ataques à democracia
Nas entrelinhas: Talvez a pergunta seja “quem perdeu com o debate?”
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Sempre achei muito complicado analisar o resultado de debates entre candidatos a partir da minha própria percepção. O debate da Bandeirantes, entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) não foge à regra. É possível fazer uma leitura racional dos debates a partir do conteúdo das respostas dos candidatos, mas existe fatores subjetivos que alteram completamente a percepção da imagem dos debatedores pelos eleitores. Tanto é assim que as pesquisas mostram uma divisão de opiniões sobre a atuação dos candidatos que mais ou menos gravita em torno dos índices de intenção de voto. Quando o resultado destoa muito, aí sim podemos afirmar que fulano ou beltrano venceu o debate. Mas não é o caso. Por isso, alguns acham que Lula se saiu bem, outros apontam Bolsonaro como vitorioso.
Como numa luta de boxe, num debate eleitoral todo mundo apanha. Alguém somente vence inequivocamente quando o adversário vai a nocaute. Quando isso não acontece, a decisão é por pontos, depende dos jurados, e nem sempre corresponde ao gosto do público.
No plano das subjetividades, diria que o Bolsonaro entrou no debate em desvantagem por causa do “pintou um clima” no caso das jovens refugiadas venezuelanas que visitou. O assunto virou meme petista nas redes sociais e deixou o presidente na berlinda durante o fim de semana. Entretanto, a decisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, mandando tirar do ar a live do presidente que relatava o caso, por ter sido descontextualizada, resgatou Bolsonaro do canto do ringue. Foi como se o juiz interrompesse a luta por causa de um golpe sujo.
Na troca de socos, Lula manteve a ofensiva no caso da pandemia, responsabilizando o presidente pelas mortes que poderiam ter sido evitadas se o seu negacionismno não tivesse atrasado a compra das vacinas. Mas isso não foi suficiente para abater Bolsonaro, até porque sua falta de empatia com as vítimas também serve de couraça para que esse assunto não abata o seu ânimo.
Mesmo em desvantagem nas pesquisas de opinião, na campanha eleitoral, em nenhum momento, Bolsonaro se sentiu espiritualmente derrotado. Passou à ofensiva num tema em que o petista tem revelado muita dificuldade de se defender: o escândalo da Petrobras. Lula não respondeu à altura e ainda gastou o tempo que tinha desnecessariamente, deixando o presidente em grande vantagem ao final do bloco, porque falou por último, com tempo de sobra. Esses dois momentos influenciaram muito as opiniões dos analistas.
Mas como reagiram os eleitores? Quem tentou responder essa pergunta foi a AtlasIntel, empresa de pesquisas que se destacou por ter o melhor desempenho do primeiro turno. Usou um recurso que as campanhas utilizam para avaliar os debates: pesquisas qualitativas. A AtlasIntel ouviu 100 eleitores que não votaram em Lula ou Bolsonaro. A maioria (54%) considera que Lula ganhou o debate, 32% acham que foi Bolsonaro e 14% não souberam responder.
A maioria dos eleitores que votaram em Simone Tebet (60%), Ciro Gomes (60%), outros candidatos (50%), branco/nulo (57%) e também não votaram (57%), em nove grupos, concorda que Lula venceu o debate. Os grupos focais foram formados em Paraná/Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Tocantins, Bahia, Acre e Mato Grosso/Mato Grosso do Sul. Esse tipo de estudo, porém, não tem valor estatístico para avaliar a opinião da população. É um instrumento para avaliar tendências e informar análises, como essa aqui.
Rejeição
A disputa política do segundo turno está se dando em torno de quatro grandes temas: a situação da economia, os serviços prestados à população, a ética na política e a questão democrática. O debate não é programático, voltado para o futuro imediato e/ou o programa do novo governo. O debate está ancorado no passado, nos governos Lula e Dilma Rousseff e no primeiro mandato de Bolsonaro. Mira a rejeição dos candidatos, que manteve a polarização e certamente decidirá a eleição.
Lula cresce quando sai em defesa da democracia e das políticas públicas, principalmente na área social; Bolsonaro, quando ataca a corrupção nos governos petistas. Na questão econômica, o petista leva vantagem, mas não mais como no primeiro turno. Um tema subjacente, ora à questão democrática, ora às políticas públicas, é a pauta dos costumes, na qual Bolsonaro tenta surfar para neutralizar o fracasso administrativo do governo em área como a saúde e a educação. De outro lado, a mudança dos costumes serve de linha de resistência para os militantes das causas identitárias, que são pro-Lula.
Nos programas eleitorais, nas redes sociais e nos debates, esses são os eixos da disputa desde o primeiro turno. Em termos de intenções de votos, Lula se mantém na dianteira, mas Bolsonaro encurta a distância. Haverá tempo para uma virada? Uma projeção linear das pesquisas diz que não, mas as eleições são uma caixinha de surpresa e, na reta final da disputa, sempre pode haver alterações.
É aí que os dois outros debates programados, no SBT e na Globo, podem fazer a diferença. Nesse caso, será decisivo o fator subjetivo do desempenho pessoal dos candidatos e sua capacidade de emocionar os indecisos.
Mas quem perdeu com o debate? Todos que esperavam boas propostas para o futuro.
Deputado bolsonarista tenta intimidar Vera Magalhães e é expulso de debate
O deputado estadual Douglas Garcia (Republicanos), candidato a deputado federal nestas eleições, foi expulso do debate realizado pelo UOL em parceira com a Folha de S.Paulo e a TV Cultura na noite desta terça-feira (13) após tentar intimidar a jornalista Vera Magalhães, que participou do evento.
Com celular em punho, o deputado, que faz parte da comitiva do ex-ministro e candidato Tarcísio de Freitas (Republicanos), foi para cima da apresentadora afirmando que ela é "uma vergonha para o jornalismo" e questionando o valor do seu contrato de trabalho.
O ataque ocorreu poucos minutos após o debate ser encerrado. Garcia assistia ao evento na plateia ao lado direito e desceu do local para confrontar a jornalista. O apresentador Leão Serva, que mediava o debate, intercedeu e retirou o celular da mão do deputado, que começou a gritar "jonazistas", enquanto era retirado pelos seguranças.
Ameaça. No Twitter, Vera afirmou que irá registrar um boletim de ocorrência de ameaça contra Garcia. "Há centenas de testemunhas. Usou o convite no estafe de Tarcísio de Freitas no debate apenas para vir mentir e me acossar e ameaçar", escreveu.
A jornalista ainda questionou o candidato ao governo de São Paulo pelo Republicanos e ex-ministro da Infraestrutura, se ele concorda com a atitude do parlamentar. Segundo Vera, ela precisou sair escoltada do Memorial da América Latina, onde ocorreu o debate desta noite.
Repúdio de Tarcísio. Ao UOL, o ex-ministro criticou a postura do correligionário e ressaltou que este tipo de situação não pode acontecer. "Acho que não cabe nenhum tipo de agressão em momento nenhum. A gente tá aqui promovendo a democracia", pontuou.
Ele afirmou que não viu o momento em que Douglas Garcia foi para cima da jornalista: "Lamento, obviamente. A gente não tem conhecimento, tá lá dentro, não está vendo estas coisas acontecerem. Mas não é coisa para acontecer. A gente não pode ver estas coisas acontecendo".
Após a cobrança no Twitter, Vera contou que recebeu uma ligação de Tarcísio na qual ele se solidarizou com ela e afirmou que irá fazer uma declaração pública sobre o ocorrido. "Agradeço a ele pelo gesto e aguardo", disse Vera.
Sem credencial? Questionado se vai continuar mantendo o nome do deputado na lista de pessoas que recebem credencial para entrar no evento, o candidato disse que vai analisar a situação.
"Vamos avaliar. Porque veja, as pessoas às vezes são do partido, pedem para participar e a gente, por uma questão de deferência, permite. Mas não é para ter confusão", completou.
Deputado pediu desculpas a Tarcísio. Hoje pele manhã, Douglas Garcia anunciou, por meio de um vídeo publicado nas redes sociais, que registrou boletim de ocorrência contra a jornalista da TV Cultura.
Na publicação, o apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL) pede desculpas a Tarcísio e mantém os ataques a Vera e à imprensa.
"Não me arrependo de absolutamente nada do que fiz hoje. Se é para pedir desculpas para alguém, não é para jornalista nenhum. Tenho que pedir desculpas ao Tarcísio. Eu sou adulto, Tarcísio é adulto, nós sabemos que essa questão de responsabilidade conjunta é uma coisa que a imprensa tenta incutir nas cabeças das pessoas", afirmou.
Ataques bolsonaristas. Vera tem sido alvo de bolsonaristas desde que fez uma pergunta ao presidente Jair Bolsonaro (PL) durante o debate presidencial no fim de agosto e foi atacada por ele.
Durante o ato de 7 de Setembro no Rio de Janeiro, convocado por Bolsonaro e com presença dele, um grupo já havia pendurado um cartaz com a foto e ofensas à apresentadora em um trator.
Ato 'intolerável'. Nas redes sociais, a jornalista publicou um vídeo dos ataques de Garcia e disse que "não tem medo de homem que ameaça e intimida mulher". "Não tenho medo de homem público que usa o cargo para acossar a imprensa", escreveu.
Vera disse ainda que a atitude do deputado é "inaceitável, intolerável na democracia". "Não será um truculento, nem dois, que irão me intimidar a continuar fazendo meu trabalho. O deputado tem o meu contrato, porque o requereu. Mente reiteradamente. Agride mulher. Não vai me calar".
Participaram desta cobertura: Ana Paula Bimbati, Caê Vasconcelos, Isabela Aleixo, Felipe Pereira, Gabriela Vinhal, Gilvan Marques, Herculano Barreto Filho, Juliana Arreguy, Leonardo Martins, Lucas Borges Teixeira, Mariana Durães, Rafael Neves, Stella Borges, Wanderley Preite Sobrinho.
*Texto publicado originalmente no portal da UOL.
Editorial revista online | Incerteza e risco na campanha eleitoral
No dia 5 de agosto próximo, partidos e candidatos sairão às ruas, na largada de suas campanhas. A partir dessa data, até a realização do primeiro turno das eleições, assistiremos todos à campanha eleitoral com maior grau de incerteza e risco dentre todas as realizadas na vigência da Constituição de 1988.
O presidente da República, candidato à reeleição, reincide seguidamente em três modalidades de pronunciamentos, todas com efeito desestabilizador sobre o curso do processo eleitoral. Em primeiro lugar, lança dúvida sobre a eficácia das urnas eletrônicas, tentando fazer prosperar, na opinião pública, a hipótese de fraude em caso de derrota. A reiteração desse argumento em contextos diversos mostra, de forma clara, a intenção de contestar o eventual resultado desfavorável e prolongar, no fim das contas, sua permanência no poder, a despeito da derrota. Uma mensagem inequivocamente golpista.
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Em segundo lugar, promove, simultaneamente, a desqualificação moral dos adversários, sempre com base em notícias falsas, fabricadas e disseminadas com o propósito de aumentar a animosidade, até mesmo a aversão, aos candidatos das forças que integram o campo democrático hoje no país.
Finalmente, prossegue na propaganda e estímulo permanente ao livre acesso e porte de armas de fogo a todo cidadão. Cumpre assinalar que esse esforço discursivo foi acompanhado por medidas efetivas de liberalização que resultaram na multiplicação do número de armas de fogo em circulação, de 2018 para cá.
Os três argumentos apontam para o mesmo alvo: a constituição de uma massa de eleitores armados, radicalizados, prontos para disparar contra adversários, em caso de frustração de seus objetivos eleitorais. Aumenta a voltagem da violência política e, mesmo antes do início da campanha, houve episódios que resultaram em agressão armada e óbito.
Veja, abaixo, galeria de imagens:
O grande indicador dos resultados da estratégia do candidato governista será, aparentemente, a mobilização popular convocada em seu favor para o dia 7 de setembro. A estratégia parece repetir, em escala ampliada, as manifestações de 2021. Em caso de sucesso, o saldo seria a desmoralização das instituições e a criação de uma reserva de aparente apoio popular a movimentos futuros de recusa do resultado eleitoral.
As tarefas da oposição, por sua vez, estão desenhadas com clareza. Articular de imediato uma rede em defesa da democracia, que reúna partidos e candidatos, governadores e prefeitos, legisladores nacionais, estaduais e municipais, Judiciário e sociedade civil, em defesa da ordem no dia do bicentenário da Independência e da democracia ao longo de todo o processo eleitoral, até a posse dos eleitos.
Outra tarefa é promover o diálogo urgente entre os candidatos do campo democrático para construir o consenso necessário em torno da defesa da democracia, do repúdio conjunto aos ataques autoritários e definição das regras mínimas de convivência democrática e civilizada que devem governar a competição eleitoral no interior desse campo.
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Baixa aprovação de Bolsonaro põe em risco projeto de reeleição
Série de pesquisas indica que Bolsonaro está aquém de índices que presidentes e governadores tinham 12 meses antes do pleito
Bernardo Mello / O Globo
RIO — Restando cerca de um ano para a eleição de 2022, e com a avaliação positiva num patamar de 20%, segundo a pesquisa Datafolha mais recente, o presidente Jair Bolsonaro disputará novo mandato diante de um histórico desfavorável para governantes com taxas de aprovação semelhantes. Levantamento da consultoria Ideia Big Data para o GLOBO mostra que, desde 1998, quando a reeleição passou a ser permitida, presidentes e governadores que foram reconduzidos costumavam ter taxas de ao menos 40% de aprovação numa janela que compreende os 12 meses antes da votação.
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Em 2018, ano em que pela primeira vez o presidente, Michel Temer (MDB), declinou de tentar outro mandato mesmo podendo concorrer, Bolsonaro chegou ao segundo turno e elegeu-se numa campanha com condições adversas. Além de pouca estrutura partidária com o então nanico PSL, Bolsonaro era o candidato com maior taxa de rejeição, sempre próxima a 40%, durante todo o primeiro turno. Para 2022, em que pesem as avaliações negativas de sua gestão, o presidente aposta no lançamento do Auxílio Brasil, programa que ocupará o lugar do Bolsa Família, para melhorar seu patamar de aprovação.
Metodologia
O levantamento da Ideia Big Data considerou as medianas — isto é, o valor intermediário, dentro de um conjunto de pesquisas — das taxas de aprovação de governantes que tentaram a reeleição. No caso de governadores, considerando pesquisas realizadas entre 12 e 9 meses antes da eleição, a mediana de avaliação positiva dos reeleitos foi de 41%. Já os não reeleitos eram aprovados por 27% a 30% do eleitorado.
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Nas três reeleições presidenciais desde 1998, a aprovação dos ocupantes dos cargos ficou acima de 30% no período de um ano que antecedeu os pleitos — a de Bolsonaro, hoje, é de 23%. A exceção, de acordo com o levantamento, foi a reeleição em 2006 do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aprovado por 29% no fim de 2005. Às vésperas da eleição, porém, o petista chegou a 44%.
O diretor-executivo da Ideia Big Data, Mauricio Moura, vê pontos em comum entre o salto de Lula e o efeito buscado por Bolsonaro com o Auxílio Brasil. Com a imagem do governo desgastada à época pelo mensalão, Lula experimentou uma guinada positiva em paralelo à expansão do Bolsa Família, implementado por seu governo em janeiro de 2004. O programa, que beneficiava 8 milhões de famílias ao fim de 2005, ampliou gradativamente seu alcance até chegar a 11,2 milhões de famílias em julho de 2006, sem mexer no valor do benefício.
Bolsonaro, por sua vez, aposta no aumento do benefício para R$ 400 por família até o fim de 2022, mas sem planos de expandir a base atendida, que será menor do que no auxílio emergencial. Hoje, o Bolsa Família atende 14,6 milhões de famílias. A expectativa é que o Auxílio Brasil chegue a 17 milhões; a diferença corresponde à fila já existente para cadastro no programa. O auxílio emergencial, que também inclui desempregados e trabalhadores informais, tem hoje 39,4 milhões de beneficiários.
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— Além de uma aprovação muito menor que seus antecessores, Bolsonaro tem um saldo muito negativo entre aprovação e rejeição. Se ele apenas voltar a um patamar de 30% de aprovação, como já esteve antes, não é o suficiente. Precisaria ampliar um pouco também a faixa de eleitores que o consideram regular — avalia Moura.
Em setembro, o Datafolha mostrou que a avaliação negativa do governo era de 53%, mais de 30 pontos percentuais acima do índice de aprovação (22%).
Outras variantes
Especialistas têm avaliado que apenas o incremento do novo Auxílio Brasil, em um cenário de alta de preços, pode não ser suficiente para aumentar a popularidade de Bolsonaro. Segundo o IBGE, a inflação acumulada de 12 meses chegou a 10,6% em outubro, que registrou sua maior variação mensal desde 2002.
O cientista político Jairo Pimentel Jr. lembra que, em 2020, Bolsonaro já teve queda na popularidade após a redução pela metade do auxílio emergencial, originalmente de R$ 600, e da queda de quase 30 milhões no número de pessoas atendidas.
— Ainda que o auxílio emergencial tenha trazido um pico de popularidade a Bolsonaro em 2020, hoje ele tem cinco pontos a menos de avaliação positiva em relação ao período que antecedeu os pagamentos — afirma.
A socióloga Esther Solano aponta ainda uma percepção de “insegurança” das famílias por conta da migração de programas sociais. Em meio à tentativa de aprovar a PEC dos Precatórios — agora no Senado —, que abrirá espaço fiscal para o programa, o governo adiou o reajuste de R$ 400 do Auxílio Brasil para dezembro.
Extrema-direita no Brasil já não precisa de Bolsonaro para se mobilizar, revela pesquisa
Estudo mostra o legado radical de 18 meses de manifestações de rua pelo País
Marcelo Godoy / O Estado de S.Paulo
Os atos e manifestações do bolsonarismo não precisam mais da presença de Jair Bolsonaro para acontecer. Dezoito meses de mobilização das ruas deixaram como herança uma extrema-direita rapidamente mobilizada em torno de pautas que vão do combate às medidas de isolamento social à defesa do voto impresso e à guerra contra instituições.
É o que mostra pesquisa inédita coordenada pela antropóloga Isabela Kalil, Democracia Sitiada e Extremismo no Brasil: 18 meses de manifestações bolsonaristas, do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (NEU-FESPSP). Ao todo foram mapeadas 45 manifestações entre março de 2020 e setembro deste ano, em que o bolsonarismo atuou por meio do que os pesquisadores classificaram como “extremismo estratégico”.
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Mas o que seria esse extremismo e por que essa história não acaba com a declaração à nação feita por Bolsonaro para recuar dos ataques aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) na manifestação de 7 de Setembro? Para Kalil, apesar de ser impossível saber se o presidente continuará a participar desses eventos após o recuo, é certo que os atos não precisam mais de Bolsonaro para ocorrer. “Há vários exemplos na pesquisa. Bolsonaro pode moderar o tom e mudar a performance sem que os atos sejam desmobilizados.”
Como exemplo, a antropóloga citou as ações recentes de caminhoneiros e grupos como o 300 do Brasil. “Nas manifestações, sua base cobra mais radicalismo e diz: ‘eu autorizo o que for necessário’. Mas institucionalmente não aconteceu nada.” Ao não poder entregar o radicalismo esperado pelos extremistas, Bolsonaro “entrega a performance”. É assim, segundo ela, que se explica o desfile de carros de combate da Marinha em Brasília, no dia da votação da PEC do voto impresso, rejeitada pelo Congresso.
Para o cientista político José Álvaro Moisés, a história das manifestações é marcada pelo crescimento do que chamou de “expressões mais radicais do bolsonarismo”. O professor da USP alerta, no entanto, que os fracassos do governo desativaram a força do bolsonarismo radical para se impor ao País. “A declaração à nação de Bolsonaro foi um recuo tático. É preciso ainda entender seu impacto sobre o movimento.”
A resposta para isso tem relação com as táticas e a estratégia do movimento até as eleições de 2022. Moisés acredita que Bolsonaro deve adotar a visão escatológica, da luta final contra o petismo e o comunismo, como forma de mobilizar sua base, ainda mais do que o discurso antissistema que alimentou o extremismo estratégico nos 18 meses de atos de rua.
A pesquisa do NEU-FESPSP mostra que a formação desse extremismo é indissociável da covid-19. De acordo com ela, a pandemia se transformou em uma oportunidade para mobilizar os apoiadores do presidente. A maioria dos atos em 2020 trazia como pauta a defesa do tratamento precoce e o ataque a governadores e prefeitos que defendiam medidas de isolamento social, como o fechamento do comércio.
A pesquisa também detectou uma mudança da retórica bolsonarista. Antes da pandemia, os alvos prioritários eram os políticos e partidos tradicionais. Depois, passaram a ser instituições, como o Congresso e o STF. O deslocamento das pautas dos protestos é acompanhado pelo aumento do radicalismo, incluindo “atos de insurgência”. Um exemplo foi a tentativa de invasão do Congresso, em 13 de junho de 2020, quando o grupo 300 do Brasil subiu na cúpula do prédio após ter seu acampamento desmontado em Brasília.
Os pesquisadores identificaram ainda a presença cada vez maior de símbolos militares e de novos tipos de protestos, como os encontros de motociclistas – as motociatas –, que predominaram nos atos em 2021. Onze delas contaram com a participação presidencial – Bolsonaro esteve presente em 25 dos 45 eventos estudados.
Trump
As motociatas, segundo a pesquisa, atraem pessoas que se comunicam por grupos fechados, no Instagram e no Telegram. “Elas parecem se dar de forma espontânea, mas não são. Uma motociata anuncia a data da outra. Algumas são anunciadas na live do presidente”, diz Kalil.
Foi só no 22.º evento analisado que nasceu esse tipo de ato. A data que marca o começo foi 7 de maio deste ano, quando o empresário Luciano Hang andou na garupa de Bolsonaro durante a inauguração de uma ponte em Rondônia. Dias depois, ocorreria a primeira motociata oficial, em Brasília.
Esse tipo de evento seria inspirado no tradicional encontro de motocicletas de Sturgis, na Dakota do Sul, que atrai um público antissistema. “(Donald) Trump foi muito hábil para falar com esse público e associar sua imagem ao Rally de Sturgis, um encontro que aconteceu mesmo durante a pandemia”, afirma Kalil. Como em outras áreas, aqui também a inspiração do bolsonarismo seria a extrema-direita americana, ancorada no trumpismo.
Repetidas 19 vezes em 2021, as motociatas foram interiorizadas e viraram um modelo bem-sucedido de mobilização. “É importante notar que Eduardo Bolsonaro participou de uma motociata, em Miami, depois de se reunir com Steve Bannon (ex-estrategista de Trump), na Dakota do Sul.” O evento na Flórida aconteceu dias depois do encontro de Sturgis.
Escalada
Os passeios de motocicleta compuseram a escalada até o ato de 7 de Setembro, visto pelos pesquisadores como “parte de uma ação de insurgência”, que se desenvolveu de forma “gradativa, com planejamento, tática e objetivos definidos”. Essa estratégia recorreu a determinados temas, pautas e agendas, que formaram o chamado “extremismo estratégico”. Em dez eventos, a pauta principal foi a defesa do voto impresso. Em cinco deles, foi a “intervenção militar”.
Mas nem só o público radical compareceu aos atos. As maiores manifestações incluíram um público mais amplo, envolvendo conservadores e suas famílias que dão apoio ao presidente e às pautas ligadas aos costumes. “Há duas manifestações que aconteceram dessa forma: a do 1.º de maio e a do 7 de Setembro”, conta Kalil.
Para a pesquisa, durante os atos, os manifestantes comuns foram estimulados a experimentar tipos de conduta extrema. Líderes do movimento, como o caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, o Zé Trovão, geraram situações em que foram investigados e presos e, assim, se transformaram em “vítimas do sistema”, levando a apoiadores o sentimento de que a democracia e as liberdades foram vilipendiadas.
“Esses acontecimentos servem de argumento para os apoiadores de que a insurgência é a única alternativa possível para a política.” Assim era até o 7 de Setembro. Os pesquisadores vão continuar o trabalho até janeiro de 2023. Querem verificar a futura estratégia do bolsonarismo e por quanto tempo e locais as táticas e dispositivos serão empregados e o que será bem-sucedido. O desafio é compreender os caminhos do movimento que cresceu além de seu líder e transformou as ruas em laboratório de ações em meio ao avanço global do extremismo contra a democracia.
Militantes veem defesa de valores e patriotismo sem radicalização
A transformação da identidade do bolsonarista, deixando a ênfase no “cidadão de bem” para explorar a imagem do “patriota”, foi uma das constatações da pesquisa do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Esse itinerário se reflete no momento de maior abalo do movimento: a demissão do então ministro da Justiça Sérgio Moro. “Quando Moro saiu, a gente pensou que ia desmoronar”, disse o advogado Luciano dos Santos, de 59 anos. Ele foi às ruas de Salvador apoiar o presidente. “Bolsonaro quis demonstrar que o povo dá autoridade e autonomia à gestão”.
Luciano conheceu Bolsonaro pelas redes sociais e participou dos atos da campanha, em 2018. Para ele, o candidato representava o nome ideal contra o PT. “Se tiver que chamar as Forças Armadas para pôr ordem na casa, ele tem todo apoio.”
Ele destaca que a diversidade das pessoas foi o que mais chamou sua atenção no 7 de Setembro: manifestantes de diversas idades, evangélicos e pessoas de verde e amarelo. Em 2022, assegura que votará em Bolsonaro. E afirma que irá a um outro ato caso seja convocado.
Mobilização para novas manifestações não deve faltar. É o que diz o empresário Beto Okazaki, de 44 anos, de Ponta Grossa (PR). Além de organizar dois protestos na cidade a favor do “tratamento precoce” contra a covid-19 e do voto impresso, ele compareceu ao 7 de Setembro em Brasília. “Foram dois ônibus para Brasília e três para a Paulista.”
Okazaki disse respeitar as instituições que sustentam a democracia, mas critica a atuação do STF quando ele passa “dos seus limites”. “A gente vê um cerceamento da liberdade de expressão.” Para o empresário, “um cidadão de bem, geralmente, vai ser patriota”. “E geralmente um patriota é um cidadão de bem.”
O discurso é próximo daquele do general Roberto Peternelli, deputado federal pelo PSL. Peternelli esteve no ato do 7 de Setembro. “Foi uma manifestação da família por valores, pela Constituição e pela legalidade.” Para ele, as manifestações devem continuar. “Elas serão democráticas. Sem espaço para extremismos, conforme a carta que o presidente escreveu.” / LEVY TELES, CÁSSIA MIRANDA e MARCELO GODOY
Cronologia: conheça os principais atos dos 45 monitorados
- 15 de março de 2020: Primeira manifestação combinando política e pandemia. Inclui 6 capitais. Bolsonaro participa em Brasília. Início do “ciclo de atos antidemocráticos”;
- 19 de abril de 2020: Após a saída de Mandetta do Ministério da Saúde, protestos contra o isolamento social ocorrem em 4 capitais. Bolsonaro participa em Brasília;
- 31 de maio de 2020: Manifestações em SP e no DF atacam o STF e pedem intervenção militar. Bolsonaro faz sobrevoo no DF e depois vai ao ato a cavalo;
- 14 de junho de 2020: Atos defendem invasão do Congresso no DF, SP e RJ. No dia anterior, o grupo “300 do Brasil” tentou invadir o Parlamento;
- 22 de novembro de 2020: Primeira manifestação organizada em defesa do voto impresso ocorre em Brasília;
- 31 de março 2021: “Agora é guerra”; atos convocados em frente aos quartéis, contra o Congresso e o STF e em defesa da ditadura. Ocorrem em algumas cidades sem grande adesão. Os comandantes das Forças Armadas haviam acabado de renunciar;
- 9 de maio de 2021: Primeira motociata. Ocorre em Brasília, no dia das mães, com Bolsonaro. Dois dias antes, ele passeara de moto com Luciano Hang em Porto Velho, marcando o início do uso de motocicletas em atos governistas;
- 7 de setembro de 2021: Principal ato em apoio a Bolsonaro. Reuniu milhares de pessoas em diversas cidades do País. Auge da narrativa antidemocrática obriga o presidente a divulgar carta de recuo no dia seguinte a ataque ao STF.
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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,extrema-direita-no-brasil-ja-nao-precisa-de-bolsonaro-para-se-mobilizar-revela-pesquisa,70003871541
Evandro Milet: O jeito político de dizer as coisas é diferente
Com contorcionismo, esperteza e muitas vezes de forma divertida, políticos de diferentes épocas e matizes ideológicos criaram seus próprios códigos e maneiras de definir a realidade
Evandro Milet / A Gazeta
O mundo político tem seus próprios códigos e maneiras de definir situações, algumas vezes com contorcionismos, outras com esperteza e outras até divertidas. Quando apanhados em situações comprometedoras e pressionados pela imprensa, políticos costumam alegar ser notícia requentada, ou uma ilação sem base, jogo político, manobra de adversários ou interesse eleitoral. Mas sempre explicando que as contas foram aprovadas pelo Tribunal de Contas.
Se são confrontados com opções para o futuro ou cenários de crise, a saída é fazer como Marco Maciel, político pernambucano, quando tentavam cercá-lo, que dizia, em tom suave e enigmático: “É muito difícil falar sobre hipóteses, embora em política não se possa excluir hipótese alguma” ou “Fique atento, pode acontecer tudo, inclusive nada”.
A decantada esperteza mineira é outra fonte de inúmeras histórias e Tancredo Neves participa de várias, como a ocasião em que, eleito Governador de Minas, foi abordado por um correligionário ansioso e oferecido lhe perguntando o que deveria responder à sua base que lhe indagava se seria nomeado secretário. A resposta é uma aula: “Diga que foi convidado e não aceitou”. Também com origem na política mineira, uma reunião deve ser feita só quando o assunto estiver resolvido, nunca deixe seus inimigos sem saída e só se envia carta quando já se sabe a resposta . Isso é seguido na prática política em geral.
Quando um governante quer convidar alguém para um cargo, costuma sondar indiretamente o escolhido por um intermediário camuflado. O convite só acontece se a sondagem tiver resposta positiva. Essa esperteza não é só mineira. O ex-presidente argentino Juan Perón ensinava: “Quando quiser algo, nunca o proponha. Faça com que os outros o proponham, oferecendo, inclusive, certa resistência.”
“A política tem de ser entendida não pela racionalidade do ser humano, mas pela natureza humana, da qual a razão é apenas uma parte, e de jeito nenhum a mais importante”, afirmava o pensador conservador inglês Edmund Burke. Talvez por isso Benjamin Franklin ensinava que, quando você quiser convencer, fale de interesses em vez de apelar à razão. Em um filme sobre a revolução francesa, Robespierre diz a Danton: “cidadão Danton, não se faz política como está nos livros”.
A figura do adversário é predominante, muitas vezes transformado em inimigo na luta pela sobrevivência política, e pode levar a afirmações pesadas como a do poeta alemão Heinrich Heine: “Devem-se perdoar os inimigos, mas não antes que eles sejam enforcados”. Ou a do político britânico Alan Clark: “Não há amigos verdadeiros na política. Nós somos todos tubarões andando em círculos, esperando uma gota de sangue para aparecer”.
Ulysses Guimarães dizia que “se reconciliar com um antigo inimigo é comum, porém difícil é explicar para a família. Você conta em casa tudo que ele fez com você, mas esconde o que você fez com ele”.
A eleição é um momento crítico, mas há histórias de respostas rápidas e cortantes. Um cidadão desafiou Benjamin Disraeli (1804-1881), ex- primeiro-ministro britânico: “Eu, antes de votar no senhor, voto no diabo”. Resposta de Disraeli: “O.K., mas se o seu amigo não se apresentar, conto com seu voto”.
Muitas vezes se reclama de alguma posição, mas como disse um político francês, “não é que os políticos não saibam o que fazer. Eles não sabem como se reeleger se fizerem o que precisa ser feito”.
Escolher equipe pode ser um problema. Getúlio Vargas, conformado com a composição que teve que fazer, certa vez não se conteve : “Metade do meu ministério é totalmente incapaz, a outra metade é capaz de qualquer coisa.” Porém, algumas verdades são incontestáveis. Por exemplo, segundo Maquiavel, “o primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta”. Alguns não têm jeito e Millôr Fernandes foi na mosca em relação a alguns deles: “Chegou ao limite da própria ignorância. Não obstante, prosseguiu”.
Fonte: A Gazeta
https://www.agazeta.com.br/colunas/evandro-milet/o-jeito-politico-de-dizer-as-coisas-e-diferente-1021
Paulo Fábio Dantas Neto: A volta do mantra da corrupção
Pauta da corrupção avança para retomar, agora e em 2022, o lugar de destaque que teve em 2018
Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo
A pauta da corrupção avança a passos largos para retomar, agora e principalmente em 2022, o lugar de destaque que teve nas eleições de 2018. Políticos de vários matizes, ao se aproximar a hora eleitoral, pisam sôfregos ou distraídos nos escombros produzidos por aquele confronto devastador entre mocinhos da moral e da nova política e vítimas heroicas de um suposto golpe contra o partido do social.
Se a política fosse só o terreno da reta razão, essa reincidência espantaria, pela estupidez. Primeiro o lulo-petismo, depois o lava-jatismo, perderam o protagonismo para a serpente filo-fascista que se beneficiou daquela guerra entre santos com pés de barro. Nem a hipocrisia de direita, nem o cinismo de esquerda escaparam de efeitos não previstos da artilharia pesada disparada pelo bolsonarismo em 2018, usando munição de um arsenal montado em porões milicianos da antipolítica populista. Milícias, até então só digitais, que ocuparam um vácuo deixado pela desmoralização escandalosa, produzida pela Lava-jato, da antipolítica populista-empresarial que imperou no período anterior e que fora a fonte financiadora da farta – e, também, letal - munição oficial disparada contra adversários do governo nas eleições de 2014. Uns e outros terminaram entre os feridos, o lulo-petismo nas urnas de 2016 e 2018 e o lava-jatismo nas esgrimas palaciana, judiciária e interna ao MPF, transcorridas a partir de 2019. Tanto a política da confrontação como a da colaboração com o bolsonarismo tiveram destinos penosos. Penas análogas às cumpridas pela sociedade quase toda que, longe de ser inocente ou neutra, aceitou os termos de um duelo em que todos tinham a perder, exceto a malta ali autorizada pelas urnas a tomar de assalto o governo, desmontá-lo e, com seu bagaço, desferir torpedos contra as instituições.
A anulação de processos contra Lula e as recentes pesquisas de intenção de voto que lhe dão posição privilegiada juntam-se para produzir, na esquerda petista e seus anexos, duas presunções: a de que Lula foi inocentado e a de que a eleição estará ganha, se Bolsonaro estiver na área. A segunda presunção é animada pela rejeição a Bolsonaro e pela não existência, até aqui, de alternativa eleitoral promissora para evitar a reprise do confronto de 2018, que é encarada como uma revanche e assim desejada. Já a primeira presunção parte de um erro de avaliação (que o lulo-petismo parece compartilhar com áreas do chamado centrão), qual seja o de que o lava-jatismo agoniza porque a Lava-Jato morreu. Na verdade, o lava-jatismo está saindo de uma UTI e arma-se para voltar a envenenar o ambiente político, não só contra Lula e o PT, mas contra a política de qualquer partido. Ao contrário do lulo-petismo, o que o espectro justiceiro almeja, como sempre, não é (ou ao menos não é prioritariamente) ganhar eleições, mas detonar soluções políticas.
Por falar em detonação, trago um tópico. Ficou mais uma vez demonstrado, nos últimos dias, que João Santana, ex-marqueteiro da Dilma-malvadeza Rousseff de 2014, sente-se à vontade pondo sua perícia a serviço de Ciro Gomes, um proverbial incontinente. A incontinência, agora mais adestrada e manejada de modo melhor, como cálculo político, acaba de ser usada para queimar, contra a ex-cliente, pólvora da mesma marca da que ajudou ela mesma a dinamitar Marina Silva naquela eleição. Dilma reagiu com a obviedade que é sua marca costumeira mas a provocação fez também Lula entrar no samba de partido alto (má vontade elitista, dirão lulistas, chamar sua declaração de golpe baixo) interrompendo um ensaio de retorno do samba-canção “Lulinha paz e amor” de 2002.
Está visto que a política da guerra, na qual o moralismo é perito, é uma língua franca. Está longe de ser privilégio do lava-jatismo ou do bolsonarismo. Sempre houve e há cada vez mais gente de esquerda persuadida pela ideia-máxima de Carl Schmitt de que a relação amigo-inimigo resume o sentido da política, na contramão da racionalização constitucional liberal-democrática. A política da guerra, ideologicamente ecumênica, produz enredos folhetinescos, capazes de estimular o colunismo político, como mostram os numerosos comentários sobre o affaire Ciro x PT. Dentre eles menciono duas interpretações díspares.
Lendo o colunista Bernardo de Melo Franco temos acesso à interpretação que agrada ao PT: a de que o movimento do "egocêntrico Ciro" (quem poderia lhe lançar a primeira pedra?) é mais uma das suas tentativas, até aqui inúteis, de ser simpático à direita para superar Bolsonaro e ir ao segundo turno contra Lula. Já lendo Vera Magalhães somos apresentados à interpretação oposta à do desejo do PT: a ofensiva da dupla Ciro/João Santana teria buscado, com êxito, tirar Lula da zona de conforto para com isso perseguir o objetivo de tomar o seu lugar no segundo turno contra Bolsonaro. Para o primeiro colunista foi só mais do mesmo. Para a segunda, algo que pode funcionar, no caso, como a lei do ex. Cada leitor pode fazer sua aposta, baseada em palpite ou em preferência.
Apostas e profecias à parte, faço um comentário transversal: assim como a possível candidatura lava-jatista de Sergio Moro pelo Podemos, a lavagem de roupa suja entre Ciro Gomes e o PT contribui para recolocar o tema da corrupção no centro da peleja eleitoral, como esteve em 2018. Melhor para o país seria deixar esse foco na penumbra, onde está de 2019 para cá, quando passamos a ter noção prática de problemas e perigos maiores. Mas as tentações são imensas e acometem mais gente, além do impetuoso e voluntarista Ciro Gomes. Demagogos cortejam o tema como galinha de ovos eleitorais de ouro e, na outra ponta da torcida, imprudentes arriscam-se em jogadas ousadas no Congresso. Dançar sobre o cadáver da Operação Lava-Jato nesse momento pré-eleitoral, como se faz no caso da PEC que modifica a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, é cutucar com vara curta a bem viva propensão faxineira, que tem expressão eleitoral, apesar da desmoralização da república de Curitiba. Por mais plausíveis que sejam as mudanças pretendidas, o momento não parece oportuno. Como se sabe, apóstolos do extermínio da tradição política vendem gato por lebre e há quem compre por valor de face.
O espectro justiceiro que ronda a pauta eleitoral tem contado, pois, com a colaboração de quem pisa nos escombros distraído, ajudando a reacender as esperanças de quem celebra o arruinamento político de 2018 com simpatia e convicção. Alcoviteiros da fênix lava-jatista há, inclusive, em vários partidos do centro democrático, fora do centrão. Se essa infiltração prevalecer, o discurso de que a corrupção é a mãe de todos os males do Brasil terá cumprido sua missão desagregadora. A insensatez perderá toda medida se moradas possíveis de uma suposta terceira via se tornarem vulneráveis a esse apelo. Poderão até veicular outras pautas, mas a precedência do tema da corrupção tende a deixar os demais assuntos nacionais à sua sombra, sem aprofundamento algum e entregues aos clichês. Se destituídas de orientação programática compatível com a atual tragédia social, com a crise fiscal e gerencial do Estado e com a falta de perspectiva econômica, essas moradas serão, como na inesquecível canção nostálgica, barracos com portas sem trinco e tetos de zinco furados, onde são dependurados trapos partidários descoloridos. Palcos mal iluminados.
Vale fazer a pergunta óbvia: a quem interessa a volta da corrupção ao centro da agenda? Como resposta cabe até palpite quádruplo. Pode interessar a Ciro Gomes, a Sergio Moro, à esquerda de Lula ou a Jair Bolsonaro, sem exclusão prévia de qualquer dessas opções. Mas se a pergunta for oposta (a quem isso não interessa de modo algum?), será difícil negar que não interessa a quem quer que esteja investindo em costura política agregadora para fornecer ao eleitor, em 2022, um cardápio de candidaturas e propostas que lhe permita se comportar mais parecido com 2020 do que com 2018. Essas forças agregadoras precisarão reagir logo à mixórdia que se prepara e que fará do eleitor palhaço de perdidas ilusões. O silêncio e a inércia diante desse perigo iminente podem parecer a esse eleitor (que as espera sem enxergar), mais do que ao analista que as enxerga, um sinal de que essas forças políticas agregadoras simplesmente não existem. Convém agir, antes que o sinal vire fato.
*Cientista político e professor da UFBa
Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/paulo-fabio-dantas-neto-volta-do-mantra.html
Paulo Delgado: Pomar sem água. País precisa de normalidade
O Brasil precisa de normalidade sem fatos extraordinários, a vida comum das ações e emoções verdadeiras
Paulo Delgado / O Estado de S.Paulo
O mundo está cheio de cretinos e este número aumenta quanto mais se afasta de Montana. Se a piada do Velho Oeste norte-americano se aproximar do Brasil, este número também aumenta. Feliz, realizada, rica, suspensa acima da terra e livre de todas as leis, a política brasileira dominou os ambientes onde cada um só cuida de si. É como obra de arte que, para ser admirada, não pode ser compreendida.
O deslumbramento com o open tudo das engenhocas digitais, o liberalismo fora da costa à moda dos corsários, o bilionário de aplicativo, a tecnologia sem ciência a serviço da agressividade, a reforma que deixa restos do Estado patrimonial dispensado de obedecer às leis, a autarquia estatal milionária dos partidos políticos. Tudo sob gestão política e judicial oficiais e sua incapacidade de dizer não a não ter direitos. Tal beatitude estabeleceu esta forma de amizade com o cretinismo sem fronteira e noção de perigo.
A palavra “indefensável” saiu do vocabulário quando a elite dos Três Poderes regulou sua conduta por princípios próprios. O indesejável tornou-se irredutível e fez ruir o suporte que sustenta a admiração por um ideal na política.
A crise de recato que vivemos – a confusão entre conectar e conhecer, clicar e conversar, paraíso liberal e fiscal, informação e privilégio, somada à moral como prótese removível – envolve hoje as pessoas e as instituições que mais precisam de mudar, mas não aceitam mudança. Os que têm o poder de falar em nome de outros e se oferecem para ser admirados são os que mais andam enganando o Brasil. Por culpa deles todas as memórias estão virando uma coisa só. A de um país da elite errada e do legal indefensável.
Não funcionamos por princípios gerais de nação. E a administração pública parece dizer para as pessoas comuns relax, há outra maneira de viver no Estado. O responsável pela economia que investe fora do Brasil deveria se afastar da sua função. Como o magistrado na ativa que cobra por palestra sobre o que faz para instituição do próprio Estado deveria considerar pilhagem o honorário. Como parlamentar que forma o patrimônio da família com salário de seus funcionários. Ou ministro sem orçamento, que não pede para sair. Sempre foi assim, todos são assim. Não são piratas. É impossível desenrascar-se de vulgaridade tão trivial que é a benevolência do povo com o espírito de corsário de mandachuva brasileiro.
Com o discernimento embotado sobre a responsabilidade dos heróis atuais, melhor não apostar em outro funcionamento da política. A insatisfação do desejo que começa a se manifestar ainda não é o desejo de outra coisa desconhecida. Melhor não arrastar tudo para a psicologia ou a ideologia dos dois uns que se opõem. O caminho mais fácil na vida nem sempre é o melhor.
É o labirinto sem centro que faz os brasileiros indiferentes, confusos ou crédulos. Falta um líder daqueles a quem a prosperidade legítima dos outros não incomoda. Felizmente, é possível perceber que a espécie humana tem um secreto brasileiro que se fez, por discrição e cansaço, inútil à política. É a pessoa tranquila no cumprimento usual do dever, legal, ajuizada, humorada, livre, não se entusiasma com a crítica fácil interessada no sofrimento humano. Nem sai por aí na televisão enfiando a carapuça em uns e outros.
O brasileiro inútil presume a responsabilidade coletiva de todos pelo fracasso das nações. Ele sabe que muitos que vivem crises de gratificação em política normalmente são os responsáveis pela própria frustração.
Estamos, outra vez, às vésperas de uma eleição sem desassossego, charme, cuidado, com muitos engodos e suspiros. O real verdadeiro que é a felicidade humana não está em nenhum aplicativo ou rede social. Se a eleição for uma disputa de algoritmo, melhor se abster. É preciso reinventar a eleição, os partidos e seus candidatos, sabendo o que nos é permitido esperar. Uma coisa é certa, o Brasil não precisa de presidente personal. Menos ainda de quem acha que tudo é política, tudo é educável, tudo é diagnóstico, polícia e juiz. O Brasil precisa de água no seu pomar, normalidade sem fatos extraordinários, a vida comum das ações e emoções verdadeiras.
Todos os conectados já foram computados. É hora de buscar a maioria desbussolada, antipáticos a personalidades coativas que gostam de gente treinada, obediente e previsível. Alguém capaz de falar para os inúteis, sem obrigá-los a responder ou agir no sentido enfático como um exército de ativistas.
A honestidade no Brasil é um hábito, mais do que uma prática. Como se a ética fosse um dilema, não conduta. Os ligados acham que os bons são bobos por preferirem inteligência a maldade. Deixe estar.
Quem conseguir entender a política verá que os fatos e eventos que a envolvem são apenas interesse, ilustrações dos princípios dos próprios políticos. Não há mal nisso, é uma função necessária e relevante. O problema é quando por trás dos fatos não se encontram princípios. Tem sido a sina brasileira: viver o ridículo e a chateação de ser governado por vitorioso que despertou esperança e não se comportou à altura.
*SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGADO.COM.BR
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,pomar-sem-agua,70003866071
Janio de Freitas: Os ossos da eleição
O principal figurante de 2022 ainda está silencioso: é o aumento da pobreza
Jânio de Freitas / Folha de S. Paulo
A pobreza aumenta, voraz, na horizontal e na vertical. Desta vez, com a pandemia como terceiro impulso, sem por isso evitar que os dois outros sejam talvez mais fortes do que nunca. O governo Collor foi um desastre criminoso, com a bondade solitária de sucumbir a meio do mandato, e nem desta Bolsonaro é capaz. Muito menos o será para deter o crescente empobrecimento. E ainda há o descaso histórico de todas as formas de poder, público e privado, diante do crime irreconhecido que é a injustiça social. Vírus, desgoverno, indiferença também são Os Três Poderes.
Entre as características da economia brasileira há muitos componentes importantes que jamais têm a honra de uma referência, ao menos, na prolixidade dos economistas propagados nas telas e nos papéis. Um bom exemplo é a correção salarial, na verdade, um acelerador da pobreza existente e da indução de empobrecimento. A regra básica dada a essa concessão dos poderosos foi não corrigir jamais.
Exceto nos anos chamados pelo reacionarismo de lulopetistas, e apesar do empenho de Sarney e Itamar, as incontáveis correções foram fixadas abaixo da correção de fato. Sem esquecer que a inflação declarada, como o PIB, é outra falcatrua antissocial, perceptível em ida a qualquer dependência do comércio usual.
O noticiário se empolga: “A volta do emprego”. Mas, logo, “Empregos informais são 75% do total”. Três em cada quatro. E chamar de emprego a atividade informal é um dos muitos eufemismos consagrados no jornalismo, para agrado adivinhe de quem. Assim como salário não é renda, falsificação verbal oficializada, atividade informal não é emprego, é trabalho informal. Nele não há o empregado, nem o patrão.
O crescimento da informalidade é sinal de maiores dificuldades nas famílias alimentadas por recebimentos insuficientes, sejam quais forem. É indicador que valeria como advertência, para problemas do futuro e necessidade premente de ação governamental. Não no Brasil. Mesmo a corrida aos ossos despejados, para a guerra contra a fome, causou mal-estar ou indignação muito maiores mundo afora do que aqui, onde não faltou mais revolta com a exibição de ossos e catadores do que a realidade que os uniu, como antes fizeram os cães.
Entre os que se aventuram a formar o elenco das eleições presidenciais de 2022, o principal figurante ainda está silencioso: é o aumento da pobreza, que já chegou aos ossos, os despejados e os próprios, e não terá quem a socorra até lá. O auxílio de fins eleitorais, esperança de Bolsonaro, não dura um mês dos tantos a esperar. Quem sabe, outra vez em vão.
Negócios de quadrilha
O encontro de um segundo plano de saúde aplicador do falso tratamento de Covid, em dezenas de milhares de clientes, é uma revelação e o seu inverso. Ambos com gravidade criminosa.
De uma parte, o segundo caso obriga a constatar crimes médicos como empreendimento expandido, e não exclusivo da Prevent Senior. Com isso, vão muito além de concordâncias entre tal criminalidade e o governo, constituindo ampla quadrilha de corrupção científica e comercial da medicina. Com extensões na Presidência por via do “gabinete ódio”, no sistema de vigilância e regulação das práticas de seguro saúde e de medicina, no Conselho Federal de Medicina, na Agência Nacional de Saúde Suplementar, em várias secretarias do Ministério da Saúde e em diversos ramais da vigarice comercial. Aí não houve boa-fé, nunca. Só interesses materiais.
De outra parte, chega-se aos 600 mil morte com a certeza, agora, de que esse número é uma estimativa ainda mais precária. Além das subnotificações já pressentidas no cômputo em curso, a segunda seguradora sugere outras. Como suscita a existência de mais seguradoras e serviços médicos onde também foi adotado o falso tratamento, com decorrências letais adulteradas.
Descobrir outro caso revelou quanto e como se desconhece, mesmo com a CPI tão bem sucedida, dos horrores da pandemia e da parte, neles, criada pelo bolsonarismo.
Bem apropriados
A defesa postada por Paulo Guedes, no caso de sua firma em paraíso fiscal para driblar impostos brasileiros, estava escrita em inglês. Muito apropriado, sem dúvida, mas de imensa falta de compostura pessoal e de respeito, até agressiva, por parte de um ministro ao país.
O nome COR, dado pelo presidente do Banco Central à sua firma de fuga de capital para o exterior, homenageia o avô. São as iniciais, invertidas, de Roberto de Oliveira Campos. Considerada a finalidade da firma, é homenagem muito justa. Até por todas as suas manipulações serem em inglês e em dólar.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2021/10/os-ossos-da-eleicao.shtml
Hélio Schwartsman: O tribalismo inviabiliza a democracia?
Ele não impede um país de se democratizar, mas exige adaptações
Hélio Schwartsman / Folha de S. Paulo
Li em vários artigos que os EUA fracassaram em implantar uma democracia viável no Afeganistão porque desconsideraram o caráter tribal do país. Não afirmo que essa análise esteja errada, mas é preciso qualificá-la.
Socorro-me aqui de "The WEIRDest People in the World", de Joseph Heinrich, livro que já comentei. São poucas as nações que lograram desenvolver uma psicologia não tribal, isto é, mais pautada pela crença no individualismo, no livre-arbítrio e na universalidade das leis do que ditada por sistemas de lealdades familiares. O fenômeno, também designado como psicologia "weird" (acrônimo inglês para "ocidental, educado, industrializado, rico e democrático"), é característico da Europa ocidental e de algumas de suas ex-colônias e pouco representativo da média da humanidade.
Não é difícil identificar indivíduos e populações "weird" através de testes como um em que se pergunta se a pessoa testemunharia contra um amigo que tivesse cometido um crime. Povos "weird" aceitam essa ideia. A lei, afinal, é para todos. Já os de mentalidade mais tribal tendem a vê-la como uma traição aos deveres da amizade. A psicologia "weird" está na base de instituições como a democracia, além do avanço das ciências e o rápido crescimento econômico.
As coisas se complicam quando verificamos que alguns países, como Japão e Coreia do Sul, embora conservem a psicologia não "weird", se tornaram democracias ricas. A China não pegou a parte da democracia, mas é potência econômica e científica. Como explicar isso? Segundo Heinrich, esses países já tinham uma longa experiência com Estados fortes, que estimulavam a educação formal. Também não tiveram pruridos em adotar hábitos e instituições copiados do Ocidente, que serviram, se não para eliminar, ao menos para reduzir a influência da lógica de clãs em suas sociedades.
O tribalismo não impede um país de se democratizar, mas requer adaptações.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/10/o-tribalismo-inviabiliza-a-democracia.shtml
Bruno Boghossian: Investigação sobre emendas deve abalar relação Bolsonaro-Congresso
Ministro fala em corrupção e avisa que haverá operação mirando verba de parlamentares
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
O chefe da Controladoria-Geral da União deu um aviso curioso na última semana. Wagner Rosário disse não ter dúvidas de que existem casos de corrupção no pagamento de emendas indicadas por parlamentares e anunciou que a Polícia Federal deve bater na porta de alguns dos envolvidos em breve. “Todos nós vamos ficar sabendo no dia da deflagração das operações”, declarou.
O alerta é inusitado porque um investigador não deveria dar aviso prévio de suas ações. Além disso, Rosário é ministro de Jair Bolsonaro, um presidente que sobrevive no poder graças a essas emendas. Para completar, o chefe da CGU falou sobre as suspeitas numa audiência dentro Câmara, onde essa fatia do Orçamento é partilhada.
A revelação de desvios nesses pagamentos é um cenário considerado quase inevitável pelo governo. O ministro tentou mostrar serviço e se antecipou para controlar os respingos de eventuais escândalos. A história tem potencial para criar problemas políticos para Bolsonaro.
O governo ganhou fôlego no Congresso ao entregar a deputados e senadores o controle sobre R$ 16,9 bilhões das emendas de relator. O bônus dessa barganha é uma distribuição relativamente livre e pouco transparente de verba nas bases dos parlamentares. Se a PF acabar com a festa de alguns deles, o acordo para sustentar o presidente pode ficar estremecido ou até implodir.
Uma operação que desmanche supostas cobranças de propina em obras pagas por essas emendas também teria impacto na imagem de Bolsonaro. O presidente pode lançar a culpa sobre os parlamentares e empresários que forem pegos nas investigações, mas será difícil esconder o fato de que a origem do dinheiro é o acerto do Planalto com o centrão.
O alcance do caso dependerá de personagens leais a Bolsonaro: o chefe da PF e o procurador-geral da República. A esperança do governo é que a devassa nas emendas fique limitada a políticos de baixo clero, o que restringiria os danos à governabilidade e ao discurso do presidente.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/10/investigacao-sobre-emendas-deve-abalar-relacao-bolsonaro-congresso.shtml
Artigos: FAP defende fortalecimento da democracia contra bolsonarismo
Reunião colegiada avançou na discussão sobre necessidade de criação de ampla frente democrática no país
Cleomar Almeida, da equipe FAP
Integrantes de vários segmentos da sociedade - como movimento negro, mulheres e academia -, conselheiros da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) concordam que o bolsonarismo é um movimento que deve permanecer no Brasil por muito tempo, embora entendam que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não deva ter sucesso nas eleições de 2022. Em reunião online na manhã deste sábado (25/9), eles destacaram que o fortalecimento da democracia exige responsabilidade, envolvimento e renúncia de exigências meramente partidárias para criar uma ampla frente democrática.
Na reunião, diretores e conselheiros a FAP discutiram, entre outros pontos, como Bolsonaro expressa o populismo, que, no mundo, envolve correntes de esquerda e de direita, em que os governantes se sentem como "o povo" ou como titular da "voz do povo". "Hoje temos muitos populismos", disse o sociólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Elimar Pinheiro do Nascimento, em encontro virtual coordenado pelo diretor-geral da fundação, Caetano Araújo.
GOVERNO DA CRISE
O populismo, de acordo com Nascimento, é a expressão latente do conflito entre concepções diferentes de democracia. "O populismo não nasce fora da democracia. Nasce no âmbito da democracia e implode essa democracia para criar outra. Ele se propõe a refundar a democracia que o desvio das representações comprometeu", explicou, ressaltando que essa "ideologia crescente" é vista em diferentes perfis de políticos pelo mundo, no governo ou na oposição.
"Toda nossa preocupação hoje, e ela em razão muito forte, é tirar Bolsonaro do cenário [político], mas, ao fazermos isso, não tiraremos o populismo. O populismo veio para ficar, independente dessa conjuntura e desse personagem desprezível", disse Nascimento. Segundo ele, o presidente se aproveita da polarização entre "nós e eles" ou "bandeira nacional", que passou a ser usada como expressão do bolsonarismo, e "bandeira vermelha", em alusão à cor oficial do PT e que é associada ao comunismo.
Durante a reunião, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sociólogo Paulo Baía analisou o comportamento dos três Poderes e afirmou que o Supremo Tribunal Federal (STF) não está à toa sendo identificado como "legislador", o que, no país, é apontado por adeptos do populismo de direita e de esquerda em crítica a uma eventual "jusditadura", ou "governo dos juízes".
Na avaliação de Baía, o ativismo judicial é reflexo do cenário político. "Isso é resultado da ação dos próprios partidos políticos. Nos últimos 30 anos, o STF tem sido estimulado a se posicionar sobre quase tudo", afirmou. Além disso, ele observou que o Senado tem sido mais prático e rápido na defesa da democracia e, sobre o Executivo, apontou forças de Bolsonaro: a área de infraestrutura e suas linhas de financiamento direto para governos estaduais e prefeituras.
Conselheiros da FAP defendem fortalecimento da democracia
Preocupação
Apesar dos retrocessos comandados por Bolsonaro nas políticas de diversas áreas no país, os conselheiros destacaram preocupação com o fato de a avaliação do governo dele não estar abaixo de 20%. Por isso, eles reforçaram a necessidade de se criar uma ampla frente democrática para lançar um nome alternativo ao do presidente para as eleições de 2022, inclusive sem descartar a possibilidade de aliança com o PT.
Primeira cidadã nascida no Brasil a tornar-se deputada no parlamento italiano, Renata Bueno observou que, em meio ao caos do atual governo, a população brasileira é ainda mais castigada por problemas como a falta de água e de energia, assim como a alta no preço dos alimentos e dos combustíveis. "O governo está totalmente ausente [nas questões políticas] e polêmico nas redes sociais. Isso não é positivo", criticou. Segundo ela, reconstruir o país será uma tarefa difícil e, por isso, é urgente que o país pense em alternativas ao nome do atual presidente.
O ex-senador Cristovam Buarque sugeriu um esforço para que a ampla frente saia no primeiro turno com apenas uma candidatura de presidente e vice, que, segundo ele, combine a esquerda nostálgica e os indecisos. "Como não sou negacionista e reconheço a força do PT e do próprio Lula, prefiro dizer que deveríamos caminhar para aliança com o PT e, se preciso, com o PT na cabeça da chapa para barrar e impedir a eleição de Bolsonaro", disse.
O economista Sérgio Cavalcanti Buarque demonstrou preocupação de que Lula encabece uma chapa que, eventualmente, seja eleita no primeiro turno, já que, conforme acrescentou, é necessária abertura para negociação em possível segundo turno que tenha o petista como nome da oposição. "É ruim para o país e para a democracia se Lula ganhar no primeiro turno porque, aí, sim, o populismo, que é prática recorrente do lulismo, entraria com força esmagadora", acentuou.
CONFIRA A REUNIÃO DA FAP
Integrante do movimento negro, Babalawo Ivanir Alves dos Santos disse que a alternativa de nomes de presidenciáveis deve considerar realidades além da perspectiva meramente econômica ou do ponto de vista acadêmico. "Acredito que tem que ser pensada a representação que não seja só do agronegócio, do agroindustrial", afirmou, ressaltando que, no caso do Brasil, onde mais da metade da população é negra, a questão racial "ainda tem dificuldade de ser compreendida". "É preciso furar as bolhas e incluir outros segmentos, em diálogo aberto", sugeriu.
"Agendas regressivas"
O jornalista Luiz Carlo Azedo analisou que Bolsonaro e Lula representam "duas agendas regressivas". "Não é só a agenda de Bolsonaro que é regressiva e reacionária, que se inspira no regime militar que só existe na cabeça dele e não corresponde à realidade. O projeto eleitoral de Lula também é uma agenda regressiva", afirmou.
"O Brasil vive uma situação dramática por não conseguir colocar nada no lugar do nacional-desenvolvimentismo. A cada dia que se passa, nossa complexidade industrial diminui. O agronegócio se torna hegemônico do ponto de vista da economia, e não conseguimos colocar nada no lugar porque não temos força política com visão globalista e, ao mesmo tempo, projeto nacional. Essa síntese precisa ser produzida com musculatura política", disse.
DEMOCRACIA X BOLSONARO
O diretor-geral da FAP reforçou a necessidade de criação de ampla frente democrática, apesar de concordar que os reflexos do movimento que elegeu o presidente devem perdurar ao longo dos anos. "Bolsonaro pode sair, mas o bolsonarismo vai continuar entre nós por muito tempo, por várias razões", observou Araújo. Por isso, segundo ele, há urgência de excluir qualquer hipótese de Bolsonaro permanecer no poder por mais quatro anos. "Esse deve ser o nosso objetivo número um hoje", asseverou.
Na avaliação do diretor-geral, a democracia brasileira demonstrou fragilidades que deverão ser enfrentadas se houver interesse de fortalecê-la, afastando qualquer risco de "retrocesso autoritário". "A questão da frente não é pacífica, não está resolvida, mas, se não fizermos isso, não há como argumentar para os eleitores a busca por convergência nem no primeiro turno nem no segundo turno", explicou. Ele também observou que os partidos políticos ainda não conciliaram as suas próprias demandas com as da frente democrática, o que, conforme acrescentou, é um desafio para possibilitar a convergência.
BOLSONARISMO X FUTURO DO PAÍS
Artigos destacam temas importantes para o país e que serão definidos pelo governo Bolsonaro
As cidades e a tecnologia 5G - Um novo modo de vida vai se impor.
Mas, qual? O que os municípios podem negociar ou impor?
André Gomyde
A quinta geração de internet móvel, a 5G, está chegando. O leilão para a abertura das propostas das operadoras foi marcado para o dia 04 de novembro. A partir de janeiro de 2022 começará a se tornar realidade em nosso país. A 5G transformará nossas vidas de uma forma que ainda não podemos imaginar. Ela utiliza melhor o espectro das ondas de rádio e permite que mais dispositivos acessem a internet móvel ao mesmo tempo, com um aumento substancial de velocidade em relação à atual 4G.
Nem conseguimos ainda imaginar como nossos smartphones ficarão mais velozes para fazer downloads e uploads. Poderemos assistir filmes em excelente qualidade, levando apenas pouquíssimos segundos para baixá-los em nossos equipamentos. Nós também podemos imaginar que não teremos mais problemas de falta de sinal e que nossos telefonemas não cairão mais no meio da conversa.
Mas será que nós conseguiríamos imaginar um médico fazendo uma cirurgia em uma pessoa que está em Brasília, enquanto ele está fisicamente em Berlim? E nosso céu cheio de drones fazendo entregas de comidas e remédios? Hoje, já vemos nossas casas cheias de equipamentos que ligam e desligam sozinhos, tudo isso conectado com nossos aparelhos celulares e a gente coordenando as atividades residenciais diretamente do nosso local de trabalho. A 5G proporciona tudo isso.
Tudo vai ficar mais fácil, mais rápido e… mais interessante? Interessante, não sabemos. Aparecerão coisas que hoje não temos nem como pensar. Certamente, um novo modo de vida vai se impor - e teremos que nos adaptar. No entanto, a 5G, por trabalhar com comprimentos de ondas mais curtos, tem um alcance menor e, portanto, é mais facilmente bloqueada por objetos físicos. Isso exige uma quantidade muito maior de antenas de transmissão do que temos hoje. A questão das antenas é o ponto que começa a complicar toda a história. Muito já se discutiu sobre uma quantidade enorme de antenas espalhadas por toda as cidades - que ficarão feias. Quanto a isso, a tecnologia vem dando um jeito. As antenas evoluíram tecnologicamente e hoje têm um tamanho bastante reduzido e um formato bastante amigável.
Outra discussão menos tranquila de resolver é: essa quantidade enorme de antenas em todos os lugares, emitindo radiação, prejudica ou não a saúde humana? As operadoras e empresas de tecnologia envolvidas dizem que não prejudica e apresentam seus estudos. Por outro lado, outros mostram o contrário. O fato é que não há ainda nada conclusivo sobre isso e em alguns países (lembro-me de Colômbia e Peru) essa discussão tem sido feita de forma bastante aprofundada pelos pesquisadores desses países.
Outra questão interessante é que a União não pode legislar sobre o território das cidades. Quem legisla sobre isso são as câmaras de vereadores. Portanto, não se pode ter uma legislação nacional que obrigue os municípios a permitir que as antenas sejam ali instaladas. Cada município terá que fazer sua própria legislação. Um prefeito que tenha compromisso com sua população e com o desenvolvimento de sua cidade não permitirá a instalação de antenas sem uma contrapartida das operadoras. Muito e muito dinheiro se ganhará com a 5G; o que ficará para a sociedade, em troca?
Já se sabe que o problema da conectividade tem aumentado de forma acelerada a desigualdade social. Com a 5G isso vai se potencializar. E se não cabe às operadoras cuidar da questão social, cabe aos prefeitos. Os prefeitos precisam se aprofundar na questão e encontrar os caminhos para que as antenas possam ser instaladas, mas, também, que a contrapartida ao município e à sociedade seja dada. A legislação federal já definiu que os municípios não podem cobrar direito de passagem das operadoras. Isso pode e deve ser revisto.
Mas há algumas outras coisas que podem ser também negociadas. Cada município saberá o que deve negociar. Uma dessas coisas que considero a mais importante: compartilhamento de dados e informações, que não sejam privados, com a prefeitura. Dados e informações são a base do conhecimento - que, por sua vez, é o grande capital do século XXI. Nossos dados e informações não podem, definitivamente, ser de exclusividade das operadoras e empresas de tecnologia. A Lei Geral de Proteção de Dados, infelizmente, não esgotou esse problema. Precisará ser aprimorada, para ajudar os prefeitos a não ter que travar a instalação de antenas nas cidades, sob pena de condenar sua população a ficar nas mãos de interesses que desconhecemos e que nunca conheceremos a fundo.
*André Gomyde é presidente do Instituto Brasileiro de Cidades Humanas, Inteligentes, Criativas e Sustentáveis e membro do júri do World e-Government Awards, da Coreia do Sul.
O populismo veio para ficar?
Elimar Pinheiro do Nascimento
Apesar da derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, o populismo continua forte em vários países como Polônia, Hungria e Turquia etc. Para nós, latino-americanos, ele não é novo, porém hoje é distinto. O populismo que conhecemos nos anos 1940/1960 era uma expressão política de países periféricos. Hoje, criou raízes no centro do mundo ocidental. O populismo “tradicional” atribuído sempre a políticos de direita, e com sentido pejorativo está presente agora na esquerda e na direita. Ele reúne políticos no governo de Nicolás Maduro (Venezuela), de Andrés Manuel López Obrador (México), Viktor Orbán (Hungria) e Jair Bolsonaro, e políticos de oposição como Jean Luc Mélenchon, à esquerda, e Le Pen, à direita, na França. O populismo de esquerda já tem teóricos como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.
O fato de o populismo atrair da extrema direita à esquerda não deveria ser estranho, pois se trata de uma ideologia vaga e contraditória. Por isso, os líderes populistas reúnem traços ambíguos, como Juan Perón e Getulio Vargas ou Beppe Grillo e Pedro Castillo. Ambiguidade e fluidez dificultam a sua compreensão. Assim, ele está em toda parte, mas a teoria que o explica não está em canto algum.
Um erro analítico frequente, motivado pela força atual da extrema direita no espaço populista, é considerar simploriamente que o populismo é uma negação da democracia. Longe disso - o populismo contemporâneo expressa o conflito entre duas concepções de democracia. Ele é, simultaneamente, uma crítica ácida à democracia liberal e uma proposta de uma outra democracia, centrada na expressão da vontade popular. Trata-se de uma democracia direta, polarizada.
A forma que o populismo está assumindo varia, mas existem alguns elementos estruturantes. Vejamos alguns.
A afirmação do povo como um todo homogêneo é um desses traços comuns. O populismo nega – e se incomoda com - a heterogeneidade das sociedades modernas. Para criar uma homogeneidade, inexistente sociologicamente, os populistas promovem um conflito sobredeterminante, entre “nós e eles”. Se em cada local o “nós” é sempre o mesmo, o povo uno, o “eles” varia segundo as especificidades locais. Nos países de governos populistas na Europa, o “eles” são os imigrantes; nos Estados Unidos de Trump era a China; no Brasil de Bolsonaro são os comunistas. Frequentemente o “eles” são as elites, que mudam de camisa em cada local. É uma definição vaga o bastante para lhe dar força.
O líder exerce um papel importante na constituição do povo uno, pois ele é quem define quais são os interesses do povo e quem é o seu inimigo (o “eles”). O líder é aquele chamado a refundar a democracia, dando ao povo a sua centralidade. A vontade do povo é expressa por ele, que se identifica com o povo. A propaganda do populismo de direita na França é “Le Pen, o povo”. Trump, declarava: “Eu sou a voz de vocês”.
Como o populismo pretende refundar a democracia, e o povo é o seu centro, a eleição torna-se o instrumento mais legítimo. Por isso, o referendo ocupa um espaço privilegiado, pois é por ele que o povo pode clamar sua vontade. Para os populistas, o referendo elimina os partidos políticos como organizadores da vontade popular e considera a mídia como deturpadora da expressão popular. A democracia direta e polarizada, sem poderes intermediários para criar dificuldades ao governo executivo, e o sonho populista. Por isso, o poder judiciário, porque não eleito, deve ser subalterno.
Finalmente, os populistas fundam regimes políticos regidos pelas emoções. O excesso de informações disponíveis no mundo moderno torna esse mundo mais opaco. A velocidade das mudanças torna-o mais inseguro. O populismo adota uma forma simples e confortável de explicação do complexo: o conspiracionismo. Dizem os populistas: se você não entendeu a linguagem, é porque os inimigos não querem que você compreenda o que se passa, estão conspirando contra você. As teorias de complô exercem múltiplas funções: política, cognitiva e psicológica. O populismo capta as emoções primárias das pessoas mais simples (do ponto de vista cognitivo e não econômico): a raiva e o ressentimento. Oferece aos mais angustiados um real vivido, e não aquele refletido nas estatísticas e análises. Se o governo de Beppe Grillo é formado por pessoas ignorantes da gestão pública é porque eles não são da elite, não são corruptos - o que poderia ser defeito transforma-se em virtude. O presidente que come pizza em pé na calçada em New York não é algo do qual se deva sentir vergonha, como dizem os jornais do mundo inteiro - deve ser motivo de orgulho, pois mostra que ele é do povo.
Assim, o populismo que nasce e alimenta o negacionismo e o conspiracionismo é o grande desafio da democracia liberal. Terá ela instrumentos eficientes para vencê-lo?
*Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, professor da pós-graduação no CDS/UnB, membro do Conselho consultivo da Fundação Astrojildo Pereira.
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