autoritrismo
Bernardo Mello Franco: Estado de intimidação
A PM de Brasília prendeu cinco manifestantes que abriram uma faixa contra o presidente na Praça dos Três Poderes. A notícia remete aos anos de chumbo, quando os militares perseguiam quem ousasse contestar a ditadura. Aconteceu ontem, sob o governo de Jair Bolsonaro.
A escalada autoritária é liderada pelo Planalto. O ministro da Justiça, André Mendonça, ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar os críticos do chefe. Já mandou a Polícia Federal instaurar inquéritos contra jornalistas, advogados e até cartunistas.
Agora o exemplo do pastor inspira bolsonaristas nas polícias civis e militares. Num país governado por um fã do AI-5, há sempre um guarda da esquina disposto a rasgar a Constituição.
O professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, considera que o Brasil já vive sob um “estado de intimidação”. “O objetivo das investidas policialescas é gerar um clima de medo e autocensura. É uma forma de repressão preventiva”, define.
A crônica dos abusos só aumenta. No Rio Grande do Sul, professores foram processados por criticar o presidente. No Rio de Janeiro, pesquisadores foram intimados por denunciar o desmonte da Casa de Rui Barbosa.
No Tocantins, o ministro Mendonça mandou a PF investigar um sociólogo que pede impeachment de Bolsonaro. Seu crime foi escrever, num outdoor, que o capitão “não vale um pequi roído”. O pequi ainda não foi ouvido para se defender da comparação.
Os manifestantes de Brasília foram enquadrados na LSN porque chamaram o presidente de “genocida”. Três dias antes, o youtuber Felipe Neto foi convocado a depor pelo mesmo motivo. Em ambos os casos, recorre-se a uma lei da ditadura para sufocar a liberdade de expressão na democracia.
“A LSN está sendo usada para perseguir quem critica o governo. Isso é um abuso de autoridade e um ataque ao Estado democrático de direito”, diz o advogado Augusto de Arruda Botelho. Ele ajudou a fundar o grupo Cala a Boca Já Morreu, que vai oferecer defesa gratuita a novas vítimas da caça às bruxas.
Enquanto o Supremo não varre o entulho autoritário da LSN, o bolsonarismo continua a cultuar a tirania. A Justiça Federal acaba de autorizar o Exército a festejar o 57º aniversário do golpe de 1964. Se a decisão não for reformada, os militares poderão praticar o esporte preferido do seu comandante em chefe.
Vera Magalhães: Sociedade civil, finalmente, inicia reação ao arbítrio
E pur si muove!
Não se sabe se Galileu Galilei de fato proferiu a famosa frase depois de ter renegado a teoria heliocêntrica e se retratado perante a Inquisição, mas ela é, até hoje, um libelo em favor da razão e da Ciência — e contra a censura e a perseguição político-religiosa.
Sim, a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. (Além de se mover, ela é redonda, como recentemente atestou até Jair Bolsonaro, ao aparecer com um globo terrestre movido a pilha numa das suas infernais lives semanais.)
A frase imputada a Galileu me voltou à mente diante da resistência cívico-jurídica organizada pelo influenciador Felipe Neto, que, diante da tentativa de intimidação judicial que sofreu por parte de Carlos Bolsonaro, filho e guarda-costas do presidente da República, montou uma rede com alguns dos melhores advogados criminalistas do Brasil, para defender gratuitamente aqueles que vierem a ser perseguidos por se manifestar contra o governo e o capitão.
A inaceitável tentativa de enquadrar o youtuber na Lei de Segurança Nacional caiu por ora, graças a uma liminar, mas a ameaça autoritária já há muito saiu do campo da possibilidade e da retórica para virar realidade cotidiana.
Nesta quinta-feira, foi a vez de manifestantes serem presos por protestar em frente ao Palácio do Planalto portando cartazes e faixas chamando Bolsonaro de “genocida”.
A Polícia Militar do Distrito Federal executou a ação e tentou envolver a Polícia Federal, que liberou os manifestantes e, desta vez, não participou da tentativa de cerceamento à livre manifestação.
Digo “desta vez” porque, acionada diretamente pelo ministro da Justiça, André Mendonça, a mesma PF abriu recentemente inquérito contra um sociólogo do Tocantins que confeccionou um outdoor dizendo que o presidente vale menos que um caroço de pequi roído.
O cerco não é hipotético, não se trata de paranoia da oposição nem de exagero dos críticos. Mais: ele é alimentado pelo recurso cada vez mais frequente do próprio presidente a ameaças veladas ou abertas a medidas “drásticas” ou “precipitadas”, como ele fez nesta quinta naquele bate-papo com puxa-sacos no cercadinho do Alvorada.
Que haja por parte da sociedade civil organizada — influenciadores, advogados, artistas, jornalistas — a organização de respostas claras, imediatas, destemidas e, sobretudo, concretas a esse caldo de cultura golpista é, finalmente, um alento, uma vez que as instituições, que tenho cobrado a cada artigo neste espaço, seguem inertes.
Bolsonaro é, cada vez mais, um bicho acuado. Pela própria covardia, pelo negacionismo que praticou neste ano de pandemia — e que é, sim, o grande responsável pela maioria das mais de 287 mil mortes registradas pela Covid-19 — e pela falta de equipe e de bússola que tire a ele e ao país desta gravíssima crise sanitária, econômica, social, moral e política que atravessamos.
Alguém com pendor autoritário assim assustado é um perigo para um país já traumatizado e com instituições frouxas, dirigidas por homens frouxos. Ainda bem que alguém encabeçou uma ação de fácil compreensão e rápida eficácia.
Felipe Neto, diante dos inquisidores, berrou que a Terra se move, sim, e continuará se movendo a despeito da tentativa de mordaça. E não é a primeira vez: no episódio na censura do ex-prefeito Marcelo Crivella a quadrinhos na Bienal do Rio, em 2019, foi o “moleque”, como gostam de bradar os bolsonaristas, a ir lá e comprar todos os livros com temática LGBTQIA+ e distribuir gratuitamente.
Para além das notas de repúdio e da indignação diluída das redes sociais, esse tipo de iniciativa gera resultado. Que ela inspire os que são pagos por nós para zelar pela democracia.