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Ascânio Seleme: A democracia não é mais aquela

No Brasil, cidadãos de orientação política de direita estão da mesma forma equivocados sobre a democracia quanto os de esquerda

Tem muita gente festejando o resultado da pesquisa da Universidade de Cambridge que mostra descontentamento crescente com a democracia em todo o mundo. Segundo a pesquisa, 58% das pessoas entrevistadas em 154 países estão insatisfeitas com este sistema de governo. No Brasil, apenas 20% das pessoas ouvidas aprovam o regime democrático. Os que comemoram este péssimo resultado são aqueles que acreditam que um regime totalitário pode ser mais útil ao país, acreditando que um governo de força acabaria com a corrupção e a violência, entre outros problemas.

A História prova que eles estão enganados, e a pesquisa revela as limitações dos que pensam assim, não importando de que ângulo enxergam o cenário. No Brasil, cidadãos de orientação política de direita estão da mesma forma equivocados sobre a democracia quanto os de esquerda. Aqueles bolsonaristas que aplaudem de modo entusiasmado tanto os acertos do governo quanto seus erros grosseiros e antidemocráticos imaginam que um regime totalitário salvaria o Brasil. Da mesma forma, há lulopetistas que prefeririam um governo centralizador, sem o contraditório, sobretudo sem imprensa, como imaginou um dia José Dirceu.

Supor que um governo não democrático acabaria com a corrupção é o mesmo que acreditar que há democracia na Venezuela e que os generais de Maduro não são os mais corruptos da América Latina. Pensar que um regime fechado terminaria com a violência é tão absurdo quanto ignorar o poder global da máfia russa, a mais cruel e sanguinária do mundo.

A pesquisa mostra que as pessoas não confiam em regimes democráticos em razão dos sucessivos escândalos de corrupção e nepotismo que produziram, sobretudo na América Latina, pela sua incapacidade em lidar com a criminalidade e por se revelarem inúmeras vezes incompetentes na busca de soluções para crises econômicas. O problema não é apenas enxergar a democracia por esta ótica. Mais grave é imaginar que há solução mágica fora dela. No Brasil, por exemplo, a pesquisa demonstra que 37% dos entrevistados acreditam que um golpe militar resolveria os problemas de corrupção e seria capaz de reduzir os índices da violência urbana.

Rematada bobagem. Nostalgia da ditadura brasileira revela não apenas desconhecimento histórico, mas também ignorância antropológica, por ser impossível comparar qualquer dado dos anos 60 e 70 com seus similares de hoje. Para começar, o Brasil de 1970, por exemplo, tinha 93 milhões de habitantes, sendo que 42% viviam na zona rural. Hoje, o Brasil tem 215 milhões, e 85% habitam as cidades. São obviamente dois países distintos. Mesmo os que acreditaram cegamente no regime militar daqueles anos não conseguiriam explicar de que forma ele se cristalizaria em 2020.

No mundo, segundo a pesquisa da Universidade de Cambridge, o desencanto com a democracia cresceu exponencialmente na última década em razão da crise econômica de 2008, por causa da insolúvel crise dos refugiados, em razão da polarização política e pela falta de respostas dos governos em atender questões sociais urgentes. Claro que o regime de governo não é o culpado por estes problemas, mas os entrevistados não pensam assim.

Somam 2,4 bilhões as populações dos países ouvidos na pesquisa. China e Cuba obviamente não foram consultados. Da mesma forma que há quem apoie uma ditadura militar, há também quem defenda o modelo de meritocracia do Partido Comunista chinês, onde os melhores ascendem na burocracia chinesa depois de serem testados em várias instâncias administrativas. Outros acham perfeito o regime cubano, onde escolas e hospitais funcionam melhor que no Brasil e o acesso é universal. Tudo bem, mas tente discordar de uma decisão de um chefe de quarteirão em Havana. E vai ver como funciona o mercado popular de Wuhan.

Ecos da Samarco
As enchentes dessa semana em cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo mostraram efeitos do colapso da represa de Fundão, em Mariana, que ainda não tinham sido medidos. Em pelos menos duas cidades ao longo do Rio Doce, Governador Valadares (MG) e Linhares (ES), a enchente trouxe para as ruas toneladas de restos de minério de ferro que estavam depositados no fundo do rio. Em outras enchentes em Valadares, o que subia do leito do rio era areia, nunca ferro. O que parece ter ocorrido também é que a lama originada pelo desmoronamento da barragem da Vale em Mariana tornou mais raso o rio, além de selar o seu leito. O rio Doce que já estava quase morto, agora está vomitando ferro.

Preconceito, ainda
Um dos mais tradicionais clubes de São Paulo, o Harmonia, finalmente consentiu que uma sócia homossexual matriculasse sua companheira como dependente. Maria Tereza Neves de Andrade submeteu ao clube o nome de Gabriela Mandacaru Lobo. O Harmonia aceitou a filiação, mas na ficha de inscrição apagou com o velho liquid paper a designação que identificava a nova sócia como cônjuge da titular. No passado, a artista plástica Maria Bonomi foi desencorajada a se apresentar como companheira da fotógrafa Lena Perez, que já era titular de uma cota. Bonomi acabou entrando no Harmonia como sócia independente. Em outro clube de São Paulo, o Paulistano, caso semelhante só foi resolvido na Justiça, com ganho de causa para o casal gay que havia sido rejeitado pela direção.

Detalhe demais atrapalha
Um economista foi chamado pelo então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, para apresentar à presidente Dilma Rousseff uma tese que havia desenvolvido e que agradara ao ex-ministro. Dilma recebeu o documento com o arrazoado do economista amigo de Levy no domingo e na segunda mandou chamar o autor. O economista ficou muito mal impressionado com Dilma porque ela sabia detalhes e pormenores que só seria possível se tivesse passado horas estudando o documento. Na época, a economia do país já andava de marcha à ré e o processo de impeachment da presidente estava prestes a começar. Dilma não podia perder tanto tempo com aquele paper já que tinha coisas muito mais urgentes para tratar, decepcionou-se o amigo de Levy.

Guinness
Novo recorde mundial vai para José Vicente Santini, primeiro funcionário a ser demitido do serviço público duas vezes em menos de 48 horas.

Batizado de comunista
O dominicano Frei Betto, recém contratado pela FAO (órgão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) para desenvolver um projeto comunitário em Cuba, batizou três crianças no Palácio da Revolução de Havana, uma delas neta do presidente Díaz-Canel, o sucessor de Raúl Castro. Para quem achava que comunista comia criancinha, esta é a prova de que não as comem e de que alguns até as batizam.

Falta de coro
Parece exagero da Comissão de Ética da Presidência advertir o ministro Abraham Weintraub por ter dito que os aviões da FAB já transportaram mais droga do que os 39 quilos de cocaína apreendidos na Espanha. Ele escreveu o seguinte quando um sargento traficante foi preso em Sevilha, no ano passado, por transportar cocaína no Aerolula: “No passado o avião presidencial já transportou drogas em maior quantidade. Alguém sabe o peso do Lula ou da Dilma?”. Que falta de humor, gente. Está certo que Weintraub é “um desastre”, como avaliou o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, e deveria ser advertido pela super mancada do Enem e por outras muitas barbaridades que segue fazendo no MEC, mas não por essa piadinha boba.

Fake não salva
Uma semana antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) dar o alerta mundial sobre o coronavírus, o BlueDot, um sistema automatizado de informações sobre doenças infecciosas, já havia disparado o alarme. O sistema combina inteligência humana e artificial para monitorar dados em todo o mundo (sobretudo notícias de diversas fontes internacionais, especialmente sites jornalísticos) e prevenir que processos infecciosos se espalhem. Sempre, invariavelmente, o BlueDot se antecipa aos anúncios oficiais. O sistema poderia ser cem vezes mais eficiente e salvar mais vidas se pudesse usar as redes sociais para alimentar seus bancos de dados. Mas a falta de confiabilidade dos usuários e as fake news que eles produzem às toneladas impedem o seu uso. Mentira pode não matar, mas também não salva.

Perigo, perigo
Se você acha que o cheiro da água da Cedae melhorou, que seu gosto já não está tão ruim, impressão sua. É que você já está se acostumando com a porcaria. É aí que mora o perigo, e que fica maior ainda quando você começa a se acostumar com governante porcaria.


Ascânio Seleme: Não dá para tirar férias

Com o governo Bolsonaro é bom nunca relaxar

Você imaginou que em janeiro, com aquele calorzão que deixa todo mundo meio anestesiado, não iria acontecer nada, e saiu de férias. Quatro semanas depois, abismado, se deu conta de que perdeu assuntos quentíssimos que renderiam pelo menos uma dúzia de artigos e colunas. Você se esqueceu de que com o governo Bolsonaro é bom nunca relaxar. Foi da turma federal que saíram os casos mais esquisitos de janeiro, mas não se pode ignorar as boas colaborações de Crivella, Witzel e até de Lula. Vejamos.

CARNAVAL EM JANEIRO — Para começar, o prefeito Marcelo Crivella antecipou o início do carnaval para janeiro. Mudar o calendário de Momo foi um oportunismo político em ano eleitoral do bispo que odeia o carnaval. Além de deixar Copacabana irada, a festança fora de hora acabou em caos e violência.

ABSTINÊNCIA — A inacreditável Damares Alves recomendou abstinência de sexo como forma de evitar gravidez precoce. A ministra genial não conseguiu oferecer contribuição melhor para a educação sexual de jovens.

MUITAS LETRAS — O presidente Bolsonaro reclamou que livros didáticos no Brasil “têm muita coisa escrita”. Disse que é preciso suavizar. Pode? Pode. E, pior, anunciou que vai trocar letras por imagens da bandeira do Brasil. Prato cheio para um artigo.

EX-LULINHA — E o Lula sepultou oficialmente seu alter ego Lulinha Paz e Amor. Ele rejeitou recomendação do PT para moderar o seu discurso. O sapo barbudo voltou.

CENSURA — O desembargador Benedicto Abicair censurou filme do Porta dos Fundos. Mais um aloprado julgando sem o apoio da lei. A censura foi derrubada por instância superior. Dava ou não pano para manga?

DENÚNCIA VAZIA — O Ministério Público Federal denunciou o jornalista Glenn Greenwald por cumplicidade com hackeadores de celulares de Moro e companhia. Pior que isso, só a censura do Benedicto.

ÁGUA PODRE — Quem diria, até a água do Rio apodreceu. Uma certa geosmina invadiu o imprevidente Guandu e a água da Cedae ficou com gosto de ovo podre. Como a empresa é estatal, o governador Witzel exonerou um diretor da empresa. E só. Dias depois descobriu-se que a Cedae também estava despejando esgoto em lagoas do Rio.

CERVEJA MATA —E teve também a cerveja contaminada por substância tóxica que matou quatro pessoas em Minas Gerais. Era mesmo só o que faltava ao verão brasileiro.

MÃO NA BOTIJA —Soube-se que empresa de publicidade que pertence ao secretário de Comunicação da Presidência recebe dinheiro de emissoras que têm contratos com o governo. Bolsonaro passou a mão na cabeça do assessor Fabio Wajngarten: “Se houve crime a gente vê lá na frente”. Pois é, o presidente que ia acabar com a corrupção deixou esse caso para depois.

O NAZISTA —Descobriu-se um nazista no governo. Não foi resultado de investigação jornalística que escavou subterrâneos. O próprio nazista se desvelou ao repetir discurso de Goebbels numa rede social. O sujeito, cujo nome não merece ser citado, acabou exonerado do cargo de secretário da Cultura. E abriu vaga para a atriz Regina Duarte.

IMPRECIONANTE —O ministro da Educação, Abraham Weintraub, cometeu outro erro ortográfico num texto que redigiu em janeiro. O desta vez foi escrever a palavra impressionante com “c”. Doía só de olhar.

IMPRECIONANTE 2 —Foram os estudantes que descobriram erros na correção das provas do Enem. Trinta mil alunos foram prejudicados. Weintraub culpou a gráfica, e Bolsonaro disse que pode ter havido sabotagem. Francamente.

COISA DE POBRE — O ministro Paulo Guedes, que não podia ficar de fora do festival de besteira de janeiro, disse que “a maior inimiga do meio ambiente é a pobreza”. Pegou mal e ele ouviu de tudo, só faltou ser vaiado.

PECADO —Guedes anunciou também plano para criar o que ele chamou de “imposto do pecado”, cobrando taxas extras sobre tabaco, álcool e açúcar. Bolsonaro vetou a ideia dizendo que ninguém vai “aumentar imposto da cerveja”.

ANTIÉTICO — E, finalmente, o governador Witzel divulgou telefonema com Mourão e foi chamado de antiético pelo vice-presidente. Constrangimento maior não se viu em janeiro.

É dura a vida do jornalista.


Ascânio Seleme: O golpe de Trump

Políticos encrencados e acuados ficam tão óbvios que se tornam vulgares, comuns

Não tenho a menor pretensão de querer substituir Dorrit Harazim ou Demétrio Magnoli, dois dos melhores comentaristas da política internacional do GLOBO, mas tampouco resisto a dar meu pitaco no processo de impeachment de Donald Trump. De todo modo, vou tratar do caso pelos pontos que o aproximam de nossa própria história política. Começando pela delícia de carta que o presidente dos Estados Unidos mandou para a presidente da Câmara, deputada Nancy Pelosi.

O documento mostra a fúria conhecida de Trump, mas isso pouco importa. O interessante é como esta ira se parece com a que vimos aqui no Brasil no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Separei alguns trechos da carta que parece terem sido tirados de discursos e pronunciamentos de Dilma, Lula e de inúmeros parlamentares do Partido dos Trabalhadores que tomaram as tribunas da Câmara e do Senado para protestar.

“Isto não passa de um golpe de Estado ilegal e partidário”. Quem disse isso? Todos os petistas se referiam assim ao processo de impeachment de Dilma. Mas a frase reproduzida literalmente é de Trump na carta a Pelosi. “É um abuso de poder inconstitucional sem igual na história”, escreveu o presidente americano lembrando o “nunca antes na história desse país”. Trump refere-se ao processo como “um juízo político (...) uma guerra contra a democracia”. Mesmos termos, quase literais, usados pelos defensores de Dilma.

Na carta, Trump alega ser tudo uma “invenção, produto da imaginação (dos democratas)”. O partido, segundo ele, “incapaz de aceitar o resultado das urnas de 2016 (...) tenta há três anos mudar a vontade do povo e anular seus votos”. Se alguém encontrar alguma semelhança mais clara entre o discurso do PT e o de Trump, só o fará na carta enviada a Nancy Pelosi. Aliás, esse ponto é repetido de outra forma, mas com os mesmos argumentos petistas: “Seu objetivo é desfazer as eleições de 2016 e roubar as eleições de 2020”.

O presidente dos EUA diz que os democratas estão desesperados em razão do sucesso de seu governo, e usa o maior de todos os parágrafos da carta para enumerar resultados econômicos e políticos da sua administração. Vimos isso por aqui também, com a mesma eloquência. Também não faltou no documento endereçado à presidente da Câmara momentos de autopiedade, que também presenciamos no passado recente. “Desconhecem e não se incomodam com a dor e com os danos causados aos integrantes maravilhosos e carinhosos de minha família”, disse ele.

Outros pontos falam em “calúnia e difamação contra uma pessoa inocente”; “usam cálculos políticos pessoais”; “demonstram desprezo aos eleitores e à ordem constitucional”; “nenhuma pessoa inteligente acredita nisso”; “vamos acertar contas em 2020”. A defesa de Dilma usou os mesmos argumentos e a mesma ameaça. De nada adiantou. Dilma foi afastada, e o acerto de contas prometido não ocorreu, como se viu. Claro que no intervalo o maior líder do partido foi condenado e preso.

Essas semelhanças entre a carta de Trump e os argumentos petistas em favor de Dilma não significam que o presidente americano e seu partido se pareçam politicamente com o PT. Claro que não, muito pelo contrário. Elas apenas demonstram que políticos encrencados e acuados ficam tão óbvios que se tornam vulgares, comuns, iguais uns aos outros, pouco importando sua orientação partidária.

Mas, apesar de todas as similaridades, há uma diferença fundamental entre os processos de Dilma e de Trump, fora o objeto da denúncia, inteiramente distinto. O da brasileira resultou no seu impeachment, o do americano não passará pelo Senado. Não há a menor possibilidade de os senadores republicanos endossarem o afastamento proposto pela Câmara. Para aprovar o impeachment são necessários 77 dos 100 votos da casa. Os republicanos têm 53 cadeiras. Os democratas não conseguirão sequer a maioria simples.

Aliás, impeachment como no Brasil, nem no país que inventou a modalidade. Nos Estados Unidos, esta é a quarta tentativa de afastamento de um presidente. As três anteriores naufragaram no Senado. No Brasil varonil, os dois processos abertos resultaram no impedimento dos presidentes Collor e Dilma.


Ascânio Seleme: Desamor à cultura

Não há na História da humanidade uma civilização que tenha se destacado no tempo, restado na lembrança dos seus povos e nos livros de História como paradigma, sem ter aliado à sua jornada política uma produção cultural exuberante. Foi assim na Grécia. Foi assim no Egito e em Roma. No Império Britânico, na Rússia imperial dos Romanov e na China da dinastia Ming. Os regimes que sufocaram a cultura acabaram desaparecendo da memória afetiva da coletividade. É esse o destino que acabam encontrando todos os governos que enxergam na cultura uma adversária a ser derrotada.

Governos têm entre suas atribuições formais o fomento à cultura. Evidentemente o Estado não precisa produzir minério ou petróleo, nem fabricar parafusos ou pregos. Tampouco cabe ao Estado gerir teatros, casas de show ou cinemas. Mas é da sua competência incentivar as manifestações culturais do seu povo. Estados pobres não dão dinheiro ao autor e ao produtor de cultura, mas os incentivam por meio da redução de impostos. Governos pobres e engajados direcionam seus incentivos para os companheiros ideológicos. Governos pobres, engajados e burros não dão dinheiro, não incentivam e ainda atrapalham a produção cultural.

Esse parece ser o caso do governo Bolsonaro. O governo que torpedeou a Lei Rouanet, desidratou os cofres de estatais, como a Petrobras, que já foi a maior fomentadora cultural do país, e fez na área as nomeações do que havia de pior. A política de terra arrasada virou sua marca registrada. Ninguém se salva no agrupamento formado para gerir a cultura nacional. São tipos parecidos com personagens de história de terror ou de piadas preconceituosas, na melhor das hipóteses.

Eleito numa avalanche parecida com a que levou Fernando Collor para o Palácio do Planalto em 1989, Jair Bolsonaro também se assemelha politicamente com o antecessor. Collor odiava os artistas porque a maioria apoiou Lula na eleição. Parece ocorrer o mesmo agora. O presidente olha para os artistas e, míope, só vê inimigos. Ato contínuo, passa a agredi-los em todas as linhas. Sua artilharia anticultural é tão pesada quanto aleatória. Basta alguém ter uma ideia que cause dano ou ofenda a produção cultural para que seja adotada.

Foi assim com a Medida Provisória do Turismo ou com o fugaz projeto de banimento de cantores, músicos, produtores culturais, DJs, professores de artes e humoristas do programa de Microempreendedor Individual (MEI). O projeto era tão absurdo quanto estúpido. Absurdo, porque jogaria na informalidade um contingente enorme de pessoas. Burro, porque impediria essa turma de recolher imposto de renda e contribuir para o INSS. O projeto foi retirado porque o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, prometeu derrubá-lo no plenário imediatamente após sua apresentação.

AMP do Turismo, no entanto, está em vigor apesar de toda a gritaria contra. A medida isenta hotéis, spas e navios de cruzeiro do recolhimento de direitos autorais de músicas tocadas em seus aposentos. Alega que quartos de hotéis e similares são ambientes privados, contrariando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que os considera como locais públicos de uso privado. O fato é que os autores musicais estão impedidos de receber pela execução de sua sobrasem hotéis e similares enquanto vigorara MP. Segundo o ECAD, são R$ 110 milhões amenos por ano nas contas de mais de 380 mil artistas que recebem direitos autorais no Brasil.

Por que medidas como essas são editadas? Por que pessoas como Roberto Alvim e Dante Mantovani são nomeadas para cargos-chaves da gestão cultural? Certamente não se deve ao amor pelas artes.


Ascânio Seleme: Exemplo de tolerância

Nenhum problema quando um chefe de Poder Executivo discorda do teor de determinado conteúdo jornalístico. Para isso ele, e todos, tem sempre o direito de resposta. E, pela natureza do cargo que ocupa, seu canhão de comunicação pode muito bem contestar a informação publicada e tentar provar que ela está errada. Se a informação estiver errada, com certeza veículos profissionais, como “Folha de S.Paulo”, TV Globo ou O GLOBO, farão imediatamente a correção. Assim é que se faz nas democracias. Se a denúncia for exata, o negócio é corrigir o erro e pedir desculpas, quando couberem.

O grande escândalo do governo de Michel Temer trouxe também uma excelente história de tolerância, de respeito à democracia e de convivência democrática entre imprensa e poder público. Quem não se lembra da reportagem de Lauro Jardim, no GLOBO, mostrando com detalhes um encontro sombrio entre o então presidente e o empresário Joesley Batista? Não houve até aqui no governo Bolsonaro um escândalo de tamanha dimensão. E o que Michel Temer fez contra a imprensa depois da denúncia que repercutiu em todos os veículos de comunicação e se estendeu pelo resto de seu mandato? Nada.

Temer tentou por todos os meios lícitos provar que o encontro no Jaburu não tinha nada de mais. Que não deu carta branca a Joesley, nem o incentivou a manter calado o ex-deputado Eduardo Cunha ao falar a famosa frase “Tem que manter isso, viu?”. E mais, mesmo debaixo de um verdadeiro dilúvio político, o presidente seguiu dialogando com jornalistas e recebeu repórteres, colunistas e editores do GLOBO no Palácio do Planalto para conversas absolutamente republicanas. Recebeu até mesmo Lauro Jardim, o autor da reportagem que quase encerrou o seu mandato. Foi uma conversa respeitosa seguida de almoço.

Desde a posse de Bolsonaro, vemos quase diariamente diversas modalidades de agressão à imprensa. Já estão contabilizados mais de cem ataques furiosos do presidente contra jornais e jornalistas. Os dois mais recentes foram o faniquito contra a TV Globo, no final de outubro, e a suspensão de assinaturas seguida de boicote à “Folha de S.Paulo”, anunciado na semana passada pelo Palácio do Planalto. Nos dois casos, o que se viu foi uma reação extravagante a reportagens que desagradaram a Sua Excelência.

O nome disso é intolerância. Nenhuma novidade em se tratando do capitão. Ele nunca escondeu que é assim mesmo que pensa e é dessa forma que sempre reagiu, desde seu primeiro mandato como deputado federal. Se nunca foi freado por seus atos antidemocráticos no Congresso, por que haveria de ser no Planalto? Com esta pergunta respondida, Bolsonaro avança com sua regra agressiva e criminosa. E, até agora, nenhum poder pisou no freio. O Congresso finge que não é com ele. O Supremo faz ar de paisagem.

Por isso, pela impunidade, a escalada contra a imprensa do presidente segue e gera filhotes, todos perigosos. Alguns ridículos. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, é um desses clones patéticos de Bolsonaro. Na segunda-feira, depois de O GLOBO publicar matéria com a denúncia de um doleiro preso sobre o balcão de negócios de Crivella, o prefeito imitou seu superior e chamou os repórteres de patifes e canalhas. Na terça, proibiu O GLOBO de participar de uma entrevista coletiva sobre o réveillon deste ano. Trata-se de um despropósito. O prefeito imagina que a prefeitura é sua casa e que pode determinar quem nela entra e quem não entra.

Se Bolsonaro pode fazer qualquer barbaridade, por que eu também não posso?, deve ter se perguntado o bispo-prefeito com aquela sua cabeça rudimentar. Do outro lado da montanha, cansamos de ouvir as ameaças do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra veículos de comunicação. Ele já disse, mais de uma vez, que se um dia voltasse ao poder faria o controle externo da mídia, nome de fantasia de censura à imprensa. A sanha antidemocrática alcança da mesma forma as duas extremidades do espectro político.

O capitão, o bispo e o sindicalista deveriam mirar-se no exemplo de Michel Temer.


Ascânio Seleme: Presidente desestimulado

Ao declarar que as pessoas estão sendo cada vez mais desestimuladas para concorrera cargos públicos em razão dos aborrecimentos coma Justiça que podem ter ao final de seus mandatos, Jair Bolsonaro defendeu uma tese que se ouve repetidamente em Brasília. Sobretudo por políticos que preferem operar no escuro que à luz do sol. O presidente falou em uma cerimônia no Tribunal de Contas da União. O que pareceria uma crítica, era mesmo uma crítica. O chefe da Nação se queixava do excesso de rigor dos órgãos de fiscalização da gestão pública.

É verdade que ao longo dos anos o Estado brasileiro foi criando mecanismos extrafortes para conter avanços privados sobre os cofres públicos. Mas a montanha de leis, regras e normas que cercam e protegem o Erário nacional tem pelo menos uma boa razão para existir: o Brasil ocupa a 105º posição no Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, que investigou 180 países no ano passado. Estamos mal, mas já estivemos pior.

O presidente fez a queixa no discurso de abertura do 3º Fórum Nacional de Controle, realizado na sede do TCU em Brasília. Ele disse que tem visto políticos, especialmente em cargos executivos, que acabam tendo de prestar contas à Justiça depois de cumprida a sua gestão. Segundo Bolsonaro, são “colegas que de boa-fé exerceram o seu mandato, mas não com muito zelo e muitas vezes por desconhecimento se veem enrolados coma Justiça e muitos levam 10,15,20 anos para voltar a ter paz, isto não é fácil ”.

Pois é, o primeiro erro na frase do presidente foi afirmar que servidores de boa-fé acabam tendo dedar explicações à Justiça por não exercerem com zelo a
atividade pública. Se o trabalho não foi feito com zelo, não há boa-fé que dê jeito. Claro que a falta de cuidado na gestão resulta em má aplicação de verbas, em desvios, em roubalheira. No serviço público, o servido ré processado. No setor privado, o empregado desleixado é demitido.

O segundo erro foi dizer que servidores muitas vezes erram por desconhecimento. Ele não mencionou que desconhecimento, mas acho que se referia a leis. É óbvio que o funcionário público, eleito para um mandato ou concursado para uma vaga, tem obrigação de conhecer as leis que balizam a sua atuação.

Para fortalecer o seu discurso, Bolsonaro disse ao plenário reunido no TCU estar vendo um cenário de poucos candidatos para as prefeituras nas eleições do ano que vem em razão dos “problemas” por ele mencionados. Não se sabe de onde ele tirou esta constatação, já que o prazo para registros de candidaturas sequer foi aberto ainda. O fato é que na visão do presidente está havendo um “desestímulo” para a entra dano cenário de novos políticos em razão do excesso de regras de controle.

“Todo dia são dezenas de novas normas, novas recomendações, é praticamente impossível agente tomar pé de tudo e poder governar dessa maneira”, disse a uma plateia formada basicamente por mulheres e homens cujo trabalho é justamente fazer valer as regras, normas, recomendações ele isque protegemos recursos públicos.

Não se pode afirmar que Bolsonaro defende menos controle para poder tirar daí qualquer vantagem pessoal ou política. Aparentemente, o discurso do presidente foi sincero, ele gostaria mesmo de ter menos entraves para governar com mais liberdade e menos sobressaltos. Talvez seja mesmo o caso de reduzir ou uniformizar alguns procedimentos que facilitem o trabalho do servidor público. Para isso existe o Congresso Nacional. O próprio Executivo pode tomar iniciativas nesse sentido, e os órgãos de fiscalização também podem contribuir.

Mas enquanto isso não ocorrer, há bons exemplos na História do Brasil paras e prosseguir na política enfrentando o mar revolto da fiscalização. Aqui vão três: Itamar Franco, prefeito de Juiz de Fora, senador, governador de Minas Gerais e presidente do Brasil, saiu de todos os cargos como entrou, de cabeça erguida. Fernando Henrique, professor universitário concursado, senador, ministro de Estado e presidente, não tem qualquer aborrecimento coma Justiça. Miro Teixeira, deputado federal por mais mandatos que Bolsonaro, não deve nada a ninguém.


Ascânio Seleme: Servidores desnecessários

São sem-número os exemplos de funcionários públicos que trabalham para governos e não para o Estado. Me refiro aos que foram contratados para servir o país e funcionam apenas em favor do governante, de sua causa, em prol de sua reeleição, protegendo os seus aliados, atacando seus adversários, escondendo os seus erros, enaltecendo muito além da verdade as suas virtudes. No Brasil, este tipo de servidor faz parte da história da burocracia nacional desde a proclamação da República.

Funcionários que desrespeitam a sua condição de servidores da Nação e dos cidadãos são maus funcionários. No governo Bolsonaro eles ocupam todo tipo de função, do escalão mais primário até o núcleo íntimo do presidente, e não estão somente no Executivo. Espalham-se pelos outros poderes e trabalham sempre em favor do resultado político do governo, e não pelo sucesso de políticas governamentais.

Nos governos de Lula e Dilma eles também estavam muito bem alojados em todos os quatro cantos da administração. Da mesma forma ocupavam cargos em outros poderes e tinham o mesmo objetivo, operar exclusivamente em favor do lulopetismo. Eles não se incomodam em trair as expectativas dos brasileiros, se essa for a orientação do seu superior, e não acrescentam uma vírgula que represente ganho ao contribuinte que paga os seus salários. O Brasil não precisa desse tipo de servidor.

O aparelhamento petista da máquina administrativa federal, que foi desmontado após o impeachment de Dilma, vai dando agora lugar a outro aparelho, o bolsonarista. Ambos são nocivos aos interesses do Brasil e dos brasileiros. Um exemplo de como este tipo de funcionário se excede aconteceu no mensalão. Ao deixar o partido, por ver o PT se afastar “dos ideais éticos e morais”, o jurista Hélio Bicudo foi brindado com a seguinte postagem de um assessor de Lula: “Bicudo prova que não existe idade para uma pessoa se tornar um bom fdp”.

Muito parecido com o que faz agora um bando de moleques instalado no Palácio do Planalto operando redes de achincalhamento político. Esses operadores usam robôs para espalhar elogios a Bolsonaro, bater palma para toda barbaridade proferida pelo presidente, seus filhos, seu guru ou seus ministros ideológicos, e atacar com ofensas de baixo nível qualquer um que pense de maneira diferente.

O mais emblemático servidor que trabalhou para o governante e não para o país foi Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas. Nomeado para cuidar da segurança pessoal do chefe do Estado brasileiro, Fortunato virou o seu faz tudo, seu braço direito. Era tão fiel a Getúlio, e não ao Brasil, que resolveu trocar o papel de guarda-costas do presidente para o de agressor dos inimigos do chefe. Deu no que deu.

O Brasil está farto de servidores que atendem ao privado e não ao coletivo. Embora inúteis e desnecessários, estão incrustados no Executivo, no Legislativo, no Judiciário e no Ministério Público. A promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho, que vestiu a camisa de Bolsonaro, posou para foto ao lado do deputado que destruiu uma placa com o nome de Marielle Franco, e depois julgou-se isenta para fazer parte da equipe de investigação do assassinato da vereadora, é funcionária desta categoria. Carmen Eliza é desnecessária.


Ascânio Seleme: Os discursos do Lula

Ao sair da cadeia, na semana passada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pronunciou dois discursos. Um no acampamento petista em frente à sede da PF, em Curitiba, e outro no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo. Separei alguns trechos que mostram como funciona o raciocínio de Lula quando a verdade não é a questão mais importante. Acrescentei breves comentários.

Um. “Preciso resistir à canalhice que o lado podre do Estado brasileiro fez comigo e com a sociedade brasileira” — Frase repetida nos dois discursos, pouco antes ou pouco depois de dizer, nos dois momentos, que “aos 74 anos não tenho o direito de ter ódio no meu coração”. Lula também quis confundir a sua figura com a da sociedade brasileira.

Dois. “Quero cumprimentar nosso quase presidente, se não fosse roubado, Fernando Haddad” —Difícil dizer de onde ele tirou isso. Ele falou a frase em Curitiba. No discurso de São Bernardo disse o seguinte: “Esse cidadão (Bolsonaro) foi eleito. Democraticamente nós aceitamos o resultado da eleição”.

Três. “Quero cumprimentar os advogados e também os tesoureiros do PT, Emílio de Souza, futuro prefeito de Osasco. Quero cumprimentar o companheiro Lindbergh, nosso exsenador e, quem sabe, nosso futuro não sei o quê” — Ao mencionar os tesoureiros, citou apenas um e esqueceu os três ou quatro que foram presos. Sobre o futuro de Lindbergh, é difícil entender o que Lula quis dizer.

Quatro. “Eu quero lutar para provar que existe uma quadrilha, um bando de mafiosos no país, e essa maracutaia que fizeram para tentar, liderados pela Rede Globo, criar a imagem de que o PT precisava ser criminalizado e o Lula era bandido” — Não foi a Globo que reuniu em quadrilha um grupo de partidos amigos para assaltar a Petrobras e outras empresas públicas.

Cinco. “Eu poderia ter ido a uma embaixada, eu poderia ter ido a um outro país, mas eu tomei a decisão de ir lá (se entregar à PF) —Lula disse isso no discurso de São Bernardo do Campo, deixando claro que poderia ter fugido e que chegou a cogitar a possibilidade, mas afinal decidiu se entregar.

Seis. “O Dallagnol montou uma quadrilha com a força-tarefa da Lava-Jato, inclusive para roubar dinheiro da Petrobras e das empreiteiras” — Fala sério. Quem roubou dinheiro, muito dinheiro, da Petrobras, todos sabem, Lula também, não foi o Dallagnol. E roubar dinheiro das empreiteiras… de onde ele tirou isso?

Sete. “Quando eles (MP e PF) foram às 6h na casa da Dilma, a Rede Globo já estava lá, desde as 5h30 da manhã, porque é puro show” — Normalmente, as operações da PF são comunicadas na véspera para jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, com embargo. Diversos veículos estavam lá. Não se tratou de show, mas de transparente cobertura jornalística.

Oito. “Ele (Bolsonaro) tem que explicar como é que construiu um patrimônio de 17 casas. Eu fui deputado, eu fui presidente, e se me virarem com a bunda para baixo não vai cair uma moeda do meu bolso” —Será que as pessoas acreditam mesmo nessa declaração? Só se levarem em conta que o patrimônio do Lula foi congelado pela Justiça para futuro ressarcimento aos cofres públicos.

Nove. “Eu sou hoje um cara que não tem emprego, presidente (que) não tem aposentadoria, não tenho televisão no meu apartamento. Minha vida tá toda bloqueada” —De certa forma, esta frase, dita um um pouco antes no mesmo discurso de São Bernardo, explica a anterior. Agora, francamente, Lula não tem um aparelho de TV em casa?

Dez. “Não é possível que a gente viva nesse país vendo cada dia os ricos ficarem mais ricos e os pobres ficarem mais pobres” — A distribuição de renda é um dos grandes problemas do país, Lula tem razão. Mas ele não lembrou no discurso que os ricos ficaram muito mais ricos no seu governo, sobretudo os banqueiros.

Onze. “Fui obrigado (na cadeia) a ver a televisão aberta. A TV do Silvio Santos é uma vergonha. A Record tá uma vergonha, e a Globo continua a mesma vergonha. A Globo até agora não colocou uma matéria da Intercept denunciando a Lava-Jato” — Não gostar das TVs é prerrogativa do telespectador, mas mentir sobre publicação de reportagens a que o Brasil inteiro assistiu é constrangedor.


Ascânio Seleme: Lula inocente e livre

Lula foi o primeiro e mais importante beneficiário da decisão do Supremo Tribunal Federal em proibir a prisão depois da condenação em segunda instância. Sua libertação se deu em cadeia nacional de TV e pipocou em todas as redes sociais. Foi o único assunto da sexta-feira no Brasil. Lula saiu da cadeia com base na decisão do STF, mas também poderia ter saído pelo cumprimento de um sexto da pena, de acordo com o Código do Processo Penal.

A forma que se deu a liberdade do ex-presidente, porque seu caso ainda não transitou em julgado, serve muito mais aos planos políticos do líder petista. Significa, em outras palavras, que ele ainda não foi condenado. Lula é inocente, estabeleceu a decisão do STF. E como inocente vai percorrer o país e liderar um movimento em favor da sua corrente política e, muito mais importante, vai trabalhar contra o governo Bolsonaro. Ao deixar a prisão, Lula se transformou imediatamente em um rival de tamanho e peso que até aqui Bolsonaro não tinha visto.

É cedo para dizer qual será o resultado do retorno de Lula ao cenário político. Mas será importante. Muito importante. Ninguém pode negar ou fingir desconhecer a estatura do ex-presidente. Mesmo preso, teve força suficiente para colocar o ex-prefeito Fernando Haddad no segundo turno da eleição presidencial do ano passado e ainda obter quase 45% dos votos no segundo escrutínio. Não é pouco. Ninguém na oposição se compara a Lula.

Mesmo não sendo capaz de alterar a correlação de forças no Congresso Nacional, Lula livre muda inteiramente a retórica política nacional. O discurso da oposição, que de resto parecia não ter existido até aqui, será “nitroglicerinado” ao ponto da combustão com Lula nas ruas. Será impossível ignorar a sua presença. Mesmo sem mandato e apesar de estar respondendo a seis inquéritos, inclusive o do tríplex do Guarujá, o ex-presidente se transformará imediatamente no principal articulador anti-Bolsonaro do país.

O barulho que se ouviu ontem e se ouvirá nos próximos dias será igual ao que se produziu na prisão do ex-presidente. Depois, com o tempo, tende a esmorecer. Mas enquanto estiver solto, Lula seguirá fazendo política, construindo entendimentos à esquerda, pavimentando caminhos para as eleições municipais do ano que vem e já arquitetando pontes para 2022.

O discurso que fez no acampamento da militância em frente à Polícia Federal de Curitiba ao deixar a carceragem foi temperado por momentos agressivos e por declarações de amor e ternura que lembram o Lulinha Paz e Amor. Difícil dizer qual deles prevalecerá. Acho que vai adotar os dois, dependendo das circunstâncias.

O homem que já identificou a si mesmo com uma metamorfose ambulante, deu ontem a pista de que vai circular em permanente ziguezague. Interessa a ele as vezes morder e em outras assoprar. Foi assim que ele construiu sua liderança incontestável no PT. Será assim que seguirá determinando o rumo de seu partido e dos demais satélites que orbitam o PT.

Foi contundente ao atacar “o lado podre da Justiça, do Ministério Público, da Polícia Federal e da Receita Federal que trabalharam para criminalizar o PT e o Lula”. Mas logo em seguida parecia querer uma trégua. “Saio daqui sem ódio, meu coração só tem amor, porque é o amor que vai vencer nesse país”, disse Lula no seu discurso de Curitiba.

Quinhentos e oitenta dias depois de ser encarcerado, Lula saiu na ponta dos cascos. Sua oratória permanece intacta. Conseguiu em pouco menos de 30 minutos dar um rápido sinal de como serão seus discursos daqui em diante. Enquanto estiver livre, vai mexer com o Brasil. O que Lula livre produzirá sobre Bolsonaro logo vai se ver.


Ascânio Seleme: Guedes 2022

Nenhuma dúvida, o mercado já tem o seu candidato para a sucessão de Bolsonaro em 2022. Você pode dizer que é muito cedo para falar em eleição presidencial. Seria, se as circunstâncias fossem outras. Mas, diante das trapalhadas sem fim da turma encarregada, não se fala em outra coisa. O pacote de Paulo Guedes, apesar de ter alguns problemas, credencia o seu criador a postular mais adiante o principal cargo do país. As medidas apresentadas na terça-feira aliadas à reforma da Previdência transformam o ministro da Economia na persona que se buscava
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Guedes, que assumiu o papel de missionário do liberalismo, sabe muito bem o que está fazendo, aonde quer chegar, e em quanto tempo. Ele trabalha com metas, e vem atingindo todas nos primeiros dez meses de governo. Muito certamente o pacote será modificado e abrandado pelo Congresso, mas o ministro já pavimentou bem sua relação com as principais lideranças do Congresso, sobretudo com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre.

Até parece que foi Guedes, e não Bolsonaro, que exerceu sete mandatos consecutivos na Câmara. Já se viu na tramitação da reforma da Previdência que Bolsonaro atrapalhou mais do que ajudou na sua aprovação. Enquanto isso, Guedes foi a cada uma das comissões que o convocaram nas duas casas para esmiuçar e defender sua proposta. Com Rodrigo Maia, rodou fóruns e redações de jornais, participou de seminários, foi questionado em sabatinas num verdadeiro da reforma previdenciária. A história vai atribuir a Guedes e a Rodrigo o mérito pela sua aprovação.

O novo pacote de Guedes ainda será seguido de outras medidas, mas o que ele quer fazer agora é uma ampla e sem precedentes reforma do Estado. Há aspectos positivos e negativos no pacote, mas não se pode negar que a iniciativa foi corajosa e tem como objetivo final reduzir gastos, equilibrar contas, tirar o país do atoleiro. O Estado (União, estados e municípios) não pode consumir metade de toda a riqueza produzida pelo país, é obsceno. Pior, o Estado engole metade do PIB nacional e devolve para a sociedade, quando devolve, serviços e obras de baixíssima qualidade.

Na questão administrativa, é inegável que rearrumar a casa é urgente. Extinguir municípios que não conseguem se sustentar é obrigatório. Reavaliar fundos e reduzir subsídios é imprescindível. Também não se pode ter expectativa de aumento de salário quando o empregador está perto de quebrar. Do outro lado, claro que o Estado é gigante, tem que ser reduzido, mas também cabe a ele estabelecer políticas sociais, trabalhar pela redução da pobreza, em valores alarmantes no Brasil, melhorar a distribuição da renda. Nenhum desses pontos é contemplado nas três propostas de emenda de Guedes.

Ele afirma que o fortalecimento da iniciativa privada é a única forma de gerar emprego e renda. Verdade inequívoca. Mas, para fiscalizar essas empresas privadas e suas relações com trabalhadores e com consumidores, é preciso fortalecer agências reguladoras e outros mecanismos oficiais. O Estado não pode abrir mão dessa obrigação ou simplesmente deixar ao mercado a definição dos parâmetros necessários para regular suas relações.

Caberá ao Congresso encontrar um meio-termo. De qualquer modo, se o pacote for aprovado, mesmo desidratado, o dono da bola será Paulo Guedes. Seus méritos estarão delineados e servirão para balizar a eleição presidencial de 2022. Sua habilidade em negociar e a oratória contundente que o distingue serão aliadas fortes agora, nos entendimentos com o Congresso, e em 2022, no embate eleitoral.

Para os muitos que já se arrependeram de ter votado em Bolsonaro e buscam alternativas de centro, Guedes pode ser o nome. Se for candidato, como já sonha o mercado, correrá na mesma raia que João Doria e Luciano Huck. O contêiner de novidades que vai introduzindo na economia nacional pode ser sua maior alavanca em 2022. Mas tem que dar resultados, seus efeitos precisam ser sentidos nos próximos dois anos e meio. Só assim o sonho do mercado será viável.


Ascânio Seleme: Eles não ouvem alegações finais

Ministros do Supremo já chegam ao plenário com seus votos redigidos e convicção formada

Os advogados falam, gesticulam, dão ênfase em trechos do discurso, rogam, apelam, tentam arrebatar, se exaltam. Do outro lado, os ministros do Supremo que estão prestes a julgar as questões daqueles advogados leem documentos, manipulam papéis, consultam seus celulares e laptops, conversam entre si ou com seus capinhas. Nenhum presta a mínima atenção ao que dizem os advogados que estão ali apresentando o último apelo em favor das suas causas. Tampouco dão bola para o que dizem os representantes do Ministério Público ou da Advocacia-Geral da União nas suas considerações derradeiras. Os ministros já chegam ao plenário com seus votos redigidos, com sua convicção formada.

Quer dizer, não têm serventia as alegações finais da defesa ou da acusação de uma matéria quando ela é julgada no Supremo Tribunal Federal. Por isso, diante da absoluta falta de atenção que dão a homens e mulheres que se esgoelam diante deles na hora da decisão, não faz muito sentido os ministros terem entendido há algumas semanas que os delatados têm o direito de apresentar alegações depois de o delator apresentar as suas. Se essas alegações forem feitas diante dos ministros do Supremo vão valer nada. O fato é que o entendimento dos ministros, como se sabe, pode colocar na rua 5 mil presos, quase todos condenados por corrupção ativa ou passiva, muitos da Operação Lava-Jato.

Se no STF é assim, como seria na planície? Não há como negar que pelo menos ao chegar na segunda instância, depois de a sentença ter sido dada pelo juiz original, todas as alegações já serão sobejamente conhecidas. Mesmo na primeira instância, é razoável supor que as alegações do delator que também responde pelo crime serão conhecidas pelo delatado no decorrer do processo. O resto é filigrana processual que o Supremo avalizou ao decidir em favor do entendimento proposto pelo advogado Alberto Toron de que os delatados falem sempre após o delator para preservar seu direito de ampla defesa. A tese pode até ser boa, mas de nada valeria no Supremo, já que os ministros nada ouvem na sessão final.

Os ministros do Supremo, aliás, não gostam de ouvir ninguém mesmo. Eles se orgulham da sua independência, que de resto é mesmo fundamental, e muitos dizem que jamais dão atenção ao clamor popular em favor de uma causa ou contra ela. Alegam ser só isso mesmo, um clamor sem embasamento jurídico, e que apenas reflete um anseio coletivo. E que um juiz deve se pautar exclusivamente nas leis e na Constituição. Este é o caso do julgamento da prisão após condenação em segunda instância. Há um aparente anseio majoritário pela manutenção de decisão anterior do próprio STF, que autorizava a prisão depois de a condenação ter sido referendada por um colegiado em instância imediatamente superior à primeira.

Se considerarmos vital a independência política e administrativa de um juiz, de um desembargador ou de um ministro de tribunal superior, como deve ser, restam agora apenas algumas poucas considerações finais. A mesma Constituição redigida em 1988 foi usada pelo Supremo em 2009, ao revogar permissão de prisão depois de condenação em segunda instância que vigorava até então, e em 2016, ao autorizá-la outra vez. Agora, prestes a restaurar o primeiro entendimento, os ministros do STF usam argumentos baseados em dispositivos da mesmíssima Constituição. Mas, não adianta perder tempo com as considerações finais no Supremo. Suas excelências não vão prestar atenção mesmo.


Ascânio Seleme: Uma tragicomédia brasileira

Jamais se desceu a ponto tão baixo, nem mesmo nas ditaduras de Vargas e de 1964

Mesmo antes de Dom João VI aportar aqui em 1808, os políticos brasileiros já enfrentavam crises e travavam ásperas discussões em torno de programas e ao redor de ideias. Mas nunca na forma exuberante que se vê hoje. Jamais se desceu a ponto tão baixo, nem mesmo nas ditaduras de Getúlio Vargas e dos generais de 1964, tampouco com Collor de Mello, e em tempo algum os desacertos provocaram tanto espanto e tantas risadas como agora. Vivemos uma das maiores tragicomédias da nossa história. O Brasil está de ponta-cabeça, de estômago embrulhado, muito mais do que apreensivo, é verdade, mas ainda assim rindo aos borbotões.

As asneiras e sandices que se leem e se ouvem quase diariamente em torno da família do presidente Bolsonaro são tão inusitadas quanto ridículas e engraçadas. Como se conseguiu queimar tantas pontes, arranjar tantos inimigos e desconstruir tantos entendimentos em apenas dez meses de governo? Trata-se de um recorde negativo que deveria ser considerado pelo “Guinness”. O primeiro governo a se desmilinguir em menos de um ano por absoluta inépcia política. E se não bastasse ter afugentado os que votaram nele para se livrar do PT, que são milhões, o presidente agora trata de afastar o maior partido da sua base. Talvez o único que lhe seja inteiramente fiel e tenha a sua cara.

Depois de semanas de bate-boca com o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, ameaçando sair do partido, Bolsonaro vem a público para dizer que não vai se meter no assunto. “Tô calado e vou continuar calado”, disse o homem que jamais se cala, que usa as redes sociais para fazer o que ele acha ser contato direto com seus eleitores e tem um programa semanal em que fala, e fala o que lhe der na telha, sem medir qualquer consequência. E além disso, o mais opaco presidente da História do Brasil diz ser transparente. Só rindo.

Apesar de tantos episódios inacreditáveis, vemos agora esta troca de mensagens de quinta categoria nas redes sociais entre o vereador Carlos Bolsonaro e o senador Major Olímpio. Não, em nada importa para o país o que esses dois homens escreveram em suas contas no Twitter, mesmo que um seja o filho-problema do presidente da República e outro seja líder do maior partido governista no Senado. Sempre em torno do PSL e das suas contas, Carlos e Olímpio mostraram os dentes. Ambos têm razão. O vereador se acha um príncipe, e o senador se presta ao papel de bobo da corte ao descer para conversar com Carlos em seus termos. Não vale a pena falar de cadela no cio ou de internação psiquiátrica, acusações que fizeram parte da beligerância entre o príncipe e o bobo.

O fato que não consegue ser afastado, contudo, é que o PSL tem que explicar suas contas e seus laranjais. E Bolsonaro também. As investigações, que já vasculharam a casa e o escritório de Luciano Bivar e indiciaram o ministro que não tem sobrenome, Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, mostram que os seus métodos não diferem muito do que se viu na política nacional até aqui. O presidente do partido está enrolado. O presidente da República tem um ministro também enrolado que ele teima em manter no posto, apesar do discurso de honestidade feito durante a campanha e reiterado cem vezes ao longo dos últimos dez meses.

O colunista Elio Gaspari tem toda a razão. Ele escreveu aqui, ontem, que Lula pode fazer diferença nessa mediocridade generalizada que tomou conta da política nacional. Com Fernando Henrique Cardoso fora do jogo por opção própria, não resta mesmo ninguém além de Lula com estatura suficiente para fazer sombra a Bolsonaro. Com sua sentença cumprida ou interrompida pelo Supremo, tanto faz, Lula sairá da cadeia muito brevemente. E daí, salve-se quem puder, o circo tem tudo para pegar fogo.

Human Rights Watch
Maria Laura Canineu não parecia abismada. A diretora regional do Human Rights Watch é brasileira e sabe muito bem como a banda toca. Já o presidente da instituição, Kenneth Roth, não conseguia esconder a estupefação. Falava como se estivesse na Guiné Equatorial de Teodoro Obiang, com todo respeito aos guinéus. Numa entrevista concedida ontem em São Paulo, Roth comparou o Brasil a Egito, Turquia e Indonésia, países que endureceram depois de eleger um presidente autoritário. E aos Estados Unidos de Trump.