atlântico sul

Ruy de Almeida Silva e Monica Herz: O Atlântico Sul na competição entre as grandes potências

Os próximos episódios mostrarão como o Brasil se sairá nessa jornada

Filmes sobre o embate URSS EUA durante a Guerra Fria invadiram nossas telas entre os anos 50 e 90 do século passado. O vilão agora é outro e o anterior virou coadjuvante. A Rússia, por ainda ter um enorme arsenal nuclear, é esse personagem. O enredo é a competição entre as grandes potências, deixando em segundo plano a chamada “guerra ao terror”, e se desenrola, como um filme de 007, com ações nas várias regiões do mundo. Assim, poderia ser sintetizada, para os amantes do cinema, parte da Estratégia Nacional dos Estados Unidos, assinada em 2017, pelo Presidente Donald Trump

Segundo o documento, a China é agora o principal competidor que deve ser contido. Tarefa mais difícil, pois o “vilão” tem como principal instrumento o seu poder econômico. Competição  e  contenção que naturalmente afetam o Brasil e o Atlântico Sul, assim como ocorreu no primeiro filme, que tinha como pano de fundo a Guerra Fria. Em 1986, liderados pelo Brasil, os países do Atlântico Sul, preocupados com a possibilidade da competição entre as grandes potências gerar instabilidade e nuclearização na região, criaram a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), aprovada na Assembleia das Nações Unidas, com o voto contrário dos Estados Unidos da América. Para além da paz, a ZOPACAS também tinha como um dos seus objetivos a cooperação para o desenvolvimento econômico e social, a proteção dos recursos naturais vivos e do meio-ambiente marinho. 

Trinta e quatro anos depois, a ZOPACAS pouco avançou. A competição entre EUA e China traz de volta o risco da militarização, nuclearização e instabilidade no Atlântico Sul. Logicamente, as circunstâncias não são as mesmas. Naquela época, o Brasil, principalmente a partir da política externa pragmática do Presidente Geisel, estabeleceu, em 1974, relações com a China; e desenvolveu uma estratégia voltada para os interesses brasileiros, que contribuiu para que nas décadas seguintes houvesse a aproximação com a Argentina, a criação do Mercosul, e da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL).

No lado africano, o reconhecimento da independência de Angola. A derrota do apartheid na África do Sul e o apoio à independência da Namíbia, contribuíram para a aproximação com aquele continente e a criação, em 2006, da Cúpula América do Sul-África. No campo marítimo-naval, a Marinha do Brasil, durante os anos 1970, também mudava sua concepção estratégica, fundamentada na visão norte-americana da defesa hemisférica, para uma concepção calcada nos interesses marítimos brasileiros. A Política Básica e Diretrizes da Marinha, que esboçava essa nova postura, é publicada em fevereiro de 1977, praticamente um mês antes da denúncia pelo Brasil do acordo militar com os EUA.  

Hoje, o cenário é diferente. O mundo vive uma crise sanitária e econômica e a política externa brasileira elegeu os EUA como sua prioridade, deixando em segundo plano a América do Sul. O governo argentino e o Mercosul sofrem ataques de autoridades do governo, o Brasil saiu da UNASUL e a Cúpula América do Sul-África perdeu ímpeto.

A importância econômica e geo- estratégica do Atlântico Sul é inegável, tanto para o fluxo comercial como para a exploração econômica e para o sistemas de comunicações globais via cabos submarinos. A agenda ambiental na região está em fluxo e as preocupações com atividades criminais são muito significativas. Os Estados Unidos, diversos países da OTAN e a China partilham desta perspectiva. A presença da China e de países da OTAN na região é bastante óbvia. Ademais, EUA e Grã Bretanha  estão presentes militarmente na ilha de Ascenção, nas Malvinas e Georgia do Sul. Em 2009, o governo americano reativou a IV frota, subordinada ao Comando Sul dos Estados Unidos, que tem como “área de responsabilidade” o Atlântico Sul e o Caribe. A China por sua vez vem avançando sua capacidade marítima global e investimentos em infra estrutura associadas à circulação marítima e no final do ano passado realizou o primeiro exercício naval com a Rússia e a África do Sul na área marítima  adjacente a este país.  

A China é desde 2009 o principal parceiro comercial brasileiro e da Argentina desde o final de 2019, desbancando o Brasil pela primeira vez na história. O gigante asiático tem sido ainda o maior parceiro comercial da África por 10 anos consecutivos e um parceiro estratégico da África do Sul. A China tem investido fortemente em infraestrutura relacionada com o  poder marítimo, especialmente, em portos, de forma a garantir o fluxo de comércio necessário ao seu desenvolvimento.  

Diante da complexidade de relações no Atlântico Sul  como será o Brasil capaz de desenvolver uma estratégia própria, ao mesmo tempo baseada na cooperação internacional,  visando elaborar o melhor caminho para a realização dos interesses brasileiros? No atual enredo, o Brasil parece querer reanimar a combalida ZOPACAS, apesar da atual dificuldade de administrar de forma eficiente seu relacionamento com os EUA e a China.

O presidente Jair Bolsonaro mencionou a ZOPACAS no seu discurso na ONU, o Ministério  das Relações Exteriores e a Marinha promoveram um seminário internacional sobre o tema, e existe a possibilidade de uma participação naval mais ativa no Golfo da Guiné com a saída do Brasil da Força-Tarefa Marítima da Força Interina das Nações Unidas no Líbano. Os próximos episódios mostrarão como o Brasil se sairá nessa jornada, e se o governo brasileiro será capaz de reanimar a ZOPACAS para, pelo menos, evitar a militarização e a nuclearização do Atlântico Sul. Não percam!  

*RUY DE ALMEIDA SILVA É ALMIRANTE E MEMBRO DO GRUPO DE AVALIAÇÃO DA CONJUNTURA INTERNACIONAL DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (GACINT-USP)

*MONICA HERZ É PROFESSORA DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA PUC-RIO


Rubens Barbosa: O Brasil e o Atlântico Sul

Essa é uma área geoestratégica de interesse vital para o nosso país

Na definição do conceito estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em 2010, o Atlântico Sul não foi incluído como área geoestratégica prioritária, mas não se exclui totalmente a possibilidade de sua atuação “onde possível e quando necessário” caso os interesses dos membros sejam ameaçados. Portugal, nessa discussão, apoiou a Iniciativa da Bacia do Atlântico, que previa a unificação dos oceanos, com incorporação dos assuntos do Atlântico Sul no escopo estratégico da organização.

Em pronunciamento recente, o atual ministro português da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, observou que “a segurança do espaço euro-atlântico tem de ser pensada a partir das pontes que o Atlântico permite criar e para as quais Portugal tem um posicionamento privilegiado para contribuir ativamente”. Dentro desse entendimento, Portugal está criando o Centro para a Defesa do Atlântico (CeDA) no Arquipélago dos Açores. O CeDA tem como objetivo a reflexão, a capacitação e a promoção da segurança no espaço atlântico. O centro pretende tornar-se um fórum multinacional, que contará com a participação de peritos civis e militares de países localizados na Bacia Atlântica ou com interesses nesse espaço.

Localizado na Ilha Terceira, em parte das instalações de base norte-americana, e em Lisboa, o CeDA deverá focalizar inicialmente as dinâmicas de insegurança no Golfo da Guiné e na África Ocidental, estando, contudo, vocacionado para trabalhar todas as temáticas relevantes para a segurança do Atlântico de norte a sul, de leste a oeste, e onde a capacitação no domínio da defesa possa contribuir positivamente. Vai estabelecer parcerias, desenvolver e implementar projetos de capacitação que permitam aos Estados ribeirinhos do Atlântico reforçar as suas capacidades na prevenção, no combate e na mitigação das ameaças transnacionais, tais como tráfico de drogas, de seres humanos e de armas, pirataria e assalto à mão armada contra navios, e pesca ilegal, não regulamentada e não declarada. Também a poluição, as alterações climáticas e a resposta de emergência estão na mira; e numa fase posterior poderão surgir as ameaças cibernéticas, entre outras possíveis a prevenir. O balizamento conceitual do centro está ainda em desenvolvimento, com contribuições dos países atlânticos envolvidos, entre os quais o Brasil.

No que concerne às principais atividades do CeDA, para além de projetos de capacitação por meio de parcerias com a ONU, a Otan, a União Europeia e a União Africana, entre outros, o centro trabalhará igualmente na busca, no tratamento e na análise de informação, na elaboração de estratégias de capacitação e doutrina, na monitorização de ameaças transnacionais e na implementação de projetos.

O Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, deverá realizar seminário para apresentar, discutir e divulgar o CeDA. Esse evento contará com especialistas, nacionais e estrangeiros, civis e militares, que aprofundarão os requisitos e a missão fundamental do centro e como estudo de caso serão analisadas as várias dimensões dos desafios à segurança na região do Golfo da Guiné.

No início de 2020, prevê-se, nos Açores, uma primeira ação de formação de uma rede de peritos internacionalmente reconhecidos que possam dar continuidade ao trabalho de capacitação dos quadros civis e militares, bem como das forças de defesa e segurança dos países do Golfo da Guiné.

Com a constituição do CeDA, Portugal pretende dar corpo à ideia de contribuir para manter o Atlântico como um espaço de paz e segurança internacional e de trabalhar com parceiros atlânticos na identificação de contribuições para esse objetivo.

O Brasil manifestou preocupação porque não foi informado previamente da criação do centro e pela intenção explicitamente indicada pelo Conselho de Ministros da Otan de empregar o centro como plataforma para a Organização e para a União Europeia com vista à segurança de todo o Atlântico (incluindo o Atlântico Sul e também, em especial, o Golfo da Guiné). O Brasil, nessa região, está presente e desenvolve esforços para o enfrentamento da pirataria.

O Brasil sempre deixou clara sua reserva no tocante às iniciativas que incluam a Bacia Atlântica e, por via de consequência, o Atlântico Sul como área de atuação da Otan. O sul do Atlântico é área geoestratégica de interesse vital para o Brasil. As questões de segurança relacionadas às duas metades desse oceano são distintas e devem merecer respostas diferenciadas – tão mais eficientes e legítimas quanto menos envolverem organizações ou Estados estranhos à região.

A Política Nacional de Defesa menciona o Atlântico Sul como uma das áreas prioritárias para a defesa nacional e amplia o horizonte estratégico para incluir a parte oriental do Atlântico Sul e a África Ocidental e Meridional. Por essa razão, o Brasil não deveria ignorar a iniciativa. Seria de nosso interesse acompanhar de perto a definição de como o centro vai atuar.

Por outro lado, o governo norte-americano decidiu designar o Brasil como “aliado prioritário extra-Otan”, elevando a parceria estratégica com os Estados Unidos a novo patamar de confiança e cooperação. Esse status é conferido a um número restrito de países, considerados de interesse estratégico para os Estados Unidos, e os torna elegíveis para maiores oportunidades de intercâmbio e assistência militar, compra de material de defesa, treinamentos conjuntos e participação em projetos. Embora não tenha relação direta com a Otan, o novo status do Brasil recomendaria o acompanhamento do que está acontecendo na Organização.

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, esteve em Portugal recentemente e foi informado da criação do centro. Para manter a prioridade sobre o Atlântico Sul, como previsto na Estratégia Nacional de Defesa, o Brasil deveria participar da criação do CeDA e oferecer contribuição na definição de suas atribuições e formas de atuação.

*PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)