Astrojildo Pereira

RPD 33 || Luciano Mendes de Faria Filho: Astrojildo Pereira, intelectual mediador!

Nas décadas de 1930 e 1940, quando pesquisava sobre a edição das obras completas de Rui Barbosa pela Casa Rui Barbosa, deparei-me com a figura emblemática de Astrojildo Pereira. Ele foi um dos convidados por Américo Jacobina Lacombe, à época o Diretor da Casa e o responsável maior pela edição, para escrever um prefácio para um dos tomos das obras completas, em cujo projeto editorial o prefaciador é um intelectual, geralmente renomado, que empresta sua pena para fazer a mediação entre o tempo e a obra ruiana e os leitores que a receberão. 

A Astrojildo Pereira, então um dos maiores intelectuais brasileiros, foi encomendado prefaciar o volume referente aos textos de Rui Barbosa sobre a escravidão. Seu prefácio, em pleno Estado Novo, é uma aula de História do Brasil e, sobretudo, da história da população negra no país. Adverte Astrojildo, contra muitos intelectuais de seu tempo, que o fim da escravidão não havia significado a liberdade para o povo negro. Faltou, dizia ele, o conjunto das reformas, a começar pela agrária, que possibilitaria integrar plena e dignamente, a população negra, e não apenas os/as ex-cativos/as, à vida nacional.  Vale a pena ler e reler o texto! Aliás, vale lembrar também que a participação de Astrojildo Pereira no projeto político-cultural-editorial das obras completas foi, ao longo do tempo, alardeada por Jacobina Lacombe, homem oriundo das hostes católicas e com um pé na Ação Integralista, como uma demonstração do espírito democrático de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema e, de resto, o próprio Estado Novo, pois até mesmo um comunista convicto havia sido convidado a participar da edição.[1] 

Anos depois, já no México, eis que encontro o mesmo Astrojildo Pereira envolvido num outro monumental projeto editorial, agora ligado à Editora Fondo de Cultura Económica. No projeto, a mesma posição de intelectual mediador e um apurado senso de responsabilidade e grande acuidade de conhecimento sobre o Brasil. Trato, no caso, da presença marcante do intelectual brasileiro na configuração de uma verdadeira “brasiliana” para a América Hispânica ler, parte dos projetos editoriais levado a cabo pela mais importante e prestigiosa editora mexicana e latino-americana de meados do século XX acima referida.[2] 

No projeto político-econômico-editorial de integração latino-americana desenhado pelo editor e intelectual mexicano Daniel Cósio Villegas,  em consórcio com seus pares de diversos países do continente, coube a Astrojildo Pereira não só receber o emissário da editora mexicana no Brasil, o intelectual argentino Norberto Frontini,  no início de 1943, e ajudá-lo a fazer contado com a nata da intelectualidade brasileira, mas também coube ao militante comunista fazer a articulação desses intelectuais com a editora e contribuir decisivamente no desenho final da “brasiliana” que o Fondo pretendeu publicar. 

As correspondências ativas e passivas depositadas no Arquivo da FCE. na Cidade do México, deixam claro o registo de que, no projeto editorial da Coleção Tierra Firma, que pretendia integrar a América Latina por meio do mútuo conhecimento de seus intelectuais, Astrojildo teve papel decisivo, tanto na articulação da intelectualidade brasileira, como na definição de temas que deveriam compor a Coleção. 

No que se refere à articulação da e com a intelectualidade brasileira, coube-lhe o papel de projetar e animar  a participação dos nosso grandes nomes – Gilberto Freire, Vinicius de Morais, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, dentre outros – no projeto editorial, ocasião em que ele sugeria ou vetava nomes de participantes, como também sugeria temas que dessem visibilidade ao Brasil como um todo, e não apenas às suas paisagens mais conhecidas (Sudeste e Nordeste). 

Dessa ação de Astrojildo Pereira, resultou uma “brasiliana” mais alargada do que a inicialmente prevista, bem como a clara tendência de convidar intelectuais do campo democrático para participar da iniciativa, razão, pelo que entendo, de não haver quase nenhum convidado ligado às hostes católicas antidemocráticas que abundavam o Estado Novo no projeto. No transcurso da elaboração e operacionalização do projeto editorial da Coleção Tierra Firme, corresponde a Astrojildo Pereira a delicada tarefa, como por exemplo, de defender insistentemente a participação de Lúcia Miguel Pereira que, sem motivos declarados, fora vetada pelo editor mexicano, assim como vetar a participação de intelectuais como Cassiano Ricardo, sob o argumento de que ele não possuía lastro cultural nem seriedade como outros que ele indicava. 

Ainda que  o projeto de uma brasiliana para o FCE não tenha sido levado a cabo, sendo poucos os livros encomendados efetivamente escritos e publicados no México, dele resultaram clássicos de nossa historiografia em várias áreas – Apresentação da Literatura Brasileira, de Manuel Bandeira; História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior;  Música Popular Brasileira, de Oneida Alvarenga, dentre outros -, assim como nele registra-se a presença marcante de Astrojildo Pereira como importante intelectual mediador. 

[1] Ver meu estudo: Edição e Sociabilidades Intelectuais: a publicação das obras completas de Rui Barbosa (1938/1948). Belo Horizonte, Autêntica/Ed. UFMG, 2017. 

[2] Ver meu estudo:  Uma Brasiliana para a América Hispânica: a editora Fundo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira (décadas de 1940/1950). São Paulo, Paço Editorial, 2021. 


Luciano Mendes de Faria Filho  é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (1996); Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena vários projetos de pesquisa; autor de extensa obra, em que se destacam Edição e Sociabilidades Intelectuais – a publicação das obras completas de Rui Barbosa (Autêntica/Ed. UFMG, 2017), Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira (Paco Editorial, 2021), A primeira página e outros contos mexicanos (Veñas Abiertas, 2020) e Entre Mulheres (Caravana, 2021). 


RPD 33 || Lilia Lustosa: O Brasil verdade de Capô

No último dia 29 de maio, Maurice Capovilla, grande nome da cinematografia brasileira, nos deixou e foi bailar em outros palcos… O cinema brasileiro ficou menos doce e menos alegre. 

Capovilla, ou simplesmente Capô, como gostava de ser chamado, foi um cineasta e roteirista de mão cheia, responsável por alguns marcos de nossa cinematografia. Em 2017, tive a oportunidade de trocar alguns e-mails com ele, quando fiz a curadoria de um evento para a Embaixada do Brasil na Argentina. A ideia era promover o reencontro das figuras que compuseram um projeto que reúnia cineastas brasileiros e argentinos, entre 1964 e 1965, e que entrou para a história como Brasil Verdade. Dessa união, nasceram quatro documentários de média metragem, produzidos pelo fotógrafo e empresário Thomaz Farkas: Subterrâneos do Futebol, dirigido por Capô; Viramundo, de Geraldo Sarno; Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares; e Nossa Escola de Samba, do argentino Manuel Horácio Gimenez. Filmes considerados hoje como as primeiras amostras de cinema-direto em nosso país. 

Mas a história do Brasil Verdade começa um pouquinho antes, quando dois jovens cineastas brasileiros conhecem um tal argentino Fernando Birri que havia montado uma escola de cinema em sua Santa Fé natal, depois de ter chegado de uma temporada de estudos no Centro Sperimentale de Cinematografia em Roma. Mesmo com poucos recursos, os dois partem numa odisseia e, entre ônibus e barcos, chegam até a cidade argentina. Com a cara e a coragem, batem à porta do tal Birri para pedir-lhe um estágio. Só queriam aprender a fazer filmes! O que ignoravam é que aquele mestre barbudo viria a se tornar a figura mais importante do Nuevo Cine Lationamericano. Os dois jovens eram Maurice Capovilla e Vladimir Herzog, jornalista e cineasta morto em 1975 na prisão do DOI-CODI, assassinado pelo regime militar que reinava soberano em nosso país. Quando Birri foi expulso da Universidad del Litoral por causa de seus pensamentos de esquerda, foi em São Paulo que ele encontrou abrigo, junto aos seus amigos brasileños

Capô foi também testemunha ocular do nascimento do Cinema Novo, movimento cinematográfico brasileiro de maior expressão dentro e fora de nosso país. Ele estava lá naquela famosa sessão do Cine Coral, em que o documentário paraíbano Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, foi projetado antes de La Dolce Vita (1960), de Fellini, na ocasião do encerramento do Festival do Cinema Italiano e da simultânea abertura da Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica. À época, o jovem Capô trabalhava na Cinemateca Brasileira, uma das organizadoras do evento, ao lado do grande Paulo Emilio Sales Gomes. 

Os anos se passaram e Capô continuou sua jornada, revezando-se entre o documentário e a ficção, nunca perdendo de vista o povo brasileiro, sua cultura e suas mazelas. Em 1967, realizou seu primeiro longa-metragem de ficção: Bebel, Garota-Propaganda, com roteiro dele mesmo,baseado no conto “Bebel que a Cidade Comeu”, de Ignácio de Loyola Brandão. Seu segundo longa, O Profeta da Fome (1970), inspirou-se no texto-manifesto de Glauber Rocha, “Estética da Fome”. Nele, Glauber sugere que nossa miséria seja transformada em nossa própria estética, em uma arma capaz de apontar ao colonizador o estado real do colonizado. O filme de Capô, que trazia um faquir como protagonista, interpretado por José Mojica Marins (o Zé do Caixão), usa justamente essa fome como espetáculo. Uma representação dolorosamente revolucionária do brasileiro. 

Além de cineasta, Capô foi também um militante engajado, integrou o CPC – Centro Popular de Cultura e o Comitê Internacional do Cinema Novo contra a censura nos anos 1960, além de um entusiasta defensor da educação como veículo de transformação da nossa gente. Exerceu o magistério na UnB, na ECA-USP e na Escola Internacional de Cinema e TV em Santo Antonio de los Baños, em Cuba, também participou diretamente da criação do Instituto Dragão do Mar, em Fortaleza, o mais importante centro de ensino de dramaturgia e cinema do Nordeste.  

Mas seu coração era grande e nele havia espaço também para a TV, meio que não discriminava e do qual sabia extrair o melhor. Trabalhou no Globo Shell e no Globo Repórter, foi ainda responsável pela exibição dos primeiros telefilmes brasileiros na Rede Record, no início dos anos 1980. 

O Brasil perde um grande homem, e o cinema brasileiro, um de seus mais entusiastas defensores. Obrigada, Capô! Viva Capô! Voe alto e leve sua alegria para outras dimensões desse imenso universo. 

Mais sobre a autora:

Lilia Lustosa é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne e doutoranda nesta mesma instituição de ensino superior.


RPD 33 || Isaac Roitman: Os caminhos para a conquista de uma democracia plena

Se analisarmos nossa história e o presente, vamos concluir que não alcançamos ainda uma democracia plena. The Economist publica, desde 2006, um ranking que classifica os sistemas políticos de 167 países no exercício da democracia. No último, o Brasil ocupa a 49ª posição e é considerado como um país com “uma democracia falha”. A avaliação compreende sessenta indicadores, reunidos em cinco categorias amplas: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política democrática e liberdades civis. Em uma verdadeira democracia, as instituições públicas devem contribuir para o bem comum, para a coletividade. Quando as políticas e ações públicas beneficiarem grupos ou pessoas, principalmente com desvios de recursos e outros desmandos, com uma política econômica que torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, não teremos uma democracia plena. 

A corrupção no Brasil é antiga e inimiga da democracia.  Já no século 16, os funcionários coloniais exportavam por conta própria especiarias, tabaco, metais e peças preciosas. Seguiu-se a traficância dos escravos, a manipulação dos contratos para obras públicas, a corrupção eleitoral do Império, o voto de cabresto da República, o “rouba, mas faz”, escândalos financeiros e tantos outros. Que vergonha! Até no combate da pandemia da Covid-19 desviaram recursos públicos.  Se não conseguimos superá-la no passado, temos a oportunidade de superá-la no presente, para proteger nosso futuro.  

A conquista de uma democracia plena é um processo construtivo longo e contínuo. Winston Churchill já dizia: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. No Brasil, a construção da democracia foi interrompida em vários momentos como no Estado Novo (1937-1945) e na Ditadura Militar (1964-1985). 

Os avanços no processo democrático envolvem a disponibilidade de educação pública de qualidade para todos, incluindo crianças e jovens, independentemente da classe social, bem como uma formação profissional de bom nível, a aquisição e consolidação de valores e virtudes, tais como ética, solidariedade, compaixão, bondade, caridade, fraternidade, respeito à diversidade e à natureza. Ao mesmo tempo, devem contribuir para exterminar a vergonhosa injustiça social brasileira por meio de uma política econômica que assegure vida digna e bem-estar social. O fortalecimento do Sistema Único de Saúde é fundamental para que todos tenham à disposição a promoção da saúde e uma assistência de qualidade diante das diferentes patologias.

O fortalecimento do Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação, com investimentos contínuos em nossas Universidades e Centros de Pesquisa é uma prioridade absoluta. Estamos hoje com a pandemia da Covid-19. Pagando pelos erros cometidos na interrupção de projetos de pesquisas em todas as áreas do conhecimento. Provavelmente, nossos pesquisadores já teriam produzido várias vacinas para combater essa catastrófica epidemia. Além disso, o desenvolvimento científico e tecnológico nos tiraria da posição de país periférico e permitiria que o Brasil tivesse destaque social e econômico na Era do Conhecimento. 

Uma reversão da atual política ambiental é uma emergência. Nossos recursos naturais e nosso bioma estão correndo riscos devido a políticas predatórias, estimuladas por lucros imediatos. O estrangulamento de nossa rica cultura e o retrocesso na conquista de direitos humanos completam esse cenário desolador que ameaça o futuro de nosso país. Não podemos ser reducionistas ligando o conceito de democracia simplesmente vinculado ao exercício do sufrágio. A apatia política é uma doença e a vacina para combatê-la é a educação para a cidadania.  

No entanto, as democracias contemporâneas passam por crises por não terem alcançados os seus objetivos éticos de justiça social.  Vamos todos juntos nos inspirar em Geraldo Vandré: 

“Caminhando e cantando /e seguindo a canção / Somos todos iguais/ braços dados ou não/ Nas escolas, nas ruas, campos, construções/ Caminhando e cantando e seguindo a canção/ Vem, vamos embora, que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer/ Vem, vamos embora, que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. 

Isaac Roitman é doutor em microbiologia, foi chefe de departamento, decano e é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)


Partido completa 98 anos

Criado em 25 de março de 1922, PCB evoluiu para PPS e Cidadania

Eles eram poucos.
E nem puderam cantar muito alto a Internacional.
Naquela casa de Niterói em 1922.
Mas cantaram e fundaram o partido.
Eles eram apenas nove, o jornalista Astrogildo, o contador Cordeiro, o gráfico Pimenta, o sapateiro José Elias, o vassoureiro Luís Peres, os alfaiates Cendon e Barbosa, o ferroviário Hermogênio.
E ainda o barbeiro Nequete, que citava Lênin a três por dois.
Em todo o país eles eram mais de setenta.
Sabiam pouco de marxismo, mas tinham sede de justiça e estavam dispostos a lutar por ela.
Faz sessenta anos que isso aconteceu, o PCB não se tornou o maior partido do ocidente, nem mesmo do Brasil.
Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele.
Ou estará mentindo.

Ferreira Gullar

IMAGEM DE 1922 COM OS FUNDADORES DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO
Em imagem de 1922, os fundadores do Partido Comunista Brasileiro: Manoel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrogildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva (de pé, da esq. p/ dir.); Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro (sentados, da esq. p/ dir.) Foto: João da costa Pimenta/Acervo/Estadão


A fundação do PCB

Cumprem-se hoje 98 anos da fundação do PCB. Naquele dia, um pequeno grupo de delegados, quase todos oriundos do anarquismo, sob inspiração da revolução de 1917 e a liderança de Astrojildo Pereira, fundaram o partido.

Desde então, mesmo com número reduzido de militantes e nas condições adversas da clandestinidade que perduraram por quase toda sua história, o partido foi protagonista de todas lutas por democracia e justiça social no Brasil. Em cada momento relevante, apresentou-se como alternativa política para os trabalhadores e as classes populares, contra a agenda dos grupos dominantes.

Como todos os partidos brasileiros, construiu uma trajetória de erros e acertos. Como poucos, contudo, talvez por ter sido o mais longevo, conseguiu aprender com seus erros e transformar essas experiências em mudanças duradouras na sua trajetória política.

Já em 1958, na esteira da crise provocada pela denúncia do culto à personalidade e dos crimes de Stálin, o partido compreendeu a relevância da questão democrática e defendeu o caminho da democracia, como possível, desejável e necessário para avançar no rumo do socialismo. Logo após o golpe militar de 1964, prosseguiu nesse rumo e formulou o diagnóstico preciso da natureza do regime e o caminho para sua derrota: uma ampla frente democrática, unificada em torno das bandeiras da anistia, eleições diretas e assembleia nacional constituinte.

Conquistada a democracia no Brasil, na década de 1980, foi um dos poucos partidos comunistas do mundo que apoiou, de maneira consequente e resoluta, o esforço, infelizmente abortado, de renovação democrática do socialismo na União Soviética e no Leste Europeu.

Concluiu, logo depois, que o esgotamento do modelo do socialismo real exigia a construção de uma nova plataforma política e de um novo modelo de partido. Com esse objetivo, caminhou, em decisão majoritária, para sua transformação, em 1992, em novo partido, o PPS (Partido Popular Socialista), que, em continuidade ao mesmo impulso de renovação e agregação política, originou, em 2019, o Cidadania.

Uma data para ser comemorada não apenas pelos militantes formados nas diferentes variantes da tradição pecebista, mas por todos os democratas brasileiros.

Fundação Astrojildo Pereira


Ivan Alves Filho: Do PCB ao Cidadania 23

O ano de 1922 foi central para o entendimento do Brasil. Nele tivemos a Semana de Arte Moderna, o surgimento das reivindicações feministas, o início do que se convencionaria denominar por Tenentismo e, ainda, a criação da Seção Brasileira da Internacional Comunista. Um ano de cortar o fôlego.

Provavelmente, o centenário da Independência obrigou o país a se repensar. O Partido Comunista surgia como uma agremiação ao mesmo tempo nacional, isto é, buscando o
enraizamento no país, e internacional, na esteira dos acontecimentos que sacudiam a Rússia em 1917.

O enraizamento interno tinha que ver com sua condição de partido da classe trabalhadora. Mas,rapidamente, já no final dos anos vinte, o Partido percebia que não poderia praticar uma política de class e contra classe. O Brasil se diversificava, apresentando uma conformação social mais sofisticada e complexa. Ao lado da classe operária e do campesinato despontava uma nova camada, composta pelos setores médios. Eis o que abria a via para o diálogo com intelectuais e militares, por exemplo. Astrojildo Pereira foi o grande artífice dessa primeira grande mudança. Outras viriam, tão profundas quanto essa.

Após atravessar a repressão do Estado Novo de Vargas e as vicissitudes da chamada Guerra Fria, os comunistas do PCB mudam novamente, acrescentando a seu ideário a questão democrática. Isso se deu com a Declaração de Março de 58. Não por acaso, seu principal redator seria Armênio Guedes, o dirigente mais próximo de Astrojildo. Foi com esse espírito que o PCB evitou o esfacelamento por ocasião da ditadura militar. Apostando na aliança com os liberais e na luta de massas, o Partido apontou o caminho, jogando suas fichas na derrota e não na derrubada do regime. A História daria razão ao PCB.

Surgido no bojo das batalhas travadas pela Rússia Soviética, o PCB passaria por nova transformação após o esgotamento do chamado socialismo real. Sabendo tirar as lições do fim da União Soviética e do processo iniciado em 1917, os comunistas brasileiros mudam o nome do partido e abandonaram seu símbolo, a foice e martelo. Mudaram o partido e não de Partido. Nascia o PPS em 1992. Ou seja, souberam preservar suas partes vivas, a saber a ética, a democracia e a noção de justiça social. Essa a maior herança do comunismo brasileiro. Mais do que qualquer outro partido, o PCB organizou o mundo do trabalho, lutou pela cultura nacional e integrou o bom combate pela democracia. Esse o seu grande legado.

Hoje, mais uma mudança. Surge em cena o Cidadania 23. Em tempos de profundas mudanças no aparato produtivo e no modo de vida das pessoas, o PPS estabeleceria vínculos com os movimentos surgidos nas ruas, em 2013. Muitos eram de corte liberal. O Partido entendeu que o liberalismo era uma conquista do processo civilizatório, afirmando o papel do indivíduo perante o Estado. Eis o que não entrava em contradição com os direitos sociais que os comunistas sempre defenderam.

Terminei, precisamente hoje, um novo livro: A saída pela Democracia. Em um dos seus últimos parágrafos escrevo o que se segue: Penso que um denominador comum possível seja a cidadania. Seu vínculo com o mundo do trabalho pode ser feito por intermédio da Constituição. Sua ligação com cada um de nós, individualmente falando,pode ser realizada por meio das lutas identitárias, incluindo aí a cultura como pertencimento. Seu elo com as liberdades pode se dar pela defesa dos direitos de ir e vir das pessoas. A cidadania pode ser o grande fator estruturante da participação popular pelas mudanças. Ela perpassa o sistema de classes; como conquista do processo civilizatório não é monopólio de classe alguma. É um patrimônio de todos.

Ivan Alves Filho é historiador.


Compre na Amazon: livro de Astrojildo Pereira destaca contrastes de Machado de Assis

Obra apresenta análise detalhada de um dos maiores nomes da literatura do Brasil

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A grandeza da vida e das obras do escritor brasileiro Machado de Assis ganha um registro ímpar em um livro que tem se tornado referência para entender detalhes e ideais que marcaram a trajetória de um dos maiores nomes da literatura nacional. Escrito por Astrojildo Pereira, fundador do PCB (Partido Comunista Brasileiro), cuja identidade evoluiu para o hoje Cidadania, o livro Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos (3ª edição, 2008, 224p.) revela contrastes ímpares do autor brasileiro. A obra está à venda no site da Amazon.

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Os estudos mais avançados sobre Machados de Assis, tanto no Brasil quanto no exterior, apontam sua íntima relação com o contexto histórico-social em que o maior escritor brasileiro viveu, que é o do Segundo Reinado e a passagem para o republicando em sua primeira fase. “O que quase não se diz, é quando se diz é de forma tímida, ou até depreciativa, é o importante papel que teve o intelectual Astrojildo Pereira neste processo de renovação nos estudos sobre a obra de Machado de Assis”, conforme destaca o historiador Martin Cezar Feijó, organizador desta edição do livro.

O livro conta que Machado de Assis reunia, em si mesmo, as imagens de uma pessoa tímida e sensual, pobre e órfão que se fez pelas próprias mãos o maior escritor brasileiro, pacato e determinado, solitário e animador cultural, enfermo constitucional e saúde equilibrada. “Em suma, Astrojildo não nega, antes reforça, o caráter universal na obra de Machado de Assis: ‘o mais universal de nossos escritores’”, acentua Feiijó.

O Machado de Assis de Astrojildo Pereira revela a imagem de um escritor que foi retrato do tempo em que viveu e com ele se identificou no que toca aso princípios constitucionais da sociedade imperial, refletindo-os em sua obra na condição de um ficcionista do Segundo Reinaldo. Por isso, conforme consta do prefácio, chega-se à conclusão de que essa mesma obra tinha um forte sentido político-social.

O livro também entrega ao leitor o filme A Última Visita, em formato de DVD, anexado na última página. O filme é baseado na história de Astrojildo Pereira, que, em 1908, compareceu a encontro não marcado na casa de Machado de Assis. Desde então, uma forte relação se estabeleceu até o fundador do PCB tornar-se, mais tarde, uma das maiores referências da esquerda brasileira.

Quem foi Astrojildo Pereira?

Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu em Rio Bonito, a 78 quilômetros do Rio de Janeiro, em 8 de novembro de 1890. Foi escritor, jornalista, crítico literário e político brasileiro. Fundou o PCB (Partido Comunista Brasileiro), em 1922, na mesma década em que houve ascensão do movimento operário no Brasil. Ele morreu, em 1965, aos 75 anos.

Aos 16 anos, abandonou os estudos (no terceiro ano do curso ginasial no Colégio Anchieta, de Nova Friburgo) para iniciar a sua vida na militância anarquista, em oposição à doutrina religiosa difundida pela Igreja e contra o militarismo, estimulado pelas greves operárias de 1906.

Na juventude, como gráfico, participou de organizações operárias anarcossindicalistas e foi um dos organizadores do segundo Congresso Operário Brasileiro, em 1913. Iniciou na imprensa operária a sua carreira de jornalista, atividade à qual se dedicaria durante a maior parte de sua vida.

Em 1918, foi preso por participar da frustrada insurreição anarquista, sendo libertado em 1919. Fundou, em 1921, o Grupo Comunista do Rio de Janeiro. No ano seguinte, reuniu os vários grupos bolchevistas regionais para criar o Partido Comunista do Brasil, em março de 1922, reconhecido dois anos depois como Seção Brasileira da III Internacional.

Sua primeira viagem à União Soviética foi em 1924, na condição de secretário-geral do partido. No ano seguinte, junto de Otávio Brandão, iniciou a publicação do jornal A Classe Operária, órgão oficial do PCB. Em 1927, viajou à Bolívia para entrar em contato com o líder tenentista refugiado Luís Carlos Prestes, a fim de aproximá-lo do marxismo-leninismo. Em 1928, passou a ser um dos integrantes do Comitê Executivo da III Internacional.

Em 1931, desligou-se do partido e passou a colaborar no jornal carioca Diário de Notícias e na revista Diretrizes. Como crítico literário, especializou-se nas obras de Machado de Assis e Lima Barreto.

Em 1945, retornou ao PCB, passando a colaborar com a imprensa partidária. No entanto, após a cassação do partido, em 1947, a diretriz política ordenada por Prestes até 1956 acabou afastando-o novamente do PCB.

Após a instauração do governo militar, em 1964, foi preso por três meses, já em estado precário de saúde. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1965. Em 2000, o então PPS (Partido Popular Socialista) cria a FAP (Fundação Astrojildo Pereira), com o objetivo de preservar a memória deste fundador do PCB e dos militantes comunistas brasileiros.

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Cláudio de Oliveira: Por que Astrojildo e Cristiano foram expulsos do PCB?

O jornalista fluminense Astrojildo Pereira e o advogado pernambucano Cristiano Cordeiro foram dois dos nove fundadores, em 25 de março de 1922, do antigo PCB, o primeiro partido da esquerda brasileira a se organizar nacionalmente. Ambos foram expulsos do partido em 1930 e 1947, respectivamente.

Astrojildo Pereira (1890-1965)

Astrojildo foi o primeiro líder do PCB até 1930, quando o partido sofreu intervenção da Internacional Comunista (IC), sediada em Moscou e comandada pelos partidários de Josef Stálin, o ditador da URSS.

Astrojildo foi afastado da secretaria-geral e depois expulso do PCB acusado de “desvio direitista de caráter menchevique martovista”.

Naquela altura, a IC recusava qualquer diálogo com liberal-democratas e passara a considerar a socialdemocracia como “irmã gêmea do fascismo”, inimigo número um a combater. Tal visão sectária favoreceu a vitória de Adolf Hitler na Alemanha, em 1932.

Já Astrojido liderou a criação, a partir de 1927, do Bloco Operário e Camponês (BOC), uma aliança formada pelo PCB, pelo PSB e por membros do Partido Democrático do Distrito Federal.

Em 1929, o bloco chegou a fazer uma aliança com o Partido Democrático de São Paulo, de liberal-democratas contrários ao Partido Republicano, agremiação conservadora que sustentou os governos da República Velha (1899-1930).

Astrojildo estava com uma posição política adequada à realidade brasileira e foi vítima do ultra-esquerdismo da IC.

Voltou ao PCB com a legalidade de 1945, após escrever uma humilhante carta de autocrítica. Permaneceu na condição de membro suplente do Comitê Central até sua morte, em 1965, no Rio de Janeiro, aos 75 anos.

Mesmo sem ocupar o centro das decisões políticas do PCB, desempenhou papel importante na renovação do pensamento da esquerda brasileira através da Novos Rumos, revista partidária que ajudou a editar.

Cristiano Cordeiro (1895-1987)

O PCB havia decidido candidatar Cristiano à Constituinte de 1933 pela legenda Trabalhador, ocupa teu posto!, em Pernambuco. Cristiano lançou sua candidatura no 1º de maio, em ato no Teatro Santa Isabel, no centro de Recife.

Recusou-se a colocar na sua plataforma eleitoral a formação de conselhos de operários, camponeses, soldados e marinheiros, isto é, de sovietes no Brasil.
Ele considerava a proposta alheia à realidade brasileira.

Cristiano conseguiu se eleger deputado. Porém, a comissão eleitoral anulou duas urnas de um bairro popular, reduto eleitoral do PCB, deixando Cristiano fora da Constituinte.

Em 1935, Cristiano foi eleito vereador pelo Recife. Em fins de 1934, contatado por Silo Meirelles, em nome da direção nacional do PCB, Cristiano se recusou a organizar um levante armado contra o governo de Getúlio Vargas.

Para Cristiano, um movimento conspiratório restrito aos quartéis e isolado da sociedade seria uma quartelada fadada ao fracasso.

Em vez disso, propôs Cristiano, o PCB deveria buscar derrotar Vargas não no plano militar, mas na esfera política, articulando uma frente que reunisse não só comunistas e socialistas, como também liberais contrários ao governo.

Dito e feito. O levante de novembro de 1935, organizado pelo PCB, foi facilmente derrotado e forneceu as condições políticas para que Getúlio Vargas promovesse um golpe de Estado em 1937 e instalasse a ditadura do Estado Novo.

Mesmo contrário e sem participar do movimento de 1935, Cristiano foi preso. Libertado um ano depois, só em 1937, por força de um mandato de segurança, conseguiu tomar posse como vereador. Com o golpe do Estado Novo, a Câmara Municipal foi dissolvida, Cristiano foi novamente preso e intimado a deixar a cidade.

Fugiu para Santos, em São Paulo, e depois transferiu-se para Goiás. Com o fim da ditadura, em 1945, voltou a Pernambuco. Por suas posições, foi expulso do partido em 1947.

Cristiano Cordeiro foi reintegrado ao PCB somente em 1980, aos 87 anos. Morreu em novembro de 1987, aos 92 anos de idade.

A partir de 1958, e especialmente depois de 1967, o PCB evoluiu para as posições políticas defendidas por Astrojildo e Cristiano: uma frente reunindo todos os setores democráticos com o objetivo de reestabelecer o Estado de Direito, conquistado afinal com a Constituição de 1988.

Em 1992, a maioria do PCB aprovou a mudança de nome para PPS, cujo instituto de estudos leva o nome de Astrojildo Pereira. Uma ala liderada pelo arquiteto Oscar Niemeyer recriou o partido, porém o novo PCB não conseguiu eleger representantes no Congresso.

*Cláudio de Oliveira é jornalista, cartunista e autor do e-book Lenin, Martov, a Revolução Russa e o Brasil
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CMS: Pronunciamento de Astrojildo Pereira sobre o impacto da Revolução Russa no movimento operário brasileiro

Os impactos da Revolução Russa no Brasil

Astrojildo Pereira

É uma honra falar nesta casa paulista da cultura, e isto sobe de ponto quando me vejo patrocinado por tão ilustres personalidades das letras, das artes, da ciência e da política. Acredito, no entanto, que meus amigos da comissão organizadora deste ato carregaram um pouco a mão na ênfase com que anunciaram como possível conferência de caráter histórico ou sociológico o que pretendo expor. Minha intenção é muito mais modesta e até mais própria da minha condição em relação ao tema proposto: falar apenas como testemunha que acompanhou, com apaixonado interesse, o processo da Revolução Russa de 1917, seus antecedentes e suas repercussões entre nós, especialmente no movimento operário.

Durante a guerra imperialista de 1914-1918, mesmo depois que o Brasil se viu envolvido no conflito, às vésperas da Revolução de Outubro, os trabalhadores brasileiros e o melhor da nossa intelectualidade sustentaram – pelos meios que lhes eram próprios e possíveis – a mesma posição de repúdio à guerra, da luta contra suas implicações políticas e econômicas e pelo restabelecimento da paz. Os jornais operários e populares então publicados no Distrito Federal e nos Estados refletiam esse estado de espírito de revolta contra a guerra imperialista e o regime que a gerara. Mas foi a partir do primeiro trimestre de 1915 que a luta contra a guerra, pela paz, se ampliou e tomou um impulso do movimento nacional organizado.

Coube ao Centro de Estudos Sociais do Rio de Janeiro a iniciativa desse movimento, o qual agrupava operários e intelectuais avançados, e se achava estreitamente ligado à vida e à atividade dos sindicatos locais, funcionando na mesma sede da Federação Operária do Distrito Federal. Ali se reuniram várias assembleias preparatórias e, por fim, a 26 de março de 1915, uma grande assembleia de delegados de organizações sindicais e outras, bem como de representantes dos jornais operários e libertários que então se publicavam no Rio de Janeiro. Deliberou-se criar uma Comissão Popular de Agitação contra a Guerra, composta pelos representantes das entidades presentes e de outras que lhe dessem posteriormente a sua adesão. Esta Comissão assumiu o comando do movimento, traçando para o Distrito Federal o plano de uma série de conferências, palestras, assembleias sindicais, comícios populares etc., em preparação de um Primeiro de Maio de luta pela paz. Deliberou-se, igualmente, publicar um manifesto sobre o problema da guerra e da paz, dirigido a todo o povo brasileiro.

Em São Paulo, o movimento foi imediatamente secundado, constituindo-se uma Comissão Internacional: Centro Libertário, União dos Gráficos Alemães no Brasil, Associação Universidade Popular de Cultura Racionalista, União dos Operários Alemães Livres, Círculo de Estudos Sociais Francisco Ferrer, União dos Operários Cantórios, Federação Espanhola, os periódicos populares A Lanterna, o Avanti! (italiano), La Propaganda Libertária (espanhol) e o Volksfreund (alemão). A designação dessas entidades e desses jornais, em línguas diferentes, serve para mostrar a feição internacional da massa operária de São Paulo, cidade de intensa imigração, mas serve também para mostrar – o que é mais importante – o caráter internacionalista da luta sustentada pelos trabalhadores contra a guerra imperialista. Preparando-se para demonstrações do Primeiro do Maio, a Comissão de São Paulo publicou um comunicado, datado de 8 de abril de 1915, que terminava com as seguintes palavras:

“(…) Em Primeiro de Maio, aproveitando a comemoração com que o proletariado afirma, em internacional manifestação, o seu direito a uma vida melhor, realizaremos nesta cidade, onde a guerra teve tão ruidosa repercussão no povo, lançando-o na miséria, a nossa primeira reunião pública pró-paz. “Abaixo a guerra! Viva a Internacional dos Trabalhadores!”.

No Rio, o comício de Primeiro de Maio constituiu, como se esperava, uma verdadeira demonstração da massa contra a guerra. Ao largo São Francisco, onde se realizou, acorreram milhares de trabalhadores, homens e mulheres do povo, que ali proclamavam seu horror à guerra e sua disposição de lutar pela causa da paz. Foi então lido um documento em que se fazia análise das causas e dos efeitos da guerra, e se expunham os fins do movimento em favor da Europa em guerra e nas três Américas.

Em seguida ao comício, a massa popular desfilou pelas ruas do centro da cidade, terminando em frente à sede da Federação Operária.

Nesse mesmo ano a Confederação Operária no Brasil tomou a si o encargo da convocação e preparação de um Congresso da Paz, o qual veio a reunir-se, efetivamente, na Capital da República, em 14, 15 e 16 de outubro de 1915 (entre parênteses notarei aqui uma interessante coincidência: nessa mesma época reunira-se na Suíça um congresso de delegados socialistas de vários países europeus, entre os quais figurava Lênin).

Além da declaração de Distrito Federal, São Paulo, Pernambuco, Alagoas, Estado do Rio, Minas Gerais e Rio Grande do Sul participaram do Congresso representantes da Argentina, de Portugal e da Espanha. Vistos com os nossos olhos de hoje, podemos facilmente assimilar as enormes insuficiências da organização de orientação do Congresso da Paz do Rio de Janeiro, em 1915, onde predominaram as declarações grandiloquentes sem alcance prático; mas ao mesmo tempo devemos reconhecer que ele marcou, com incontestável relevo, uma posição franca de luta contra a guerra imperialista e em defesa da paz e da liberdade.

O ano de 1916 transcorreu sem grandes atos, sem que o movimento assumisse relevos oficiais especiais. Observa-se vivo e ardente por meio dos jornais operários e populares. Mas os primeiros meses de 1917 assinalam, no Rio de Janeiro, o recrudescimento da campanha contra a guerra e pela vida, que era, aliás, uma consequência imediata da guerra. Durante os meses de março e abril daquele ano, a Federação Operária promoveu a realização de inúmeros comícios pelos diversos bairros da cidade, e a 18 de abril, numa grande assembleia em sua sede, foi aprovada uma mensagem, que se enviaria ao presidente da República, na qual se protestava contra a eventual entrada do Brasil na guerra (já se falava muito nisto) e que surgissem medidas tendentes a aliviar a crise econômica e financeira, cujos efeitos recaíssem principalmente sobre as costas dos trabalhadores. A comemoração do Primeiro de Maio de 1917, no Rio de Janeiro, transcorreu igualmente sob o signo da luta contra a carestia, com impressionante desfile pelas ruas da capital.

E quando, finalmente, em outubro de 1917, o governo brasileiro, cedendo à pressão imperialista de um dos grupos em guerra, deliberou entrar no conflito, a classe operária e a intelectualidade progressista não se afastaram uma polegada da posição de luta pela paz, mantida sem desfalecimento desde o início das hostilidades entre os dois grupos imperialistas. Um período progressista que então se publicava na capital do país – e que mantinha ligações de simpatia no movimento operário – publicou o seu editorial com um título que equivalia a uma reafirmação inequívoca dos sentimentos de todo o povo brasileiro: “O Brasil não quer guerra”.

Esses detalhes nos ajudam a compreender melhor certos aspectos da repercussão da Revolução Russa de 1917 no Brasil. Pode-se imaginar como foi profunda entre nós a impressão sobre a política de paz inaugurada com extrema audácia pelo governo soviético desde o primeiro dia da tomada do poder.

Não é difícil compreender por que as notícias relativas à insurreição e à conquista do poder pelos operários e camponeses russos, guiados pelo Partido Bolchevique, eram acompanhadas com enorme interesse pelos trabalhadores brasileiros. A imprensa reacionária apresentava tais notícias de maneira caluniosa, deformando os fatos, torcendo o sentido dos acontecimentos e até mesmo inventando horrores para impressionar a opinião pública.

Mas os pequenos e pobres jornais brasileiros, publicados nas principais cidades, rebatiam infatigavelmente as mentiras e deformações veiculadas pela imprensa reacionária, a significação e a natureza dos fatos que se sucediam nos vastos domínios do Império Czarista. Deve-se recordar, neste sentido, um folheto de autor brasileiro, saído a lume, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1918, sob o título A Revolução Russa e a Imprensa, no qual precisamente se defendia a Revolução de outubro e se refutavam as mais grosseiras e furiosas calúnias divulgadas pelos jornais da reação.

Havia, sem dúvida, nos comentários a favor da Revolução, não poucas suposições e conceitos errôneos – que resultavam principalmente de interpretações doutrinárias ainda obscuras e mesmo confusas; mas, pouco a pouco as coisas se esclareciam e, já em 1919, os nossos periódicos operários e populares publicavam importantes e autênticos documentos sobre a Revolução, colhidos na imprensa operária da Europa e da América. O semanário carioca Spartacus, por exemplo, estampou, em seu primeiro número, publicado em agosto de 1919, a “Carta aos Trabalhadores Americanos”, de Lênin, e algumas semanas depois o fundamental trabalho, também de Lênin, “A democracia burguesa e a ditadura do proletariado”. O órgão da Federação das Classes Trabalhadoras de Pernambuco, a Hora Social, publicou, em novembro desse mesmo ano, o texto da primeira Constituição soviética.

Os intelectuais mais esclarecidos, com alguma compreensão da natureza do fenômeno revolucionário, manifestavam também suas simpatias pela Revolução Socialista de outubro. À frente deles, com mais decisão, colocou-se um grande nome, Lima Barreto, que publicou em 1919 um artigo que ficou conhecido como “Manifesto Maximalista”, que, como se pode imaginar, produziu enorme sensação. Devo também recordar, com muita especial consideração, o nome de Afonso Schmidt, que escreveu então numerosos artigos e alguns folhetos em defesa da Revolução de Outubro. O veterano Schmidt aí está, quarenta anos depois, em plena atividade de escritor de vanguarda, glória das nossas letras e orgulho da minha geração.

Mas ainda há dois ou três escritores e jornalistas brasileiros da época, amigos e simpatizantes da Revolução, que marcaram igualmente, inclusive por cara afeição, ao seu tento pitoresco das suas manifestações literárias e jornalísticas a favor dos bolcheviques.

Um deles, o paulista Nereu Rangel Pestana, que escrevia a pedidos do jornal O Estado de S.Paulo, sob o pseudônimo de Ivan Sibiroff, e chegou a publicar um periódico, por conta própria, que deu como título seu pseudônimo, “Ivan Sibiroff”. Nereu Rangel Pestana, pertencente à família de ilustres jornalistas de São Paulo, realizava, com seus artigos, uma dupla campanha jornalística: defendia a Revolução Russa e, ao mesmo tempo, vasculhava os bastidores políticos e financeiros das classes dominantes no estado, disso resultando um volume de ruidoso êxito, a que deu o título de A Oligarquia Paulista.

O outro jornalista a que quero me referir chamava-se Roberto Feijó. Ele residia no Rio de Janeiro e ali publicou uma série de Cartas em defesa dos bolcheviques, usando o pseudônimo de Dr. Kessler, e, com esse disfarce, fazia-se passar por um agente russo enviado ao Brasil. Aliás, Ivan Sibiroff utilizava também a mesma mistificação literária. Diga-se, porém, para desfazer dúvidas, que ambos utilizavam este processo com absoluta honestidade de meios e propósitos, e com uma boa e alegre dose de ironia. Eram ambos, com efeito, homens de espírito e de bom humor, e empregavam a sua malícia, muito desinteressadamente, em favor das melhores causas democráticas e patrióticas.

Sem dúvida, porém, foi nos sindicatos operários e nos movimentos de massa que as demonstrações de solidariedade à jovem República Operária e Camponesa atingiram mais extensão e possuíram mais importância. As assembleias sindicais eram bem movimentadas e sempre que nelas se mencionava os exemplos das lutas revolucionárias dos trabalhadores russos, os presentes manifestavam com unânime entusiasmo os sentimentos de fraternidade, admiração e apoio. Os sindicatos operários promoviam conferências, palestras e debates sobre assuntos relacionados com a Revolução Russa. Quando da intervenção das tropas imperialistas anglo-franco-japonesas, que sustentavam os generais contra-revolucionários – Denikin, Yudenitch, Wrangel, Kolttchak e outros –, moções de protesto recebiam aprovação igualmente unânime das assembleias e comícios onde eram apresentadas. Um sindicato, a União dos Metalúrgicos do Distrito Federal, chegou a proclamar uma greve geral de protesto dessa categoria profissional contra a intervenção imperialista e de solidariedade à República Operária e Camponesa.

Mas o principal da repercussão da Revolução de Outubro no movimento operário estava no tremendo impulso produzido no movimento – aqui e em todos os países – pela vitória da Revolução Socialista.

Todo o período de 1917 a 1920 caracterizou-se, entre nós, por uma onda irresistível de greves que, em muitos lugares, assumiram proporções grandiosas. Em primeiro lugar, a greve geral de São Paulo, em agosto de 1917: esta eclodiu antes de 7 de novembro, mas já sob o signo da revolução operária e camponesa que se processava na Rússia desde março e culminou com a tomada do poder naqueles dias que abalaram o mundo. A greve geral de 1917 em São Paulo abriu uma série de grandes greves de massa que se multiplicaram pelo país até 1920. Eram movimentos por aumento de salários e por melhores condições de trabalho, mas uma coisa se mostrava evidente: a influência da Revolução Russa para a combatividade e para as esperanças da classe operária. A maneira com a qual os trabalhadores da construção civil do Rio de Janeiro conquistaram a jornada de oito horas de trabalho merece especial registro. O horário em vigor, até então, era de 9 a 10 horas, até mais, por dia. Depois de numerosas assembleias o sindicato dos trabalhadores da construção civil resolveu “decretar”, por conta própria, as oito horas diárias de trabalho em todas as obras da construção civil em andamento no Rio de Janeiro, o que se efetivou realmente a partir de dois de maio de 1919.

Não há dúvida de que outras muitas reivindicações pelas quais lutavam as massas trabalhadoras, naquela época, foram alcançadas total ou parcialmente. Mas é fato que a natureza e o volume das vitórias alcançadas não estavam em proporção com o vulto e a extensão do movimento geral.

As reivindicações formuladas por aumento de salários, por melhores condições de vida e de trabalho etc, constituíram como que um fim em si mesmo, e não um ponto de partida para reivindicações crescentes do nível superior. É que, na realidade, se tratava de lutas mais ou menos espontâneas, isoladas umas das outras, sucedendo-se por força de um estado de espírito extremamente combativo que se generalizava entre as massas. Admiráveis exemplos de firmeza, de bravura, de abnegação se verificavam pouco por toda parte, durante as greves e demonstrações de massa que se multiplicavam de maneira contagiosa naqueles anos. Faltava, porém, um centro coordenador, um comando geral à altura das circunstâncias. Em suma: uma direção política, que só um partido independente de classe poderia imprimir em todo o movimento.

A essa justa conclusão se chegava também por influência da Grande Revolução Socialista de Outubro – no nosso caso influência decisiva, e já com sua formulação teórica e prática acabada.
E assim nasceu o Partido Comunista do Brasil.

Estamos aqui há 40 anos de distância do sete de novembro de 1917. Cessa aqui o meu depoimento propriamente dito. Seja-me permitido acrescentar comentários que me parecem oportunos.
Evidentemente, uma revolução social da extensão da Revolução Socialista de Outubro – e tendo sobretudo em vista as condições históricas excepcionais em que ela se processou, num país como o antigo Império dos Czares e em conseqüência direta da Primeira Guerra Imperialista – teria de produzir repercussões mundiais de caráter múltiplo e cuja amplitude viria a abarcar todos os domínios da vida social – econômicos, políticos, culturais e morais.

O fato é que a Revolução Russa abriu o mundo para uma era de reconstrução social, em que as grandes massas populares representam o fator decisivo. Por outras palavras: depois de 1917 abriu-se para o mundo a era do socialismo, de democracia, da liberdade e da paz. E hoje, a bem dizer, nada se faz no mundo que não tenha o seu ponto de referência na União Soviética. A favor ou contra, mas sempre a União Soviética.

E como o Brasil faz parte deste planeta, também nós estamos historicamente enquadrados nesse plano de desenvolvimento. Claro, de acordo com as nossas peculiaridades nacionais.

Malgrado todas as evidências neste sentido, não faltam, entretanto, aqueles que não compreendem, ou não querem compreender, os novos rumos da história. São precisamente aquelas que se obstinam inclusive em negar, ou mesmo desconhecer, o que é a URSS 40 anos depois de 1917, e o que é o mundo socialista dos nossos dias.

Mas não adianta grande coisa. A história caminha para frente, embora não em linha reta.

Pronunciamento de Astrojildo Pereira, em conferência de 25 de setembro de 1957 sobre o impacto da Revolução Russa no movimento operário brasileiro.

Texto extraído do livro Viva, Astrojildo Pereira!, organizado por José R. Guedes de Oliveira, e editado pela Fundação Astrojildo Pereira e Abaré. A Princípios agradece ao organizador do livro pela gentil autorização para a publicação deste texto.

EDIÇÃO 92, OUT/NOV 2007, PÁGINAS 12, 13, 14, 15 e 16

POR MEMÓRIA SINDICAL. 10 JUL 2017 

 


Ivan Alves Filho: Relembrando Astrojildo Pereira

O que mais impressiona na trajetória de Astrojildo Pereira, a meu juízo, é a união que ele soube cimentar entre o homem de pensamento e o homem de ação. Uma combinação rara. Talvez por isso, o escritor e homem público Afonso Arinos de Mello Franco tenha se referido a ele como “a maior aventura intelectual” do Brasil em seu tempo.

Vamos tentar entender melhor o motivo disso. Nascido em 1890, em Rio dos Índios, localidade de Rio Bonito, na velha província fluminense, Astrojildo Pereira vivenciou, em 1908, um episódio que o marcaria para o resto da vida. Foi assim. Ao ler nos jornais que o romancista Machado de Assis agonizava, ele pega imediatamente uma barca em Niterói, atravessa a Baía de Guanabara e desce na Praça Quinze, no centro do Rio de Janeiro. Lá chegando, se enfia em um bonde e vai bater com os costados no Cosme Velho, aprazível bairro onde vivia o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Profundo admirador da obra machadiana, o rapaz, de apenas 17 anos, queria se despedir do velho mestre. Expõe sua intenção às pessoas que se encontravam na casa e é autorizado a entrar no quarto do escritor. Ajoelha-se, beija-lhe então as mãos e logo depois se retira. Na belíssima crônica A última visita, Euclides da Cunha, que presenciara a cena, escreveu: “Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”.

Dois anos após esse acontecimento, civilista convicto e já começando a se impregnar de ideias anarquistas, Astrojildo Pereira desembarca no cais da Praça Mauá, no Rio, e vai conhecer algumas das principais capitais europeias. Perambula seis meses pelo Velho Continente e retorna ao Brasil. No ano de 1911, Astrojildo já colaborava com o órgão anarquista Guerra Social, trabalhava como gráfico e linotipista e militava no movimento anarquista. Em 1913, ele integra, com um grupo de aguerridos companheiros, a primeira central operária brasileira, a COB, da qual se tornaria o secretário-geral. Em 1917 e 1918, lidera uma série de greves operárias que abalam o Rio de Janeiro. É preso e barbaramente espancado pela polícia no final de 1917 e novamente preso no ano seguinte. Não esmorece. Em 1922, sob inspiração direta da revolução bolchevique na Rússia, faz a opção definitiva pelo marxismo e ajuda a formar o Partido Comunista no Brasil. Em 1924, viaja para Moscou, já investido na condição de secretário geral do PCB. Nesse mesmo ano, assiste, na Praça Vermelha, aos funerais de Vladimir I. Lênin – o arquiteto da revolução bolchevique e também do Estado soviético. Ainda em Moscou, por essa época, divide um alojamento com um líder comunista que seria considerado um dos grandes estadistas do século XX: Ho Chi Minh.

De volta ao Brasil, vive como um revolucionário profissional. Com efeito, Astrojildo não para. Dedica-se a organizar o PCB clandestino e se interna em seguida na Bolívia, em 1927. Sua missão? Contactar Luiz Carlos Prestes, o chefe da Coluna Invicta, em nome do Partido. Entrega a Prestes uma mala com livros marxistas e tenta convencê-lo da necessidade de revolucionar as estruturas da sociedade – e não apenas derrubar este ou aquele governo. Consegue atrair Luiz Carlos Prestes para as fileiras do PCB.

Uma vez acertado o ingresso do Partido na Internacional Comunista, Astrojildo Pereira passaria a compor sua Comissão Executiva, a instância máxima da organização, em 1929, quando parte novamente para a capital soviética. Com menos de 40 anos de idade, ele já se apresentava como um dos líderes da revolução mundial.

Mas não tardaria muito e Astrojildo Pereira teria sérias divergências políticas com o Partido no Brasil. Assim, é afastado da organização em 1932, sob a acusação de tentar barrar a linha dita de “proletarização” de sua política e de simpatizar, ainda, com as ideias de Nikolai Bukharin, opositor de Josef Stalin na direção do Partido Comunista da União Soviética.

Reintegrado ao PCB no bojo da redemocratização do país em 1945, Astrojildo Pereira colabora, nesse meio tempo, com o jornal carioca Diário de Notícias e escreve ensaios primorosos sobre Machado de Assis. Sua reputação como crítico se consolida. Tampouco abandona a reflexão política, debruçando-se sobre a análise do fascismo e sua influência no Brasil. Mais: é o primeiro a pontar para a grandeza épica dos Quilombos dos Palmares, chamando Zumbi de “o nosso Spartacus negro”. Começa publicar então seus vários livros de ensaios. E ainda se dedica de corpo e alma à organização do I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em 1945. O Congresso lançaria, praticamente, a pá de cal sobre o Estado Novo de Vargas. Dele participam Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e outros nomes de primeiríssima linha da literatura, da historiografia e da ensaística brasileira.

Durante o Estado Novo, Astrojildo Pereira sobrevive vendendo frutas em um depósito em Niterói, o que motivou Manoel Bandeira a escrever um poema sobre ele. E de 1945 até o dia do Golpe de 1964, realiza pesquisas sobre a obra de Machado de Assis e a trajetória do PCB. Ao lado de sua companheira Inez, essas são as grandes paixões de sua vida, desde a juventude. Daí ter escrito certa vez que seu ideal de vida encorporava “um doce amor de mulher em meio a uma bravia luta política”. Seja como for, Astrojildo edita, nessas duas décadas, publicações da importância de Literatura e Estudos Sociais. Trabalha na célebre Editorial Vitória, do PCB, e passa a ditar, na prática, a política cultural do Partido. Intelectual refinado, ele contribui para revelar alguns valores que brilhariam na cultura e na política, como Armênio Guedes e Leandro Konder.

Astrojildo conviveu com figuras altamente representativas da cultura brasileira, como Oscar Niemeyer, Di Cavalcanti, Monteiro Lobato, Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré – pelo lado comunista – e Otto Maria Carpeaux e Hélio Silva, intelectuais católicos. Hélio Silva, inclusive, era um querido companheiro desde os tempos do anarquismo. Mais de uma vez, eu o ouvi – fascinado – discorrendo sobre isso, em meados da década de 80, quando tive oportunidade de trabalhar com ele, no Rio de Janeiro.

A explicação para esse trânsito junto a personalidades dos mais diferentes horizontes políticos e filosóficos reside no fato de que Astrojildo Pereira defendia seus pontos de vista sem qualquer traço de sectarismo. É bem verdade que nos momentos mais duros dos embates ideológicos travados pelo PCB, o velho revolucionário se alinhou, daqui e dali, com posições que, a rigor, contrariavam sua própria visão de mundo. É que, por formação, jamais iria contra uma diretriz do Partido. Mesmo assim, era, basicamente, um homem avançado em relação à sua época. Escrevendo de Moscou, em 1925, por exemplo, reconheceu que “a democracia, ainda que burguesa, é vista como um bem pelas massas”.

Era, de fato, um homem raro, desses que aparecem a cada meio século. Sua primeira prisão política, que eu saiba, se deu em 1917; a última, em 1964. Em 1965, devido aos rigores da prisão, onde sofreu um infarto, morreu Astrojildo Pereira. Foi perseguido durante a vida inteira, mas nunca perseguiu ninguém. Lutou todos os combates possíveis pela liberdade. Afonso Arinos tinha razão: Astrojildo Pereira levou uma existência que honra a inteligência brasileira. Sua vida é um desafio permanente lançado à imaginação dos melhores romancistas.

Eu o conheci em nossa casa, no Rio de Janeiro, quando estava para fazer 13 anos. Foi logo após sua saída da prisão. Meu pai, militante do PCB, tinha por ele um grande respeito. Guardo até hoje na memória sua semelhança física com meu avô paterno. Em ambos, eu percebia a mesma candura nos gestos, a mesma doçura no olhar, a mesma calma ao lidar com as pessoas. Como Astrojildo, vovô era um admirador do camarada Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Como ele, vovô nascera na velha província. Ao conhecer Astrojildo Pereira, foi como se eu passasse a ter mais um avô só para mim.

Pouco depois, soube de sua morte. Seu enterro foi uma corajosa manifestação pública de repúdio à ditadura militar então instalada no Brasil. Inez Dias, desafiando os esbirros do regime, gritou, à beira do seu túmulo: Viva Astrojildo Pereira! Naturalmente, fiquei abalado com tudo que estava acontecendo. No país do final da minha infância, prendiam e maltratavam homens com mais de 70 anos de idade. Seu pecado? Ter permanecido fiel às suas ideias de juventude. Era mesmo assustador.

O velho Astrojildo Pereira foi o primeiro herói da minha vida.

Ivan Alves Filho é jornalista, historiador e autor de mais de uma dezena de livros, entre eles Memorial de Palmares