômica tem comemorado o ritmo de expansão e acreditam que isso terá continuidade. A visão é que o setor de serviços começará a ter um ritmo melhor daqui para frente, consolidando a recuperação do PIB.
Mas é necessário cautela. Os dados que mostram forte ritmo no varejo e na indústria têm efeito de medidas como o auxílio de R$ 600 pagos a quase 70 milhões de pessoas. Só isto já injetou R$ 237 bilhões na economia. A partir de setembro, porém, ele foi reduzido a R$ 300 e assim deve seguir até dezembro.
Como a economia se comportará com o corte pela metade de seu principal impulso fiscal? É verdade que o auxílio e outras medidas, como a liberação do FGTS, devem injetar cerca de R$ 150 bilhões entre setembro e dezembro. Não é pouco. Mas a dúvida mais inquietante é para 2021, quando não só o auxílio, mas os outros programas, como o benefício para o emprego e as ações de crédito às empresas, chegam ao fim. Qual será a resposta do setor privado à contração fiscal prevista, em meio às sequelas deixadas pelo coronavírus, como os milhões de desempregados e o fim de milhares de empresas?
A equipe econômica parece mais preocupado em sustentar o discurso de que a partir de 1º de janeiro a vida fiscal do país volta ao limite do teto de gastos, salvo uma segunda e forte onda da covid-19, do que em responder a essas perguntas.
É preciso reconhecer que de forma geral, Paulo Guedes e sua equipe tiveram uma ação econômica correta, com medidas relativamente bem calibradas - sem, claro, esquecer da atuação do Congresso em seu desenho final. Essa retomada do crescimento reflete isso, ainda que não se deva deixar de comentar que o resultado final seria muito melhor não fosse a sabotagem do presidente da República às medidas de isolamento social, que prejudicou o combate ao vírus e até hoje cobra seu preço em vidas e resultados econômicos.
Agora, cabe se discutir a transição da política econômica. É verdade que esse processo já começou com a redução do auxílio emergencial, mas seu fim parece abrupto em 2021. O problema é que a vida no tecido econômico não muda só porque o calendário passou de 31 de dezembro para 1º de janeiro. E aí reside uma enorme incerteza.
Documentos do próprio governo lançam dúvidas sobre a persistência desse ritmo de recuperação. Em seu relatório de inflação, o Banco Central disse que a ausência de uma clara retomada do mercado de trabalho “pode impor restrições à velocidade futura de recuperação da economia, especialmente após redução das transferências extraordinárias”.
Já o Ipea aponta que a questão relevante é como manter a economia em ritmo satisfatório, no restante do ano e ao longo de 2021. “O desafio reside em buscar um ritmo adequado de transição das medidas excepcionais de política voltadas para a preservação de empregos, renda e produção para um regime de política que continue a prover suporte ao setor produtivo e assistência aos mais necessitados, mas que seja fiscalmente sustentável”, diz.
É essa sinalização que a equipe econômica falha em dar. O problema não é trivial, dada o elevado endividamento do país. Mas o desempenho do PIB é parte do processo de ajuste fiscal. O ponto é que a discussão econômica se tornou binária em torno do teto de gastos, algo que equivocadamente tem sido estimulado pelo próprio Ministério da Economia. É um tudo ou nada que já está cobrando o seu preço.
“A grande questão é como se consegue tirar o estímulo fiscal sem causar uma recessão. É muito difícil a economia resistir a uma retirada de estímulos de 8% a 10% do PIB. Devia ser gradativo, enquanto o setor privado vai se recuperando”, comentou o pesquisador do Ibre/FGV e ex-secretário de Política Econômica, Manoel Pires.
Ele explica que não é uma questão de calendário, e sim econômica. “Tem o outro lado: é evidente que isso pode gerar outra crise se não houver clareza sobre como retirar esse incentivo fiscal. Tem um dilema de curto prazo a ser resolvido”, afirmou, explicando que isso deve ser feito sem se descuidar de uma solução fiscal de longo prazo para o país.
Para a especialista em contas públicas e procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Élida Graziane, planejar a transição de 2020 para 2021 “é esforço de justiça fiscal que pode ser feito de forma transparente e equilibrada até para que seja resguardado o custeio dos serviços essenciais”.
Ela lembra que o pais já alterou o teto para repassar os recursos do petróleo e adotou o Orçamento de Guerra diante da necessidade da pandemia. “Não podemos interditar reflexão equitativa sobre nossas regras fiscais em um plano bienal de enfrentamento da pandemia”, disse a procuradora ao Valor.
Guedes tem discutido com o Congresso uma boa e engenhosa ideia: prever de forma permanente, dentro da PEC do Pacto Federativo, a possibilidade de se acionar o Orçamento de Guerra, que hoje só vale para essa pandemia. A medida poderia ser uma saída caso haja uma intensa segunda onda de covid-19 no Brasil, que force uma ação do governo em 2021.
Mas esse arcabouço jurídico poderia ser complementado, definindo-se alguma margem de manobra para o governo fazer uma retirada gradual desse tipo de estímulo, mesmo com a “operação de guerra” já encerrada. Isto evitaria o que Pires chama de “abismo fiscal”.
Para o ex-diretor do BC e economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Carlos Thadeu de Freitas, faz sentido falar em algum mecanismo de transição para o início de 2021. Mas ele alerta que isso só é viável se o país demonstrar compromisso de voltar ao teto de gastos, com a adoção de medidas estruturais de ajuste fiscal. “Tem que ter força política e mostrar que quer o teto”, afirmou.
Ao defender com unhas e dentes o teto de gastos, Guedes e sua equipe miram na confiança de investidores do mercado financeiro. Falta também falar com o restante da sociedade.
Bruno Boghossian: Bolsonaro prepara terreno para evitar desgaste com fim do auxílio
Presidente lança discurso para os mais pobres e posa de vítima da inação dos políticos
Jair Bolsonaro tentou chutar para o lado a bomba-relógio em que se transformou o auxílio emergencial da pandemia. Preocupado com o impacto que o fim do pagamento deve ter sobre sua popularidade na virada do ano, o presidente fez uma jogada que pode reduzir parte das pressões sobre o Planalto.
O governo havia conseguido a proeza de apresentar um pacote completo de ideias ruins para bancar o novo programa social que deveria atender a uma parte dos beneficiários do auxílio. Depois que todas foram torpedeadas por parlamentares e investidores, Bolsonaro desempenhou seu papel favorito: posou de vítima e encenou um desabafo.
“O tempo está correndo, está o tique-taque aí correndo, está chegando janeiro de 2021. Precisamos de alternativa para aproximadamente 20 milhões de pessoas que não vão ter o que comer a partir de janeiro do ano que vem”, disse, nesta terça (29).
O presidente começou a preparar o terreno para se desviar de desgastes políticos caso a proposta de turbinar o Bolsa Família não saia do papel. Ele reclamou de “críticas monstruosas” aos planos para financiar o novo Renda Cidadã e se queixou da falta de alternativas para o programa –como se houvesse algum outro governo operando na praça.
Na prática, Bolsonaro armou uma cilada para o Congresso. O governo prometeu planos para custear o programa. Depois, apresentou uma proposta fajuta, na forma de um calote disfarçado e de um extravio de verbas da educação. Agora, ele lança a imagem de um presidente que se preocupa com os mais pobres, mas sofre com a inação dos políticos.
É Bolsonaro, no entanto, quem se mostra um mestre na arte de tirar vantagem de sua própria inércia. O presidente abriu mão de discutir as regras o jogo e resolveu mandar recados diretos aos segmentos que ajudaram a impulsionar seus índices de aprovação durante a pandemia. Ele sabe que, entre os brasileiros que fazem a contagem regressiva para o fim do benefício, a origem do dinheiro é o menor dos problemas.
Alon Feuerwerker: Uma dúvida para 2021
Resta pouca dúvida de que o auxílio emergencial teve um formidável efeito-tampão sobre duas variáveis na conjuntura: a atividade econômica, em particular no comércio, e a sustentação popular de Jair Bolsonaro. Produziu também, junto com o real fraco e a voracidade estrangeira por estoques, algo de carestia em alimentos básicos. O governo aposta que este efeito será passageiro e não vai se propagar.
Certa dúvida porém tende a colocar uma pulga atrás da orelha daqui até dezembro. Qual será o efeito do fim do auxílio, pois no momento o governo não quer que ele entre em 2021. Há o projeto do Renda Brasil, mas ainda está no forno e não tem nem de longe a dimensão do auxílio emergencial. Nas condições normais de temperatura e pressão, a cidadania vai ter de voltar a andar com as próprias pernas depois que a São Silvestre passar.
Partamos então da premissa de que vai ser assim mesmo. Uma dúvida: como o povão vai reagir? Vai voltar-se contra o governo por este ter esticado a coisa até a eleição e depois tirado? Ou vai sentir-se grato por o governo ter encontrado uma solução de emergência na pandemia e assim evitado o colapso econômico e social? Quem tiver certeza, que faça sua aposta. Não é um jogo de previsão simples.
Concessões e benefícios são fáceis de dar, e difíceis de tirar. Eis uma verdade, mesmo que não seja novidade. Mas é verdade também que uma conta mensal de R$ 50 bi não tem sustentação fiscal, ainda mais numa economia há uma década oscilando entre regressões brutais e crescimentos medíocres. Distribuir dinheiro funciona, mas precisa vir junto com aumento da produção ou da importação. Ou as duas coisas. Sem isso, é crise contratada.
A história recente traz dois casos em que governantes esticaram o conto de fadas até passar a eleição, depois tiveram de dar a real e viram a popularidade despencar: José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Há também o cavalo de pau de Dilma Rousseff entre o primeiro e o segundo mandatos. Os dois primeiros tinham base no Congresso e no establishment. Sobreviveram. Dilma pagou o preço por não fazer os amigos certos na época das vacas gordas.
Mas a história política brasileira é também pródiga em situações nas quais a gratidão popular acaba falando mais alto. Governantes que implementam programas de forte apelo junto ao povão acabam ganhando uma gordura de popularidade para queimar nas horas difíceis. E Jair Bolsonaro tem um trunfo: diferente de Sarney com o Cruzado e FHC com o dólar -- e o frango -- a um real, ninguém poderá dizer dele que prometeu o auxílio-emergencial para sempre.
O governo acaba de organizar uma base no Congresso Nacional, mais na Câmara dos Deputados que no Senado Federal. O ministro da Economia parece acreditar na solidez dela, mas as ironias de Rodrigo Maia deveriam acender uma luz amarela no Planalto. Na última linha da planilha, a administração e o próprio presidente da República dependem do que deles acha o povão. Daí a importância da dúvida para 2021.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação