Autoritarismo
Catarina Rochamonte: STF - Autoritarismo contra boçalidade
O deputado se excedeu em palavras e o ministro se excedeu em ato: tentou combater a boçalidade com autoritarismo.
A verborragia do deputado Daniel Silveira que deu azo ao mandado de prisão em flagrante expedido pelo ministro Alexandre de Moraes é de estarrecer pela sua vileza, violência, chulice e boçalidade. Essa boçalidade tem degradado a política brasileira, mas, convenhamos, ela não é exclusividade do deputado que serviu de boi de piranha para o Supremo mandar seu recado ao bolsonarismo.
Que a fala do deputado foi criminosa, parece consenso; todavia, a prisão em flagrante teve sua legalidade amplamente questionada no meio jurídico. O deputado se excedeu em palavras, e o ministro se excedeu em ato: tentou combater a boçalidade com autoritarismo e defender o Estado de Direito corroendo seus alicerces. A punição deveria ter sido pleiteada segundo o rigor das normas constitucionais.
O STF merece muitas críticas, que podem ser feitas sem excessos criminosos. Não apenas pode ser criticado como deve ser investigado, inclusive pela já de há muito proposta CPI da Lava Toga, que está barrada no Senado pelo acordo de impunidade entre os Três Poderes. CPI essa, aliás, que sofreu ativa resistência do senador Flávio Bolsonaro.
Mesmo sendo legalmente questionável, a prisão do deputado foi referendada pela unanimidade do STF e corroborada pela Câmara. O presidente Bolsonaro, por sua vez, silenciou, como já o fizera em relação às prisões de Sara Winter e Oswaldo Eustáquio. É que a turma radical não lhe é útil nesse momento: tornou-se um ruído a perturbar a paz que uniu Planalto, ala anti-Lava Jato do STF e políticos de rabo preso que não se podem indispor com o Supremo.
Se a Câmara optou por não oferecer resistência aos arroubos autoritários dos que se julgam intocáveis, cabe agora ao Senado fazê-lo, abrindo os processos de impeachment protocolados contra ministros do Supremo e instalando a CPI da Lava Toga. Se a independência e harmonia dos poderes é pilar do Estado de Direito, é preciso agora que o Senado exerça algum protagonismo republicano.
Bruno Boghossian: Proteção oferecida por Aras a Bolsonaro é generosa até para os padrões de um aliado
Ao citar estado de defesa, Aras basicamente diz que presidente será salvo por seus próprios impulsos autoritários
Em fevereiro de 2018, o diretor da Polícia Federal disse que o inquérito sobre pagamento de propina a Michel Temer por empresas do porto de Santos seria arquivado. A investigação ainda corria, mas Fernando Segovia tentou livrar o presidente. A tentativa de blindagem pegou tão mal que, antes do fim do mês, o Planalto precisou demiti-lo.
O engavetamento precoce vendido por Segovia naquele caso não chega aos pés do habeas corpus preventivo que Augusto Aras ofereceu a Jair Bolsonaro na terça (19). Sem que ninguém perguntasse, o procurador-geral afirmou em nota que a responsabilização por “eventuais ilícitos” cometidos pela “cúpula dos Poderes” é de competência do Legislativo.
Na prática, Aras avisou que não pretende investigar Bolsonaro pela negligência do governo na pandemia. Para não se indispor com o presidente que o indicou para o cargo e que acenou publicamente com a possibilidade de nomeá-lo para o Supremo, o procurador pediu que os interessados nessa história batam à porta do Congresso.
A salvaguarda concedida a Bolsonaro é generosa até para os padrões de um aliado como Aras. O procurador-geral tentou dar uma cor unicamente política às acusações contra o presidente. Ignorou que há indícios de crimes comuns praticados pelo governo federal na omissão de socorro a Manaus e na sabotagem à vacinação contra a Covid-19.
Na nota, Aras afirmou também que o estado de calamidade pública dos tempos de pandemia “é a antessala do estado de defesa” –uma medida de exceção que pode ser tomada pelo presidente, mas que não deveria estar no horizonte de ninguém. A ideia do procurador-geral era desenhar a tensão que seria provocada por um processo contra Bolsonaro. Mas o texto revelou mais do que isso.
Aras basicamente disse que o presidente está protegido por seus próprios impulsos radicais: quando se sentir ameaçado por investigações, basta estimular os extremistas que o cercam e ameaçar o país com medidas autoritárias para ficar a salvo.
Carlos Pereira: Não consegue ou não sabe governar?
Problemas de governabilidade têm origem nas escolhas equivocadas de presidentes
O presidente Jair Bolsonaro parece ter “jogado a toalha” ao se referir às dificuldades econômicas que o Brasil tem enfrentado e afirmar, de forma peremptória: “o Brasil está quebrado... Eu não consigo fazer nada”.
Discursos de vitimização, de impotência governativa ou de transferência de responsabilidade para outros Poderes sob o argumento de que o governo estaria impedido de governar não são novidade em regimes democráticos e muito menos em sistemas presidencialistas multipartidários, como o brasileiro.
Um exemplo extremo é o do ex-presidente Getúlio Vargas que, em carta-testamento, invocou “as forças e os interesses contra o povo” para justificar seu suicídio em meio a uma grave crise política de seu governo minoritário, agravada após o atentado perpetrado contra o principal líder da oposição, o jornalista Carlos Lacerda.
De forma similar, em sua carta de renúncia à Presidência, o ex-presidente Jânio Quadros argumentou que estaria sendo impedido de governar por “forças ocultas”. Ele desprezou as regras do jogo político, não negociou com os partidos e tentou governar apesar do Legislativo. O descaso de Jânio com o Congresso Nacional era patente.
O ex-presidente José Sarney também reclamou veementemente da suposta dificuldade de se governar o Brasil ao afirmar que “a Constituição de 1988 tornou o País ingovernável”. Chegou a aconselhar o então presidente eleito Fernando Collor que “não se governa sem apoio político”. “Nós tentamos tudo, experimentamos de tudo. O que faltou foi apoio político. O problema do País não é econômico, é político”, vaticinou Sarney.
Parece que o ex-presidente Collor não deu ouvidos aos conselhos de seu antecessor. Recentemente reconheceu que o principal equívoco de seu governo “foi não ter construído uma base parlamentar de apoio que concedesse a solidariedade do Congresso ao presidente da República em um momento de necessidade”. Para Collor, “governo sem base sólida não dura”, pois considera que “o presidencialismo de coalizão traz no seu bojo a incerteza e o vírus da ingovernabilidade”.
O que há de comum em todos esses reclamos de presidentes em relação ao sistema político brasileiro?
Todos esses presidentes escolheram governar na condição de minoria ou tiveram grande dificuldade de construir e de gerenciar de forma sustentável coalizões majoritárias.
Não entenderam que no presidencialismo multipartidário o presidente é o agente central, uma espécie de CEO do jogo político. Suas escolhas acarretam consequências, a despeito das instituições. Não existe “piloto automático” para se alcançar a governabilidade. As decisões e estilo de gerência do presidente são essenciais. Sem esse CEO coordenando os partidos de sua coalizão, as maiorias legislativas, quando formadas, tornam-se instáveis e imprevisíveis, fazendo com que os custos de governabilidade aumentem ou mesmo se tornem proibitivos.
No sistema multipartidário, presidentes necessitam tomar pelo menos quatro decisões na montagem e sustentação de coalizões: 1) número de partidos que farão parte da coalizão; 2) perfil ideológico dos aliados; 3) poder e recursos compartilhados entre os parceiros; e 4) proximidade entre a preferência da coalizão e a mediana do Congresso.
A escolha do presidente por montar coalizões com muitos partidos, ideologicamente heterogêneas, que não contemplam a distribuição proporcional de poder e recursos e que são distantes da preferência do Congresso tendem a gerar menor sucesso legislativo e a ser mais caras ao longo do tempo.
Portanto, quando Bolsonaro choraminga argumentado que “não consegue fazer nada” revela, na realidade, que não sabe governar.
O Globo: ‘Populistas autoritários nem sempre ganham’, diz Steven Levitsky
Steven Levitsky afirma que desfecho do governo Trump deve servir de exemplo para oposição a Bolsonaro
Henrique Gomes Batista, O Globo
SÃO PAULO — Mundialmente famoso por seu livro “Como as Democracias Morrem”, o cientista político e professor de Harvard Steven Levitsky afirmou que o desfecho da invasão ao Capitólio e da tentativa de Donald Trump continuar no poder de qualquer maneira é uma prova que populistas autoritários podem ser parados. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, ele afirma que o fim do governo do republicano deveria inspirar a oposição brasileira e que Trump não conseguiu se manter no poder porque não contou com o apoio dos militares.
O desfecho do governo Trump é marcado pela tentativa de reverter o resultado das urnas com acusações falsas, pressão a funcionários públicos e incentivo à invasão do Capitólio, que fez Trump ficar mais isolado no fim dos eventos. Qual a lição para o mundo?
Bem, talvez a lição seja que os populistas autoritários nem sempre ganham. Eles podem ser parados.
Líderes populistas que copiaram claramente Trump, como Jair Bolsonaro, podem tentar repetir esse caminho e ter sucesso, ao contrário do republicano?
Bolsonaro é talvez o líder que mais claramente copiou Trump. Minha esperança é que o fracasso de Trump os desencoraje, e talvez inspire a oposição brasileira. Os democratas pararam Trump em parte porque uniram a esquerda e o centro. Se a oposição do Brasil não se unir, acho que Bolsonaro pode ter sucesso (na reeleição). A outra grande questão no Brasil são os militares. O exército poderia se recusar a cooperar com uma aventura autoritária, como nos Estados Unidos, ou ajudar Bolsonaro a ter sucesso?
Por que o golpe de Trump, que começou a elaborar maneiras de se manter no poder mesmo perdendo as eleições, não funcionou?
Primeiro, Trump era inepto, desorganizado e indisciplinado. Não houve nenhum esforço coordenado sério, ele foi tímido. Em segundo lugar, muitos funcionários públicos, como autoridades eleitorais, burocratas e juízes se recusaram a cooperar com o republicano. E, o que é crucial, é muito difícil realizar um golpe sem armas. E Trump nunca teve os militares atrás dele.
Qual é a cumplicidade do Partido Republicano em tudo isso?
O Partido Republicano nomeou Trump, apesar de seu comprometimento limitado com a democracia, permaneceu em silêncio enquanto ele abusava do poder, protegeu-o do impeachment e permaneceu em silêncio enquanto ele mentia sobre a fraude eleitoral e tentava derrubar a eleição. Na verdade, muitos líderes partidários cooperaram no esforço de roubar a eleição. Em suma, o Partido Republicano foi altamente cúmplice. O partido protegeu e habilitou Trump.
Qual foi o papel da Justiça e da Suprema Corte?
O poder judiciário, que permanece poderoso e independente, desempenhou um papel crítico no bloqueio do esforço de Trump para derrubar a eleição. Assim como Trump não podia contar com os militares, ele não podia contar com os tribunais.
Luciano Huck & Anne Applebaum: 'Forças democráticas precisam se juntar e criar uma contranarrativa à política do ódio'
Para estudiosa em autoritarismo premiada com o Pulitzer, pós-pandemia exige refundar partidos e explicar como as instituições importam para a vida real das pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado de S. Paulo
Anne Applebaum observou de perto, reportou e analisou o colapso dos regimes totalitários comunistas do Leste europeu na virada dos anos 1980/1990. E tem observado de perto, reportado e analisado com argúcia a recente ascensão de governos de extrema-direita na Europa, especialmente na Polônia, onde passou a viver. A historiadora, que foi editora da revista The Economist e colunista do Washington Post, é uma referência em estudos sobre o autoritarismo contemporâneo no Ocidente.
Por dois motivos, eu fui atrás de Applebaum, que hoje dirige um projeto de pesquisa sobre propaganda e desinformação na Universidade Johns Hopkins (Washington DC). Primeiro, porque ela lançou um dos livros mais cirúrgicos de 2020: O Crepúsculo da Democracia, em que ela traça o perfil de personagens europeus e norte-americanos que desembarcaram do projeto humanista lançado no fim da Guerra Fria e que aderiram à nova geração de ideologias iliberais. Segundo, porque parecem voltar a soprar no Ocidente as brisas de uma correção democrática. A vitória estrondosa de Joe Biden sobre Donald Trump, o maior símbolo do que eu chamo de tecnopopulismo, não é trivial e precisa ser entendida – até para ser emulada.
Essa norte-americana de 56 anos, ganhadora do prestigioso Prêmio Pulitzer, foi uma das primeiras a alertar para a transformação de conservadores que diziam acreditar na democracia liberal, no livre mercado e nos pesos e contrapesos do Estado de direito em um monstro indomável que se alimenta do nacionalismo econômico, da tentativa constante de controle sobre a mídia, a polícia e o Judiciário, do isolacionismo, da negação à ciência, dos ataques às minorias e do exercício constante do ódio.
Para Applebaum, não cabe chorar o leite derramado, mas se empenhar em identificar tais forças e rapidamente criar um movimento capaz de brecá-las. Movimento esse que, segundo ela, deveria nascer da refundação dos partidos e, sobretudo, da busca de sensos comuns. É sobre esse irresistível chamado para um reagrupamento político e para a instalação de uma contranarrativa a fim de deter os extremos antidemocráticos que converso a seguir com essa corajosa mulher.
Applebaum se junta, hoje, a outras figuras da vanguarda do pensamento nesta série de entrevistas do Estadão. Notáveis como a economista Esther Duflo (Nobel de 2019), o filósofo Yuval Harari, o guru digital Nandan Nilekani, entre outros, todos eles iluminadores do mundo pós-pandemia, capazes de nos fazer refletir – e, por que não, agir.
VEJA A SÉRIE COMPLETA 'UMA CONVERSA COM LUCIANO HUCK' :
- Yuval Harari
- Michael Sandel
- Nandan Nilekani
- Esther Duflo
- Thomas Friedman
- Peter Diamandis
- Scott Galloway
- Thomas Piketty
- Rutger Bregman
- Fareed Zakaria
- Anne Applebaum
Luciano Huck: Você era aclamada como uma respeitada intelectual conservadora, de inclinação liberal, mas passou a ser vista como “persona non grata” por boa parte da direita na Europa e nos EUA. O que aconteceu?
Anne Applebaum: O movimento conservador se dividiu em dois nos últimos 10, 15 anos. Ainda existe uma centro-direita, a depender do país. Mas uma parte da direita se tornou muito mais radical. E, ao se radicalizar e se tornar dependente de novas formas de comunicação, ela me perdeu. E perdeu muitas outras pessoas também, embora tenha ganho novos seguidores. Na maioria dos países ocidentais, a direita, tal qual a esquerda, sempre foi uma espécie de coalizão, com diferentes correntes dentro dela. O que aconteceu na última década é que a ala radical tomou conta dessa coalizão. E isso ocorreu de várias formas em muitos países.
Luciano Huck: Está cada vez mais difícil pensar sobre direita e esquerda nesse quadro de radicalização extrema. Mesmo que tenhamos 50 ideias alinhadas, uma única ideia dissonante vira pretexto para pedir cancelamento. Lendo sua obra, você já flertou com diferentes vertentes de pensamento. Como você enxerga essa questão hoje em dia?
Anne Applebaum: Os dois lados operam de formas diferentes, usando táticas diferentes, mas ambos buscam cancelar, desmerecer e descartar seus oponentes. Veja a forma como Donald Trump se livrou de tantos republicanos moderados, de qualquer pessoa que fosse mais centrista e que não concordasse com ele. Ele os atacava no Twitter, para depois seus seguidores os atacarem no Twitter. De certa forma, é a versão direitista iliberal do que tem sido feito pela esquerda no meio acadêmico. Ambos os lados políticos se tornaram mais radicais, parcialmente pelo fato de que agora as pessoas estão performando umas para as outras nas mídias sociais. As discussões que antes aconteciam em quartos pequenos agora acontecem na frente de todos. Isso fez com que se tornassem caricaturas ou cartuns.
“A grande ameaça às democracias é o tecnopopulismo, cujos líderes atuam para corroer o Estado por dentro, como cupins, tão logo chegam ao poder”Luciano Huck
Luciano Huck: A grande ameaça às democracias, a meu ver, não se dará por meio de tanques de guerra e de soldados. Estamos vivendo o perigo dos golpes “botox”. Governos eleitos democraticamente, em sua maioria com uma narrativa populista, usando as falhas disfuncionais das redes sociais para amplificar suas mensagens e corroer o Estado por dentro, como cupins. Tome o caso da Polônia. Em 2010, era um dos países mais promissores da União Europeia – uma ilha de inovação, educação e empreendedorismo. Hoje, dez anos depois, temos um governo xenófobo, antidemocrático, antissemita, ultraconservador, extremista. Qual o aprendizado para o Brasil não seguir a mesma perversa trilha?
Anne Applebaum: Bom, o primeiro passo é identificá-los e não elegê-los. Porque, assim que eles ganham a eleição, eles começam a mudar as instituições. O partido que governa a Polônia nem sempre foi radical e extremista. Durante muito tempo, ele pareceu um partido conservador normal, com base ampla e ambições “mainstream”. Foi desse modo que ele ganhou a primeira eleição, em 2015, aliás. O problema foi que, assim que ele tomou o poder, ele começou, como você disse, a alterar o sistema. Ele assumiu o controle da televisão estatal, que era neutra e um tanto tediosa, e a transformou em uma plataforma de campanhas de difamação contra seus oponentes, de forma bastante unilateral e tendenciosa. Ele dominou o tribunal constitucional e mudou sua natureza, para começar a influenciar como a Justiça funciona. E está tentando levar isso ainda mais longe, depois da reeleição.
Para o Brasil, seja a extrema-esquerda ou a extrema-direita, eu diria para que não os deixem dominar a mídia. E, sobretudo, que não os deixem alterar o sistema judicial. Mas o fundamental é tentar convencer as pessoas o quanto antes de que essas coisas que parecem um tanto abstratas importam. Juízes em suas togas, em algum lugar distante, em um tribunal… o que isso tem a ver comigo? Isso pareceu muito remoto para as pessoas na Polônia. Só mais recentemente, quando esse tribunal ilegítimo começou a tomar decisões controversas, como mudar a lei do aborto, é que muitos jovens perceberam que “opa, isso me afeta”. Logo, convencer pessoas rapidamente de que todo tipo de mudança institucional as impacta é muito importante. Na Polônia, a oposição falhou em fazê-lo.
Luciano Huck: O salto qualitativo da Polônia comunista para a Polônia livre e democrática foi gigante, potente a olhos vistos. Agora o país vive um retrocesso também gigante. Difícil de entender. No Brasil, a sociedade é muito desigual, principalmente a desigualdade de oportunidades, que, somada à corrupção endêmica e à falta de um projeto de país, justifica o descontentamento da maioria da população em relação à política e aos políticos. Isso torna o terreno fértil para o nascimento de narrativas antiestablishment, tecnopopulistas. As narrativas populistas vão sempre no caminho mais fácil: “Tem muito crime? Então, vamos armar a população”. O que justificou o surgimento e a eleição de extremistas na Polônia?
Anne Applebaum: Na Polônia, não temos uma sociedade muito desigual. E temos também uma sociedade em que todo mundo, todo mundo mesmo, dos pobres à classe média, às classes mais ricas, está melhor hoje do que há 20 anos. No entanto, os poloneses não estão melhores do que os europeus ocidentais, como os alemães. A raiva aqui é uma raiva com a desigualdade comparativa frente aos países vizinhos. Muitos poloneses passaram a questionar o fato de continuar “atrás” na Europa mesmo após 20 anos de capitalismo e democracia. Essa é uma coisa. Em segundo lugar, e isso é muito diferente do Brasil, é que temos um problema de emigração, não de imigração. Após a queda do comunismo, em 1989, e após a entrada da Polônia na União Europeia, em 2005, muitas oportunidades de trabalho se abriram em outros países. Muitos poloneses foram embora para trabalhar na Inglaterra, na Suécia, na Alemanha. A percepção para muitas pessoas, particularmente para as parcelas mais pobres do país, é a de que nossos filhos estão desaparecendo e o interior do país foi se esvaziando. Em muitos casos, tradições foram perdidas. Isso deu a sensação de que algo essencial sobre o país se perdeu. Isso costuma ocorrer em países durante o processo de modernização. Quando as coisas mudam muito rapidamente, algumas formas de viver de 10, 20 ou 30 anos deixam de existir. Aquela infância de que as pessoas se lembram já se foi. O jeito que elas cresceram já não é o mesmo jeito que seus filhos estão crescendo.
Então, o sentimento de inferioridade comparado ao Ocidente e essa sensação de que os filhos estão sumindo e as coisas estão ficando irreconhecíveis levaram as pessoas na direção de uma política nacionalista, raivosa e emocional. Como a política se moveu de discussões e debates no mundo real para o mundo online, a qualidade e a natureza do debate político mudaram e simplesmente favorecem pessoas raivosas, emocionais e que conseguem falar em frases curtas. E isso aconteceu em todo lugar. O tipo de campanha política conduzida nas redes sociais na Polônia é o mesmo do que foi feito no Brasil e é o mesmo tipo de campanha que Donald Trump conduziu nos EUA. A política mudou de algo que acontece na vida real para algo que acontece na internet – e isso é uma grande oportunidade para, como você disse, tecnopopulistas.
Luciano Huck: Seja a União Europeia, que hoje exige da Polônia e da Hungria que garantam o estado democrático de direito para ter acesso a recursos emergenciais pós-pandemia. Sejam as grandes potências mundiais engajadas na construção de uma economia mais limpa, que hoje pressionam o Brasil por um compromisso de fato com a preservação ambiental. Como você avalia essa atuação internacional de defesa da democracia, esse exercício global de pesos e contrapesos?
Anne Applebaum: Eu acho que algumas pressões são úteis, mas outras, não. A União Europeia teve muitos problemas em entender como reagir à Polônia e à Hungria, porque ela não foi estabelecida para punir seus próprios membros. Um dos grandes erros que o mundo liberal cometeu, sejam partidos políticos, jornalistas e, em alguns casos, chefes de Estado, como Angela Merkel e outros líderes da Europa, foi o de não pensar mais a fundo sobre como criar uma contranarrativa. Essa nova extrema-direita, tecnopopulista como você citou, trabalha junta, conectada, e compartilha táticas, consultorias, ideias de propaganda. Aqui na Polônia temos quatro partidos de oposição que não se unem em torno de uma mensagem comum. Mesmo o Partido Democrata nos EUA tem duas ou três diferentes facções, com dificuldade de se unir. Criar uma mensagem única em torno dessas grandes ameaças à democracia e encontrar formas de trabalhar juntos, além das fronteiras, para ajudar uns aos outros, é algo que ainda não foi feito. As forças democráticas ainda encaram a política como algo doméstico, nacional, feito apenas dentro das fronteiras. Mas a extrema-direita não pensa assim: ela atua internacionalmente, o que é estranho e paradoxal, já que é nacionalista. Até os trolls online da direita fazem as mesmas coisas em diferentes países. O centro, a centro-direita, a centro-esquerda, os liberais, os movimentos verdes, eles não entenderam que precisam trabalhar juntos, contra-atacar juntos
Luciano Huck: A eleição de Joe Biden, nos EUA, tem qual efeito nessas democracias iliberais e populistas que se multiplicaram mundo afora?
Anne Applebaum: Ela é relevante, mesmo que apenas simbolicamente. O simples fato de termos Trump como líder dos EUA era uma inspiração para a extrema-direita em todo o mundo. Seria mais importante se, como parte de sua política externa, Biden começasse a juntar líderes de democracias ao redor do mundo para ajudar a criar uma nova narrativa para promover a democracia e os valores liberais. Seria mais do que um projeto de mídia ou de diplomacia. É profundo. O que as nossas democracias podem fazer juntas? Podemos reformar a internet juntos? Podemos constranger as plataformas de internet juntos? Podemos juntos parar a lavagem de dinheiro internacional e o dinheiro sujo que distorcem toda a nossa democracia? Dizer que somos todos uma democracia não é o bastante. Precisamos de novos grandes projetos que mudem a forma como a política e a sociedade funcionam e com os quais as pessoas se identifiquem. Biden terá de confrontar a maior crise econômica na história americana recente, a maior crise de saúde pública da história americana recente, terríveis e maculadas relações ao redor do mundo, graças à desastrosa administração de Donald Trump. Ou seja, terá um problema atrás do outro. Mas parece que está surgindo o entendimento em Washington de que acabou a ideia de que os EUA, sozinhos, podem liderar o mundo democrático. Os EUA precisam trabalhar juntos com aliados e parceiros, talvez até com grupos de oposição, no Brasil, na Rússia ou em outros lugares, para atingir os objetivos que pretende.
“Temos uma relação exageradamente passional com os políticos. Deveríamos estimular a capacidade de análise de ideias e projetos, como clientes-cidadãos”Luciano Huck
Luciano Huck: Enxergo alguns desses governos tecnopopulistas, mesmo sendo de extrema-direita, voltando os olhos para Vladimir Putin. Não me assustaria o atual governo brasileiro migrar de uma narrativa de subserviência a Trump para Putin.
Anne Applebaum: É possível. Certamente é o que vai acontecer na Hungria e em alguns outros países na Europa Oriental. Não na Polônia, que continua a ter medo de Putin. Mas, sim, é possível.
Luciano Huck: A pandemia trouxe para o centro do debate temas muito importantes que não tinham o devido protagonismo. Combate às desigualdades, racismo, antirracismo, feminicídios, igualdade de gênero. Aliás, as melhores gestões da crise sanitária e econômica da covid-19 foram lideradas por mulheres, casos de Angela Merkel e Jacinda Ardern. Como você, como uma mulher de voz potente e ouvida ao redor do planeta, enxerga essa questão?
Anne Applebaum: Na minha visão, você deveria fazer a pergunta ao contrário. A pergunta deveria ser “Os países que estão preparados para eleger mulheres a posições de poder se saíram melhor na pandemia?”. Em outras palavras, não acho que foi o fato de as líderes serem mulheres, mas o fato de que esses países estavam maduros para ter mulheres em cargos de liderança. O que ficou claro na pandemia é que os países que se saíram melhor foram aqueles com maiores índices de confiança no poder público e na ciência. Olhando apenas para democracias: Nova Zelândia, Alemanha, Coreia do Sul, Taiwan, em todos esses casos havia uma questão de crença, de fé na burocracia pública, nos serviços e servidores públicos.
Luciano Huck: Estar no debate público exige um grande estoque pessoal de felicidade. É preciso ter muita energia para gastar e não se deixar derrubar. Você está nessa arena há um bom tempo, se envolvendo em temas espinhosos. Como é isso para você?
Anne Applebaum: Essa é uma pergunta interessante, porque é algo que mudou muito. Se você é político, jornalista ou alguém com esse tipo de atuação, sempre foi normal encontrar pessoas que discordam de você, algumas delas desagradáveis. Mas até uns dez anos atrás você não era o foco da raiva, do ódio dessas pessoas. Hoje, se você está na vida pública, em qualquer posição, se você for uma celebridade, um popstar, um atleta, tendo ou não a ver com política, você terá de se acostumar com a existência de campanhas negativas nas redes sociais, desse lado feio da natureza humana, que vem à tona especialmente quando as pessoas conseguem ser anônimas. Você precisa aprender a lidar com isso. A minha forma é simplesmente ignorar os ataques, mas é muito difícil as pessoas aprenderem isso. Você deve ter o mesmo problema, não? Espero que algum dia encontremos uma maneira de regular as plataformas sociais, não censurá-las, mas de encontrar alguma forma, algum algoritmo, que favoreça o discurso construtivo e um melhor diálogo. Esse é o meu grande desejo para a próxima década. Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio. E me preocupa que a qualidade da vida pública sofra por causa disso, especialmente em democracias.
“A política permite reagrupamentos, e devemos tirar proveito disso. Pense não somente em quem são seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado.”Anne Applebaum
Luciano Huck: Ultimamente, as pessoas têm criado relação exageradamente passionais com os partidos e os políticos. Em vez de uma relação de noivado, deveríamos construir uma relação de clientes-cidadãos, com uma melhor capacidade de análise de ideias e projetos. Como se estivéssemos contratando um serviço, e não fazendo um pedido de casamento. Como você enxerga a formação de novas lideranças e o futuro da política partidária?
Anne Applebaum: Concordo com você. Estamos desesperadamente necessitados de um novo modelo de partido político. A social-democracia na Europa nasceu de sindicatos e grêmios, de pessoas reais se encontrando no trabalho. A democracia cristã, que compõe os principais partidos de direita e centro-direita na Europa, surgiu de movimentos baseados na igreja, não na religião, mas em grupos religiosos, pessoas reais que se conheciam em clubes da juventude católica e fóruns assim. Hoje, não está mais clara a conexão dos partidos com as pessoas. Eles perderam sua raiz e seu propósito. E, nesse sentido, não surpreende que as pessoas estejam começando novos movimentos políticos na internet. As pessoas agora experimentam a política de forma online e procuram pessoas online com quem possuam coisas em comum. Há um partido político na Europa que nasceu de um fórum de discussão na internet, o Movimento 5 Estrelas, da Itália. Infelizmente, nunca teve políticas muito claras e atraiu pessoas aleatórias e líderes iliberais. Mas é uma experiência interessante: uma forma de juntar pessoas em torno de um determinado conjunto de problemas, discutir esses temas online e criar um movimento político significativo. Suspeito que vamos ver mais casos desse tipo. Se você conseguir fazer com que as pessoas se motivem a trabalhar em suas comunidades, focando em problemas reais em vez de problemas de guerra cultural, que só fazem as pessoas sentirem raiva, isso pode fazer com que novas pessoas entrem na política. Ainda precisamos de partidos, do contrário nossos sistemas parlamentares não funcionam muito bem. Mas concordo com você de que os partidos modernos, como eles existem hoje, não refletem mais uma visão coerente de mundo.
Luciano Huck: Além de perder a capacidade de liderar qualquer agenda global, durante a pandemia o Brasil tornou-se um país a ser evitado. Nosso fracasso no combate à doença, impulsionado pelo negativismo do governo, que também atropelou nossa cultura, nosso patrimônio histórico, somado à destruição da Amazônia e a uma não política de defesa da floresta, o que afasta investidores relevantes, nos isolou do mundo e nos colocou nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica. Como você avalia a situação do Brasil?
Anne Applebaum: Eu não sou uma expert sobre o Brasil, embora já tenha estado aí e adoraria voltar. Mas a lição para o Brasil é a mesma para tantos outros países. É ridícula a ideia de que o Brasil conseguirá prosperar, se desenvolver e melhorar a vida de seus cidadãos ao se descolar do resto do mundo. Nenhum de nós consegue viver sozinho. A pandemia nos ensinou que estamos todos conectados. A começar pela rapidez do contágio, causada pelo fluxo global de viagens. Do mesmo modo, as vacinas e os remédios para a doença são soluções globais, serão distribuídas graças a instituições internacionais. São farmacêuticas americanas trabalhando junto a empresas alemãs; uma das principais empresas alemãs é liderada por um casal turco-alemão, que é imigrante; a testagem dessas novas vacinas e tratamentos foi realizada ao redor de todo o mundo, África do Sul, Brasil, EUA, Grã-Bretanha... Todos nós estamos absolutamente integrados no mundo, querendo ou não. Assim, se o Brasil deseja prosperar e os brasileiros querem que o seu país seja mais feliz e mais habitável, eles precisam estar integrados ao resto do mundo e precisam se perguntar se possuem um governo que os sirva nesse sentido. A Amazônia é o seu grande tesouro internacional. É o que vocês possuem que os distingue. Cuidar dela e investir nela, preservando-a para futuras gerações, é uma das maiores coisas que o Brasil pode fazer para se tornar uma grande nação. Imaginar que queimá-la vai contribuir de alguma forma para o bem-estar dos brasileiros é estranho e errado.
“Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio.”Anne Applebaum
Luciano Huck: No seu livro, você lembra uma passagem interessante da “sua turma de 1999”, usando uma festa de réveillon na sua casa como pano de fundo. Aquele grupo hoje em dia nem se cumprimenta em razão de divergências políticas e visões distintas sobre a democracia. Se você fizesse uma festa hoje na sua casa, qual seria o assunto? E como você imagina esse grupo daqui a 20 anos?
Anne Applebaum: A política promove reagrupamentos. Pessoas que antigamente eu considerava esquerdistas demais para conversar hoje são meus amigos. Pessoas que eram meus amigos agora estão em algum outro lugar. Esses reagrupamentos políticos acontecem periodicamente. Não há nada de estranho nisso. Na verdade, deveríamos tirar proveito disso. Acho que a lição da minha festa de 1999 é “tenha certeza que você terá sempre a capacidade de fazer novos amigos”. Ou, colocando de outra forma, “pense sempre em quem são os seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado”. Se o projeto é proteger a Amazônia, por exemplo, ou transformar a economia brasileira, observe ao redor para entender quais grupos sociais, quais pessoas, quais partidos políticos poderão ser os seus aliados, mesmo que você ainda não os conheça. Encontre novos aliados, faça novas coalizões. As velhas coalizões podem não ser mais as corretas.
Luciano Huck: Muito obrigado.
Janio de Freitas: Autoritarismo já avançou muito mais do que notamos
Atos vistos como abusivos ou extravagantes configuram situação de anormalidade em que nenhuma instituição é o que deveria ser.
O autoritarismo que ataca no varejo, aqui e ali, até formar a massa de truculência que é um Poder incontrastável, já avançou muito mais do que notamos. Os atos vistos como abusivos ou extravagantes, e logo deslocados em nosso espanto por outros semelhantes, já configuram uma situação de anormalidade em que nenhuma instituição é o que deveria ser.
O incentivo que Bolsonaro já propaga para recusas a vacinar-se amplia a descrença que difundiu na contaminação e, sem dúvida, responde por um número alto e incalculável de mortes. Só a vacinação impedirá aqui, se chegar em tempo, o repique que alarma a Espanha, repõe os rigores na Nova Zelândia, abala cidades mundo afora. Nada concede a Bolsonaro a liberdade para as suas pregações homicidas.
Se, no início da pandemia, a atitude de Bolsonaro causou pasmo e indignação, a de agora, apesar de mais grave, é recebida como mais extravagância amalucada e eleitoralmente interesseira. E não como arbitrariedade que se inscreve no Código Penal.
A proibição de Paulo Guedes aos seus assessores, altos escalões do Ministério da Economia, de conversar com Rodrigo Maia, parece uma bobice que nem fica mal no atônito ministro. É, porém, uma atitude só identificável com regimes de prepotência. Os assessores não discutiam com Rodrigo Maia, mas com o presidente da Câmara. Sobre projetos a serem votados e cuja forma influirá na vida nacional, por isso mesmo sujeitos a discordâncias parlamentares.
Onde problemas assim são tratados com responsabilidade, a integridade da Câmara e a repercussão levariam à pronta saída do ministro desajustado. A solução aqui é típica: Maia passará a conversar, em nome da Câmara e sobre assuntos grandiosos como reformas, com um general do bolsonarismo. E o Congresso ficará mais diminuído e passível de mais truculências ditatorialescas.
Os jagunços do prefeito Marcelo Crivella estão atualizados: mostram bem até onde o autoritarismo e a truculência se infiltram nos costumes e nas pessoas.
O bispo Crivella é uma personalidade estranha. Mas, por menos que fosse esperado dele, é surpreendente a sua adesão à truculência para impedir o trabalho de repórteres indefesas. E para afugentar pacientes desesperados nas entradas do inferno hospitalar mantido pela prefeitura. É o que traz da aliança com o bolsonarismo.
O avanço de Bolsonaro na posse do Poder, por ausência de força adversa, não ameaça só as instituições democráticas. “Quem vai decidir sou eu. Nenhum palpite” —é sua advertência no importante assunto da futura, e já atrasada, adoção da tecnologia chamada 5G. Trata-se de uma revolução fantástica nas possibilidades originadas da internet. A disseminação da 5G mudará o mundo.
Será um desastre condenatório para o Brasil se assunto de tal dimensão tecnocientífica ficar com um ignorantaço. Além do mais, confessado entreguista aos Estados Unidos e, portanto, incapaz de ser a voz do futuro brasileiro na escolha entre a tecnologia norte-americana e a chinesa.
O governo Bolsonaro, aliás, já mostrou do que é capaz neste tema, protelando a decisão para o ano que vem. O pretendente a ditador quer decidir sozinho porque, afinal, o atraso é útil ao país do seu ídolo Trump, hoje em reconhecida desvantagem na confrontação tecnológica.
Como a Justiça tarda mas não chega, os Bolsonaro ganharam no Rio uma censura judicial à TV Globo. E o bem informado portal GGN, do jornalista Luis Nassif, foi posto sob outra forma de censura também judicial: a retirada de notícias sobre negócios, no mínimo polêmicos, do banco BTG Pactual. A censura nunca é casual nem isolada. Exprime um ambiente institucional.
Ao menos para não fugir ao seu projeto social, Bolsonaro e Paulo Guedes decidiram por uma concessão: o aumento do salário mínimo a vigorar em 2021. Dos atuais R$ 1.045 para R$ 1.067. Mais R$ 22 por mês. Ou R$ 0,73 por dia.
Vladimir Safatle: não falar
Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho
A ideia inicial era escrever outro artigo. Depois de meses envolto em questões sobre pandemia e escalada autoritária, a ideia era falar de algo outro., qualquer coisa de outro. Mas é possível que em situações parecidas o dito de Adorno “Não é possível fazer poesia após Auschwitz” ganhe certa atualidade e se imponha em sua força. Um dito arquiconhecido, é verdade, mas que talvez queira dizer algo muito preciso e por vezes esquecido. Claro que não significava que a poesia era agora coisa do passado. A poesia não tem passado, nem presente e muito menos futuro. Só que Adorno procurava dizer que, para escrevê-la a partir de então, haveria de se sentir o impossível de uma língua que não quer mais voltar ao normal, que não quer voltar às formas de lírica depois que descobrimos não exatamente a morte industrial, mas a indiferença à morte industrial como funcionamento social normal.
Cada palavra, para ter algum conteúdo de verdade, deveria saber como ressoar esse “não é possível”, deveria deixar claro sua vontade de explodir uma gramática que parecia profundamente cúmplice da violência do que não se pode tolerar. Sorrir, dizer “cuide de si”, tocar um acorde perfeito, falar “eu te amo” era apenas outra forma de puxar o gatilho mais uma vez. Diante de 100.000 mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho.
Por isto, o dito de Adorno talvez devesse ser lido conjuntamente com outra frase, esta vinda de Vladimir Maiakovsky: “Dai-nos uma arte revolucionário que livre a república dessa escória”. Essa escória que a República se tornou, essa mistura de ritmo de matadouro com lives sobre os desafios da paternidade e ensinamentos sobre “como viver sozinho e permanecer feliz”, que ela se arruíne para sempre. Mas ela só começará a ruir quando nos confrontarmos a uma língua que não queira mais falar como até agora se falou, que se recuse a pactos em todos seus níveis. Que não terá mais o tom dos conselhos psicológicos que damos a deprimidos ou a pessoas que esperam de terceiros alguma descrição sobre o caminho da felicidade, que não confundirá mercadorias da indústria cultural e suas linguagem reificadas como a forma máxima da emancipação racial. Como essa linguagem, com essas falas, com essa naturalização da degradação da língua, não há política alguma.
Diante da catástrofe (e o que temos diante de nós é a descrição mais clara de catástrofe ―não apenas a catástrofe do número impensável de mortos por negligência do estado, mas a catástrofe da “vida normal” que parece voltar em uma letargia muda), seria o caso de dizer que este é um país não-viável, sentir até o mais profundo de nossos ossos sua inviabilidade para que esse sentimento queime todo e qualquer desejo de retorno em direção ao que quer que seja.
Ao menos, esse desejo de não-retorno nos pouparia do último de nossos “desejos responsáveis” que só serviram para cavar mais fundo o impasse, a saber, os chamados para grandes “frentes amplas” contra o fascismo (e se me permitirem, vai aqui uma autocrítica pois até eu assinei um desses chamados, o que definitivamente não faria novamente). Pois esse é o país das frente amplas inúteis, dos bons sentimentos de responsabilidade civil que produzem monstros. Esse é o país dessa linguagem do “diálogo” entre “diferentes”. Do eterno diálogo de cúmplices. O mesmo argumento estava lá a selar o aperto de mão entre Luis Carlos Prestes e Getúlio Vargas no final da Segunda Guerra. Uma frente ampla com comunistas, trabalhistas e os bons e velhos representantes das oligarquias locais. O resultado não foi brilhante. Ele voltou mais outra vez como certidão de nascimento da Nova República quando uma outra frente ampla subiu aos palanques para dizer um “eu quero votar para presidente” que apenas serviu para dar alguma forma de legitimidade ao pacto de paralisia que nos marcará durante os trinta anos por vir, pacto selado entre oposicionistas moderados e governistas sagazes. Se as palavras de ordem fossem para valer, a primeira coisa que Tancredo Neves-José Sarney teriam feito seria renunciar para a convocação de eleições gerais imediatas. Mas, não. Era o mesmo discurso “contra o ódio” (que, na época, atendia por outro nome. Seu alcunha era “revanchismo”).
Agora, foi necessário apenas duas semanas para entender qual era a real função da “frente ampla”. O Brasil conhece atualmente forte tensão entre uma extrema-direita popular de claros traços fascistas, que controla o executivo, e uma direta tradicional e oligárquica, que controla o judiciário e o legislativo. Novos atores fora do horizonte tradicional da política, vindos do lumpem-proletariado, e a casta política tradicional. Os dois lados do embate representam os mesmo interesses econômicos, comungam do mesmo projeto, mas não obedecem a mesma cadeia de comando. Era necessário um certo equilíbrio temporário que não dizia em nada a respeito de políticas de proteção da população contra a pandemia, mas apenas a uma geometria mais “estável” de partilha do poder. Geometria esta conquistada através da pressão da chamada “frente ampla”.
Esta era apenas uma forma de pressão que em momento algum levou efetivamente em conta a possibilidade de lutar para afastar o Governo. Assim, o país pode continuar a assassinar sua população vulnerável enquanto preserva a ilusão própria a esta “democracia geograficamente sitiada” que construímos. Democracia que funciona em um espaço geográfico definido nas regiões centrais das grandes cidades enquanto inexiste em suas periferias e nas relações no campo. Foi para preservar essa democracia geograficamente sitiada que ameaçava ruir que tais “frentes amplas” foram convocadas.
Ou seja, na hora de tomar ciência do intolerável, de mobilizar o entusiasmo para a tarefa dura e necessária de parar de falar como sempre falamos e começar a falar de outra forma, um falar de outra forma que produz necessariamente um agir de outra forma (já que vale aqui o dito de Austin, “dizer é fazer”), eis que reencarnam os mesmo enunciados, com seus mesmos tons e exortações, com suas mesmas falas de duplo sentido, que devem ser sempre lidas nas entrelinhas.
Esse país deveria aprender a recusar as falas que lhe são impostas, recusar a crença de que nossa emancipação se dará com as formas produzidas pelos setores mais fetichizados da indústria cultural, recusar os que nos aconselham o que fazer com nossos conflitos insolúveis, sejam eles individuais ou sociais. Parecem tipos de problemas diferentes colocados, de forma indevida, em um mesmo nível. Mas quando a imaginação social de um país se paralisa, todos os níveis da vida parecem girar em torno da mesma cantilena. Melhor seria lembrar, como dizia Wittgenstein, que: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Essa deveria ser a primeira lição para todos os que querem realmente entender política: explodir os limites da linguagem para que o mundo vá junto.
Armando Castelar Pinheiro: A sedução do autoritarismo
A defesa da democracia nas potências centrais por vezes justificou o apoio a regimes autocráticos
A decisão parecia clara: dado meu fraco desempenho nas mesas, o Poker for Dummies sugerido por um amigo no WhatsApp era a escolha sensata. Prevaleceu, porém, o desejo de ler o recém-lançado livro de Anne Applebaum, "Twilight of democracy: the seductive lure of authoritarianism" (Doubleday, 2020). Não me arrependi.
Applebaum aborda a crise das democracias liberais de forma complementar ao feito por autores como Manuel Castells. Como discuti aqui há dois anos, Castells usa uma abordagem mais marxista, falando da perda de legitimidade das elites políticas, por conta do aumento da desigualdade de renda, dos escândalos de corrupção e da percepção de captura das instituições pelas elites (glo.bo/33q0SpZ).
É como se as condições tivessem mudado e a decisão racional dos cidadãos fosse questionar a democracia, por entender que essa não está mais voltada a buscar o interesse do cidadão mediano.
Applebaum, por sua vez, foca no lado menos racional da cidadania, nas emoções, nos vieses cognitivos. Mais ao ponto, seu foco é o distanciamento entre a centro-direita, na qual se auto-situa, e a extrema direita e, em especial, os intelectuais que dão apoio a governos de direita com viés mais ou menos autoritário, vários dos quais eram amigos ou conhecidos da autora. A passagem desses personagens, que Applebaum cita nominalmente, de amigos para ex-amigos é usada por ela para caracterizar esse distanciamento, ocorrido ao longo dos últimos 20 anos.
Para Applebaum, a maior ameaça à democracia liberal vem do risco de mais países mergulharem no autoritarismo, sob a influência de grupos de extrema direita (e esquerda) que recorrem a dois instrumentos principais. Um é a moderna tecnologia da informação, via redes sociais, que permitem identificar os temas que interessam e preocupam cada eleitor, enviando a cada um mensagens sob medida, feitas para dar medo e/ou raiva. Uma sensibilização que explora o conhecimento desenvolvido nas últimas décadas em áreas como neurociência, psicologia, marketing e Economia Comportamental. A Cambridge Analytics, ator central no referendo do Brexit e na eleição de Trump, é um dos exemplos citados nessa área.
O outro instrumento é a criação de narrativas, muitas vezes calcadas em fake news. É aqui que entram os intelectuais. Ao criticá-los, Applebaum se ancora no livro de Julien Benda, La Trahison des Clercs (em português, A Traição dos Intelectuais, Ed. Peixoto Neto). Nesse livro, lançado em 1927, Benda critica intelectuais que abraçaram ideologias totalitárias - comunismo, nazismo, fascismo - e se alinharam a líderes autoritários, defensores de um nacionalismo belicoso e excludente. Ao assim fazer, esses intelectuais contribuíram para legitimar esses movimentos e seus líderes. Fizeram isso, então como agora, argumenta Applebaum, por interesse financeiro, para se projetarem e por inveja de outros mais bem sucedidos.
Para a autora, a extrema direita sempre esteve lá, mas antes passava despercebida, pois se aliava à centro-direita e ao centro no combate à União Soviética e ao comunismo. A queda do Muro de Berlim acabou com essa aliança. Isso só não ficou claro antes por conta dos ataques de 11 de Setembro e as guerras que vieram em seguida.
O livro foca em Polônia, Hungria, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos, apenas resvalando no Brasil, quando fala do uso das novas tecnologias nas eleições de 2018. Porém, é fácil ver que muito da discussão se aplica ao Brasil, como o enfraquecimento dos partidos tradicionais de centro, o uso de fake news, a tentativa de enfraquecer as universidades, a imprensa, o legislativo e o judiciário.
Também por aqui temos o que Applebaum chama de “whataboutism”, que segundo ela era uma tática de retórica soviética que consistia em responder às críticas acusando o interlocutor de hipocrisia. Um exemplo é a entrevista de Trump em que ele elogia Putin e o entrevistador provoca: “Mas ele é um assassino”, e Trump retruca: “Existem muitos assassinos. Você pensa que seu país é tão inocente?”. Entre nós, vejo isso no “Edaísmo”, as respostas com o “E daí?”.
O livro analisa, denuncia, mas não oferece remédios. Ele encerra em tom esperançoso, falando do sentimento pan-europeu dos jovens da região. Parece incongruente com a análise feita antes. Do meu lado, saí acreditando mais na reeleição de Trump e mais preocupado com a moldura intelectual dada à nova ordem mundial.
Esta me pareceu a principal ausência do livro, que, apesar de bem atual, a ponto de falar da pandemia da covid, não cita o conflito EUA x China. A autora entende que o fim da aliança entre centro e extrema-direita enfraquece a democracia liberal e, portanto, é mais um elemento que contribui para por um fim à ordem mundial iniciada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Mas, e o que vem depois? Me pergunto, por exemplo, se a nova guerra fria será conduzida para restabelecer a aliança à direita, como parece estar sendo, e Applebaum parece desejar, e o que isso trará para países como o Brasil. Afinal, na guerra fria do século XX, a defesa da democracia nas potências centrais por vezes justificou o apoio a regimes autocráticos no mundo em desenvolvimento. E os quase cem anos que vão do caso Dreyfus à queda do Muro foram muito divisivos e violentos também por aqui.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
Míriam Leitão: A esperança, o poeta e o tempo
Nossa esperança de novo se equilibra. Perdemos quem cantou para o país que dores pungentes não podem ser inutilmente. Com seu talento, Aldir Blanc fez do sofrimento de um tempo extremo músicas que nos ajudaram a seguir por um trilho estreito. É impensável tudo isso que anda acontecendo, mas a verdade é que tantos anos depois, de novo, a tarde parece cair como um viaduto. A doença que o atingiu já levou mais de sete mil brasileiros, e o Brasil dança na corda bamba. Várias cordas, todas bambas. A da luta diária pela vida, a de um país atormentado, a de velhas sombras que o próprio governante joga sobre nós.
As más intenções estão sendo ditas pelo presidente Jair Bolsonaro, por atos e palavras. Todos os dias. Ele se reuniu com os militares no domingo. Ouvi um general do alto escalão do governo, e ele me disse que existe uma “extrapolação de funções por parte do Judiciário”, e que isso vem desde 2014. Citou dois exemplos, a escolha de auxiliares e a política externa. Seriam prerrogativas do chefe do Executivo que foram invadidas. Portanto, o que senti nessa autoridade foi apoio ao presidente em dois fatos específicos: a suspensão da nomeação do diretor-geral da Polícia Federal e o problema dos diplomatas venezuelanos. Bom, uma coisa é a fricção que possa existir entre os poderes. Normal. Outra é fazer o que Bolsonaro fez.
Bolsonaro usou as Forças Armadas para ameaçar quem pensa diferente daqueles que, ao seu lado, na manifestação de domingo, pediam a volta da ditadura. O protesto contra a democracia poderia ser um evento menor, ainda que sujeito à punição legal, mas o ato se agiganta quando o presidente comparece e afirma: “As Forças Armadas estão do nosso lado.” E quem não está daquele lado deve pensar o quê?
O Brasil tem vivido entre cantos e chibatas há tempo demais. Há muitas pedras pisadas nesse nosso cais. Não é possível, à luz da história, reduzir a gravidade do que tem acontecido diante de nós, na frente de prédios que simbolizam o poder no Brasil. Quem viveu não pode dizer que não vê. Os olhos dos fotógrafos veem melhor. São agudos, têm foco, não se perdem na multidão. E por isso sobre eles veio a agressão de domingo no ato em que o presidente se divertia espalhando ultimatos para os poderes.
Da autoridade com quem eu tentei entender como o ato de Bolsonaro era visto, eu só ouvi crítica aos manifestantes. Alguns teriam “ideias radicais e que não param em pé”. A fonte garantiu que “ninguém vai embarcar numa aventura”. É o mesmo que ouvi de outras fontes há duas semanas, quando o presidente também participou de uma manifestação contra a democracia. Essa primeira é objeto de um inquérito. Portanto, Bolsonaro participou de um evento semelhante a outro que está sob investigação. Ele dobrou a aposta.
As Forças Armadas no começo da tarde soltaram a segunda nota em apenas 15 dias. Disseram que são democráticas, repudiam as agressões aos jornalistas e que “estão do lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. Bolsonaro também listou esses quatro, “lei, ordem, democracia, liberdade”. E acrescentou: “estão do nosso lado.” O Ministério da Defesa não refutou essa insinuação de estar a favor de manifestantes que querem fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Fica mais um silêncio pesando sobre o país.
A tibieza das instituições, a desenvoltura com que o presidente fere as leis, a agressividade que ele autoriza que seus apoiadores pratiquem, ao lançar, ele mesmo, ofensas verbais contra pessoas ou instituições, o assalto aos órgãos de Estado. Tudo vai se misturando, tudo lembra o passado. “Batidas na porta da frente. É o tempo.”
Quando Aldir Blanc e João Bosco lançaram a música que virou hino, “O bêbado e a equilibrista”, a gente vivia sentimentos mistos. O país carregava muitos anos de dor, mas o irmão do Henfil estava voltando e “tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Então era cantar bem forte, junto com Elis, o fim daquele exílio. E agora? Qual é a melhor resposta ao tempo que bate na porta? Que ele passe. Porque tudo isso foi há muito tempo nas águas da Guanabara. E para o poeta que nos deixou, vítima da pandemia, a gente pode cantar sua música que fica como um legado, um carinho, no meio de tantas lutas inglórias.
Com Alvaro Gribel (de São Paulo)
João Gualberto Vasconcellos: Raízes do autoritarismo brasileiro
Os grandes personagens que tem animado nossa vida política estão profundamente mergulhados em um imaginário social excludente, masculino e alicerçado na legitimação da desigualdade. O mais paradigmático desses personagens, talvez seja o Coronel.
Não seria exagero dizer que mesmo nos dias atuais, o sistema político brasileiro foi capaz de aprofundar algumas das estruturas mais perversas do coronelismo, a partir do personalismo e de padrões autoritários de comportamento gerados nesse longo processo histórico.
Afinal, a cultura brasileira ainda é rica nas características gestadas em todo o nosso processo social-histórico, tendo o coronel como figura chave do mandonismo brasileiro e um ator central na estrutura do poder. Tão grande foi o seu papel na construção de nosso imaginário social, que ele se transformou numa espécie de “Mestre da Significação”.
Como a instituição imaginária que gerou nosso processo político muito antes do advento da república, o Coronel foi instituinte do processo político brasileiro, ou seja, seus padrões de comportamento no poder moldaram nossas instituições, abortando em muitos aspectos nosso processo democrático. Fomos, antes, marcados pelo nepotismo, compadrio, personalismo e outras características ligadas a um mundo social que se instituiu pela força do poder e não pelas construções coletivas. Instituições como a escravidão e o latifúndio tem forte papel nesse contexto.
O coronel é o personagem fundamental da chamada Primeira República, mas cujos restos sobrevivem até hoje. Inclusive no mundo empresarial, onde ainda existem traços desse coronelismo de viés autoritário. Esse é um motivo para que, em grande parte a gênese de nossa gerência se dê de costas para os padrões modernos de gestão de pessoas. Assim, o Coronel é uma figura central, uma espécie de “Mestre da Significação” no mundo que fomos capazes de construir e que nos habita até hoje.
Não é por acaso que ele está no epicentro de nosso dilema. De um lado, as instituições que o coronelismo gerou não são mais capazes de dar conta de uma sociedade moderna como a que temos. De outro, ainda estamos presos aos personalismos e as saídas autoritárias. No grande altar que construímos na política da ambiguidade que o Coronel porta, colocamos o Capitão Bolsonaro. Moderno quando usa os meios digitais de comunicação de massa digitais, mas arcaico quando o faz de forma personalista e autoritária, e ainda mais focado na sua própria família, símbolo maior da sociedade tradicional que queremos e precisamos vencer.
Decorre daí considerável parte da inadequação de seu funcionamento nos dias atuais. Sua inexorável crise. Nosso sistema centralizado de poder foi construído garantindo o controle das elites nas instituições, inclusive as partidárias. Tudo passa pela compreensão mais generosa e atenta de importantes características da sociedade brasileira. Entre elas, a invenção do Coronel. A manutenção as instituições criadas a partir dele.
* João Gualberto Vasconcellos é doutor em Sociologia Política pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, França. Autor do livro A Invenção do Coronel: ensaio sobre as raízes do imaginário político brasileiro,2º edição da Edufes.
Steven Levitsky: Por que defender a democracia
Vitória do autoritarismo no Brasil pode influenciar outros países da América Latina
Os brasileiros em breve enfrentarão um segundo turno no qual um dos dois candidatos será autoritário. Se eleito presidente, Jair Bolsonaro (PSL) representaria uma clara ameaça à democracia.
A popularidade de Bolsonaro não deveria nos surpreender. O Brasil sofreu uma tempestade perfeita: recessão profunda combinada ao maior escândalo de corrupção de qualquer democracia na história. Isso gerou profundo descontentamento com o status quo político —e com a elite política.
De acordo com pesquisas recentes, apenas 20% dos brasileiros estão satisfeitos com sua democracia. E muitos brasileiros afirmam, em pesquisas, que em certas circunstâncias apoiariam um golpe de Estado.
Esses são números perturbadores. A democracia do Brasil está vulnerável —vive seu momento mais vulnerável em uma geração. Os brasileiros precisam agir para defendê-la.
Por que os brasileiros deveriam defender a democracia?
Permita-me oferecer algumas razões.
Primeiro, não existem provas de que o autoritarismo ofereceria soluções melhores para os problemas do Brasil. Há muitas pesquisas que buscam determinar se ditaduras funcionam melhor do que democracias, economicamente.
E os resultados são claros: não funcionam. Algumas poucas ditaduras se saíram excepcionalmente bem (Cingapura, Taiwan, China). Mas elas são exceções. Para cada Cingapura ou China, existem dezenas de ditaduras em todo o mundo que fracassaram economicamente.
Em média, as ditaduras não geram crescimento mais alto, inflação mais baixa ou equilíbrio fiscal superior.
Também existem poucas indicações de que uma ditadura resolveria os demais problemas brasileiros.
Ditaduras não necessariamente se saem melhor na redução do crime, e não fazem um trabalho melhor no combate à corrupção. Na verdade, ditaduras são mais propensas à corrupção do que as democracias.
Assim, indicações vindas do mundo inteiro sugerem que haja pouco a ganhar com o autoritarismo.
Mas há muito a perder. É preciso tempo para construir instituições democráticas fortes. Estabelecer controle civil sólido sobre as Forças Armadas requer décadas. Estabelecer um Poder Judiciário independente e direitos civis e humanos básicos requer décadas. Os brasileiros realizaram essas coisas nas últimas três décadas.
Nunca antes na história brasileira o controle civil sobre as Forças Armadas, a independência do Judiciário e os direitos civis e humanos estiveram tão bem estabelecidos quanto no último quarto de século. Essa é uma grande realização.
Uma queda ao autoritarismo —mesmo que breve— eliminaria décadas de esforços de construção de instituições. Esse foi um problema que prejudicou por muito tempo países como Argentina, Bolívia, Equador e Peru. Historicamente, nesses países, a democracia entra em colapso a cada vez que acontece uma crise. Como resultado, as instituições jamais têm tempo para fincar raízes. É um círculo vicioso do qual os argentinos e peruanos continuam tentando escapar até hoje.
Para se consolidarem, as democracias precisam sobreviver a algumas tempestades muito fortes. Nos Estados Unidos, a democracia passou pela guerra civil, pela Grande Depressão da década de 1930 e pela Segunda Guerra Mundial. Se você abandona a democracia sempre que surge uma crise, a democracia jamais se consolida. Esse é o caminho da Argentina.
Por fim, o destino da democracia brasileira tem consequências que vão além do Brasil. Os últimos 30 anos foram o período mais pacífico e democrático da história da América Latina. As Forças Armadas deixaram o palco; guerras civis e insurgências se encerraram.
Mas há nuvens de tempestade no horizonte. China e Rússia estão se tornando mais fortes. A Europa está em crise. E o atual governo dos Estados Unidos não tem interesse na democracia. Ao mesmo tempo, a confiança pública na democracia está em queda na América Latina. Não é só no Brasil: o descontentamento cresceu no México, Argentina, Peru, Colômbia —mesmo no Chile e na Costa Rica.
O Brasil é um país influente. Se a democracia brasileira falhar, isso poderia resultar em uma onda de rupturas democráticas na América Latina.
Não seria a primeira vez. O Golpe de 1964 teve enorme impacto na América Latina, encorajando os militares a tomar o poder na Argentina, Bolívia, no Chile, Equador, Panamá, Peru e Uruguai. Seria trágico se a história se repetisse.
Tradução de Paulo Migliacci
*Steven Levitsky é cientista político, autor do livro "Como as Democracias Morrem"