auxilio emergencial

Merval Pereira: Preparando o futuro

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e  regulamentações com o mesmo objetivo,  ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.

Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.

Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.

A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.

Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.


Já está no ar edição 28 da Revista Política Democrática Online

Edição de fevereiro destaca entrevista com o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Reportagem especial analisa como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil

Já está no ar a edição 28 da Revista Política Democrática Online. Armínio Fraga é o entrevistado especial desta edição, que teve a participação de Raul Jungmann e Caetano Araújo como entrevistadores.

Clique para acessar a edição 28 da Revista Política Democrática Online

Nesta edição você também pode conferir a reportagem especial escrita pelo jornalista Eumano Silva, que faz uma análise de como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil, com as incertezas aumentadas pelo fim do auxílio emergencial e as falhas na vacinação da população brasileira pelo Ministério da Saúde do Governo Bolsonaro.

A RPD 28 traz, ainda, artigos dos articulistas Mauro Oddo Nogueira, Ivan Accioly, Lilia Lustosa, Henrique Brandão, Nelson Tavares, Dora Kaufman, José Gomes Temporão, Luiz Antonio Santini, Dawisson Belém Lopes e André Amado, além da charge de JCaesar. Confira, também, o editorial da Revista Política Democrática Online.

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Cristovam Buarque: Labirinto de espelhos

Brasil está ficando para trás na marcha do progresso

Por nossos erros ao longo de décadas, o Brasil está ficando para trás na marcha do progresso. Em decadência pela desigualdade social, pobreza, fracasso educacional, sem produtividade nem inovação, um Estado esgotado fiscal, gerencial e moralmente, sistema de ciência e tecnologia insuficiente, democracia e instituições políticas frágeis, sociedade violenta e armada, cidades “monstropolitanas”. Para agravar, com governo despreparado, desumano, sem bússola, antidemocrático, antissocial, sem empatia, reacionário, armamentista, preconceituoso, negacionista do valor do conhecimento, desmoralizado no cenário internacional.

O Brasil precisa de um rumo para orientar-se no seu terceiro centenário, que se inicia no próximo ano. Mas antes mesmo de formular este rumo, o Brasil precisa de coesão no presente e evitar o desastre previsível para os próximos. Ao observar os movimentos dos candidatos a presidente em 2022, a sensação é de que eles estão passeando em um labirinto de espelhos: nenhum sabe o caminho e cada um olhando para si ou seu partido, não para o país. Não reconhecem os erros cometidos que levaram à derrota em 2018, nem assumem responsabilidade pelas consequências de reeleição do atual presidente. Ao final do labirinto de espelhos, os candidatos imaginam a cadeira presidencial lhes esperando, sem perceberem que os caminhos labirínticos podem levar a um abismo.

Além de não perceberem o labirinto de espelhos, os candidatos não estão buscando construir uma base eleitoral capaz de vencer e impedir à maldição de um segundo mandato de Bolsonaro. Evitando ficarmos ainda mais divididos e desiguais internamente, isolados internacionalmente, armados miliciamente, enganados pelo negacionismo. E ainda ameaçados de reforma constitucional para permitir mais de uma reeleição depois.

Nossa função imediata consiste em unir os candidatos e escolher aquele com mais condições de atrair o voto do eleitor, com a menor rejeição. Na tormenta, a âncora é mais importante que a vela. Precisamos de quatro anos que permitam o debate entre os candidatos, buscando um projeto de nação para o terceiro centenário da independência. Até lá, precisamos quebrar os espelhos: os candidatos olharem menos para seus partidos e mais para o país, se preocuparem menos com seus programas, visões e interesses pessoais e mais com a tarefa do presente, menos divisão personalista e ideológica e mais unidade democrática, desde o primeiro turno.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Paulo Fábio Dantas Neto: Emergência sanitária e paciência política - O fator Mandetta

Ao longo do ano de 2021 a situação de grave vulnerabilidade sanitária em que se encontra a população brasileira promete converter-se numa nefasta singularidade no mundo. Tudo parece indicar que seremos, ao final desse ano, o único país de relativa importância que não terá vacinado, em grau decente, a sua população. Além das centenas de milhares de vidas já perdidas, o acesso precaríssimo a vacinas condena os brasileiros à ausência de horizontes. À insegurança, à desconfiança e ao medo, que afetam a qualidade da vida de cada pessoa, corresponde a experiência comum de radical incerteza quanto ao momento de interrupção do círculo vicioso de adoecimento e morte, que afeta o ambiente social.

Ar rarefeito, dura e ameaçadora realidade enfrentada pelas pessoas enfermas, tornou-se metáfora precisa das condições possíveis de sobrevivência coletiva em nosso país. Elas são uma jaboticaba venenosa, plantada pelo desligamento paulatino e deliberado dos motores do Ministério da Saúde, a partir do final de abril de 2020. O atentado ao SUS, a virtuosa jaboticaba federativa que o processo de democratização nos deixou como legado, já produziu consequências irreversíveis. O que se pode - em angustiante médio prazo que requer ação imediata - é deter a marcha implacável da tragédia e mitigar seus efeitos, por meio de uma política de redução de danos. Inusitado convívio de emergência e paciência.

É dever da política providenciar o oxigênio. Inexiste explicação, argumento ou causa nobre que justifique deslocar a plano sequer concorrente qualquer outra prioridade do país. Suspender juízos doutrinários, moderar impulsos inovadores, adiar definições partidárias, repensar alianças políticas são procedimentos cabíveis para combater, da melhor forma possível, os danos sociais da pandemia. Esse o sentido mais objetivo e atual que podem assumir a política econômica, as políticas de auxílio a vulneráveis e as chamadas reformas, por mais que todas essas políticas remetam, também, a horizontes transcendentes ao contexto da pandemia. Prospecções e metas, sejam quais forem seus intervalos temporais, tendem ao fracasso se não dialogarem com esse contexto que as pauta. Pode-se dizer que entregar esse oxigênio é a prova de legitimidade a que se submete, hoje, nossa democracia.

A representação política é a forma institucional que permite conseguir o oxigênio para a sociedade não parar de respirar. Fora dela o sucesso é improvável. Contra ela, inviável. A ciência normativa da política ensina que, num país onde presidencialismo é tradição arraigada e instituição vigente, a representação política nacional realiza-se, de fato, por duas vias concorrentes, o Congresso e a Presidência da República, que repartem o governo. E sendo o Estado, ademais, federativo, essa bifurcação da representação desdobra-se em governadores e prefeitos, deputados e vereadores. 

No mesmo sentido há uma lição da política prática que a pandemia reitera de modo cabal. Passaram pelo crivo da representação política – sob guarda e vigilância do Judiciário - todos os instrumentos de que, bem ou mal, dispomos hoje para reduzir danos. E todos os fracassos que agravaram danos estiveram ligados à pretensão presidencial de desvirtuar a representação política, seja para tornar despótica a que ele exerce, seja para atacar as demais instâncias representativas e seus respectivos titulares, em quem vê inimigos.

É fato, porém, que, mesmo subvertendo instituições e os padrões de interação política próprios da democracia, o presidente exerce um mandato representativo. E para que não se incorra em autoengano, é bom entender que seu mandato foi conquistado em arena eleitoral diversa daquela que cria a representação legislativa, sendo exercido, portanto, conforme lógica personificada, oposta à que preside a dinâmica partidária do Legislativo.  Portanto, não será propriamente uma aberração Bolsonaro enfrentar com sucesso uma nova eleição presidencial mesmo se estiver novamente, como já esteve, isolado, no Congresso.

Do mesmo modo poderá se dar mal na reeleição, mesmo com todo o centrão em seus braços. Retomo um ponto que mencionei em artigo recente (“Crônica de um revés parcial: duas arenas e a política de resistência democrática” – Revista eletrônica Política Democrática / fevereiro 2021para frisar que a dinâmica eleitoral e parlamentar do Congresso é uma, a da disputa e exercício da Presidência, outra.  O fato de Bolsonaro ser um protofascista não deve cegar para o fato de que não apenas ele é um líder plebiscitário, mas também é plebiscitária a lógica da instituição que ele preside, embora o faça de modo exacerbado, capaz de levar a lógica à sua nêmesis. Competir implica atentar a esse aspecto.

Conclamações, no interior da sociedade política, a um esforço comum dos Poderes da República, acima dos partidos e grupos, para haver vacina e vacinação refletem crescente consenso a partir de uma gradativa noção da gravidade do problema e do perigo intrínseco que ele traz de esgarçar o tecido social e assim trincar a legitimidade do sistema político. Porém, é da própria natureza da política democrática, que a coordenação de ações cooperativas ocorra tendo como premissa a competição política.

Nada mais inócuo do que o apelo - ingênuo ou demagógico - para que se sacrifique crenças e interesses parciais para abraçar crenças e interesses comuns. O repertório de crenças é sempre plural e o interesse comum são pontos. Portanto, fala-se aqui não de sacrifício, mas de boa compreensão. Os termos da competição mudam em presença da pandemia, reforçando o hábito de alianças e a construção de consensos.  Mas não se cogita suspender a competição. Precisamente nisso consiste uma diferença crucial entre saídas democráticas e autoritárias da crise.

Resulta, daí, que é possível pensar numa ampla frente por vacinação no Congresso, que vá do centrão à esquerda, quase uma unanimidade e ser necessário fazer, na outra arena, oposição frontal à política (ou antipolítica) de Bolsonaro na Saúde. O mesmo vale para o auxílio emergencial e todos os demais pontos da agenda política. Consensos legislativos constroem-se pela média das posições. Eles não excluem que o que ficou à margem do consenso seja objeto de renhida disputa na arena presidencial.

Considerar assim a competição implica em saber que o governo federal, em que pese ter posto em prática, durantes vários meses, uma ação negacionista aniquiladora dos meios institucionais de combate à pandemia, acena agora a uma reversão de turbina no objetivo, sem, no entanto, desistir do método de desconstruir instituições. Declara agora querer apressar a vacina e sob esse pretexto procura desqualificar tecnicamente a Anvisa, por uma manobra legislativa que a submeteria a comandos políticos. Sob o mesmo pretexto, o ministro Pazuello altera o critério da vacinação e desorienta prefeitos a não mais guardarem segundas doses, ainda que ao risco de criar um contingente de sub vacinados.  Seriam folclóricos, se não fossem delituosos, os arroubos ilusionistas do ministro, fazendo projeções fictícias com vistas a acalmar os sobressaltos, adiando-os até que se tornem novos e trágicos fatos consumados. Para não falar na manutenção, em meio à guinada retórica, da mesma omissão do MS nas tarefas de coordenação do SUS, do que resulta uma ausência de padrão nacional no modus operandi da vacinação e a insensata definição de 80 milhões de pessoas como prioritárias. A demagogia é filha primogênita do negacionismo. Quais serão os frutos podres seguintes?

Há, portanto, novidades nos movimentos atuais do Bolsuello na Saúde e quem quiser se opor a eles de modo consequente precisa entender o mal desde a gênese. É errado narrar o processo como desastre iniciado só quando o Eichmann da logística sentou-se na cadeira de ministro. Assim como erra quem supõe que o mal é banal como ele e se irá com ele caso as instituições o expilam, como devem fazer.  A operação militar cujas consequências mais drásticas talvez o país ainda não tenha sofrido não pretendeu, a princípio, implantar coisa alguma, só intentou destruir um arranjo institucional de política pública com alta capacidade de agregação política, que dava a esse arranjo também um potencial eleitoral. A imprensa brasileira e os meios políticos enxergaram bem que Bolsonaro, ao retirar Luiz Mandetta do ministério da Saúde, no auge da pandemia, queria afastar um potencial adversário nas urnas. Mas não estavam igualmente atentos – ou se estavam subestimaram – ao fato de que o script era, mais que afastar Mandetta, destruir o arranjo que ele armou. 

A memória dessa pandemia precisa corrigir um equívoco: ela não se divide em antes e depois de Pazuello e sim entre um durante e um depois de Mandetta. É inaceitável colocar como análogas a sua experiência no MS e a de Nelson Teich. Mas é o sistematicamente dito, desde aquela época. E, no entanto, cá estamos, um ano depois, falando de Mandetta. Por que, se nenhum partido o adotou? Atribuo o fato à consistência do legado de uma gestão.

Uma oposição realista que se deseje digna do substantivo e do adjetivo não fará movimentos em círculo para reinventar a roda.  Se quiser um roteiro para uma condução alternativa à irresponsabilidade do MS, irá encontrá-lo naquela curta experiência. A propósito, permitam-me fazer nova autorreferência, agora ao artigo “Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS” (Revista Política Democrática / maio 2020). Relembro aqui partes dele, indicando que Pazuello ainda não era ministro e já não se sabia aonde fora parar a ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária; a conexão estreita com o mundo da ciência e a área técnica da saúde pública; a articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores; a articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas a serem votadas.

Pazuello ainda era o segundo do MS e já se notava a lassidão federal face à velocidade da crise sanitária e era notória a indiferença do ministro sucessor à dimensão política da crise. Já ali a intervenção começara, através da secretaria executiva do ministério, desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor que já rondava a cadeira do ministro.  E já ali se interrompia o fluxo de informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, substituída por informação rarefeita e filtrada na forma de monólogos.

Infelizmente não se deu a esse imediato contraste a atenção devida. O fato do novo ministro ser um médico permitiu uma benevolência que gerou um lapso curto, mas fatal. Os meios de comunicação e as forças políticas do País não esboçaram, diante do gesto absurdo do presidente contra um gestor comprometido com uma política pública geradora de moderação e de grande empatia social, uma reação sequer aproximada à que se deu quando, logo depois, o ministro Sergio Moro saiu do governo atirando. Bem pesadas as coisas, merece reflexão crítica a prioridade dada, como fato digno de reação política e civil, à indicação do superintendente da PF do Rio de Janeiro, objeto de intervenção judicial, enquanto a demissão do ministro da Saúde sequer suscitara declarações de intenção de embargo. Contudo, o contraste foi instantaneamente gritante entre a sensação de segurança relativa de antes, em meio ao temor e a impressão, já então presente, de que o governo desligara os motores do MS para descer na banguela a ladeira da pandemia.

Hoje já está em curso mais do que uma ação destrutiva. Apesar dos danos que ela causou e causa, o governo pretende ser beneficiário de ações da coalizão pró vacina que se articula no Congresso Nacional. Entendendo o paralelismo das arenas, é papel da oposição reforçar a coalizão sem permitir essa fraude. A marcação cerrada sobre o MS, com ou sem Pazuello, não poderá descansar. Precisa envolver a sociedade civil e ter clareza sobre o que propor.

Os pontos que alinhavei sugerem que cabe ao ex-ministro da Saúde papel de coliderança no grande esforço nacional para enfrentar a crise sanitária sem ceder ao caráter antissocial da política do governo e ao mesmo tempo sem dispensá-lo das pressões possíveis para que cumpra o seu papel. Sua imagem pública lhe permite agir ao modo usual da sociedade civil .

Ele também é um quadro da sociedade política que se conectou com o andar de baixo do eleitorado  sem a mediação de uma prévia identidade partidária. É um perfil incomum no âmbito do que se tem chamado de centro do espectro político. A dificuldade desse campo construir alternativas politicas viáveis na arena eleitoral presidencial possivelmente tem a ver com a lógica parlamentarista que costuma guiar a práxis dos seus quadros. Nesse sentido, Mandetta é um ponto fora da curva, porque funde uma prudência política centrista e afeita à arena parlamentar, com a conduta assertiva nos campos da gestão e da comunicação política, típica de protagonistas da arena de competição presidencial.

Por esse motivo penso que está em patamar diverso de outros nomes do chamado centro, que se concentram em entendimentos interpartidários, típicos da arena parlamentar, como possíveis plataformas de lançamento a projetos voltados a eleições majoritárias. Será bom caminho trocar a imagem do médico que não abandona o paciente pela de pré-candidato à procura de um partido? Ademais ele já faz parte de um, cujo rumo em 2022 é incerto e influenciável pela paciência. Visitar a planície do mercado partidário agora não parece ser caminho para que ele contribua efetivamente ao debate nacional em momento de emergência sanitária.  

O diálogo com parlamentares e partidos pode correr frouxo e a eles poderá retornar sempre, amarrando as coisas no devido tempo e com suficiente familiaridade porque outsider não é e possui, além do mais, posição ideológica clara, que costuma declarar. Sem ser de esquerda e jamais cogitar sê-lo, pode com ela dialogar e pontualmente convergir. Sendo da centro-direita e sem deixar de sê-lo, pode, dentro dela, divergir e levá-la a viagens mais interessantes do que as cercanias do palácio. Se nada disso ocorrer, mais uma vez, paciência. Terá travado o bom combate, numa emergência.

*Cientista político e professor da UFBa


Luiz Sérgio Henriques: Antagonismos em equilíbrio

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Freyre, no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.

Ocidente político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular, tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador. Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos, cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.

Freyre, apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade “desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte. E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.

Nem sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder, como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos fossem.

A democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à esquerda, devemos rejeitar com convicção.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Alon Feuerwerker: Como anda a luta pelo poder

Os dois principais acontecimentos políticos ao longo da semana ajudaram a sedimentar a configuração de poder em Brasília a esta altura do agitado mandato presidencial. O desenho passa, naturalmente, pelo presidente da República; pela relação cada vez mais estreita dele com os oficiais-generais da reserva que as crises vão aspirando para a máquina; e pelo domínio que hoje se pode chamar de absoluto dos partidos do dito centrão sobre o Congresso Nacional, especialmente sobre a Câmara.

O episódio do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) vem sendo exemplar. O parlamentar entrou numa briga que não era dele, com o objetivo de catapultar musculatura política. Deu tudo errado. Acabou oferecendo ao antes acossado Supremo Tribunal Federal a oportunidade de um contra-ataque no ponto mais vulnerável do front adversário, o Legislativo. Mas isso abriu para o presidente da Câmara uma via rápida de cristalização da autoridade sobre os pares. 

E atraiu para ele a simpatia de um setor da opinião pública que o via com um pé atrás. Ou, pelo menos, tirou-o momentaneamente da linha de tiro.

O segundo fato, a mudança no comando da Petrobras, ainda em curso, traz ao presidente da República a brecha para, finalmente, colocar uma cunha na, lá atrás, toda poderosa equipe econômica. Erros têm consequências, e a insensibilidade da petroleira diante da possibilidade de sua política de preços provocar uma greve nacional de caminhoneiros acabou custando a cabeça do presidente da estatal. Trocado convenientemente por um general, ex-ministro da Defesa e atual presidente de Itaipu.

Uma greve de caminhoneiros em meio às seriíssimas dificuldades provocadas pela pandemia teria forte potencial de desestabilização. É natural que os adversários desejem e estimulem. E é esperado que o Planalto procure evitar.

Vida que segue. Se tudo se passar como habitual no Brasil, haverá ainda alguma turbulência nos dois casos, mas rapidamente o mundo político-jornalístico retornará para o infindável debate sobre as vacinas da Covid-19 e sobre o novo auxílio emergencial, com que nome for. E o Congresso, agora mais arrumado politicamente, não deixará fechar a janela das reformas. Que precisarão ser negociadas, claro, mas cuja esperança de aprovação é o respirador a manter acesas duas luzes: a tranquilidade do Legislativo e o protagonismo do ministro da Economia.

Tudo pode desandar, dar errado para o Planalto? Sempre pode, mas a impressão de momento é as melancias continuarem se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada. Um problema é o encolhimento da popularidade presidencial, causado pela atitude diante da pandemia e pela parada nas medidas de apoio emergencial. Mas em alguns meses estão previstas vacinas abundantes, da Fiocruz e do Butantan. E o Congresso vai acabar dando um jeito no socorro econômico. 

E quedas de popularidade, algo sempre arriscado no Brasil, podem ser mais confortavelmente administradas quando há aliados comandando as casas congressuais.

Para o projeto de Bolsonaro, o prestígio dele só precisa estar tinindo daqui a um ano e meio. O risco da popularidade baixa no meio do mandato é atiçar os apetites pelo impeachment. Isso está, no momento, muito distante depois das eleições no Legislativo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Monica de Bolle: Auxílio Emergencial à deriva

Com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, o governo contempla a adoção de um novo auxílio. Mas não se enganem. A proposta em nada se assemelhará ao esforço de 2020

Em 2020, quando o vírus chegou ao Brasil, escancarou-se uma porta para que discutíssemos medidas de proteção social, a despeito do desprezo do presidente pelos direitos humanos. A porta foi escancarada por uma conjunção de fatores fortuitos: o vírus ainda era uma novidade no país, todos o temiam — exceto o presidente —, as medidas de lockdown eram mais aceitas do que hoje, as mortes na Itália e na Espanha haviam impactado o país de um modo que as mortes de centenas de milhares de brasileiros não impactariam. A sociedade aproveitou então os espaços surgidos, tendo no Congresso um aliado de ocasião devido a suas lideranças, e pressionou para que o auxílio fosse criado rapidamente. A pressão de grupos e pessoas, ao lado da disposição do Congresso, foi capaz de implantar o maior programa de proteção social da história brasileira.

Apesar dos tropeços, mais de 70 milhões de pessoas foram atendidas, a economia foi sustentada e a catástrofe foi atenuada. A queda do PIB em 2020 foi da ordem de mais de 10%, tal como eu projetava em março, e só não foi maior por causa do auxílio. Infelizmente, tanto os líderes do Congresso quanto o governo se recusaram a agir em função do que já era sabido, ou seja, que a pandemia não terminaria em dezembro. Preferiram orientar sua ação por sua vontade e deixaram o auxílio expirar. Agora, com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, as VOCs, o governo contempla a adoção de um novo auxílio emergencial. Mas não se enganem. A proposta, qualquer que seja, em nada se assemelhará ao esforço de 2020.

Sobram preocupações com tudo que não é urgente neste momento, em que a pandemia está prestes a se agravar. Sim, a se agravar. As VOCs são perigosas por serem mais transmissíveis, possivelmente causar doença mais grave, quiçá escapar do sistema imune. As vacinas nos protegem contra doença, não nos protegem contra infecção. E o Brasil está muito atrasado na campanha de vacinação. Logo, o cenário que temos hoje não se alterará tão cedo. Teremos uma prolongada pandemia aguda e depois, por conta da evolução do vírus, potencialmente uma pandemia crônica, como é hoje o caso da aids.

O que deveria ser o novo auxílio emergencial neste contexto? Minha proposta é de um benefício no valor de R$ 300, a ser pago, no mínimo, até o fim do ano, com cobertura equivalente ao programa que expirou em dezembro e com uma regra de transição. A regra de transição é importante, pois impede que o programa acabe subitamente, deixando dezenas de milhões de pessoas desassistidas, como ocorreu na passagem de 2020 para 2021. Imagino uma regra de transição de seis meses, em que o valor do benefício seja reduzido gradualmente, mês a mês, até chegar a zero. Em um país com um governo que não fosse antissociedade, a regra de transição estabeleceria a passagem para um programa de renda básica permanente, mas confesso que não tenho mais qualquer esperança de que algo do tipo venha a surgir em um governo que atua, por ação e omissão, para fazer e deixar morrer. Não é por acaso que se fala em necropolítica.

Antevejo a pergunta: De onde virá o dinheiro para isso? O programa é caro, evidentemente. Estamos falando de cerca de R$ 200 bilhões, caso os pagamentos se iniciassem em março para atender em torno de 70 milhões de pessoas. Já digo logo, sem qualquer temor de represálias, que certamente aparecerão: o programa deve ser financiado, majoritariamente, pela emissão de dívida pública.

O país não vai quebrar por causa disso. No ano passado, a dívida só não foi mais elevada por causa do auxílio emergencial.

Lembrem: ele evitou que tivéssemos uma recessão ainda mais profunda. E, convenhamos, o momento é de crise humanitária aguda. Estamos falando de salvar vidas, centenas de milhares de vidas. Trata-se de pôr o foco no lugar certo, nas pessoas. Não há nada mais importante nem mais responsável do que isso. Os tempos não são de normalidade. Não nos permitem ficar na ladainha da responsabilidade fiscal, porque, enquanto ela é desfiada, morre mais de uma pessoa por minuto por Covid. Em breve, esse número será ainda maior.

Portanto, é isso. Salvar vidas e reerguer o auxílio da forma como propus é encarar o problema tal qual ele se apresenta, a realidade tal qual ela é. Isso implica abrir mão da fantasia de que “a pandemia está acabando” e da ignomínia de que “é preciso salvar a economia, depois salvamos as pessoas”.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


RPD || Reportagem Especial: Uma cicatriz no mercado de trabalho

O impacto da pandemia atinge empregos, expõe as deficiências nas escolas e aprofunda as desigualdades no Brasil. Fim do Auxílio Emergencial e demora das vacinas aumentam as incertezas no país

Por Eumano Silva

Janeiro de 2021 chegou de forma trágica para o Brasil. O número de vítimas da pandemia de covid-19 deu um grande salto, depois das aglomerações de fim de ano, e do surgimento de uma nova cepa do coronavírus, em Manaus. Assim, os índices da catástrofe sanitária voltaram ao patamar dos piores dias de 2020. O colapso em unidades do sistema de saúde, os desacertos do governo federal e a demora na aplicação das vacinas contribuíram para o rebaixamento das perspectivas de uma recuperação consistente da economia do país.

O fim do Auxílio Emergencial no primeiro mês joga mais uma sombra sobre as expectativas para 2021. As restrições decorrentes das medidas contra o avanço do vírus acentuam as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, com especial repercussão nos segmentos com menor grau de instrução ou sem capacitação tecnológica. “Vivemos uma era de desigualdades e com muitas incertezas”, definiu o especialista em políticas sociais Marcelo Neri, economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em entrevista à Política Democrática.

Em consequência do impacto causado pela pandemia, o desemprego atinge e ameaça, sobretudo, os setores tradicionalmente marginalizados pelas atividades remuneradas formais. Esse fenômeno está ligado a aspectos estruturais como raça, gênero, faixa etária, diferenças regionais, acesso à tecnologia e à educação. Incide com maior rigor sobre negros, pardos, mulheres, jovens e nordestinos, observa Neri.

Por causa da Covid-19, as diferenças entre as escolas tornaram mais extensa a distância entre os pobres e os mais favorecidos. O acesso à tecnologia para aulas on-line, e o número de horas dedicadas ao aprendizado tiveram considerável variação, por exemplo, entre as escolas públicas e privadas. O professor da FGV aponta a interrupção de um período de 40 anos de redução dessa lacuna social. “Antes da pandemia, o Brasil estava rompendo o atraso. Isso se quebra e surge uma cicatriz no mercado de trabalho”, afirmou o economista.


Dados atualizados

Essas faixas mais vulneráveis da população atravessaram o primeiro ano da pandemia com a proteção do Auxílio Emergencial. Mais de 60 milhões de pessoas receberam a ajuda aprovada pelo Congresso Nacional para amparar as famílias e a economia do país.

Dados oficiais atualizados, em 2021, revelam a dimensão da calamidade no mercado de trabalho. Antes das restrições decorrentes da pandemia, no trimestre encerrado em março do ano passado, o índice de desemprego medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estava em 12,2%. Entre setembro e novembro de 2020, a taxa chegou a 14,1%, pouco abaixo dos 14,3% divulgados no mês anterior. Foi a segunda queda, depois do pico de 14,6% registrado em julho.

Os números fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, divulgada no dia 28 de janeiro. O indicador manteve o número de brasileiros à procura de trabalho, acima do patamar de 14 milhões. Chega-se a um contingente de 32,2 milhões de pessoas subutilizadas no país quando se leva em conta os subocupados, os que desistiram de procurar trabalho e as pessoas que por alguma razão estão impedidas de exercer atividades laborais.

Também no dia 28 de janeiro, o Ministério da Economia informou que em 2020 o Brasil abriu 142.690 novas vagas com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). Apesar do aumento de postos criados ao longo do ano, a tendência se inverteu em dezembro, com déficit de 67.906 na relação entre contratações e demissões.
O resultado anual positivo se deve, principalmente, ao socorro do governo. Como o Auxílio Emergencial acabou em janeiro, a pressão por empregos tende a aumentar ao longo do semestre. Simultaneamente, o Congresso Nacional discute formas de compensar o fim da ajuda oficial.

A implementação de novas medidas depende, entretanto, da negociação dos interesses do governo e dos parlamentares em um ambiente de reacomodação dos grupos internos, deslocados com os movimentos provocados pela sucessão nas Mesas Diretoras da Câmara e do Senado.
Desde meados de 2020, especialistas alertam para a deterioração do mercado de trabalho – formal e informal – em decorrência da Covid-19. Um estudo publicado em setembro de 2020, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apresentou os primeiros efeitos da doença nos empregos. Assinado pelos pesquisadores Sandro Sacchet de Carvalho e Mauro Oddo Nogueira, o artigo “O trabalho precário e a pandemia: os grupos de risco na economia do trabalho” usou números coletados até julho de 2020. O estudo identificou perda na “segurança laboral” tanto no setor informal quanto no formal.


Renda interrompida

Ex-funcionária de um hotel em Brasília, Sandra Maria Rodrigues da Silva, 47 anos, enquadra-se no perfil dos que deixaram a formalidade. Trabalhava em um hotel, com carteira assinada, e tinha salário de R$ 1.400,00. Demitida no início da pandemia, teve a vida familiar abalada pela interrupção da renda. Com seis filhos para sustentar, passou por dificuldades e chegou a faltar comida em casa.

Sandra recebeu seguro-desemprego e não obteve o Auxílio Emergencial. Para suprir as necessidades, passou a fazer e vender bolos e marmitas. Também trabalha com faxina. “Não trabalho todos os dias, mas dá para manter as coisas”, afirmou a trabalhadora à reportagem. Nos últimos meses distribuiu currículo, no entanto, não teve retorno. Afrodescendente, Sandra não sente discriminação por causa da sua cor. Mas nota mais dificuldade em encontrar um novo emprego por causa da idade.

A reportagem procurou Oddo Nogueira, um dos autores do trabalho do Ipea, para analisar os dados atualizados do CAGED e da PNAD em comparação com as percepções registradas no artigo do ano passado. “O cenário está melhor por causa do Auxílio Emergencial, que segurou a demanda. As pessoas continuaram comprando, comendo, teve uma sobrevida, especialmente, das pequenas empresas”, avaliou o técnico do Ipea.

A concessão do benefício pelo governo permitiu a abertura de lojas em espaços fechados no início da pandemia e, com isso, reduziu a procura por vagas. “Se o auxílio não for prorrogado, vai ser outra pancada, fecha tudo de novo”, explicou Oddo Nogueira.

Mesmo com todo o impacto positivo, o alívio proporcionado pela verba federal foi insuficiente para derrubar a alta taxa de desemprego, mantida acima de 14%. Oddo Nogueira ressalta, ainda, que esse indicador não inclui cerca de 4 milhões de pessoas afetadas por um fenômeno chamado, pelos economistas, de “desalento imediato” – quando o trabalhador perde o emprego e não toma a iniciativa de procurar outro.


Industrialização e qualificação, males antigos do mercado de trabalho brasileiro

Ao mesmo tempo que sente o peso da pandemia, o mercado de trabalho, no Brasil, sofre de males antigos, como a falta de qualificação das empresas e dos empregados. Isso se verifica fortemente em função da desindustrialização do país, observa o Sociólogo Glauco Arbix, Coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP). Nestas circunstâncias, prevê, haverá uma queda brutal da participação na renda dos trabalhadores do meio e da base da pirâmide.

“Vamos ter um Brasil com desigualdade, no mercado de trabalho, cada vez maior. Isso é um problema da estrutura da economia que é difícil resolver”, afirmou Arbix em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, no dia 17 de janeiro. “Pode-se tentar resolver com sistema de educação e qualificação e, com isso, oferecer oportunidades, mas não há garantias de que esse pessoal vai encontrar uma posição melhor”, acrescentou.

Na análise do sociólogo, o Brasil passa por um fenômeno chamado pelos economistas de “desindustrialização prematura”, um processo rápido e intenso de mudança no setor. “Europa e EUA demoraram muito tempo para ter a transferência da manufatura para a área de serviços. Aqui, ela ocorre rapidamente, não há condições boas para requalificar empresas e trabalhadores e cria-se uma economia disfuncional. Parte das empresas e dos trabalhadores é qualificada; outra, não”, explicou o professor da USP.

As mudanças provocadas pelo isolamento social prejudicaram algumas áreas de forma mais dramática, caso da educação. Psicopedagoga e Professora de Língua Portuguesa, Jordana de Souza Rodrigues, 36 anos, foi demitida em julho de uma escola particular de ensino fundamental, no Distrito Federal. A queda na receita levou a empresa a reduzir as despesas com o quadro docente.

Com sete anos de empresa, Jordana teve uma carreira estável até a demissão no ano passado. Começou a trabalhar em sala de aula aos 21 anos, qualificou-se, trocou de emprego algumas vezes e, assim, obteve ganhos nos salários e melhores condições para lecionar. Ganhava R$ 3.500,00 na última escola, onde chegou sete anos antes. No início da pandemia, assim como os colegas, teve o salário reduzido. “Eu me dedicava ao máximo, gravava as aulas em casa, com dificuldade. Depois de dois meses voltaram com nosso salário normal e, logo, demitiram todo mundo”, conta a professora.

Jordana recebeu seguro-desemprego, mas o benefício acabou. O marido mantém a casa, enquanto ela aguarda o chamado para uma vaga de secretária escolar, o prazo de validade vai até o final de 2022. Também fez algumas entrevistas em escolas privadas, mas percebe a retração do mercado, ocupado por novos contratados. “Aguardo o dia de amanhã, esperando o que Deus proverá”, conforma-se.


Incógnitas afetam o destino de milhões de brasileiros

Dúvidas quanto ao futuro dos empregos, como ao da professora do Distrito Federal, inquietam habitantes do mundo todo, nestes tempos de pandemia. No Brasil, em particular, o horizonte da economia depende, em grande parte, do desempenho dos governos no enfrentamento do coronavírus.
Nesse sentido, como tratado acima, a pressão sobre os postos de trabalho está diretamente atrelada a alguns fatores ainda indefinidos. São incógnitas que, quando resolvidas, terão influência decisiva no destino de dezenas de milhões de brasileiros.

Uma das condicionantes é o Auxílio Emergencial. Se a ajuda oficial for prorrogada, segura, pelo menos em parte, a demanda por postos de trabalho, como ocorreu no ano passado. No início de fevereiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou a intenção de retomar o benefício para cerca de 30 milhões de pessoas, metade do número alcançado em 2020. A possiblidade de postergação de regras de flexibilização dos contratos de trabalho também vai influir na capacidade das empresas de preservar o quadro de pessoal.

Por fim, todas as expectativas se voltam para a capacidade do Brasil de assegurar a imunização da população em ritmo mais célere. O país entrou atrasado na corrida por vacinas e, com isso, distanciou-se das nações desenvolvidas – condição que prejudica o reerguimento da economia nacional e, por causar impactos distintos na sociedade, aprofunda as desigualdades internas.

Quadro sem precedentes

Um relatório divulgado em janeiro pela Oxfam, entidade que reúne organizações governamentais de diferentes regiões do planeta, constata que a pandemia provocou aumento da desigualdade em praticamente todos os países do mundo – situação sem precedentes desde o início dos registros, há um século.

O agravamento do quadro se manifesta na rápida recuperação das fortunas perdidas por milionários no início da propagação da Covid-19, ao passo que entre os mais pobres o retorno à condição anterior pode levar mais de uma década. “A crise expôs nossa fragilidade coletiva e a incapacidade de nossa economia profundamente desigual trabalhar para todos. No entanto, também nos mostrou a importância vital da ação governamental para proteger nossa saúde e meios de subsistência”, afirma o documento da Oxfam.

No Brasil, como sabemos, estes sintomas são antigos e persistem na terceira década do século. A pandemia apenas tornou a injustiça mais evidente.


RPD || Mauro Oddo Nogueira: O Brasil tem jeito - Basta olhar para o BRASIL

Para falar sobre a economia brasileira, com bases reais, é preciso tratar da realidade dos autônomos e empregados informais invisíveis, que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis – e também, dos autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs), avalia Mauro Oddo

Por mais idas e vindas que se apresentem, a vacina não tarda. Então, é hora de refletir sobre como reconstruir o tecido produtivo do Brasil, após uma crise estrutural que se arrastava há 4 anos e à qual se somou o cataclismo da Covid-19. A resposta pressupõe uma reflexão sobre, afinal, de qual Brasil estamos falando? Pensamos somente no Brasil da Avenida Paulista ou incluímos o BRASIL no qual a renda média do trabalhador é de R$ 2.400,00 por mês (com uma mediana bem abaixo disso)?

Vamos, pois, falar um pouco do BRASIL. Ele é composto, basicamente, por dois segmentos de trabalhadores. O primeiro, autônomos e empregados informais, representando cerca da metade dos trabalhadores do país. São os invisíveis que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis. O segundo, os autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs): cerca da metade dos trabalhadores formais. Ou seja, ¾ dos trabalhadores é o contingente que dá forma à desigualdade no Brasil. Portanto, falar de economia brasileira sem falar deste BRASIL é falar de qualquer outra coisa, menos da economia brasileira.

Mas o fato é que só episodicamente essa realidade não foi marginal em nossos projetos de desenvolvimento. Desde a temática econômica da mídia às políticas públicas e às Universidades, com raríssimas exceções, esse mundo passa longe. Longe dos currículos dos cursos de Economia, Administração, Engenharia e Direito, aqueles que conformam o ethos das nossas “elites dirigentes”; das discussões na mídia; e, quando muito, é periférico nas ações governamentais. Não pensamos no BRASIL, pelo fato de o desconhecemos. O Brasil dos debates e das políticas econômicas é e sempre foi o Brasil da Avenida Paulista. O resto é “questão social” …

E o que nos diz o olhar em direção ao BRASIL? Diz, incialmente, que a lenda de “primeiro crescer o bolo para depois dividi-lo” – bordão da ditadura que continuou subjacente à boa parte das políticas econômicas que se seguiram – é uma falácia. Seja porque esse momento “da divisão” nunca chega, talvez seja porque a realidade mostra que a lógica deve ser exatamente a inversa. É pela criação de demanda que a economia se desenvolve. E criação de demanda em nosso país se traduz essencialmente em elevação da renda da população do BRASIL. Temos duas provas recentes disso. A política do salário mínimo conduzida por Lula é uma. A outra é a evidência de que só não ocorreu um colapso econômico por conta da pandemia, graças ao Auxílio Emergencial.

Mas aí caímos em uma outra questão: como elevar a renda dessa população? Não entrarei na questão das transferências e dos programas de renda mínima, tema merecedor de tratamento muito mais atencioso nos debates. Vou me ater à vertente produtiva e o que considero seu conceito chave: produtividade do trabalho. Como dito acima, o BRASIL produz, basicamente, na informalidade e nas MPEs. Apresentarei apenas uma comparação: aqui, a produtividade de um trabalhador de uma pequena empresa formal é 27% daquele de uma grande; e de uma micro, é de 10%.

Na Alemanha, essas relações são de 70% e 68%, respectivamente (dados da CEPAL de 2012). Imagine nas atividades informais! Por favor, não digam que esse trabalhador é, como indivíduo, muito menos produtivo que o alemão. Não! Se colocarmos um desses trabalhadores em um posto de trabalho de uma grande empresa nacional ou de uma microempresa alemã, sua produtividade rapidamente se igualará àquela normal dessa empresa. O problema está no conteúdo técnico do posto de trabalho. Em outras palavras, tecnologias de processo e de gestão.

Fica evidente que não há como aumentar a renda do trabalho sem aumento de produtividade. E não há como aumentar sistemicamente a produtividade sem demanda, isto é, sem renda. Assim, somente um círculo virtuoso de produtividade e renda pode nos levar a superar o atraso econômico e a desigualdade social. E não há outro caminho para tanto senão um investimento maciço por parte do Estado no conteúdo técnico dos postos de trabalho via modernização de processos organizacionais e produtivos das MPEs. Isso pressupõe profunda revisão (ou reinvenção) da arquitetura e dos montantes dos mecanismos de crédito, de apoio em qualificação gerencial e de regulação ora oferecidos para o BRASIL. O que, por sua vez, pressupõe tirar o binóculo da Avenida Paulista e colocar o BRASIL no “centro do prato” das políticas econômicas, deixando de destinar para ele apenas “as migalhas que caem da borda”, via programas sociais de “geração de emprego e renda”.

*Mauro Oddo Nogueira é doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. Autor de Um Pirilampo no Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.


Hélio Schwartsman: Pedido de impeachment é remédio para não normalizar atitudes contra a democracia

Há situações em que batalhas simbólicas precisam ser travadas, mesmo quando estamos cientes de que não as venceremos

Donald Trump foi, pela segunda vez, absolvido num processo de impeachment. Tal resultado era mais ou menos óbvio, ainda assim os democratas insistiram na ação contra o ex-presidente. Valeu a pena?

Do ponto de vista pragmático, a decisão dos democratas parece difícil de sustentar —e não apenas pela previsibilidade do desfecho. Processos de impeachment presidencial servem basicamente para um país livrar-se de um líder que não se mostrou à altura do cargo. No caso deste segundo processo contra Trump, isso nem sequer se colocava, pois seu mandato já havia acabado.

Existia, é verdade, a possibilidade de, com a condenação, aplicar uma pena acessória que o impediria candidatar-se em 2024, mas não creio que essa tenha sido a principal motivação dos democratas. A grande preocupação, penso, foi com aquilo que podemos chamar de julgamento da história.

No cálculo das lideranças democratas (e de alguns republicanos), as ações de Trump que culminaram na invasão do Capitólio constituem um dos mais duros golpes jamais desferidos contra a democracia americana. Deixar de tentar aplicar o remédio constitucional cabível, que é o impeachment, seria, no plano moral, normalizar essas atitudes, o que é bem complicado, para dizer o mínimo.

Concordo com o raciocínio e acho que ele vale para o Brasil sob Bolsonaro. Embora me considere um pragmático, creio que existam algumas situações em que batalhas simbólicas precisam ser travadas, mesmo quando estamos cientes de que não as venceremos.

O impeachment, hoje, não seria aprovado, mas daí não decorre que a parcela dos brasileiros que rejeita as atitudes do capitão reformado não tenhamos a obrigação moral de pelo menos ensaiar uma reação institucional para que seus muitos crimes de responsabilidade não fiquem impunes. É uma satisfação que devemos à história. Sem ela, os pósteros irão com razão nos considerar um país de maricas.


Pedro Fernando Nery: O auxílio emergencial salva vidas?

Sem o auxílio emergencial talvez tivéssemos vivido a pandemia de forma mais parecida com o México, que não implementou nenhum benefício relevante; lá, como aqui, o presidente minimizou a pandemia

No debate sobre uma nova rodada do auxílio emergencial, tem-se apontado que o benefício teria sido exagerado em 2020. É que ele teria provocado um aumento da renda das famílias mais pobres, ao invés de apenas repor a renda perdida – um exagero que afetaria negativamente a própria economia diante da alta dívida pública. O argumento elide um ponto importante do auxílio emergencial – o seu caráter sanitário. Para além dos dados de renda, devemos nos perguntar: o auxílio salvou vidas?

Na sexta-feira, perguntado sobre a prorrogação do benefício, o presidente da República respondeu “cobra de quem determinou ficar em casa”. O raciocínio não deixa de ser coerente: o auxílio de fato foi concebido para ajudar as pessoas a ficarem em casa. A fala do Presidente ajuda a conjecturar o que teria acontecido sem um auxílio emergencial vigoroso: a perda de renda forçaria as pessoas a circular em busca de uma ocupação.

Além disso, tornaria parte da população um prato cheio para a desinformação. É muito mais fácil acreditar em mentiras no WhatsApp e se indignar contra as medidas de distanciamento quando há o medo de perda de renda na família. Na economia comportamental, chama-se de “viés de confirmação” a tendência que temos de selecionarmos as informações mais convenientes para os nossos valores. 

Outro lembrete do negacionismo de autoridades brasileiras foi dado no domingo, quando o general ministro-chefe da Secretaria de Governo declarou que “o tal do fique em casa foi um erro”. Sem o auxílio emergencial talvez tivéssemos vivido a pandemia de forma mais parecida com o México, que não implementou nenhum benefício relevante. Lá, como aqui, o presidente minimizou a pandemia: neste caso o esquerdista Andres Manuel López Obrador (AMLO), coadunando com a “teoria de ferradura” (que prescreve que extremos do espectro ideológico não se afastam, mas se encontram).

O México, com AMLO e sem auxílio, conseguiu simultaneamente conquistar um aumento expressivo da pobreza e um número elevado de óbitos. A taxa de mortes é de 1.400 por milhão de habitantes, a maior da América Latina. Supera a brasileira de 1.100 por milhão, embora sua população seja mais jovem. A taxa mexicana aqui resultaria em dezenas de milhares de mortes a mais.

De fato, estudo do economista Marcos Hecksher (Ipea) mostra que muitos países da América Latina estão entre os piores do mundo quanto ao índice de mortes na pandemia – quando se pondera pela demografia, mais favorável do que em países com maior proporção de idosos (como os europeus). Entre os vizinhos que desbancam o Brasil, nenhum parece ter instituído proteção social relevante.

Um estudo divulgado no fim de janeiro pelo Instituto de Economia do Trabalho (IZA, da Alemanha) quantificou como na Itália vouchers instituídos na pandemia diminuíram de forma relevante a mobilidade dos cidadãos (Deiana et al., 2021): “programas de auxílio que mitigam a ruptura econômica da pandemia podem fomentar a observância de medidas de distanciamento social, limitando as necessidades de mobilidade de públicos-alvo e nutrindo a crença do público de que a gestão da crise é adequada e justa”.

Poderia se especular que um auxílio emergencial robusto poderia ter o efeito contrário, ao aumentar o poder de compra de tal forma que as pessoas se deslocariam mais para consumir como nunca antes – mas esta evidência não foi colocada. Para outros países, os resultados têm mostrado que mais ajuda é igual a mais isolamento. 

Nos Estados Unidos, identificou-se que as medidas de distanciamento são menos cumpridas pelos mais pobres, e o equivalente do auxílio emergencial lá aumentou o distanciamento social (Wright et al., 2020). Com dados de smartphones, outros pesquisadores chegam a falar em “privilégio do distanciamento social” (Dasgupta et al., 2020). Já a análise de 241 regiões de 9 países da América Latina e na África mostrou que pobreza está associada a maior mobilidade (Bargain e Aminjonov, 2020). 

Por aqui, os psicólogos Jéssica Farias e Ronaldo Pilati, da UnB, aplicaram questionários a mais de 2 mil pessoas para entender os fatores que influenciariam o respeito às medidas preventivas. Em uma exploração inicial, os desempregados e os de menor salário estariam mais inclinados a não respeitar. 

Quanto à renda, o Brasil destoou do resto da América Latina, que observou em maior ou menor grau aumentos da pobreza: aqui, ela caiu por conta do auxílio. Por sua vez, o México ganhou quase 10 milhões de novos pobres – alcançando “níveis alarmantes de insegurança alimentar, particularmente nos domicílios com crianças”, avaliou neste mês o Centro para o Desenvolvimento Global (Blofield et al., 2021)

Se a redução temporária da pobreza é considerada por alguns um retrocesso do auxílio, que o seu impacto potencial sobre as mortes entre em consideração.

*DOUTOR EM ECONOMIA