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Demétrio Magnoli: Braga Netto, historiador
A ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 foi assinada por Walter Braga Netto, um ministro da Defesa que acabava de ser nomeado em substituição a seu camarada de farda, Fernando Azevedo e Silva, demitido por recusar a subordinação das Forças Armadas aos delírios subversivos de Jair Bolsonaro. No texto, o general vestiu o manto do historiador para, supostamente, inscrever os “eventos ocorridos há 57 anos” no “contexto da época”.
Sabe-se que a ordem do dia estava pronta, assinada por Fernando Azevedo, e foi deliberadamente adotada por seu sucessor para exibir uma imagem de unidade dos comandantes militares. Por isso, deve ser lida como um consenso das cúpulas das Forças Armadas. Seu aspecto mais notável é a tentativa implícita de enterrar o “movimento de 1964” no arquivo do passado.
O general-historiador aprecia o conceito de continuidade e a ideia de harmonia. No texto, o golpe de 31 de março emerge na moldura da Guerra Fria, como derivação longínqua da aliança de guerra contra o nazifascismo, que teve a participação do Brasil. As Forças Armadas não aparecem como agentes principais da derrubada do governo, mas como componente de uma mobilização nacional que abrangeu a “imprensa”, “lideranças políticas”, “igrejas”, o “segmento empresarial” e “setores da sociedade organizada”. Por essa via, a virtude — ou a culpa — fica amplamente distribuída.
Um golpe de Estado constitui, pela sua natureza, uma cisão. Mas a narrativa de Braga Netto exclui a noção de ruptura, tanto para trás quanto para frente. De 1964, o texto salta à Lei de Anistia, de 1979, “um amplo pacto de pacificação”, desviando dos “anos de chumbo” da tortura, que se estenderam até 1976. A acrobacia converte o regime militar em prelúdio necessário das “liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Ditadura produz democracia — a tese paradoxal forma o núcleo do argumento do general.
O exercício historiográfico faz parte da operação política de confrontação dos chefes militares com Bolsonaro. As Forças Armadas declaram-se, hoje, “conscientes de sua missão constitucional” de “defender a Pátria” e “garantir os Poderes constitucionais”. Há, aí, convenientemente oculta, a crítica do golpe de 1964 e, quase explícita, a rejeição dos desvarios golpistas presidenciais. Braga Netto inclina-se à doutrina adotada pelos comandos militares que, desde o processo de abertura, riscaram uma linha no chão separando os quartéis da política.
Na última frase da ordem do dia, tudo que era sólido desmancha no ar. Depois da constatação do óbvio (“o movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil”), surge uma conclamação: “Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”. Nela, a conjunção aditiva liga posturas essencialmente diferentes e expõe a fraude.
O historiador busca compreender o passado, mas nunca o celebra. A celebração do golpe militar é um ato político — e, no caso, um gesto condenável, pois nossa Constituição protege a ordem democrática. Atrás do manto que cai, avulta a figura de um agente político. Os militares que servem a Bolsonaro, inclusive os da reserva, reintroduzem a política nos quartéis — mesmo quando afrontam a vontade presidencial.
Toda instituição tem seus lugares de memória. Duque de Caxias e o Marquês de Tamandaré, patronos do Exército e da Marinha, remetem à Guerra do Paraguai. Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea, remete à Segunda Guerra Mundial. Por que os militares insistem em celebrar o golpe de 1964, mesmo que sob o pretexto de inscrevê-lo no “contexto da época”?
O governo Bolsonaro representa, entre tantas coisas deploráveis, um projeto de revisionismo histórico. O presidente, um capitão excluído do Exército por indisciplina, assim como seu círculo de místicos extremistas, ergue contra a Constituição o espectro da ditadura militar. A geração atual de militares não participou dos desmandos do regime instituído em 1964. Inexiste um motivo legítimo para que seus expoentes manchem suas biografias associando-se ao revisionismo bolsonarista. Não celebrem um parêntesis sem glória.
José Eduardo Faria: Bolsonaro e a banalidade do mal
Não foi só a maneira desabrida e insensata com que o presidente Jair Bolsonaro agiu com o ministro da Defesa e com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que chama a atenção. Se for correto o que a imprensa divulgou, também é digna de nota a orientação que o presidente deu ao novo ministro, obrigando-o a anunciar aos comandantes militares que estavam demitidos, antes que eles pudessem colocar o cargo à disposição.
O objetivo do inquilino do Planalto, como os jornais informaram, era mostrar força, de um lado humilhando os três comandantes e, de outro, reforçando a narrativa de que o presidente é quem manda. Ainda que essa narrativa seja aceita como válida apenas por convertidos, pessoas banais que aceitam absurdos como normalidade, o problema está nas tentativas cada vez mais evidentes do presidente de fazer dos militares rigorosos cumpridores de suas ordens e determinações, mesmo que elas transcendam restrições constitucionais.
Ainda segundo a imprensa, as três demissões teriam sido justificadas pelo Planalto com base no fato de que, por considerarem as Forças Armadas uma instituição de Estado, seus comandantes não as estariam alinhando aos interesses políticos do chefe do Executivo. Reiteradamente alertando que, pela Constituição, o presidente da República é o “comandante em chefe” das Forças Armadas, Bolsonaro passou a chamá-las de “meu Exército”. E, com isso, também começou a insinuar que poderia acioná-lo a qualquer momento e para qualquer coisa — desde impedir os governadores de implementarem políticas de isolamento até afrontar a principal corte do País, acusando-a de restringir prerrogativas presidenciais.
Com o retorno das agressões de Bolsonaro às instituições democráticas, a questão agora é saber como se comportarão os oficiais do “seu” Exército, ou seja, se aceitarão fazer tudo o que lhes for pedido ou se respeitarão não apenas a Constituição mas, igualmente, a corte encarregada de dar a última palavra no controle da constitucionalidade. A questão não é simples, uma vez que, de um lado, ela envolve uma cadeia de comando que começa no Palácio do Planalto e vai descendo os níveis hierárquicos do aparato militar. E, de outro, implica o risco de cumprimento de ordens absurdas, que atendem mais aos objetivos eleiçoeiros de um governante do que ao interesse público e a segurança — na conformidade da ordem legal — do País.
São ordens que, dependendo do modo como forem transmitidas e cumpridas, conforme se viu na demissão dos comandantes das Forças Armadas, podem corroer os próprios valores éticos das corporações militares das Forças Armadas. Como não se espantar, por exemplo, com um general intendente que, aceitando chefiar o Ministério da Saúde sem ter formação especializada na área, cumpriu servilmente ordens agravantes da maior crise de saúde pública já vivida pelo país? “É simples assim: um manda e outro obedece”, afirmou esse general que, de tanto obedecer ordens presidenciais tomadas sem qualquer critério técnico, exacerbou a pandemia, em vez de detê-la, motivo pelo qual hoje está sendo acionado judicialmente.
Essa questão já foi por mim discutida num artigo recente, neste mesmo espaço[1], no qual analisei as explicações dadas por esse mesmo general com o objetivo de eximir o governo Bolsonaro de qualquer responsabilidade sobre a escassez da oferta de oxigênio em Manaus. Em nenhuma de suas explicações ele relacionou as ordens absurdas que recebeu com os milhares de brasileiros mortos por sufocamento. Os argumentos que retomo para analisar os militares com o perfil desse general baseiam-se na análise que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) fez há mais de meio século, no plano ético, de um dos oficiais de média patente que serviram ao regime nazista.[*] Trata-se de Adolf Eichmann, um tenente-coronel que recebeu a missão de administrar a logística das deportações em massa para os campos de concentração localizados nas zonas ocupadas pelas forças alemãs no leste europeu, durante a segunda guerra.
Eichmann estava, assim, situado no meio da cadeia de comando no setor da máquina nazista encarregado da “solução final” da “questão judaica” — o plano de remoção, por assassinato, da população judaica que vivia naquelas zonas. Por um lado, ele cumpria ordens. Por outro lado, as ordens que dava e as medidas que tomava, levando milhões de pessoas a diferentes formas de tortura e à morte, eram por vez balizadas por uma série de outras determinações emanadas de seus superiores.
Com o fim da guerra e a derrota da Alemanha, Eichmann fugiu para a Argentina. Muitos anos depois, foi sequestrado pelo serviço secreto israelita e levado para Jerusalém, onde foi julgado criminoso e condenado a pena de morte por enforcamento, em 1961. Convidada a cobrir o julgamento para a revista New Yorker, Arendt, que era judia, surpreendeu ao escrever cinco artigos na contramão dos que acusavam Eichmann de ser criminoso por ser nazista. Apesar de este ter sido o ponto mais abordado pelos jornalistas que cobriram o julgamento, Arendt concentrou a atenção na análise de pessoas incapazes de pensar por si e que, quando integram um aparato de poder, agem apenas como funcionários diligentes. Ou seja, cumprem ordens, sem discuti-las nem julgá-las, mesmo que sejam para matar inocentes.
Nesse sentido, a banalidade do mal decorreria não de uma premeditação da violência, mas, sim, da mediocridade implícita na incapacidade de reflexão que se instala em espaços institucionais. Eichmann não foi perverso, doentio, enraivecido e antissemita. Pelo contrário, destacava-se por ser educado e um homem comum — “assustadoramente normal”, dizia Arendt. Contudo, era incapaz de distinguir o certo e o errado. De resistir às ordens que recebia e cumpria. De avaliar moralmente o que de fato fazia e as consequências trágicas de seus atos administrativos. Apenas se orgulhava de executar corretamente suas tarefas. No fundo, foi um precursor do “simples assim — um manda, outro obedece”.
Faltava a Eichmann não somente a capacidade de se colocar no lugar do outro, de interagir com a subjetividade de outra pessoa, mas, igualmente, a capacidade de pensar, afirmava Arendt. Seu problema não era a ignorância. Era, isto sim, ter internalizado o senso de que o que fazia era correto e com base na lei — o que, em decorrência, não lhe permitia ver os efeitos brutais de suas decisões, revelando assim o quão desconectado estava do sentido do que é ser humano.
Desse modo, sua dimensão cognitiva e moral foi corroída pela visão limitada e empobrecida de quem cumpre ordens irrestritamente. Quando um burocrata não assume a iniciativa própria de seus atos ou quando uma multidão numa sociedade massificada se revela incapaz de fazer julgamentos morais, aceitando e cumprindo ordens sem questionar, distanciando-se assim de sua essência humana, o mal se torna banal, afirma Arendt. “Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava […] um novo tipo de criminoso, […] que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, concluía.
A ideia de banalidade do mal, desenvolvida por Hannah Arendt e por mim já utilizada para analisar o militarismo brasileiro contemporâneo, ajuda a interpretar o ocorrido com a demissão dos comandantes das Forças Armadas. Evidentemente, são distintos os contextos históricos dos males cometidos pelo nazismo, de um lado, e, de outro, o da profusão de decisões intempestivas, inconsequentes, insensatas e irresponsáveis do chefe do Executivo, um tenente medíocre e inconsequente reformado no posto de capitão por ser um “mau soldado”. Mas em ambos os contextos se visualiza a banalização do mal por impulso político e enviesamento ideológico. Igualmente, em ambos fica evidenciado como essa banalidade retira a humanidade dos indivíduos, tornando-os incapacitados de compaixão pelo próximo.
A exigência de Bolsonaro de que os comandantes das Forças Armadas se alinhem politicamente ao que chama de “meu Exército”, a ponto de afrontar governadores responsáveis que adotaram políticas de isolamento social, evidencia absoluta falta de compaixão com os recordes de mortos pela Covid que têm sido batidos diariamente. Também revela um desprezo pela existência humana e dá a medida da importância e da atualidade de Hannah Arendt. Notadamente quando ela afirma que o mal tem a ver com a liberdade de escolha do indivíduo, não sendo uma característica específica dele.
Pelo que se tem visto desde sua posse, Bolsonaro quer ao seu redor militares com perfis à sua imagem e semelhança — ou seja, reveladoras do ponto a que a barbárie humana pode envolver os indivíduos mais banais. Diante disso e da permanente tentativa de minar o império da lei com base nas mais toscas e torpes justificativas, só resta esperar que a cúpula das Forças Armadas seja capaz de evitar a corrosão do ethos da instituição a um ponto sem retorno, o que levará a democracia arduamente conquistada após a ditadura militar de 64 a ceder espaço para mais uma aventura autocrática. Na última tentativa de Bolsonaro de pressionar e enquadrar as Forças Armadas, a cúpula teve sucesso e o conteve. Até quando conseguirá resistir a novas ofensivas autocráticas?
Referência:
[1] “O ethos das Forças Armadas e a banalidade do mal”, Estado da Arte, 02/02/2021 (https://estadodaarte.estadao.com.br/ethos-ffaa-jef).
[*] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil, Peguin Books, New York, 1963.
(Originalmente publicado em Estado da Arte, em 03/04/2021; https://estadodaarte.estadao.com.br/jef-banalidade-mal-planalto/ )
O Estado de S. Paulo: Bolsonarismo usa covid-19 para desestabilizar PMs e governos estaduais
Objetivo seria disputa pela Segurança Pública nos Estados; ataques às ações das polícias cresceram em 2021 e são monitorados pelos comandos das corporações
(Marcelo Godoy e Pedro Venceslau)
Quando a Polícia Militar de São Paulo anunciou que a vacinação para seus integrantes ia começar no dia 12 de abril, no mesmo dia todos os posts publicados pela corporação em uma rede social foram atacados por bolsonaristas, que afirmaram: “Vocês são covardes! Estão batendo em trabalhadores, seus capachos do calcinha apertada”. Outro bolsonarista, crítico à vacina Coronavac, do Instituto Butantan, escreveu: “Fico em dúvida se comemoro. Orações para vocês”.
O ataque às polícias nas redes sociais com informações falsas se multiplicaram em 2021, transformando a atuação da extremadireita no principal fator de instabilidade política para as forças de Segurança. “Já faz algum tempo que estamos sofrendo estes ataques. Alguns perfis lançam vídeos de abusos policiais de outros contextos ou mais antigos e fazem parecer que são atuais e contra a população”, disse o coronel Robson Cabanas Duque diretor da Comunicação da PM.
O fenômeno não atinge apenas a polícia paulista e o governador João Doria (PSDB), mas também as polícias de outros Estados, em que os governadores adotaram medidas de restrição à circulação de pessoas para controlar a pandemia de covid-19, como a Bahia e o Rio Grande do Sul. Também são alvo os governadores adversários do presidente Jair Bolsonaro, como os do Piauí e do Maranhão.
“Tem digitais bolsonaristas em questões locais. Eles se aproveitam para uso politiqueiro. A raiva dele (Bolsonaro) é não poder demitir ou prender governadores. Então tenta sabotar”, disse o governador Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. De acordo com o coronel Lindomar Castilho, comandante da PM do Piauí, há pessoas que “tentam desinformar e fazer a cabeça dos policiais” sob seu comando.
Em São Paulo, a PM tenta identificar o centro difusor dos ataques à corporação que buscam minar a disciplina da tropa. Entre as postagens monitoradas pela polícia está uma do ex-deputado Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, e outra do blogueiro Allan dos Santos, ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Somos fiéis à Constituição, à lei, não importam quais sejam as orientações políticas dos governos. Somos uma instituição de 189 anos. Se cumprir a lei desagradará a A ou a B, assim será”, afirmou o coronel Cabanas.
Vacinação
Em carta divulgada dia 29, 16 governadores afirmaram que “os agentes públicos precisam de paz para prosseguir com o seu trabalho, salvando vidas e empregos”. “Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir governadores e adversários políticos, são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”. O documento declarava ainda o apoio dos governados ao desejo das entidades de policiais de vacinação imediata de seus integrantes. A estratégia visava a retratar o bolsonarismo como responsável por opor a população aos PMs.
“A gente procura não entrar na questão política e se manter fiel ao regulamento e à nossa missão, contra esse jogo que pretende envolver as forças estaduais e federais”, afirmou o coronel Castilho. O Piauí, governado por Wellington Dias (PT) deve começar nesta segunda-feira a vacinar seus 6.140 PMs. A covid-19 havia matado 35 policiais militares e contaminado 1.283 no Estado até sexta-feira passada.
A reação dos governadores aconteceu após a ação coordenada do bolsonarismo de insuflar um motim na PM da Bahia em 28 de março. Naquele dia, o soldado Wesley Soares Góes teve um surto e, com um fuzil, foi ao Farol da Barra, em Salvador, onde passou a fazer disparos. Após atirar em direção aos colegas, acabou morto. De imediato, parlamentares bolsonaristas, como a deputada Bia Kicis (PSL-DF), passaram a tratá-lo como mártir por se recusar a cumprir as ordens do governador Rui Costa (PT). Mais tarde, ela removeu a publicação.
A estratégia de provocar um motim na Bahia só não foi para frente porque a ação foi filmada, confirmando que o soldado tentara matar os colegas. “A Bahia é o lugar mais frágil, em razão dos problemas enfrentados pelo governador na Segurança. Por isso foi atacada”, disse Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre os problemas de Costa, estaria a contestação feita por sua gestão no Supremo Tribunal Federal da lei que acabou com as prisões disciplinares dos PMs.
Risco
Se a ação do bolsonarismo incomoda as PMs, ela não seria, no entanto, suficiente para, segundo especialistas em Segurança Pública, provocar uma ruptura da ordem. “Não há possibilidade de se repetir no Brasil a situação da Bolívia (onde uma revolta policial levou à deposição de Evo Morales). Os policiais têm diversas vantagens que não vão colocar em risco por razões ideológicas”, disse Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Além disso, para Piquet, a aprovação do congelamento de salários na PEC Emergencial esvaziou o discurso sindicalista de Bolsonaro, diminuindo sua capacidade de mobilização. O Estadão não conseguiu contato com Santos e Jefferson.
Comandos das PMs pedem cautela a policiais em operações
Os comandos das PMs estaduais estão recomendando o máximo de cautela aos seus homens no cumprimento de medidas de restrição à circulação de pessoas durante a pandemia. Temem que qualquer incidente seja usado politicamente contra as corporações. “Recomendamos aos nossos homens que tenham bom senso em todas as ações”, disse o subsecretário de Segurança Pública, coronel Alvaro Camilo. Para o coronel Lindomar Castilho Melo, comandante da PM do Piauí, “bom senso e conversa não podem faltar. O policial não pode cair em provocações. Tem de colocar como autoridade.”
Para o oficial da PM e deputado federal Paulo Ramos (PDT-RJ), repercutiu mal na categoria a ação de bolsonaristas após o incidente com o soldado Wesley Góes, em Salvador. “Tentaram jogar companheiros contra companheiros, dividir a tropa”, diz Ramos. “Mas não deu certo, a repercussão (das iniciativas dos aliados de Jair Bolsonaro) foi negativa, tanto na Bahia como nos outros Estados.” Segundo ele, a identificação ideológica entre Bolsonaro e muitos PMs permanece.
Mas as expectativas práticas se romperam. “No discurso, o presidente incentiva o confronto (entre policiais e criminosos), mas nunca esteve nessa situação ou correu riscos. Ele só empurra os outros, incentiva os outros a se expor.” Para o coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, o discurso de Bolsonaro está enfraquecido. “O que ele fez pelas polícias ou pelos policiais? É só discurso, e o discurso está enfraquecido.”
Outra aposta para a manutenção da disciplina diante das investidas do bolsonarismo nas corporações contra é sistema de liderança e a efetividade da Justiça Militar. Diretor do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio d e Lima lembra que na semana passada a Justiça Militar paulista condenou a 6 anos e meio de prisão um policial que sacou um arma e ameaçou matar seu sargento no centro de São Paulo, em 2020. “A sentença do juiz Ronaldo João Roth foi dura.”
/ COLABOROU FÁBIO GRELLET
Felipe Betim: Daniel Silveira, o ‘pit bull’ bolsonarista eleito para atacar a democracia
Deputado federal, preso pelo STF na noite de terça-feira, ficou conhecido por quebrar a placa que homenageava a vereadora Marielle Franco, uma violência simbólica que vem marcando seu mandato
O policial militar licenciado Daniel Silveira (Petrópolis, 38 anos) ganhou visibilidade política nacional a poucos dias do primeiro turno das eleições de 2018. Na época candidato a deputado federal do Rio de Janeiro pelo Partido Social Liberal (PSL), quebrou durante ato de campanha a placa de rua que homenageava a vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada a tiros em 14 de março daquele ano, junto com os hoje deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) e governador do Rio afastado Wilson Witzel (PSC). A ação foi exitosa. Silveira acabou eleito na esteira do bolsonarismo com 31.789 votos, com o lema “não é uma festa democrática, é uma guerra contra a corrupção”. De certa forma, aquele ato anunciou o que estava por vir.
Até acabar preso na noite desta terça-feira, a atuação parlamentar de Silveira foi marcada pela mesma violência simbólica que representou a quebra da placa de Marielle. Com 1,90 metro de altura e porte atlético, investe no personagem de pit bull bolsonarista sem papas na língua que parece a todo momento pronto a recorrer à violência física se preciso. Fala grosso com a esquerda, enfrenta jornalistas, faz ameaças nas redes sociais contra quem se coloca em seu caminho, defende publicamente a truculência policial. O parlamentar sempre se valeu do argumento de que, como cidadão, possui direito a liberdade de expressão. E, como deputado federal, tem direito a imunidade parlamentar que lhe garante passe-livre para falar o que quiser sem ser incomodado, mesmo passando de todos os limites razoáveis.
Foi fiel a esse estilo mesmo após ter sido preso em flagrante por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Já detido, se recusou a usar máscara de proteção durante sua passagem pelo Instituto Médico Legal (IML) e hostilizou uma policial civil. “A senhora não manda em mim não. Tá achando que sou vagabundo?”, questionou. “E se eu não quiser botar? Eu também sou policial e sou deputado, e aí?”, desafiou.
Em uma ocasião, Silveira já insultou o jornalista Guga Noblat e jogou seu celular no chão. Em outra, tentou entrar sem avisar no colégio federal Pedro II, no Rio de Janeiro, para fazer o que chamou de “vistoria”. A ação foi interpretada como intimidatória e gerou revolta nos estudantes, que enxotaram o parlamentar. Mais grave ainda, Silveira cotidianamente atenta contra a democracia ao defender com intervenção militar, um novo AI-5 ou o linchamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Os vídeos que resultaram em sua prisão são o principal exemplo dessa atuação violenta e de seu flerte com o golpismo. Em um deles, se dirigiu ao ministro Edson Fachin: “Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime”, desafiou. “Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime”.
Em outro trecho, faz um ataque generalizado ao STF: “Eu sei que vocês vão querer armar uma pra mim pra poder falar ‘o que é que esse cara falou no vídeo sobre mim, desrespeitou a Supremo Corte’. Suprema Corte é o cacete”, afirmou. “Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de onze novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereceram. Vocês são intragáveis”.
Parte da tropa de choque fiel ao presidente Jair Bolsonaro, o que fala e pensa reflete a essência ideológica da extrema direita bolsonarista. Essa doutrina se reflete nos 47 de projetos de lei que já apresentou. Alguns fazem guinadas a policiais, como o projeto que reconhece que profissionais da segurança fazem trabalhos insalubres e de risco, o que prevê isenção de IPI na compra de arma, munição e blindagem de veículo ou o que garante atendimento médico ao policial ou bombeiro ferido durante o exercício de sua função pública.
Em outros, pretende endurecer a pena de prisão para usuários de drogas, aumentar as condições para que presos possam sair temporariamente da cadeia, permitir que professores usem armas não-letais nas escolas para se defender ou instituir um dia em memória das vítimas contra o comunismo —a data seria 31 de março, a mesma golpe militar no Brasil em 1964. Somente um projeto foi aprovado: a criação do Dia Nacional de Políticas de Prevenção de Desastres Naturais e Calamidades Públicas.
Conduta pouco exemplar
Essa arrogância se expressa em sua recusa em se apresentar ao Ministério Público Federal, que há oito meses tenta escutar Silveira no âmbito de um inquérito que investiga o ex-policial por improbidade administrativa, segundo informou a revista Época. Silveira há meses paga 10.000 reais mensais a um advogado de Petrópolis e tem valor reembolsado pela Câmara, sob o argumento de que recebe consultoria para a produção de projetos de lei. Até o momento, 190.000 reais de dinheiro público foram gastos.
Sua atuação como policial militar durante os mais de cinco anos em que esteve ligado à corporação também está longe de ter sido exemplar. “Em virtude de numerosas transgressões disciplinares cometidas ao longo de 2013 e 2017, por atrasos e faltas aos serviços”, afirma um boletim interno publicado pelo portal The Intercept, “o soldado acumulou em seu histórico 60 sanções disciplinares, 14 repreensões e duas advertências”. O então policial chegou a acumular 26 dias de prisão e 54 dias de detenção no quartel, o que deixa “cristalina a sua inadequação ao serviço na Polícia Militar”, diz o documento. “Fui preso por bater de frente com a arbitrariedade, contra ordens absurdas de alguns oficiais. O regulamento da PM, que é militar, é extremamente rígido”, disse em vídeo publicado no Facebook.
Mesmo antes de ingressar na corporação, Silveira já dava amostras de ser incompatível com o serviço público. Durante o processo, foi descoberta uma prisão por suspeita de venda de anabolizantes em academias de Petrópolis. Com essa passagem pela polícia em seu histórico, Silveira teve de recorrer à Justiça para finalmente entrar na corporação. Um processo para impedir sua permanência foi aberto, mas acabou arquivado em 2014 após chegar ao Supremo e sofrer vários vaivéns jurídicos.
Uma vez dentro da corporação, foi transferido para o batalhão de Duque Caxias, na Baixada Fluminense —região dominada por grupos milicianos—, onde costumava filmar com o celular suas ações de patrulhamento. Em perfil publicado pela revista Piauí, afirmou rindo que não dava para contar quantas vezes apertara o gatilho. “Matei o quê? Uns doze, por aí, mas dentro da legalidade, sempre em confronto”, afirmou.
El País: Ameaças de neonazistas a vereadoras negras e trans expõem avanço do extremismo
Ataques contra vereadoras de várias cidades ocorreram em dezembro e polícia ainda busca autores. Vítimas relatam rotina de medo especialistas alertam para escalada das ameaças no país, enquanto os EUA refletem sobre banalização dos discursos de ódio nas redes
Injúrias raciais, infelizmente, não são uma novidade para a professora Ana Carolina Dartora, 37 anos. Primeiro vereadora negra eleita nos 327 anos da Câmara Municipal de Curitiba, e a terceira mais votada na capital paranaense nas eleições 2020, sua campanha foi permeada por ataques, sobretudo nas redes sociais. Até então, Carol Dartora ―como é conhecida a vereadora filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT)― considerava as mensagens inofensivas. Mas no início de dezembro ―logo após uma entrevista do prefeito Rafael Greca (DEM) na qual o mandatário disse discordar da existência de racismo estrutural na cidade― ela recebeu por e-mail uma mensagem a ameaçando de morte, inclusive com menção ao seu endereço residencial.
No texto, o remetente chama a vereadora de “aberração”, “cabelo ninho de mafagafos”, e diz estar desempregado e com a esposa com câncer. “Eu juro que vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Curitiba e vou te matar.” A mensagem dizia ainda que não adiantava ela procurar a polícia, ou andar com seguranças. Embora Carol tenha ouvido de algumas pessoas que as ameaças eram apenas “coisas da Internet”, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS ponderam que não se deve subestimar os discursos de ódio ―a exemplo de toda a discussão que permeiam os Estados Unidos desde a quarta-feira, 6 de janeiro, quando extremistas apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio em protesto contra a derrota do presidente, provocando cinco mortes.
O e-mail, com texto igual, também foi enviado para Ana Lúcia Martins (PT), também a primeira mulher negra eleita para vereadora em Joinville (SC). As vereadoras trans Duda Salabert (PDT), de Belo Horizonte, e Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), também foram ameaçadas pelo mesmo remetente. Até aqui, as investigações policiais dão conta de que o ataque orquestrado partiu de uma célula neonazista que atua sobretudo nas profundezas da internet, a chamada deep web. O provedor do qual a mensagem foi enviada tem registro na Suécia, o que dificulta o rastreamento por parte das polícias civis e, no caso do Paraná, do Núcleo de Combate aos Cibercrimes.
“Fiquei olhando para a mensagem perplexa, sem conseguir processar muito. O espanto de outras pessoas do partido me deu o alerta”, contou Carol ao EL PAÍS. “A violência não é só objetiva. A violência política acompanha a minha trajetória e a das outras vereadoras ameaçadas, com barreiras que vão se criando para que a gente não tenha êxito. Nenhuma mulher deveria enfrentar tanta coisa para exercer um direito básico da democracia”, frisa.
Desde então, o medo faz parte do cotidiano da vereadora de Curitiba. “Tô tentando ser mais discreta. Estou pensando até em mudar o meu cabelo. Isso é muito minimizado, desprezado. As pessoas pensam que é bullying, coisa de Internet. É muito nítida a questão de gênero, do sexismo aliado ao racismo.” Mas foi na Internet, por exemplo, que foi planejado, durante semanas, os ataques ao Capitólio dos EUA por grupos de extrema-direita que não aceitam a derrota de Trump para o democrata Joe Biden.
Ódio racial
Filiada ao PT desde os anos 1980, Ana Lúcia Martins, 54, foi a primeira mulher eleita pelo partido em Joinville (SC) e, assim como Carol Dartora, a primeira negra na Câmara Municipal. A professora, educadora física e alfabetizadora iniciou a sua formação e participação política ainda na adolescência, em grupos de jovens da Igreja do Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, onde nasceu e cresceu. Decidiu disputar o pleito após um longo amadurecimento junto aos movimentos negros e de mulheres.
Após sua vitória nas eleições 2020, as primeiras intimidações já surgiram pelo Twitter, quando ela ainda comemorava a vitória. “Uma conta fake veio e comentou: ‘agora a gente precisa matar ela para o suplente, que é um homem branco, assumir’. Então não era uma questão de ódio ao partido, ou somente machismo. O ódio era racial mesmo”, pontua. Dias depois recebeu o mesmo e-mail que a vereadora curitibana, do mesmo remetente. “Diante dessa denúncia a gente pensou que não podia mais descuidar” conta Ana Lúcia, que agora anda escoltada por seguranças pagos por membros do partido. Segundo ela, essas pessoas fizeram uma vaquinha para arcar com os custos.
Foi oferecido à vereadora integrar o Programa Federal de Assistência a Testemunhas. “Para nós isso não serve, porque aí não poderia exercer meu mandato, e queremos essa garantia” salienta Ana Lúcia. A Polícia Militar catarinense ofereceu rondas e viatura em eventos públicos, desde que a vereadora solicite com antecedência, via ofício.
Pressão internacional
Advogado do Diretório Municipal do PT em Curitiba e também professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuska disse acreditar que medidas mais assertivas em relação à proteção de Carol, Ana Lúcia e outras vereadoras ocorrerão por pressão de entidades internacionais. Ele, que acompanha o caso, fez um relatório a respeito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Opuska procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) para solicitar segurança à vereadora do Estado. “O secretário [Romulo Marinho Soares] não atendeu a Carol. Você não pode deixar que a responsabilidade saia da mão do agente [Estado]. Temos que ter o cuidado de não banalizar. Não é difícil acontecer o que aconteceu com a Marielle [Franco]em uma cidade como Curitiba, cujo racismo estrutural aparece no discurso do próprio prefeito.”
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “após haver solicitação de audiência para que o secretário atendesse a vereadora eleita, ele designou um delegado especializado, integrante da Segurança Pública, para recebê-la (tendo em vista que ele estava com outras agendas prévias e externas). Sendo assim, a vereadora teve o devido atendimento”, argumenta a pasta. Ainda de acordo com a entidade, o caso requer uma “investigação complexa”.
Necessidade de reação
Na análise da professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), Megg Rayara Gomes de Oliveira, existe um consentimento por parte do Poder Público para que esses grupos neonazistas se movam com certa liberdade. Primeira travesti negra a obter o título de doutora pela universidade onde hoje leciona, Meggy fala que as denúncias de mulheres negras acabam sendo desacreditadas. “Para ter validade precisa passar pela tutela de pessoas brancas. As pessoas respeitam o cargo que ocupam nosso título. Quem é respeitada não é a mulher preta mas a vereadora eleita.”
Ela também critica a atuação dos partidos sobre a coação sofrida pelas vereadoras. “Elas são de três partidos de esquerda, que não estão dando importância para a gravidade dessas ameaças. Fica evidente que o PSOL não deu atenção para tudo o que acontecia com a Marielle. Parece que os partidos não estão muito preocupados em proteger esses corpos.”
Precursora no Brasil em pesquisas sobre grupos neonazistas que se movimentam na internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias fala que o neozanismo no Brasil é uma “miríade”. “Existem muitos grupos, cada um deles com uma ou várias células que às vezes partilham da mesma base”, explica.
Em sua tese de doutorado pela Unicamp, ela reúne mais de 15 anos de pesquisas junto a sites, fóruns, blogs e comunidades para descrever como pensam esses extremistas. “Há grupos antigays, de supremacia branca, hitleristas, os que tendem para um discurso nacionalista. No ferver dos ovos, o que está ali é o ódio. Que busca desmanchar a humanidade de uma pessoa, impedir que ela tenha a sua personalidade reconhecida”, explica.
De acordo a antropóloga Adriana, a situação no Brasil hoje é grave e houve um crescimento desses grupos após a eleição que elegeu Jair Bolsonaro presidente em 2018, com um discurso bastante violento. “Para se ter uma ideia, uma professora de ensino fundamental me disse que estava dando uma aula sobre o livro da Anne Frank [autora infantil judia assassinada na Segunda Guerra] e a videoconferência foi invadida. A situação está ficando grave no Brasil, e as pessoas não estão se dando conta. É preciso que a sociedade civil reaja de forma veemente. Não pode acontecer a essas vereadoras o que aconteceu com Marielle. Elas precisam ser protegidas pelo Estado. Como sociedade civil que pensa no processo civilizatório, temos que reagir.”
O Estado de S. Paulo: Brasil se torna alvo de hackers com mais de 20 mil notificações ao ano
Sistema do TRF-1 foi invadido na noite de anteontem; em mensagem enviada ao 'Estadão', hacker negou motivação política e disse ter agido por 'diversão'
Vinícius Valfré, Tânia Monteiro e Patrik Camporez, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Um ataque hacker ao Tribunal Regional Federal da 1.ª Região tirou do ar ontem o sistema do maior tribunal do País. Foi a quarta grande instituição federal a ser atacada em menos de um mês. Ao todo, foram mais de 20 mil notificações registradas por órgãos públicos em 2020, até este mês, segundo monitoramento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.
Embora a invasão da maior Corte federal de segunda instância não tenha provocado bloqueio ou vazamento de informações sensíveis, ela ajuda a alimentar desconfianças sobre a segurança de dados do Judiciário. No dia 15, data do primeiro turno das eleições municipais, um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não chegou a prejudicar o resultado das urnas, mas foi usado por bolsonaristas para impulsionar uma campanha de desinformação.
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O TSE reforçou seu sistema de segurança digital para o segundo turno, que ocorre amanhã. Toda a ação até agora, incluindo o uso das redes sociais para divulgar notícias falsas sobre fraudes nas eleições, está sendo investigada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal (MPF).
Em mensagem enviada pelo Twitter ao Estadão, o hacker identificado como M1keSecurity, que notificou anteontem à noite a invasão ao próprio TRF-1 e postou a figura de um diabo para comemorar o sucesso da ação, afirmou ser ligado ao CyberTeam. Ele negou motivação política e disse ter agido por “diversão”. Liderado por um jovem de 19 anos conhecido como Zambrius, que está em prisão domiciliar em Portugal, o grupo também reivindicou a investida contra o TSE e o Ministério da Saúde.
Notificações
A onda de ataques cibernéticos a instituições está confirmada em números. De janeiro até o último dia 11, o núcleo do GSI que monitora questões referentes à cibersegurança registrou 21.963 notificações desse tipo no País, do governo e de fora do governo. Em todo o ano passado, foram 23.674 registros.
Mesmo com a manutenção do ritmo de notificações ao Centro de Tratamento e Resposta a Incidentes Cibernéticos de Governo, vinculado ao GSI – gabinete comandado pelo general Augusto Heleno –, o alerta crítico está no crescimento das vulnerabilidades encontradas em sistemas tecnológicos. De um ano a outro, as brechas que permitem a exploração maliciosa nos sistemas e nas redes de computadores saltaram de 1.201 para 2.239.
Nem o Exército conseguiu barrar todas as investidas. Em maio, hackers divulgaram exames médicos feitos pelo presidente Jair Bolsonaro entre junho de 2019 e janeiro deste ano no Hospital das Forças Armadas. O ataque mais grave de que se tem notícia foi contra o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no dia 3. Os criminosos criptografaram arquivos e pediram pagamento em criptomoedas para devolvê-los.
No dia 5, foi a vez do Ministério da Saúde. A publicidade da contagem dos casos de covid-19 ficou provisoriamente prejudicada. Logo depois veio a ação contra a Justiça Eleitoral.
Investigadores envolvidos nas apurações dos ataques ao Judiciário admitem a “onda de invasões” e atribuem o fenômeno a uma tentativa de “testar as instituições”. Observam, porém, que apenas bases de dados antigas e com pouca relevância foram acessadas, fazendo com que núcleos centrais de informação continuem intactos. Na prática, grupos hackers costumam alardear invasões para se mostrar importantes. Muitos querem ser chamados para esse tipo de crime, obtendo para tanto benefícios financeiros.
Legislação
As invasões também são desafio para grandes corporações. Para especialistas, no entanto, as vulnerabilidades dos órgãos públicos são explicadas por certo grau de desleixo com sistemas de segurança, lentidão para fazer frente às ameaças e, ainda, por uma legislação passível de avanços.
“Precisamos de uma lei com a política nacional de segurança cibernética. Este projeto está em elaboração e essa nova lei, considerada absolutamente necessária, tem por objetivo, entre outras coisas, atribuir responsabilidades a quem violar a segurança cibernética”, afirmou o diretor do Departamento de Segurança da Informação do GSI, general Antonio Carlos de Oliveira Freitas.
Na avaliação da SaferNet Brasil, que colabora com o Ministério Público Federal no monitoramento da desinformação nestas eleições, órgãos públicos costumam falhar no que é elementar: segurança digital. “Geralmente se falha no básico, com falhas de configuração nos servidores, políticas de atualização inexistentes, autenticações falhas e bugs (defeitos) de softwares”, disse o presidente da entidade, Thiago Tavares.
Após a invasão ao STJ, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, determinou a criação de um “comitê cibernético” para preparar medidas de proteção à Justiça. Uma das críticas de especialistas é o fato de o Judiciário não ter um centro permanente, nesse modelo, para monitorar e reagir a incidentes.
“Estamos todos preocupados. Me parece mais um vandalismo, mas, e se fosse algo mais profissional, para apagar ou inserir dados? Ficamos sem saber qual o grau de vulnerabilidade que o sistema apresenta”, afirmou o advogado Marcelo Bessa, integrante do Instituto de Garantias Penais (IGP).
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