ascânio seleme
Ascânio Seleme: As manifs vêm aí
Que ninguém se espante se o próximo ano for repleto de manifestações
Normalmente eles têm razão. Não apenas porque reúnem coragem e saem de casa para dizer o que pensam, o que já é bastante, mas porque quase sempre estão refletindo um sentimento que assalta o coração da maioria. Os manifestantes que ocupam as ruas e que gritam e se batem em favor de temas que dizem respeito à vida dos cidadãos são muitas vezes ingênuos, e em outras cumprem apenas um ritual juvenil. Mas estão ali, enfrentando o Estado e a sua polícia, porque acreditam que, se vencerem, todos ganharão. Não falo dos manifestantes de corporações, que apenas sopram a brasa debaixo da sua sardinha. Me refiro aos que gritam pela floresta, pelos direitos civis, em favor das mulheres, dos gays, dos negros, da liberdade de expressão, da democracia.
Não, não me refiro aos manifestantes que fazem atos de política partidária, que se esgoelam porque perderam o poder numa eleição ou porque não se conformam com o programa de governo de quem a venceu. Estou tratando dos que bloqueiam as ruas em protesto pelo aumento de 14 centavos na passagem dos ônibus, como se viu em 2013, mas não dos que pegam carona nas mobilizações para apresentar reclames próprios, corporativos, partidários ou sindicais. São homens e mulheres que defendem minorias e causas ignoradas pelo Estado e esquecidas pela sociedade. São jovens, alguns de idade, todos de espírito. Estou falando de pessoas de muito valor.
Sorte do país cujo povo sabe se defender das gigantescas estruturas estatais, indo para a rua, gritando, exigindo respeito. Na França, essas manifestações de indignação e confrontação são tão comuns que ganharam até um apelido carinhoso. São as manifs. Em Paris, elas partem sempre da Place de la République em direção à Bastilha. Antes das enormes demonstrações dos coletes amarelos, as manifs tinham objetivos mais claros e muitas vezes cirúrgicos. No Brasil, depois da supermanifestação “contra isso tudo que está aí” de 2013, houve diversas outras, mas as maiores e mais barulhentas foram quase todas de natureza partidária ou corporativa.
As partidárias são bem conhecidas, sobretudo aquelas em favor do impeachment da Dilma e as do Fora Temer. As corporativas vão desde o bloqueio de ruas por taxistas contra motoristas de Uber, que eram triviais há três anos, até a megaparalisação de caminhoneiros que gerou a maior crise de abastecimento da história do país no ano passado. Essas, embora importantes e algumas vezes gigantescas, têm muito menos valor do que as que se espalharam pelos estados em favor da Amazônia, da manutenção das bolsas de estudo da Capes, de salários iguais entre homens e mulheres, a favor da comunidade LGBTQI+, dos negros dos oprimidos, dos excluídos.
As pequenas demonstrações de dor e indignação que aconteceram no Rio em protesto pela morte da menina Ágatha, vítima de uma monstruosa imprudência policial, têm mais sentido e calam muito mais profundamente no coração do carioca do que todas as demais. Segurança, saúde, educação, meio ambiente, democracia, os temas são muitos e estão na pauta do dia. São eles que merecem cada vez mais atenção, debate e protesto. E a temporada de manifestações e protestos parece estar começando. O governo, com uma política dura, meio burra e absolutamente inflexível, já começa a ouvir o rufar dos tambores.
Que ninguém se espante se o próximo ano for repleto de manifestações dessa natureza. Claro que haverá aproveitamento político partidário em ano eleitoral. Sempre foi assim e seguirá sendo. Os caroneiros vão estar presentes nas filas às portas dos hospitais, em frente a escolas públicas caindo aos pedaços, no velório das muitas outras vítimas da política de segurança que morrerão em 2020. Mas os genuínos, os que estarão lá para expressar inconformismo e determinação, esses têm o poder de manter o país sólido e impermeável a autoritarismos.
Esses têm a força. Serão eles que gritarão por democracia e liberdade, contra a censura, sempre. A onda autoritária que varreu o país nas eleições de 2018 deverá ser confrontada no ano que vem. Prepare-se, Brasil, as manifs vêm aí.
Ascânio Seleme: Ainda pode dar certo
Apesar de todos os sinais em sentido contrário, este governo ainda pode dar certo. Não será fácil, é verdade, já que o presidente precisa seguir sem demora algumas orientações fundamentais, e como se sabe ele detesta orientações. A primeira e mais urgente premissa é interromper imediatamente o discurso belicoso da campanha que o levou para dentro do Palácio. Pode parecer simples, porque para isso basta uma decisão pessoal, mas não é para Bolsonaro, que passou toda sua vida parlamentar em permanente estado de guerra.
Outra medida vital é suspender a litigância com Supremo e Congresso. Em conflitos entre Poderes ninguém ganha. Em seguida, o governo deve se apoiar em seus bons ministros, como Paulo Guedes, Tereza Cristina e Tarcísio de Freitas. E se livrar o quanto antes de encrenqueiros como Abraham Weintraub e Ricardo Salles. Alguém falou de Ernesto Araújo, mas este pode ficar, porque se o presidente mudar seu discurso, ele se adapta rapidamente.
Para seu governo funcionar e tocar a pauta com a qual foi eleito, o presidente precisa calar seus filhos. E os filhos devem entender que calados ajudam muito mais ao pai do que falando besteiras pelos cotovelos. Não significa impedi-los de fazer política, claro que não. Este é um direito que lhes cabe, como a todos os brasileiros. Mas que se limitem à política partidária, uma vez que não têm amparo legal, autoridade ou competência para fazer política de governo.
É recomendado ainda que o presidente use a internet e as redes sociais de maneira ajuizada e de modo positivo. As redes podem ajudá-lo a governar e a atrair simpatizantes para seus programas. Do jeito que as tem usado, ele mantém aglutinados apenas os que jamais se dispersariam, e afugenta a maioria dos que um dia se posicionaram ao seu lado. Alguns auxiliares no Planalto dizem que ele age como uma galinha, que cisca para fora, e acham que ele ciscaria para dentro se usasse o Twitter de maneira inteligente.
Bolsonaro também deve controlar suas crises de ciúmes. Seria bom se ele entendesse que seu governo ganha quando um ministro ou um outro auxiliar mostra brilho próprio, destaca-se e apresenta resultados. O líder mais inteligente é o que consegue se cercar de auxiliares ainda mais inteligentes do que ele. Essa é uma das melhores receitas para o sucesso, e foi com ela que o sociólogo Fernando Henrique construiu o Plano Real, o mais bem sucedido plano econômico da História do Brasil.
Do outro lado, ajudaria também se as pessoas deixassem de sentir que o fim do mundo está chegando. O jornalista Tonico Ferreira me mandou a seguinte frase que separou do livro “21 lições para o século XXI”, de Yuval Noah Harari: “O primeiro passo é baixar o tom das profecias apocalípticas e passar de uma postura de pânico para uma de perplexidade. O pânico é uma forma de prepotência. Deriva da sensação pretensiosa de que sei que o mundo está indo ladeira abaixo. A perplexidade é mais humilde e, portanto, mais perspicaz”.
Verdade, há muita gente em pânico, mas a maior parte do país está apenas perplexa diante de um governo que esbraveja mais do que opera. Mesmo com o modo pânico em off, por vezes é muito difícil, inclusive para aqueles que querem apoiar o governo, encontrar motivação para isso. Só o presidente é capaz de mudar esse estado de espírito. Cabe a ele decidir como governará e se de fato governará. Se não mudar, esse será conhecido como o desgoverno Bolsonaro.
Ascânio Seleme: Mau humor e pessimismo
É histórico, dias bicudos geram pessoas bicudas. Todas as crises, não importa onde ocorram e qual seja a sua natureza, causam rebuliço no coração humano capaz de mudar dramaticamente o humor de cada um. São poucos os episódios na história da humanidade que produziram povos mais infelizes do que os europeus que viveram durante a agoniante e sanguinária Segunda Guerra Mundial, ou os africanos das nações colonizadas e escravizadas no século XIX. Quanto maior o drama, maior a crise, mais sombrio o povo. E deriva daí um mau humor sistêmico e um pessimismo contagiante. Viu-se isso ao longo dos últimos anos no Brasil, uma gangorra no humor e nas expectativas dos brasileiros.
Vivemos momentos de júbilo e esperança, como nos primeiros mandatos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Passamos períodos de incerteza, nos segundos mandatos de ambos, e de medo e ansiedade, nas administrações de Fernando Collor, Dilma Rousseff e Michel Temer. E em cada uma dessas temporadas, o humor nacional ia sendo moldado pelo ambiente político e econômico da ocasião. Não foi por outra razão que as pessoas saíram às ruas em 2013, no auge do desgaste de Dilma, no seu segundo e mais torturante mandato.
Nos pouco mais de dois anos de gestão de Temer, o país já estava dividido entre uns e outros e seu governo foi marcado por manifestações de repúdio. Esse quadro piorou ainda mais quando o presidente recebeu no Palácio do Jaburu o empresário Joesley Batista e com ele manteve a conversa em que produziu a famosa frase “Tem que manter isso, viu?”. Diante do quadro de incertezas no Brasil desde o segundo mandato de Lula, é justo afirmar que o brasileiro tem vivido inseguro nos últimos dez anos. Inseguro e intrinsecamente infeliz.
Quando uma nova eleição poderia recriar o otimismo no coração dos nacionais, o presidente que foi eleito no ano passado preferiu permanecer em campanha, mantendo permanente litígio com inimigos invisíveis e brandindo furiosamente contra castelos de fumaça. E o resultado é o que se vê no país. Um povo amargurado e indisposto. Mal-humorado e pessimista. O pessimismo, aliás, se reflete não apenas nas pessoas, mas em todo o tecido da sociedade. Na economia, o desânimo é visível. O governo de Jair Bolsonaro não empolga. Poucos mostram disposição para investir, o emprego não cresce, e a economia patina, anda de lado e em alguns setores recua.
Nas artes, o pessimismo tem reflexo até quando se olha para o futuro. O filme “Bacurau”, dos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, mostra uma pequena cidade no agreste pernambucano que em alguns anos vai dispor de tecnologia de comunicação de ponta, sinal de internet melhor do que no Alto Leblon, mas não terá água e esgoto sanitário. A educação será uma lástima, e os políticos serão tão esdrúxulos quanto aqueles hoje encarcerados em Bangu, na Papuda ou em Curitiba. Em alguns poucos momentos se experimenta certa euforia, mas ela é localizada e passageira. Como foi o caso da Bienal do Rio, que deu uma banana e um chega pra lá no prefeito-censor Marcelo Crivella.
No mundo não é muito diferente. A mistura de mau humor com pessimismo não é uma jabuticaba. O planeta busca soluções para inúmeros problemas, do aquecimento global à crise mundial de refugiados. E o que resulta disso aparece mais uma vez nas telas e nos livros. Em 2015, o escritor Michel Houellebecq publicou seu sexto romance, “Submissão”. Nele, a França se vê na contingência de votar no segundo turno das eleições presidenciais de 2022 entre Marine Le Pen, da extrema direita, e Mohammed Ben Abbes, um candidato muçulmano radical. Ben Abbes ganha a eleição e transforma a França. Para pior, muito pior, claro.
E o que dizer da série “Years and years”, do roteirista Russell T Davies, no ar na HBO? Ela trata de um futuro tão estarrecedor quanto o imaginado em “Bacurau” e “Submissão”. Há de tudo nos seis episódios da série. Gente que quer virar transumana, transformando sua consciência num software, perseguição a gays, negros e refugiados e governos que se tornam autoritários depois de eleitos pelo voto popular. No jornalismo não é muito diferente. Como produzir boa notícia quando a sua cidade, o seu país e o mundo experimentam uma onda depressiva que parece não ter fim?
Ascânio Seleme: ‘O senhor não pode errar’
Houve quem visse nas conversas de Augusto Aras com senadores um certo ar de independência do escolhido por Jair Bolsonaro para chefiar a Procuradoria-Geral da República. Confesso que enxerguei a coisa de maneira inteiramente oposta. Ao tentar argumentar a favor da liberdade que terá para exercer a função, que de resto lhe garante a Constituição, o nomeado acabou de maneira inequívoca mostrando quem vai mandar mesmo na PGR quando seu nome for aprovado pelo Senado.
A frase de Aras ao senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), captada pelo microfone do repórter cinematográfico Marcione Santana, da TV Globo, não mostra altivez do indicado e tampouco um aviso ao presidente de que, empossado, seria ele quem daria as cartas de maneira livre e soberana, como se supôs. Ao contrário, na afirmação gravada pela câmera do cinegrafista, Aras avisava a Bolsonaro que era melhor ele escolher para o posto alguém alinhado porque, de outra forma, não teria qualquer controle sobre a PGR.
Foi explícito. Aliás, nunca se viu antes de maneira mais clara um candidato à vaga de procurador-geral afirmando a um presidente da República por que é melhor ir logo escolhendo um dos seus para a função. A frase de Aras não deixa muita dúvida. “Eu disse ao presidente exatamente isso: presidente, o senhor não pode errar (...) porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem garantias constitucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar ou admitir a sua expressão. Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito”.
A percepção de que Aras estava sugerindo a Bolsonaro escolher um alinhado, como ele próprio, se traduz na expressão “o senhor não pode errar”. O procurador indicado não estava dizendo absolutamente que teria autonomia no cargo. Ao contrário. Faltou um complemento na frase, que seria mais ou menos assim: “O senhor não pode errar, melhor então nomear logo alguém que pense como o senhor e que não lhe traga surpresas desagradáveis, presidente. Se nomear um daqueles três da lista, terá aborrecimento na certa. Vai por mim”.
“O senhor não pode errar” significa mais ainda. Tem o dom de orientar um presidente da República em direção, vejam que paradoxo, ao erro. Ao sugerir que Bolsonaro escolha uma pessoa da qual não vá se arrepender depois, em quem ele não poderá “mandar ou desmandar”, o procurador recomenda que o presidente atente exatamente contra a autonomia que a Constituição estabelece para o Ministério Público e nomeie alguém que não lhe decepcione. Se ele “não vai poder mudar o que foi feito” depois, que se contorne o problema agora.
Nomear procurador-geral fora da lista tríplice não é nenhum crime. A lista tríplice foi uma invenção corporativa do Ministério Público, não prevista na Constituição. Desde 2003, um dos três mais votados pelos procuradores assume o comando da casa. Foi assim com Claudio Fontelles e Antonio Fernando (Lula), Roberto Gurgel e Rodrigo Janot (Dilma) e Raquel Dodge (Temer). Essa última foi a segunda mais votada, os demais chegaram em primeiro lugar. Antes deles, Fernando Henrique ignorou a lista dos mais votados e nomeou Geraldo Brindeiro, que chegara em sétimo lugar na eleição interna.
Brindeiro ficou na função por três mandatos e saiu carregando o triste apelido de “engavetador-geral da República”, por sentar em cima e não dar prosseguimento a ações contra o Executivo. É esse o risco que se corre agora. O alinhado Augusto Aras pode ressuscitar a velha prática de engavetar qualquer coisa que possa dar dor de cabeça ao chefe. Por isso ele recomendou: “O senhor não pode errar, presidente”.
Ascânio Seleme: Difícil escapar da bolsonarices
Carlos Bolsonaro exerceu no limite a tolerância da democracia
Queria escrever sobre outro assunto. Fiz até promessa de que nesta quinta não trataria de Bolsonaro. Tantos assuntos interessantes e importantes para serem discutidos, e a gente perdendo tempo com bolsonarices. A semana era boa para atender ao compromisso. O presidente seria internado para uma cirurgia reparadora na parede do abdome e ficaria fora de combate pelo menos até hoje ou amanhã. Perfeito, mamão com açúcar, cinco dias sem a palavra presidencial era um bom início. Já havia separado três ou quatro temas que poderiam ser objeto deste artigo. Mas, infelizmente, não, eles terão de esperar. Na ausência do pai, os filhos assumiram as bizarrices e me obrigaram a quebrar a promessa.
Cheguei a pensar em deixar pra lá. Afinal, que diferença faz o que diz o Carlos? E que importância tem o que o Eduardo porta na cintura? Nenhuma. São dois homens medíocres que só se destacam porque seu pai foi eleito presidente do Brasil. Ao contrário de Paulo Henrique, Fábio Luís, Paula e Luciana, filhos de presidentes que não se intrometiam nos assuntos do Estado, os dois, e mais o senador que empregou o Queiroz, se metem, e se metem muito. Já imaginou o tamanho da confusão se Paulo Henrique aparecesse ao lado do pai com uma pistola na cintura? Ou se Fábio Luís fosse ao Twitter dizer que a democracia atrapalha seu pai a implementar as mudanças de que o país precisa?
Ao dizer que a transformação que julga necessária para o Brasil não virá pela via democrática na velocidade almejada, Carlos Bolsonaro exerceu no limite a tolerância da democracia. Em qualquer outro regime, ele seria preso ou no mínimo teria seu mandato cassado se atacasse a base desse regime. O filho do presidente mais uma vez falou com o intestino, o que não surpreende mais. Se houvesse no Brasil força para interromper a democracia, o que não há, o primeiro a perder seria o próprio Jair Bolsonaro. Ou será que Carlos imagina que se daria um golpe antidemocrático para entregar ao capitão mais poder? Uma ruptura institucional só ocorreria com a deposição do presidente, deste presidente.
De resto, a declaração apenas reitera o desapreço que o Zero Dois e seus irmãos têm pelo contraditório (um deles sugeriu, antes da eleição, que o STF poderia ser fechado por um cabo e um soldado). Tão logo Carlos proferiu a asneira, as redes trovejaram sobre o filhote presidencial, e ele então voltou suas baterias contra quem? Contra os jornalistas. E tentou se explicar. Ficou ridículo. Nas suas palavras: “O que falei: por via democrática as coisas não mudam rapidamente. É um fato (...) O que os jornalistas espalharam: Carlos Bolsonaro defende a ditadura. Canalhas!”. Essa é a beleza da democracia. Até mesmo vilipêndios proferidos contra ela são por ela tolerados.
Todo mundo, à exceção dos que estão incondicionalmente com os Bolsonaro e não enxergam muito mais do que um palmo adiante do nariz, reagiu ao insulto proferido contra a democracia. Desnecessário, portanto, listar os que lamentaram a declaração desprezível. Mas vale a pena anotar o que disse um general, o vice-presidente Hamilton Mourão. Para ele, democracia, com capitalismo e sociedade civil forte, é pilar da civilização. “Temos que negociar com a rapaziada do outro lado da praça (referindo-se ao Congresso e à Praça dos Três Poderes), e com paciência”, disse Mourão ao responder sobre a infâmia de Carlos Bolsonaro.
No mesmo dia, outro filho, o Eduardo, foi visitar o pai no hospital. E o que fez o engraçadinho? Publicou um post em que está ao lado da cama do pai com uma pistola na cintura. Nossa, que medo. O filhote Zero Três estava lá para defender o patriarca… do que mesmo? Talvez de um outro ataque, imagino que imaginou. Além de sinalizar que a segurança oferecida pelo GSI não vale nada, ele parecia querer mostrar quem manda no pedaço. Nesse caso, estamos mesmo encrencados e em breve poderemos ter um outro problema. Se Eduardo passar pela sabatina do Senado e virar embaixador nos Estados Unidos, quem vai tomar conta de daddy ?
Ascânio Seleme: Perguntas, por que não?
Jornalistas que entrevistaram Greenwald fizeram o que sempre fazem
Jornalistas não podem ser amigos, companheiros ou colegas da sua fonte ou do seu entrevistado. Não podem defender as teses e objetivos de quem estão investigando. Jornalistas são treinados e são pagos para buscar elementos que não são óbvios à primeira vista. Os recursos de que dispõem são limitados. Numa reportagem, usam sola de sapato e cabeça para chegar ao seu objetivo. Numa entrevista, fazem perguntas. Nada além de perguntas. E, claro, todas as perguntas cabem, inclusive as duras, as desconfiadas e mesmo as inconformadas. Jornalistas são por natureza seres inconformados.
No início da semana houve uma enxurrada de críticas aos jornalistas que entrevistaram Glenn Greenwald, do site The Intercept Brasil, no “Roda Viva”, da TV Cultura de São Paulo. A maioria das críticas veio de gente que queria demonstrar posição, que reagiu como sempre na guerra política que traumatiza a nação, julgando os jornalistas como inimigos de uma causa. O raciocínio seria mais ou menos assim: Se Greenwald recebeu e divulgou conversas inapropriadas de Moro e Dallagnol, ele atacou a Lava-Jato e defendeu Lula. Se os jornalistas apertaram Greenwald, eles são a favor da Lava-Jato e contra o Lula.
Bobagem. Os jornalistas que entrevistaram o editor do site The Intercept fizeram o que sempre fazem. Perguntas. E o entrevistado as respondeu. Aqueles que criticaram os entrevistadores certamente esperavam um festival de levantamento de bola. Se decepcionaram porque jornalistas não podem levantar bola para entrevistado cortar. Quem faz isso é a mídia companheira e amiga. Nesse caso, pode ser mídia, mas não é jornalismo. O que se buscava no Roda Viva era o contraditório, por isso os jornalistas fizeram as perguntas que os internautas nas redes acharam abusadas.
O local para defender Glenn Greenwald certamente não é a bancada de um programa jornalístico na TV. Quem sintonizou o Roda Viva para ver loas ao The Intercept perdeu seu tempo. Já houve manifestação a seu favor por iniciativa de jornalistas. Mas ela ocorreu em local adequado e com argumentos irrefutáveis. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) realizou em sua sede no dia 31 de julho um ato em favor da integridade do jornalista (ele e seu marido foram objeto de ameaças anônimas), do direito ao sigilo da fonte e do livre exercício da profissão.
Greenwald é um jornalista que deu um grande furo e é respeitado por isso. As matérias que The Intercept vem publicando são esclarecedoras e, mais que isso, ajudam a tornar mais transparente o intestino do Poder Judiciário. Todos os presentes naquela bancada gostariam de ter recebido o pacote e dado eles o furo jornalístico. Claro. Mas isso não os impede de se colocarem do outro lado do balcão e fazer as perguntas que seriam a eles endereçadas, se fosse deles o furambaço. As perguntas foram feitas com respeito, como deveria ser, e foram muito bem respondidas pelo entrevistado. Nenhuma dúvida foi deixada no ar. E por isso a entrevista foi boa.
Entre as críticas aos jornalistas, ignorando aquelas velhas, bolorentas e retóricas, houve quem visse na entrevista um ataque ao Greenwald. Não consigo enxergar ataque nas questões que apenas procuravam clarear aspectos da reportagem que pode mudar o destino da maior operação anticorrupção já realizada no país. Não havia como não fazer aquelas perguntas. E tampouco interessava ali tentar tirar do entrevistado novidades sobre as conversas interceptadas. Já há um oceano de revelações sobre esses diálogos no Intercept e em outros veículos. O “Roda Viva” podia e devia mesmo abrir mão de ir por esse caminho.
Morto em 2020
Os números da pesquisa Datafolha revelam quem muito provavelmente estará morto em 2020. Os primeiros sintomas da doença fatal já devem ser sentidos na eleição do ano quem vem. A economia não anda como supunham os economistas do governo, os cortes orçamentários alcançam programas sociais e bolsas de estudo etc, etc, etc… e o presidente não anima ninguém. Ao contrário, Bolsonaro joga o país para baixo. Ele faz exatamente o oposto do que se espera de um líder, que deveria ser o animador do país, como foram Fernando Henrique e Lula.
Ascânio Seleme: Bolsonaro, líder parlamentarista
Na votação da Previdência, presidente já foi colocado de lado
Nunca um presidente da República trabalhou tanto pelo parlamentarismo quanto Jair Bolsonaro. Claro que de modo involuntário, Bolsonaro adora mandar. Por essa razão também, por gostar de mandar mas não saber exatamente como fazê-lo, é que cada vez mais o Congresso vai ganhando importância em detrimento do Palácio do Planalto. Na primeira experiência de entendimento com o Congresso, na votação da reforma da Previdência, Bolsonaro já foi colocado de lado, e a bola rolou sem sua interferência. Foi assim na Câmara e está sendo assim no Senado.
O presidente faz tanta lambança ao lidar com o poder que a cada dia parece mais inadequado para liderar o país. Um líder não despreza a nação como faz Bolsonaro. Eleito, a primeira medida deveria ser a de atrair os que lhe fizeram oposição nas urnas. Bolsonaro não apenas se lixou para estes como se afastou até mesmo daqueles que votaram nele apenas para evitar o outro. E assim segue desfazendo a política. Há algumas semanas rodou na internet uma fake dando conta de que o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, e o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, elaboravam “um golpe parlamentarista”. Era bobagem. Mas uma hora poderá deixar de ser.
O Brasil já foi parlamentarista uma vez para evitar dar a um vice-presidente o poder do titular que renunciara. João Goulart só tomou posse, com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, depois de aprovada uma emenda parlamentarista. A história do Brasil deveria servir de lição. Mas o governo Bolsonaro não gosta de lições, julga-se pleno. Goulart era um político de esquerda. Temia-se que, detendo o poder, transformasse o Brasil num satélite soviético. Por isso, ele quase não assumiu, e só o fez quando o Congresso lhe confiscou o poder. Depois acabou deposto, mas esta é outra história.
Hoje, temos um presidente de extrema direita, anacrônico, que se orgulha do seu anacronismo. E, mais do que isso, não passa um dia sequer sem exercitar com todas as cores e todos os verbos essa condição. O grave nesse caso nem são as bobagens que repete sempre que pode. O que importa é que ele atrapalha, e muito, o governo do Brasil, pátria amada. Nesse episódio das queimadas na Amazônia, deixou de cabelo em pé mais da metade de seu Ministério. Apenas os que o seguem de maneira cega e incondicional repetiram ou endossaram sua retórica.
O presidente também desrespeita instituições, atropela subordinados, agride chefes de Estado estrangeiros e já tentou legislar sem o Congresso. Seus ataques ao Judiciário e ao Legislativo passaram muitas vezes do limite democrático, e só foram interrompidos graças à boa vontade dos seus contendores. Suas broncas em ministros resultaram na demissão de uma meia dúzia em oito meses, e o vexame a que submeteu Sergio Moro entrará para a história. O ministro será lembrado como o maior engolidor de sapos de todos os tempos. Nem o ex-senador Cristovam Buarque, que Lula demitiu do Ministério da Educação pelo telefone, foi tão humilhado.
Já tratar com desrespeito o presidente francês Emmanuel Macron resulta de um capricho. Nenhum problema em confrontar Macron. Cabia classificar o seu discurso como tentativa de se recuperar de um mal desempenho político ou como resposta a cobranças de agricultores franceses. Podia até dizer que o francês deveria cuidar do seu quintal, que do nosso ele se ocuparia. O que Bolsonaro não podia era desrespeitar o líder francês e sua mulher. Tampouco podia afrontar Noruega, Alemanha e G-7, que há anos ajudam o Brasil. Em três semanas, Bolsonaro jogou pela janela quase meio bilhão de dólares.
Mas foi ao tentar mudar lei por decreto, como no caso da flexibilização da posse e do porte de armas, que Bolsonaro provou que não consegue ser do tamanho que o cargo exige. Foi um erro grosseiro, do qual ele depois pediu desculpas e disse que foi um equívoco. Ok, presidente. Mas duvido que alguém consiga ver equívoco mais absurdo do que esse. Mudar lei por decreto, francamente. Parecia aquela coisa do “se colar, colou”. Por isso, o que outro dia era fake, amanhã pode brotar como alternativa política.
Ascânio Seleme || Dois anos é muito
De onde vejo as coisas, não consigo imaginar que a estratégia tenha sucesso. A política de choque permanente com a opinião pública de Jair Bolsonaro é uma das mais conhecidas receitas para o fracasso. Mas, claro, o articulista pode estar enganado, dirão os que defendem o presidente. Pode mesmo. Acontecem coisas na política por vezes impensáveis, ou inacreditáveis. A própria eleição de 2018 prova esta tese. De todo modo, a história mostra que esse embate permanente só tem êxito se for acompanhado de resultados que mexam para melhor na vida das pessoas. E é isso o que está faltando. Não se veem resultados. Nem agora, nem no futuro imediato.
O PIB do primeiro semestre pode ser negativo. E os indicadores para o segundo não são melhores. O ministro Paulo Guedes falou que é preciso paciência e voltou a culpar o passado pela estagnação do país. E pediu, nas suas palavras, “um ano ou dois” para que as reformas sejam implementadas e o país deslanche.
É muito, ministro. Um ano ou dois pode ser um prazo razoável na economia, mas é uma eternidade na política. Em um ano haverá novas eleições, e em dois, o governo Bolsonaro estará entrando na sua fase final. Na fase do café frio.
A Argentina é exemplo de como as coisas podem desandar na política. O presidente Mauricio Macri vai sendo varrido pelo que Bolsonaro chama de “esquerdalha” simplesmente porque não cumpriu o que os argentinos esperavam dele e o que ele havia prometido para os argentinos. Ele não consertou a economia no prazo estabelecido pelo calendário eleitoral. No nosso caso, além de ver a economia patinando, o brasileiro já está cheio da retórica beligerante e falsa do seu presidente.
A mesma Cristina Kirchner que entregou um país em frangalhos a Macri deve voltar agora compondo uma chapa onde é a vice. No Brasil, se o efeito Orloff (“Eu sou você amanhã”) voltar a funcionar, perdurando este quadro de turbulência verbal, desconfiança geral e ineficiência administrativa, o PT, que também dilacerou a economia no maior escândalo de corrupção da história do país, pode muito bem surpreender. Num quadro desses, Fernando Haddad ganharia fácil. Até Dilma Rousseff, veja só você, poderia virar assombração.
E a economia não anda, como explicou Míriam Leitão ontem, porque oportunidades para capitalizar boas medidas são afogadas pelas crises criadas pelo presidente na porta do Alvorada. Com isso, ele corrói confianças, e as expectativas positivas dão lugar à estupefação, que gera o imobilismo. Há
um outro problema que Bolsonaro não enxerga. Falta-lhe o pragmatismo que sobra em seu herói Donald Trump. Trump, que também produz crises com seu blá-blá-blá incontrolável, adiou o aumento de tarifas sobre produtos eletrônicos chineses para evitar aumento de preços aos consumidores (eleitores) no Natal. Ano que vem tem eleição nos Estados Unidos. Aí, sim, vai ser a hora de bater na China.
O compromisso de mudar a “velha política” também virou fumaça quando o governo Bolsonaro bateu recorde de liberação de emendas parlamentares na véspera da votação da reforma da Previdência e quando o presidente indicou seu filho para a embaixada nos Estados Unidos. Na segurança, outro ponto forte da retórica presidencial, não se vê novidade. Ontem, no Rio, no enterro de um dos seis jovens mortos a tiros em diversos pontos da cidade, amigos e familiares levantaram faixa cobrando solução: “Presidente Bolsonaro, até quando vidas inocentes serão tiradas?”. Os familiares do menino Dyogo Xavier culpavam a polícia por sua morte, mas quem levou a bronca foi Bolsonaro.
De qualquer forma, claro que o articulista pode estar errado. Mas não custa lembrar lembrar que o efeito catalisador criado pelo mecanismo de conhecimento do eleitor concebido pela Cambridge Analytica hoje é de domínio público, significa que a oposição também pode usar, e os controles sobre os perfis dos usuários de redes sociais são bem mais rígidos. As pesquisas mostram crescimento constante da desaprovação do governo Bolsonaro, mas pesquisas muitas vezes erram. Saberemos mesmo como navega a nau bolsonarista no ano que vem, nas eleições municipais. E o tempo voa.
Ascânio Seleme: Lula precisa de cela especial
Bobagem. Não adianta querer negar, Luiz Inácio Lula da Silva é um preso especial. Não é preso político, como queremos petistas, obviamente não. Mas tampouco é um preso comum. Como ex-presidente da República, Lula tem direitos estabelecidos por lei. Mesmo que não os tivesse, a responsabilidade pública recomendaria tratamento especial no seu aprisionamento. Decidir sua transferência para o presídio de Tremembé sem antes se cercar de todos os cuidados possíveis é mais do que temerário. Fez bem o STF em negar provimento à decisão.
O direito do preso estaria assegurado com a transferência? Ele teria, como determina a lei, sala especial de alto comando? Em Tremembé não há sala nas condições adequadas para atendera um ex-presidente. Depois, a segurança do detento estaria garantida? Claro que não. A decisão da juíza Carolina Lebbos sequer assegura a ele uma sala exclusiva. “A cela poderá consistirem alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana”.
Apesar da impertinência da juíza, se a transferência se desse, muito provavelmente Lula ficaria em cela sozinho, mas não isolado. Todos os seus deslocamentos e suas saídas para banho de sol seriam feitos entre outros encarcerados. Lula poderia salivar e conquistar a moçada, ele é bom nisso, mas nada impediria que um preso enfurecido atacasse o ex-presidente. Imagine o transtorno político que um episódio desse geraria. Não é possível que juízes não avaliem todas as possibilidades ao tomarem decisões dessa magnitude. Lebbos não tomou. Tampouco o juiz corregedor Paulo Eduardo de Almeida Sorci, do TJ de SP, pensou nisso ao escolher Tremembé.
O sistema carcerário brasileiro é uma vergonha. Os presídios estão caindo aos pedaços. As instalações são tão inadequadas que episódio como o da chacina de 58 detentos na Centro de Recuperação de Altamira, na semana passada, é corriqueiro. Antes de Altamira, no Pará, houve massacres em presídios do Amazonas, de Roraima, de Rondônia, do Maranhão, do Rio Grande do Norte. Não, os casos não acontecem apenas nos estados do Norte e do Nordeste.
Lembre-se de Benfica, no Rio, em 2004, com 31 assassinatos. Ou o maior de todos, o do Carandiru, em São Paulo, com 111 mortos. Não é possível colocar Lula num ambiente destes. Ele é criminoso? Sim. Ele tem que cumprir sua pena? Claro. Mas em ambiente especial. E seguro.
Ao pedira transferência de Lula, ajuíza atendia pedido da Superintendência da Polícia Federal de Curitiba, que apresentou alegações ridículas. Lula estaria causando transtornos à instituição e à sua vizinhança. A PF diz que ali emite passaportes. Sim, e daí? Que está tendo despesas. Sim. E daí? E a vizinhança estaria incomodada pelo acampamento petista numa praça ao lado da sede da polícia. Sim, imagino que incomode mesmo. Sobretudo de manhã, quando às 8h os acampados começam a gritar “Bom dia, presidente”. Deve ser um saco. Mas, para resolver este problema, criar-se-ia outro igual, ou maior, porque inflamado, em Tremembé.
Lula é um criminoso comum. Foi julgado e preso por corrupção. Sua pena foi avalizada por três instâncias, e nada poderá mudar sua condenação. Nem mesmo o bate-papo virtual entre o juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol tornados públicos pelo conta-gotas do Intercept. Mesmo sendo um criminoso comum, Lula é um prisioneiro especial. A absoluta falta de visão política dos policiais que pediram a sua transferência e a dos juízes que decidiram atender ao pedido é estarrecedora.
Além de ter sido presidente do Brasil por dois mandatos, Lula é um ícone nacional. Como ignorar isso? Se não estivesse preso em 2018, Lula estaria no segundo turno da eleição com chances reais de ser eleito para um terceiro mandato. Em qualquer pesquisa que se faça, o ex-presidente aparecerá com apoio de pelo menos 30% dos brasileiros. Ao afrontar Lula, a Justiça alcança também este contingente que o apoia. Tirar Lula de Curitiba parecia, enfim, picuinha. Como se a cela especial da PF fosse um palácio. Ela tem cama, mesa, TV e banheiro. Bobagem.
Ascânio Seleme: Será que um dia ele aprende?
Parece que vai ser meio empurrado, mas um dia o presidente Jair Bolsonaro pode acabar aprendendo a governar. Ou comete um crime e cai. Melhor a primeira hipótese, o Brasil não merece mais um impeachment. Não falo por Bolsonaro, mas pelo país. Como já vimos duas vezes, tudo para enquanto o processo estiver em curso. E o país, que ameaça agora voltar a caminhar, não precisa de mais uma temporada de estagnação. Por ora, Bolsonaro vai sendo forçado a governar de acordo com as leis e a Constituição, às quais tem repulsa.
Já são muitos os episódios em que erros de governo produzidos por iniciativa presidencial foram corrigidos pelo Congresso Nacional ou pelo Supremo Tribunal Federal. A última correção foi humilhante e se deu por unanimidade de votos de um STF normalmente dividido, em que raríssimas foram as ocasiões onde todos os ministros votaram da mesma forma. Pois os dez ministros presentes na sessão de quinta-feira derrubaram a Medida Provisória reeditada por Bolsonaro transferindo para o Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas.
Os ministros não apenas impediram a iniciativa esdrúxula, mas disseram coisas como; “inaceitável transgressão constitucional”; “agressiva inconstitucionalidade”; “ofensa ao princípio da divisão de poderes”. O que Bolsonaro queria fazer era mais uma tentativa de atropelar o Congresso, que já havia derrubado MP com o mesmo conteúdo. A Constituição proíbe reedição de MPs porque elas entram em vigor no dia da sua publicação e só perdem o efeito se derrubadas ou ignoradas pelo Congresso depois de 60 dias. Reeditar MP significa, portanto, colocar em vigor legislação que o Congresso rejeitou.
O gesto representa um desafio ao Congresso, uma tentativa de usurpar os seus poderes constitucionais. Foi isso o que o governo quis fazer, e bateu com a cara na porta do STF. Bolsonaro tentou se explicar dizendo que foi um erro da sua assessoria, um erro dele próprio. Verdade, foi um erro. Mas não foi um engano, a medida visava isso mesmo, afrontar e ultrapassar o Congresso. Não há bobo no Palácio do Planalto, embora pareça haver. Ninguém da Casa Civil levaria ao presidente uma afronta tão clara à Constituição se não fosse incentivado pelo próprio chefe.
Nenhum problema no fato de o presidente pensar de maneira exótica e se comportar publicamente com modos pouco convenientes. São assim também alguns outros líderes mundiais bem conhecidos. O que não pode é o presidente agir acima da lei, o que seus pares esquisitos, dos Estados Unidos e do Reino Unido, por exemplo, não fazem porque conhecem seus limites. Inebriado pela nostalgia da ditadura militar, da qual se orgulha, Bolsonaro acha que pode ir empurrando tudo para além do razoável, do legal e do constitucional.
O presidente está muito próximo de cometer um crime de responsabilidade que poderia desencadear um processo de impeachment. Como ele mantém uma relação, vamos dizer, pouco harmoniosa com o Congresso, pode ter problema. Os seus seguidos erros se acumulam na mesma medida em que saem da sua boca bobagens que assustam e envergonham até mesmo seus eleitores. Nesse momento, Bolsonaro tem duas alternativas. A primeira é seguir nesse batidão e ir aguentando as consequências, até onde for possível. A outra é calar a boca e parar de afrontar os outros Poderes.
Ascânio Seleme: A segunda facada
Que país incrível esse Brasil. Quando você acha que já viu tudo, aparece uma gangue pé de chinelo invadindo celulares de juízes, procuradores, deputados, senadores, ministros de Estado, ministros de tribunais superiores, presidentes da Câmara e do Senado e até do presidente da República, para capturar dados e vendê-los no mercado obscuro da contrainformação. Enquanto nos Estados Unidos operações dessa natureza são objeto de sofisticadíssimos esquemas de espionagem, algumas vezes operados desde Moscou, os quadrilheiros brasileiros operavam em um fundo de quintal em Araraquara.
O resultado dessa invasão, que terminou em lambança e domina o noticiário há mais de um mês, paradoxalmente pode servir a Bolsonaro como uma segunda facada. O efeito do hackeamento sem paralelo nos celulares de autoridades ocorre no pior momento pessoal de Bolsonaro. As bobagens que vinha construindo com palavras e atos, como a ofensa aos nordestinos, a indicação do filho para a embaixada de Washington, a declaração sobre a fome e o ataque à Míriam Leitão, podem acabar lavadas e enxaguadas da memória pelo episódio.
Com a facada de Adélio Bispo, Bolsonaro ganhou a eleição de 2018. Com a “facada” desferida agora pelos hackers de Araraquara, ao presidente foi dada a chance de recuperar parte do prestígio perdido ao longo dos seis primeiros meses de governo, período em que produziu mais barulho e fumaça do que conteúdo de qualidade em que pudessem se agarrar aqueles que votaram nele para impedir a volta do PT ao Planalto. É muito cedo ainda para dizer aonde vai dar a investigação deste caso, mas neste momento Bolsonaro se transforma mais uma vez em vítima.
Segundo o hacker Walter Delgatti Neto, ele foi obtendo os números de celulares à medida que ia invadindo contas do Telegram. Curioso é ter chegado ao jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept, através dos telefones do ex-governador Pezão e da ex-presidente Dilma, aliados do ex-presidente Lula, que deveria ser o maior beneficiário do vazamento. Foi por aí que ele alcançou a ex-deputada Manuela D’Ávila, a quem disse ter procurado para contatar Greenwald. As investigações, que ainda engatinham, vão explicar melhor o depoimento de Delgatti e se ele de fato repassou de graça o pacote de dados do Telegram de Deltan Dallagnol para o site, como declarou à PF.
Parece encomenda política, tem cara de encomenda, uma vez que Delgatti não tem perfil de quem faz ação de natureza política. Ao contrário, ele responde por crimes de estelionato, furto qualificado, apropriação indébita e tráfico de drogas. Mas pode muito bem ter sido uma simples picaretagem de estelionatário. Mesmo assim, os efeitos favoráveis a Bolsonaro já estão plantados. Colateralmente, Moro também ganha, já que o foco passou para os criminosos de colarinho sujo. E perdem Lula e PT.
Nenhuma dúvida de que a ação dos hackers foi um atentado às instituições. Mas tampouco se pode negar que o escândalo acabou sendo um achado para Bolsonaro. Ao lado do benefício político causado pela sua vitimização, a de Moro e a de seu governo, o presidente colhe os louros pela reforma da Previdência, embora não tenha se empenhado por ela, e pela liberação de recursos do FGTS, apesar do limite de R$ 500. Tem ainda a seu favor o melhor resultado na criação de empregos desde 2014 e a recuperação de mais meio bilhão de reais desviados da Petrobras.
Mesmo tendo usado um cocar na quinta-feira, o que em Brasília é tido como um sinal de azar na política, Bolsonaro parece pronto para surfar uma onda de sorte. Resta saber até onde vai a investigação sobre os hackers e se a Polícia Federal vai de fato cumprir seu papel republicanamente. Qualquer erro na condução desse inquérito que resulte em parecer estar a serviço de Bolsonaro ou de Moro, e contra o PT, pode ser uma bomba atômica na reputação presidencial. E, claro, é preciso esperar um pouco para ver se Bolsonaro não vai queimar rapidamente esse capital acumulado com mais algumas das suas.
Ascânio Seleme: Deixem o Eduardo ir
Pensando bem, talvez seja melhor o deputado Eduardo Bolsonaro sair de Brasília e sentar praça em Washington. O Brasil vai perder tendo o Zero Três como embaixador nos Estados Unidos, nenhuma dúvida, mas alguém acha que nossa relação com Trump seria diferente caso um diplomata de carreira assumisse o posto? Ora, o chanceler Ernesto Araújo cuidaria de escolher um que fizesse exatamente o que Eduardo fará caso seja aprovado pelo Senado. Isso é, alinhamento automático e bajulação explícita. Este é o nome do jogo com os Estados Unidos.
Com Eduardo ou com um embaixador de carreira, o quadro será o mesmo. Se o Zero Três for o nomeado, poupa-se o Itamaraty de mais um vexame, o de trazer à luz outro Ernesto Araújo. Embora muitos diplomatas não se submetam de boa vontade ao “faça o que eu estou mandando”, é da natureza da profissão atender às orientações e obedecer à política externa determinada pelo presidente. Em que pese a carreira ser a que mais requer conhecimento técnico e habilidade política no serviço público, não seria tão difícil encontrar um nome que reflita a imagem curvada do chefe.
Nos Estados Unidos, além de dar uns tiros no quintal de Olavo de Carvalho, Eduardo vai fazer exatamente tudo o que se espera dele. Ou seja, nada, nada de mais. Ou nada além do que um embaixador de carreira faria. Vai participar de algumas solenidades oficiais, frequentar e oferecer recepções e coquetéis, receber autoridades brasileiras e bater continência para Trump e sua tropa. Em todos os assuntos. Sobre a sua colaboração com Steve Bannon, o ultradireitista que ajudou a eleger o presidente americano, não se deve esperar muita coisa. Ou alguém imagina que Eduardo vai manter agenda permanente para trocar ideias e ajudar Bannon a formular políticas? Não, o Zero Três tampouco é qualificado para isso.
Aliás, se lhe fosse perguntado, Bannon diria que, para os seus propósitos, Eduardo seria mais útil no Brasil do que nos Estados Unidos. Aqui, o deputado é um dos filhos do presidente. Tem poder. Nos Estados Unidos, será apenas mais um embaixador. Um novato. Ninguém se impressionará por ele ter a confiança do presidente do país que representa. Por definição, todos os embaixadores têm o aval do chefe de Estado. Sua experiência nos Estados Unidos talvez seja a única coisa que o destacará dos demais. Duvido que outro embaixador estrangeiro em Washington tenha fritado hambúrguer no Maine.
Em razão desse poder que detém no Brasil, talvez seja melhor Eduardo fora de Brasília. O presidente perderá uma das pontas do seu tripé familiar, o que será bom para ele e para o país. Para ele, porque um pouco de insegurança e medo pode ser útil. A insegurança obriga uma reflexão mais calma e cuidadosa. O medo impede aventuras, passos maiores que as pernas, decisões atabalhoadas tomadas sem ter todas as consequências bem medidas. Para a nação, a ausência do Zero Três significará menos ruído. O problema é que Zero Um e Zero Dois saberão muito bem fazer barulho sozinhos.
Os embaixadores de Witzel
Por falar em diplomacia, quer coisa mais inútil do que escritórios de representação estadual no exterior? Pode procurar, vai ser difícil encontrar. Pois o governador do Rio resolveu montar escritórios em Miami, Nova York, Paris, Londres, Lisboa, Madri, Berlim, Xangai e na Califórnia. Segundo Wilson Witzel, eles servirão para alavancar o turismo e melhorar o ambiente de negócios no estado. Bobagem, serão criados apenas para o governador mandar nove amigos e correligionários para o exterior, com status de secretário e por conta do contribuinte fluminense.
Inúmeros escritórios estaduais foram abertos e fechados no exterior ao longo dos anos, seja dentro de embaixadas e consulados ou fora deles. Os estados contratam pessoas que não conhecem as manhas do país, não entendem do assunto e não têm projeto, a não ser pessoal. A coisa simplesmente não funciona. E o que é pior, os governantes não aprendem com os erros do passado e os repetem, diz o jornalista e produtor audiovisual Antonio d’Avila, que morou 36 anos em Paris e viu diversas tentativas dessas, todas malsucedidas. Mas, no caso do Rio, tudo bem, afinal o estado está nadando em dinheiro.