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Jean-Luc Godard é um diretor, roteirista e crítico de cinema franco-suíço | Foto: TV Pampa

Revista online | Godard, o gênio exausto

Vladimir Carvalho*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)

A morte consentida de Jean-Luc Godard pode sinalizar para muitos o final de uma era cinematográfica marcada desde a primeira vanguarda, nos anos 1920, por uma incessante busca de legitimação de uma atividade artística que, de cara, se autodenominava de Sétima Arte, com técnica e linguagem próprias. Cedo seria respaldada pela formação de uma mentalidade que nasceu com os cineclubes, os críticos e as revistas especializadas – o que hoje é conhecido de forma generalizada por cinefilia. Teorias e posturas estéticas renovadoras já se faziam sentir ao tempo do cinema soviético com Sergei Eisenstein, Dovijenko, Dziga Vertov e outros até a explosão que foi o Cidadão Kane, de Orson Welles, nos anos de 1940.

Na década posterior, os franceses jogaram papel importante a partir da ação desenvolvida pela Cinemateca Francesa e com o aparecimento do grupo liderado por André Bazin, grande influenciador e principal crítico da revista Cahiers du Cinéma, que se tornaria célebre e em cujo agitado seio surgiria o até ali desconhecido franco suíço. Ao lado de outros, como François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer e Claude Chabrol, compondo a tendência que seria conhecida, ou apelidada, de “jovens turcos”. Mais tarde, alguns deles se renderiam aos encantos da prática cinematográfica como ativos diretores que defendiam a todo custo a autonomia de um cinema autoral, desde ali, em confronto com o poderio dos produtores que condenavam por princípio o filme clássico francês e valorizavam uma política de autores.

Nesse clima de camaradagem solidária, o futuro autor de Acossado (1960) pontificou-se como um ferrabrás da crítica atento à condução moderadora de Bazin, mas em franco contraste com Georges Sadoul, um marxista militante, que sempre defendeu o cinema soviético não só do período eisensteiniano como também os das gerações posteriores. Godard foi desde sempre um anarquista, pontificando-se na avaliação e cotação dos filmes, no famoso Conseil des Dix, da revista.

Em 1960 Godard vai à “guerra” com uma narrativa desconcertante e uma linguagem inédita até aquele momento. O público delirou com Acossado, e a crítica foi obrigada a reconhecê-lo. Segue-se com igual liberdade estética, Uma Mulher é uma Mulher (1962) e O Desprezo (1963). Depois a política faz a festa em Masculino, Feminino (1966); a moda godardiana continua em Made in USA (1966) e em A Chinesa (1967), que radicaliza em termos de desdramatização e nos aspectos políticos. É um cinema diametralmente oposto aos clássicos americanos, mas que tinha muito da simpatia que os “jovens turcos” nutriam pelos filmes B, nos Cahiers. Porém, ainda não era, claro, o Godard radical e em mutação do Grupo Dziga Vertov, do final dos anos 1960, e que, em Maio de 68, se confunde com os estudantes revoltados, filmando nas barricadas de Paris.

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E foi nessa rumorosa onda de 1968, num veemente protesto contra a demissão do carismático Henri Langlois, da curadoria mor da Cinemateca Francesa, que o Festival de Cannes foi atropelado e quase não aconteceu. Godard protagonizou a cena principal, pendurado nas cortinas do Palais, impedindo que as sessões começassem, com ampla cobertura da imprensa. Em Paris, a redação dos Cahiers, na rua Marbeuf, virara um comitê de agitação em favor dos estudantes; e a temperatura subiu quando o filme de Jacques Rivette, A Religiosa, foi proibido. Novamente é um empedernido Godard que toma as dores e defende Rivette e seu filme, rompendo com o grande André Malraux, então ministro da Cultura, em carta que passou aos anais como uma irrespondível peça de condenação do Estado gaullista.

Entretanto, no âmbito de certa crítica, “a sua utopia de um cinema marxista, de parceria autoral com a classe trabalhadora, resultou tão frustrada quanto a aliança dos estudantes com os proletários da Renault”, como argutamente observou o crítico e escritor Sergio Augusto.

A propósito do perfil muitas vezes contraditório do autor de Je Vous Salue Marie (1985), podemos recordar aqui episódio ocorrido durante o Festival Internacional do Filme, o histórico FIF, do Rio de Janeiro. Godard compareceria ao mesmo para a apresentação do seu filme Alphaville. Tudo acertado, pouco depois ele mandou um telegrama desistindo de participar, num gesto de protesto e condenação da ditadura militar no Brasil. Instalada a confusão, surpreendeu a todos, negando peremptoriamente a autoria da mensagem, e atribuindo-a a terceiros. Quando tomou conhecimento da negaça, o crítico Robert Benayon, da revista Positif, rival dos Cahiers, presente ao evento brasileiro, desabafou para quem quisesse ouvir. Para ele, tratava- se de “mais uma daquele fascista!”. Nesse tempo, andava o autor dessas notas, trabalhando como assistente de Arnaldo Jabor, num filme que realizou sobre o FIF, Rio, Capital do Cinema, e ouviu os comentários acerca desse lance, nos bastidores da sede da mostra, no Copacabana Palace.

Essa época no Rio foi muito marcada pelos filmes e paixão pelos diretores da Nouvelle Vague. Uma pequena multidão de cinéfilos não arredava o pé das sessões do Cinema Paissandu, no Flamengo. Ali enturmei-me levado pelas mãos de Cosme Alves Neto e assisti, imerso na euforia da rapaziada, a quase todos os filmes de Godard lançados ali naquele ano de 1968. A cidade tomada pelo alvoroço político e pela revolta em virtude da morte de Edson Luiz, secundarista assassinado pela polícia no restaurante Calabouço, no aterro do Flamengo, estava transtornada. O clima era de insegurança e medo, mas filmes como Tempo de Guerra, de Godard, nos convocavam à ação, e, portanto, era também do Paissandu que partíamos para engrossar as fileiras da célebre Passeata dos Cem Mil. O Maio de 68 estava fresquinho em nossas agitadas cabeças. Mesmo sabendo das restrições ao autor de Masculino, Feminino, taxado até de fascista pelo pessoal da revista Positif, numa linha editorial que confrontava com os Cahiers du Cinéma, eu pouco ligava. Já havia lido os elogios de Georges Sadoul à Aruanda, o filme de Linduarte Noronha, em que atuei como roteirista e assistente, e num rompante juvenil pouco me interessava que Godard o achasse um stalinista superado pelo tempo, que já era tomado pelo revisionismo que resultou das sérias denúncias feitas por Kruschev; nem tomáramos conhecimento das restrições de Lévi Strauss ao franco suíço; tampouco da ojeriza que Jeanne Moreau lhe dedicava. Godard vivia agora a sua febre maoísta junto ao Grupo Dziga Vertov. E era nosso herói.

Muito depois é que tomaríamos conhecimento das peripécias do nosso ídolo quando da realização de seu filme Vento do Leste. Ele proporia a Glauber Rocha, que fazia importante participação na obra, que juntos destruíssem o cinema como arte. O brasileiro, sagaz como sempre, logo sacou que Godard começava a sucumbir à depressão e militava numa espécie de autodestruição, e a sua resposta foi a de que ele, Glauber, ao contrário, optava pela construção de um cinema inovador e de salvação, no Brasil e no Terceiro Mundo.

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um do maiores entretenimento da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um dos maiores entretenimentos da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
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Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um dos maiores entretenimentos da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
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Gênio consumado, mas profundamente contraditório e iconoclasta, talvez naquele momento já se manifestasse no espírito de JLG o quadro psíquico que o dominou no fim da vida, depois da realização de filmes não tão brilhantes e plenos de vigor, como os daquela fase em que fez sombra a toda uma geração do cinema francês da Nouvelle Vague. Oriundos quase todos dos Cahiers, o qual terminou, é bom lembrar, por apoiar o Cinema Novo brasileiro, especialmente promovendo seus autores mais importantes e mais afinados com o ideário da revista, como é o caso de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl.

Embora tumultuada, a existência de Godard foi profícua e intensa, mas sua morte assistida parece se justificar pelo cansaço e esgotamento que o vitimou, e sua descida se deu também pela inexorável ação, digamos assim, da força da gravidade em vista do peso de seus 91 anos. Que descanse em paz!

Sobre o autor

*Vladimir Carvalho é um cineasta e documentarista brasileiro de origem paraibana.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Autores - Edição 37 (Novembro/2021)

Bernard Appy é o entrevistado especial da Revista Política Democrática Edição 37. É diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), uma organização voltada a análises econômicas que buscam a melhora na gestão pública, além disto Bernard é o mentor da proposta de reforma tributária que está em transitou no congresso em 2019. Appy ficou em evidência nas eleições presidências de 2018, quando se tornou referência de diversos candidatos à presidência no modelo de pensar novas alternativas de pensar a aplicação do imposto de renda.


Caetano Araújo é um dos entrevistadores do economista Bernard Appy. É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.


André Amado é um dos entrevistadores do economista Bernard Appy. É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Ele também é o autor do artigo Despedidas. Sempre para melhor, sobre as mudanças da Revista Política Democrática Online


Cleomar Almeida é autor da Reportagem Especial Afeto e cuidado aumentam diversidade de configurações de famílias. É graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.


JCaesar é o autor da charge da Revista Política Democrática Online. É o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.


Jornalista e escritor, Henrique Brandão é autor do artigo Uma história de amor e resilência.


Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e Professora de Finanças Públicas da FGV-SP. É autor do artigo  Inadiável necessidade de revisão do teto.


Lilia Lustosa
Autora do artigo Remakes, reboots, spin-offs… Faltam ideias?, é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.



José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq e Lider do Grupo de Pesquisa "Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento", cadastrado no CNPq. É autor do livro "Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva Keynesiana", LTC: Rio de Janeiro (2016). 


Fábio Fonseca Figueiredo é autor do artigo Cidades sustentáveis, a cidade para as pessoas. É professor do Departamento de Políticas Públicas e pesquisador do grupo de pesquisa SEMAPA (Socioeconomia do Meio Ambiente e Política Ambiental) da UFRN. 


Autor do artigo Da pandemia se sai pela esquerda?, Gianluca Fiocco é professor e pesquisador de História Contemporânea vinculado a Universidade Roma2, “Tor Vergata”. É também membro do Conselho de Direção Científica da Fundação Gramsci de Roma. Dentre as suas publicações está Togliatti, il realismo della política, Roma: Carocci, 2018. A tradução do artigo é de Alberto Aggio.


Vicente Costa Pithon é autor do artigo A promessa do clube-empresa. É consultor legislativo do Senado, mestre em Direito pela UnB e especialista em Direito Desportivo.


Autor do artigo Outros olhos para um comunista brasileiro – A biografia de Lindolfo Hill, Ricardo Marinho é professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional.


RPD || Autores Revista Política Democrática Online | 19ª edição

Adriana Novaes
Pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. 

André Amado
Diretor da Revista Política Democrática Online

Henrique Brandão
Jornalista e fundador do bloco “Simpatia é Quase Amor”.

José Luis Oreiro
Professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e Pesquisador Nível IB do CNPq. E-mail: joreiro@unb.br. Página pessoal: www.joseluisoreiro.com.br.

Lilia Lustosa
Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).

Lourdes Sola
Professora aposentada e pesquisadora sênior do Departamento de Ciência Política e do Núcleo de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP). Membro da Academia Brasileira de Ciências e presidiu a Associação Internacional de Ciência Política.

Maria Amélia Enríquez
Economista, Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), conselheira da Fundação Astrogildo Pereira (FAP).

Pedro Scuro Neto
Sociólogo, diretor da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris), autor de Sociologia Geral e Jurídica, cuja oitava edição (A Era do Direito Cativo) é publicada pela Saraiva: S. Paulo.