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Marcus Oliveira: As redes e a relativização do terror stalinista
As redes ampliaram decisivamente as dimensões da esfera pública. Com a individualização do acesso a distintas formas de publicação virtual, determinadas ideias, que contavam com pouca penetração nas mídias tradicionais, foram amplificadas pelo poder das redes. Nesse sentido, ainda que considerando as limitações dos algoritmos e a formação das bolhas virtuais, é possível afirmar um caráter democratizador das redes sociais. Todavia, esse processo de democratização é acompanhado pela emergência de discursos autoritários, relativismos e negacionismos de diversos matizes.
Conforme demonstrou o jornalista italiano Giuliano da Empoli, a engenharia do caos das redes sociais estimula a difusão desses discursos. Na medida em que as publicações adquirem relevância em virtude das reações do público, sejam elas de apoio ou rechaço, conteúdos radicais, tanto à esquerda quanto à direita, tendem a ocupar mais espaço dado ao amplo engajamento que recebem. Contraditoriamente, como nos demais processos de democratização, essa ampliação da esfera pública convive com vários espectros do autoritarismo.
Nesse cenário, a discussão em torno do stalinismo adquiriu certa relevância em virtude das publicações do historiador e comunicador Jones Manoel. Militante do PCB, Manoel, em entrevista concedida em setembro de 2020 à Folha de São Paulo, marca o anacronismo de uma parcela da esquerda que, incapaz de elaborar uma crítica consistente do passado, precisa tergiversar quanto as suas próprias tragédias. Embora não se assuma como stalinista, e até mesmo reconheça a existência do terror e dos gulags, Manoel opera uma defesa de Stalin que se desenvolve a partir de uma tentativa de separação ou compensação entre a violência e o que, em seus termos, seriam elementos emancipatórios contidos no regime.
Além de se desdobrar na relativização do terror stalinista, esse argumento compensatório ignora que não há regimes capazes se manterem exclusivamente por meio da força e que a constituição desses elementos emancipatórios são indissociáveis na produção dessa ordem política violenta e arbitrária. Na entrevista, ao ser indagado se os aspectos emancipatórios se sobrepunham ao terror, Manoel afirma que a análise histórica não deve estabelecer balanços entre pontos positivos e negativos, mas compreender a totalidade do fenômeno. Ao contrário disso, sua relativização do stalinismo parte precisamente da fragmentação do fenômeno, em uma tentativa de isolar seus termos como em uma equação matemática.
Embora pareça se desdobrar em uma crítica da violência política, essa argumentação termina por, contraditoriamente, reafirmar a necessidade da violência revolucionária. Ao se deparar com essa violência, Manoel tangencia novamente, afirmando a existência da violência burguesa, exercida sobretudo pelo imperialismo americano. Nessa comparação, torna-se evidente a legitimação que faz da violência revolucionária como contraponto necessário da violência capitalista.
Portanto, em última análise, a discussão não ocorre em torno da política, mas das possibilidades revolucionárias. Filiado ao PCB, que regularmente disputa as eleições com candidatos próprios ou por meio de alianças, Manoel invalida a democracia. Instrumento burguês por excelência, a democracia não poderia permitir a articulação dos interesses dos trabalhadores rumo ao socialismo. Nada além de ilusória, a democracia mascara a violência e a arbitrariedade do capitalismo. Nesse cenário, no qual a violência é inevitável, o terror stalinista, assim como as demais experiências autoritárias de esquerdas, se encontram justificados e legitimados de antemão.
Evidentemente, não se trata de defender a censura ou a retirada desses conteúdos das redes, mas de perceber como, por meio dessa ampliação da esfera pública impulsionada por essas mídias, posicionamentos autoritários e anacrônicos irrompem dos subterrâneos para, utilizando-se dos termos de Marx, disputar a política a partir daquilo que foi primeiro tragédia e agora é farsa.
É preciso, diante disso, cada vez mais ocupar as redes, difundindo os horizontes possíveis de uma outra esquerda que soube enfrentar seu passado e, por isso, busca encontrar seus caminhos em meio às desafiadoras e por vezes enigmáticas transformações que atravessamos mundialmente. Respirando ainda um ar rarefeito, falta fôlego para encarar esse percurso. Recuperá-lo, nessa perspectiva, significa abandonar o assalto aos céus e descer ao nível do mar, onde, no presente, é preciso criar os novos itinerários para essa modernidade.
El País: Amazonas caminha para terceira onda de covid-19, com avanço de variantes
Estado tem o dobro da média nacional de mortalidade para cada 100.000 habitantes, mas flexibilizou a quarentena e reabriu lojas e restaurantes. Caso de Manaus representa ameaça para todo o Brasil, alertam pesquisadores, que recomendam fechamento imediato das atividades
Após a covid-19 provocar cenas de terror em Manaus ―com a falta de oxigênio e de leitos nos hospitais no auge da segunda onda da pandemia―, a capital do Amazonas caminha para uma terceira onda de infecções pelo novo coronavírus e para a estabilização do número de mortes em um platô alto, o que deve ocorrer a partir de março e se manter durante todo o ano. O alerta é do grupo de pesquisadores que reúne especialistas em várias áreas (como matemática, estatística, infectologia, imunologia e biologia) responsável pelo estudo publicado em agosto de 2020 na revista Nature Medicine que previu a segunda onda em Manaus quatro meses antes dela acontecer.
O alerta aponta para um cenário de reinfecção constante e de uma média de 50.000 infectados simultâneos, chegando ao pico de 75.000 no mês de junho. “Isso é preocupante porque tende a propiciar o surgimento de uma nova variante resistente às vacinas já conquistadas, dentro de seis meses a um ano. Essa situação é gravíssima”, afirma o biólogo Lucas Ferrante, doutorando pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e um dos pesquisadores que assinam o estudo.
A pesquisa prevê ainda que, caso nada seja feito, o Amazonas viverá um pico da pandemia até 2023. A recomendação do grupo de estudiosos é que o Estado adote um lockdown imediato, diminuindo a circulação de pessoas em 90% por um período de 20 a 30 dias, em paralelo à vacinação de ao menos 70% da população nos próximos três a quatro meses. “É a melhor estratégia do ponto de vista econômico e epidemiológico. Todas as autoridades no Amazonas já foram avisadas, mas preferem a prática de uma necropolítica. Eles sabem das consequências, mas usam a desculpa de conciliar os interesses da economia, sendo que a própria economia sofre com esse abre e fecha. Estamos prevendo mais dois fechamentos este ano. A gente precisa de um lockdown federal”, defende o biólogo.
Apesar dos avisos dos pesquisadores e ainda que o governador Wilson Lima afirme que o Estado segue na fase vermelha (o que representa o alto risco de contaminações), o horário de funcionamento dos serviços essenciais e não essenciais no Amazonas foi ampliado nesta sexta-feira, 5 de março. Lojas, que antes abriam das 9h às 15h, agora podem ficar abertas até às 17h, de segunda a sábado. Flutuantes registrados como restaurantes podem funcionar das 9h às 16h, de segunda a sexta. Supermercados e padarias ganharam uma hora a mais de funcionamento. E o toque de recolher foi encurtado em duas horas, sendo agora das 21h às 6h.
Já a campanha de conscientização do Governo estadual afirma que a responsabilidade em não provocar aglomerações é da população, mas não é difícil encontrar lojas e shopping cheios no Estado. O Amazonas ostenta a triste liderança do ranking de mortalidade no Brasil, com o dobro da média nacional de mortes para cada 100.000 habitantes. O índice de mortes pela covid-19 para cada 100.000 habitantes no Estado é de 270, enquanto a média nacional é de 125.
Os pesquisadores afirmam ainda que a constatação de que ter sido infectado por outras variantes do coronavírus não garante imunidade à cepa P.1 torna a população de Manaus refém de um ciclo constante de reinfecções, segundo Lucas Ferrante, o que faz com que a cidade “coloque em xeque os esforços mundiais para conter a pandemia.” A pesquisa a respeito desse quadro está em fase de revisão para publicação científica nas próximas semanas. “Não foi a P.1 que causou a segunda onda, mas a segunda onda ocasionou a P.1. Desde outubro os casos já vinham aumentando. Nós alertamos que o Amazonas encerraria o ano de 2020 com 6.000 óbitos, o que foi concretizado com 6.500 mortes, demonstrando que o modelo que utilizamos é eficiente”, explica o biólogo. Atualmente o Estado contabiliza 18 linhagens do SARS-CoV-2.
Negacionismo e banalização das mortes
O epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Amazônia) Jesem Orellana levou uma denúncia contra as autoridades sanitárias brasileiras de crime contra a humanidade na 46ª audiência da Comissão Internacional de Direitos Humanos. “Faremos a denúncia também nas Nações Unidas já que no Brasil ninguém faz nada e impera a impunidade. Só resta recorrer a organismos internacionais”, afirmou o pesquisador, que também previu a segunda onda em Manaus e vem alertando publicamente sobre as consequências trágicas da gestão da pandemia no Amazonas. O Estado atingiu 11.229 mortes pela covid-19 nesta sexta-feira, sendo que a metade delas ocorreu somente em 2021. “A partir de janeiro, a P.1 tem predominância nas novas contaminações”, afirma o biólogo Lucas Ferrante. Há semanas a taxa de ocupação de leitos de UTIs se mantém superior a 80%.
Para o sociólogo Marcelo Seráfico, professor doutor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), as trágicas duas ondas no Amazonas evidenciaram a naturalização da tragédia na sociedade brasileira. “Nos planos federal, estadual e municipal temos um alinhamento fino com o negacionismo, que tem contribuído decisivamente para estimular a população a condutas que são absolutamente nocivas a ela mesma”, afirma.
Outros agravantes no enfrentamento da pandemia são a pobreza e a perspectiva de piora da economia. “A vulnerabilidade econômica faz com que a população, ao invés de reivindicar políticas econômicas e sociais que seriam adequadas, se mobilize para fazer o inverso: pedir o fim do isolamento, o não uso do lockdown como estratégia de contenção da doença. Há um problema lógico de definição de prioridade: é difícil desenvolver atividade econômica estando morto”, opina. Mais da metade da população de Manaus vive em habitações precárias, os chamados aglomerados subnormais, como são classificadas as favelas, invasões, palafitas e loteamentos, segundo dados do IBGE de 2020. É também a cidade onde o trabalho informal está acima de 50%.
Mesmo sendo o primeiro Estado brasileiro a sentir o impacto da pandemia durante a primeira onda, em um colapso hospitalar e funerário em abril de 2020, centenas de pessoas foram às ruas para protestar contra o fechamento do comércio em dezembro. Pressionado, o Governo estadual recuou das restrições. Duas semanas depois, o Estado vivenciou a tragédia com pessoas morrendo por falta de oxigênio e voltou a implementar uma quarentena. Desde meados de fevereiro, porém, o comércio e a indústria voltaram a funcionar, apenas com horário reduzido e observação do toque de recolher.
Informações desencontradas
Em comum, as duas ondas da pandemia no Amazonas tiveram uma enxurrada de informações desencontradas ou falsas sobre os tratamentos adequados contra a doença. No início de janeiro, três dias antes do colapso com a falta de oxigênio em Manaus, o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) defendeu o “tratamento precoce” para minimizar a pandemia de covid-19 no Estado. Na ocasião, em entrevista à CNN, o prefeito de Manaus, David Almeida, concordou com a afirmação do ministro e recomendou que a população procurasse as unidades básicas aos primeiros sintomas para “iniciar o tratamento de forma precoce” e “profilático”.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) ressaltaram, entretanto, que não há comprovações de que exista um tratamento precoce ou preventivo eficiente contra a doença e, assim, o ministro recuou da recomendação dias depois. Já em relação à hidroxicloquina, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a OMS concluiu que o medicamento não funciona no tratamento contra o novo coronavírus e alertou ainda que seu uso pode causar efeitos adversos.
Mas ainda que a principal autoridade da Saúde brasileira tenha recuado na defesa do “tratamento precoce”, a hidroxicloquina e outros medicamentos sem comprovada eficácia no combate ao coronavírus continuam a ser defendidos por profissionais respeitados no Amazonas. É o caso do geriatra e reitor da Fundação Universidade Aberta da Terceira Idade do Amazonas (FUnATI/AM), Euler Ribeiro, favorável ao tratamento à base de ivermectina, azitromicina e vitamina D associada ao zinco, além de cloroquina. Na avaliação dele, o tratamento foi “politizado”, o que fez com que sua eficácia fosse colocado em xeque. “Eu já tratei 111 idosos, alguns com comorbidade e nenhum morreu. Nenhum. Eu sou favorável ao uso, fui secretário de saúde no Estado durante sete anos e sei da eficácia do medicamento, principalmente no caso de malária (cloroquina), que eu receito há 30, 40 anos. Nunca vi alteração cardiológica. Eu adoto esse protocolo e uso, associado a corticoides e anticoagulantes”, defende o geriatra.
Por outro lado, ele faz coro em defesa do isolamento social e a vacinação ―isso sim, um consenso na comunidade científica. “Não estamos livres, tem que prevenir, fechar comércio, se isolar. Precisamos vacinar 70% da população para conter isso. Como tem pouca vacina, ainda estamos à mercê. Entre a economia e a vida, fico com a vida”, diz Ribeiro, que recebeu a primeira dose do imunizante.
Convencer a população a tomar a vacina é mais um desafio em meio à tempestade que atinge o Amazonas. A aposentada Raimunda Ferreira Gamboa, de 67 anos, recebeu a primeira dose do imunizante, mas narra a dificuldade em convencer amigos e vizinhos. Ela, que contraiu a doença em novembro, passou 28 dias internada no Hospital e Pronto Socorro Delphina Aziz (o maior em quantidade de leitos e referência para a covid-19 em Manaus). “Depois do que eu passei, quero mesmo é me vacinar. Infelizmente, nem todos pensam assim: minha vizinha, que perdeu a irmã para a covid recentemente já disse que não quer saber de vacina.”
Elio Gaspari: Flávio Bolsonaro desconsiderou Tancredo
Senador descumpriu uma norma, explicitada por Neves em 1963: “É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada”
Flávio Bolsonaro comprou uma casa de R$ 5,9 milhões, com R$ 3,1 milhões financiados pelo Banco de Brasília, cujo maior acionista é o governo do Distrito Federal. Com uma renda familiar declarada de R$ 37 mil mensais brutos, deverá aguentar uma mensalidade de R$ 18 mil. Poderá viver sem pedir auxílio emergencial.
O doutor ganhou fama de empreendedor com uma casa de chocolates da Kopenhagen e, em 16 anos, fez 20 transações imobiliárias, muitas delas quitando parte dos pagamentos em dinheiro vivo. Filho do capitão Jair Bolsonaro, elegeu-se deputado estadual no Rio em 2002, aos 21 anos, e senador em 2018.
Flávio Bolsonaro descumpriu uma norma, explicitada por Tancredo Neves em 1963:
“É norma ética consabida que o governante não compra nem vende nada.”
Era pura sabedoria. Lula deu-se mal porque usufruiu o sítio de Atibaia e discutiu a compra de um apartamento no Guarujá. Juscelino Kubitschek foi muito mais longe, adquirindo um apartamento na avenida Vieira Souto.
Na “nova política” dos Bolsonaro, faltam os pilares da cultura histórica de Tancredo. Nela, abunda aquilo que o presidente americano Joe Biden acaba de chamar de “pensamento de Neandertal”. Rachadinhas podem ser coisas da Idade da Pedra.
A repórter Malu Gaspar mostrou que na “nova política” acontecem também golpes da modernidade, como a utilização de informações vindas do coração do governo para se ganhar um dinheirinho fácil no mundo do papelório.
Às 17h15m de quinta-feira, dia 18 de fevereiro, terminou uma reunião no Palácio do Planalto. Delas participaram o presidente Bolsonaro e, por ordem alfabética, os ministros Augusto Heleno, Bento Albuquerque, Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Paulo Guedes e Tarcísio Freitas. Nela, o capitão manifestou seu desconforto com o presidente da Petrobras.
Às 17h35m, uma mão invisível do mercado operou uma aposta de R$ 2,6 milhões na baixa nas ações da Petrobras. Passados nove minutos, outra, de R$ 1,4 milhão. Nunca haviam acontecido operações desse tamanho em tão pouco tempo. Às 19h (85 minutos depois da primeira aposta), Bolsonaro anunciou que “alguma coisa” aconteceria na Petrobras.
Malu Gaspar mostrou que até as 17h15m, quando terminou a reunião do Planalto, aconteceram 41 transações, com algo mais de 2 mil apostas. Depois que a reunião terminou, em apenas 39 minutos, foram negociadas 2,5 milhões de apostas.
Quem conhece o mercado estima que o dono, ou os donos, da mão invisível embolsaram algo como R$ 18 milhões com a queda do valor da ação da Petrobras no dia seguinte.
À primeira vista, os órgãos de controle do governo poderão desvendar essa salada de números. Contudo, durante o governo Bolsonaro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) soltou um edital prevendo a compra de R$ 3 bilhões de equipamentos para a rede pública de ensino.
A Controladoria-Geral da União (CGU), órgão de controle do governo, sentiu cheiro de queimado. Afora os indícios de direcionamento, 355 colégios receberiam mais de um laptop por aluno, 46 ganhariam mais de dois, e um deles, em Itabirito (MG), teria direito a 30 mil, 118 para cada aluno.
A CGU funcionou. O edital foi suspenso e logo depois cancelado, mas até hoje ninguém explicou como e por quem foi produzido o jabuti. Nem em pizza deu, deu em nada.
Recordar é viver
Em 1969, um comando da Vanguarda Armada Revolucionária roubou um cofre guardado na casa da namorada do ex-governador paulista Adhemar de Barros. Quando o arrombaram, encontraram cerca de US$ 2,5 milhões de dólares (algo como US$ 18 milhões de hoje). Parte do ervanário ainda estava com as cintas de papel de um banco suíço.
A poderosa máquina da ditadura identificou quinze pessoas envolvidas no assalto. Quatro foram mortos e sete foram presos nos meses seguintes. Um deles morreu sob tortura num quartel. Sua autópsia, feita no Hospital Central do Exército, apontou dez costelas quebradas e pelo menos 53 marcas de pancadas.
Imenso foi o esforço para se descobrir o que foi feito com o dinheiro. Nula foi a curiosidade para saber como ele foi parar no cofre. Adhemar era conhecido por ter uma “caixinha” e apreciava o slogan “rouba, mas faz”.
Com a ajuda de um amigo militar, a dona da casa sustentou que o cofre estava vazio. Nem em pizza o cofre do Adhemar deu. Deu em nada.
A ditadura negava que torturasse presos e orgulhava-se de ter uma Comissão Geral de Investigações para caçar corruptos. À época, era presidida por generais.
Tarcísio está noutra
Tarcísio Freitas, ministro da Infraestrutura, só convive com as moscas de padaria. Não é candidato a nada e não quer ser. Até porque já decidiu: quando sair do governo, irá para a iniciativa privada.
Guedes e Maritza Izaguirre
Outro dia, o ministro Paulo Guedes disparou uma urucubaca:
“Para virar a Argentina, seis meses; para virar Venezuela, um ano e meio.”
Misturou cloroquina com cloro de piscina. A Argentina teve projetos liberais mal conduzidos e fracassados. Na Venezuela, isso nunca aconteceu. O projeto de demagogia miliciana de Hugo Chávez era político.
Em 1999, quando o coronel Chávez assumiu, o tal de “mercado” torceu para que a manutenção de Maritza Izaguirre no Ministério da Fazenda garantisse alguma racionalidade. Um ano depois, Izaguirre foi substituída e voltou para o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Chávez chegou prometendo “mercado até onde for possível e Estado apenas onde for necessário”. Era lorota.
Sonham acordados
Quando o governador João Doria anunciou que em janeiro começaria a vacinação em São Paulo, o secretário executivo do Ministério da Saúde, coronel da reserva Élcio Franco (aquele que usa brochinho de crânio atravessado por uma faca), disse o seguinte:
— Senhor João Doria, não brinque com a esperança de milhares de brasileiros, não venda sonhos que não possa cumprir, prometendo uma imunização com um produto que sequer possui registro nem autorização para uso emergencial.
No dia 17 de janeiro, foi vacinada no Hospital das Clínicas a enfermeira Mônica Calazans.
Jogo jogado
Na quinta-feira, a repórter Paula Ferreira mostrou que Franco encaminhou ao Senado uma planilha informando que neste mês o ministério distribuirá 38 milhões de vacinas.
No dia 17 de fevereiro, o general Eduardo Pazuello anunciou que entregaria 46 milhões de imunizantes. Onze dias depois, a previsão baixou para 39,1 milhões.
Em duas semanas, evaporaram-se 7,9 milhões de vacinas.
O doutor deveria entrar na sala do general Pazuello admitindo:
— Chefe, estamos brincando com a esperança de milhares de brasileiros, vendendo sonhos que não podemos cumprir.
(O Ministério da Saúde levou em conta 8 milhões de doses de um laboratório que ainda não deu entrada ao pedido de autorização da Anvisa, mas deixa pra lá.)
José Roberto Mendonça de Barros: Totalmente sem rumo
A ausência, por quase 3 meses, dos pagamentos do auxílio amplia a fraqueza da demanda
Estamos perdidos no meio de uma tempestade. Antes de tudo, pelo que aconteceu no ano passado. Desde que a pandemia mostrou sua força, mergulhamos numa crise humanitária, com elevado sofrimento e número de mortos, que nos jogou numa forte recessão.
Pior que tudo, o negacionismo do presidente da República e a explosiva mistura de arrogância e incompetência de seu terceiro ministro da Saúde tornaram as coisas mais difíceis, com apelo a poções mágicas e negligência na compra de vacinas, a única forma de combater o coronavírus nos dias de hoje.
Além disso, pego de surpresa, o ministro da Economia começou uma longa corrida atrás dos fatos, desde que declarou que “com R$ 5 bi nós matamos o bicho”. Foi o Congresso que desenhou todas as regras e a estrutura do auxílio emergencial (depois apropriado pelo Executivo), que, a partir de junho, elevou a demanda de consumo e resultou numa melhora da atividade no segundo semestre.
Nesta semana, soubemos que a queda do PIB foi de “apenas” 4,1%, e não os 6% a 8% que se anteviam por volta de junho.
Nesse resultado, merece menção que, do lado da oferta, cresceram apenas o setor financeiro, a agropecuária, os serviços imobiliários e a extrativa mineral.
Do lado da demanda, a queda foi universal, destacando-se o consumo das famílias.
O pior é que não se projeta continuidade da recuperação rumo a um crescimento mais sustentável, como mostra a precariedade da taxa de investimento (que ficou abaixo de 16%, quando se corrige o impacto das importações fictas de plataforma de petróleo), a queda abrupta das expectativas de todos os agentes econômicos neste início de ano e as consequências da desastrada intervenção na Petrobrás.
Ao contrário, até o governo já reconhece que não haverá crescimento no primeiro semestre. Para a MB, o PIB, na margem, será negativo em 0,8% no primeiro trimestre e 0,3% no segundo trimestre, configurando uma recessão técnica. E a recuperação era para ter sido em “V”!
Nada é mais distante da realidade do que declarou o ministro à Veja (23/12/20): “Estamos disparando uma onda de investimentos. O grande desafio de 2021 será exatamente esse. O Brasil será a maior fronteira de investimentos do mundo”.
O conjunto de vetores aponta para um período ainda muito difícil adiante.
Antes de mais nada, a virulência da segunda onda do vírus está produzindo um colapso em muitos Estados, que piora o ambiente e implica restrições à atividade em muitos lugares. O mercado de trabalho continua extremamente fraco e os dados mostram que a população sacou uma quantia apreciável de suas cadernetas de poupança para cobrir seus compromissos.
A ausência, por quase três meses, dos pagamentos do auxílio emergencial amplia a fraqueza da demanda.
Estamos assistindo a uma piora significativa na inflação, que continua puxada pelo custo de alimentação e outras pressões no setor industrial. Isso levará o Banco Central a iniciar uma elevação de juros a partir de março, pressionando a recuperação da atividade através do custo do crédito, já prejudicado pelo avanço da tributação no sistema bancário.
Uma coisa positiva foi a aprovação da PEC emergencial no Senado, por trazer de volta a ajuda às famílias mais pobres. Entretanto, as contrapartes aprovadas contêm apenas promessas futuras de avanços no equilíbrio das contas públicas, que ainda terão muita dificuldade em se materializar.
Finalmente, vemos uma diminuição do peso da equipe e a ausência de uma proposta consistente e convincente de política econômica para enfrentar o momento.
Fica cada vez mais difícil crer que uma aliança do Centrão com o Palácio do Planalto vá resultar em reformas e ajuste fiscal. Mais fácil acreditar em duendes.
Com o País aflito e desarvorado, podemos bater no muro em futuro relativamente próximo.
Celso Ming: Razões de governo e direito ao luto
Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega o direito ao luto e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade
O presidente Jair Bolsonaro pode ter lá suas razões de governo para julgar “frescura e mimimi” a prostração dos brasileiros pelos mais de 260 mil mortos pela covid-19. Mas, em assim agindo e em assim se manifestando, contraria leis multimilenares, que existem desde que o homem é homem.
A mais representada das tragédias gregas em todos os tempos é a sempre atual Antígona, de Sófocles, encenada pela primeira vez em 441 antes de Cristo. Trata do conflito entre razões de governo e direitos de família.
Creonte, o então todo-poderoso de Tebas, decretou que Polinices, filho de Édipo, não poderia ser sepultado na cidade, por considerá-lo traidor. Seu cadáver teria de ser exposto às intempéries e à ação dos cães e das aves carniceiras. Antígona, irmã de Polinices, se rebelou contra essa determinação “desumana e contrária aos deuses”. Em segredo, recobriu o cadáver do irmão com a veste dos mortos, fez as abluções devidas e o sepultou de acordo com os rituais sagrados. “As tuas determinações não têm força” – justificou-se depois diante de Creonte – “para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis.”
Por sua insubordinação foi condenada à morte. Mas as consequências vieram a galope. Creonte e sua família foram castigados pelos deuses. “Cedo ou tarde, o mal parecerá um bem àquele que os deuses resolveram desgraçar” – canta o coro da peça.
O direito ao luto e a reverência aos mortos são registrados pela literatura clássica e pelos que vieram depois. Na Ilíada, de Homero, Agamenon, o comandante da coligação grega, se submete a sacrificar sua filha Ifigênia para obter ventos favoráveis para a frota paralisada nas areias de Aulis.
Esta é mais uma situação em que razões de governo se sobrepujaram aos direitos de família. Os castigos se sucederam. De volta vitorioso a Micenas e em vingança pelo assassinato de Ifigênia, Agamenon foi decapitado a machado por sua mulher Clitemnestra. Anos depois, o filho de ambos, Orestes, vinga a morte do pai e elimina a mãe.
Nas cenas finais da Ilíada, o rei de Troia, Príamo, arrisca sua vida, transpõe o acampamento dos gregos, ajoelha-se diante de Aquiles, que matou seu filho Heitor em luta diante das muralhas de Troia, e implora a devolução do cadáver para que possa ser pranteado e, depois, cremado. O “animal Aquiles” – na expressão de Christa Wolf, em sua obra “Cassandra” – se comove com a coragem do rei inimigo, devolve o cadáver de Heitor e determina trégua na guerra, até que se completem os funerais.
Quem viveu tempos não muito distantes deve lembrar-se. A morte de alguém envolvia a família, a rua, o bairro, a aldeia inteira. As lojas baixavam as portas em sinal de luto, os sinos dobravam a finados, as bandeiras eram hasteadas a meio pau. Nas solenidades e antes de eventos esportivos, guarda-se um minuto de silêncio em memória do falecido.
Quando afirma que a comoção provocada pelas mortes em decorrência da covid-19 não passa de “frescura e mimimi”, Bolsonaro renega essa herança cultural e incorre em impiedade e desrespeito à humanidade. Como visto pela literatura, coisas assim têm consequências.
Míriam Leitão: Velhos temores que nos rondam
A inflação ronda a economia. O temor até dentro do governo é que ela não caia depois de chegar a 7% em junho. Bolsonaro piora tudo. Ele produz incerteza, isso pressiona o dólar que, num círculo vicioso, atinge os preços. A inflação de alimentos fechou em 11% no ano passado e alguns produtos industriais estão em falta, como papelão e aço. Há outros fantasmas. A dívida é alta e ficará mais cara. Os juros futuros e o risco-país aumentaram e a Selic terá que subir. A equipe finge acreditar que há ajuste fiscal na PEC aprovada no Senado. Ela nada economiza a curto prazo, cria mais rigidez, fragiliza a Receita Federal e propõe a médio prazo o que não conseguirá fazer.
Bolsonaro é a crueldade ostentação. O “vai chorar até quando?” ou o “vai comprar vacina na casa da mãe” foram lançados no rosto de um país que enterra quase dois mil mortos por dia. Ele gostaria de desviar a atenção posta sobre a mansão do filho. O mundo vê, registra e quer distância de nós. Esta semana, dois grandes jornais, um americano e um britânico, fizeram editoriais dizendo que somos fator de risco sanitário global.
Na economia, há uma mistura pesada. Recessão, inflação, desemprego e piora fiscal. A alta dos juros começará ao longo do primeiro semestre apesar da atividade fraca. O mercado financeiro comemorou a aprovação da PEC Emergencial porque acha que ela evitou o pior. O Bolsa Família fora do teto abriria mais espaço no orçamento para despesas populistas. O ganho foi, portanto, evitar o bode voador que apareceu na última hora. No resto, o ajuste é um saco vazio. Ele proíbe o proibido. O salário do servidor civil já não seria reajustado este ano, portanto esse ponto da PEC é inócuo. Ela permite a alta dos salários dos militares e ainda carimbou despesas das Forças Armadas. Ao fim, a emenda engessou mais o orçamento. A única desvinculação afeta a Receita Federal, o órgão que arrecada, combate a sonegação e a lavagem de dinheiro.
O faz de conta fiscal levou o governo a uma situação ridícula. Ele terá que decretar estado de calamidade para acionar os gatilhos, porém os gatilhos nada acionam. O governo precisa gastar mais por causa da pandemia, mas não consegue formular boas políticas de ajuste.
A parte da PEC que trata da redução de subsídios é inexequível. Felipe Salto, da IFI, mostra que ao blindar a Zona Franca de Manaus, o Simples, os fundos constitucionais e as entidades filantrópicas ficou inviável a proposta de reduzir as renúncias fiscais a 2% do PIB. Teria que zerar toda a dedução do Imposto de Renda Pessoa Física, todos os subsídios agrícolas, acabar com a lei de incentivos para a cultura, suspender estímulos à ciência e inovação tecnológica. Salões de beleza caros da Zona Sul do Rio são optantes do Simples, mas o governo ameaça tomar o dinheiro do Microempreendedor Individual (MEI).
Reduzir subsídios é necessário, mas trabalhoso. Exige olhar dentro desses gastos, para separar o justo do injusto. Bolsonaro acabou de criar R$ 3 bilhões de subsídios para o diesel. Não alivia o consumidor, porque o dólar está subindo, e o petróleo, também. Mas pesa para o Tesouro. O benefício é para o caminhoneiro autônomo. Mas também para as empresas que têm frotas de caminhões, os carrões SUV, as lanchas. Todo benefício geral é injusto num país desigual. O trigo subsidiado faz o pão do pobre e o das padarias gourmet. A cesta básica inclui filé mignon, picanha, peixes nobres como salmão e subsidiá-la custou R$ 15 bilhões em 2018. Seria melhor ter dado esse dinheiro diretamente aos mais pobres.
O que se diz até na equipe econômica é que se as expectativas de inflação ficarem sem âncora, os índices não vão cair no segundo semestre, ao contrário do previsto. E isso pode “definir o destino deste governo”. As projeções para o IGP-M já estão em 8%, depois de subirem 23% em 2020. O quadro é este: a economia está instável, a situação social é dolorosa, a pandemia mata cada vez mais e Bolsonaro escala as agressões. O objetivo dele é conhecido. Ele mente dizendo que tem plano pronto contra a pandemia, mas não executa porque o STF não deixa, e que os governadores causaram a crise econômica. Por isso ele adula as Forças Armadas. Bolsonaro é um autocrata trabalhando para uma ruptura, que, segundo o filho 03, não é uma questão de “se”, mas de “quando”. O que a família reinante parece não saber é que a economia em escombros derruba governos.
Vinicius Torres Freire: Nova falha na vacinação vai matar milhares de idosos no Brasil
Novo cronograma federal é em parte ficção; Bolsonaro precisa ser interditado
O atraso da Fiocruz e da importação de vacinas da Índia vai deixar o Brasil sem 15,2 milhões de doses da AstraZeneca/Oxford em março. Seria o bastante para vacinar 7,5 milhões de pessoas do grupo de mais de 60 anos, no qual morrem mais de 74% das vítimas de Covid-19. Levando em conta o número diário de mortes recente, esse buraco de um mês na vacinação vai ameaçar a vida de uns 7.400 idosos. Nem todos seriam salvos, pois a vacina leva tempo para fazer efeito. Mas milhares morrerão porque faltaram essas vacinas.
É um exemplo aritmético do terror, que pode ficar pior. É preciso instalar uma espécie de governo de salvação nacional da saúde, uma articulação de governadores, prefeitos e Congresso capaz de aprovar medidas legais e administrativas a fim de garantir vacinas e providências epidemiológicas coordenadas. Jair Bolsonaro está em campanha contra a República Federativa e contra a segurança nacional sanitária. Como não será impichado, precisa ser neutralizado.
Ainda que o novo cronograma federal de vacinas fosse cumprido, já seria tarde. A economia vai afundar pelo menos até abril. Sem antecipar vacinas, afundará por mais tempo. O vírus pode se espalhar a ponto de causar uma epidemia de variantes incontroláveis. O genocídio de março já está dado. O de abril, quase garantido. Há que se evitar a marca de 400 mil mortes em maio.
Parte do novo cronograma do Ministério da Saúde para março e abril ainda é ficção. Parte é incerteza: houve um problema na produção dos primeiros lotes da Fiocruz, das vacinas que serviriam para um teste antes da fabricação "industrial". Com essa falha, em vez de entregar 15 milhões de doses em março, a Fiocruz vai entregar apenas 3,8 milhões (ainda tentam salvar alguma coisa mais).
Um calendário obtido por este jornalista no governo federal prevê 32 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford em abril. Mas a Fiocruz por ora estima poder entregar 25 milhões, se é que a fábrica não vai quebrar de novo. As doses de AstraZeneca/Oxford que seriam importadas da Índia, do Serum, dependem de boa vontade política: é grande a pressão para barrar a venda para o exterior.
No calendário, o ministério inclui doses da Covaxin, outra indiana, 8 milhões em março e mais 8 milhões em abril. Mas essa vacina não tem licença da Anvisa, que começou a conversar com a fabricante apenas na quinta-feira. Aliás, nem mesmo as vacinas AstraZeneca/Oxford a serem fabricadas pela Fiocruz foram autorizadas pela Anvisa. Espera-se que o sejam até 12 de março.
No calendário federal consta a entrega de um número otimista de doses do Butantan para abril. O instituto espera, sim, antecipar a entrega de vacinas, mas isso não é certo. Ainda para abril, o governo prevê a chegada de 2,9 milhões da Covax e 400 mil doses de Sputnik, que também não foi aprovada pela Anvisa.
Em resumo, o governo espera receber 94,1 milhões de doses em março e abril. Pelo menos 29,3 milhões são promessas ainda mais incertas ou doses de vacinas não aprovadas.
Caso seja cumprido, o calendário federal prevê vacinas para mais de 75 milhões de pessoas até o fim de maio (cerca de 158 milhões de doses). Seria mais do que suficiente para vacinar os maiores de 50 anos e, em suma, todos os grupos das pessoas em que morrem 88% das vítimas de Covid-19 no Brasil. É o equivalente a 49% da população vacinável (maior de 18 anos) ou a 35% da população total. Ainda seria tarde. A fim de evitar genocídio e desastre econômico maiores, é preciso antecipar em quase um mês esse calendário.
Bruno Boghossian : Bolsonaro já sente custo político de choques na economia
Presidente passa a trabalhar quase exclusivamente para conter efeitos sobre popularidade
O aumento da gritaria contra o fechamento do comércio e a investida sobre a Petrobras revelam o que inquieta Jair Bolsonaro no pior momento da pandemia. O presidente sentiu o impacto dos choques da economia e passou a trabalhar exclusivamente para reduzir os efeitos dessa crise sobre sua popularidade.
Sem o amortecedor do auxílio emergencial, os efeitos da inflação e o tropeço da atividade econômica passaram a ter um custo político maior. Embora Bolsonaro se esforce desde os primeiros dias da pandemia para fugir das responsabilidades nessa área, a conta costuma ficar com os presidentes das República.
Os números já apareceram em pesquisas feitas nos primeiros meses de 2021. A reprovação ao governo Bolsonaro cresceu à medida que a população começou a dar sinais crescentes de desconforto em relação aos rumos da economia.
Desde dezembro, o percentual de brasileiros que classificavam o trabalho do presidente como ruim ou péssimo subiu de 35% para 42% nos levantamentos XP/Ipespe. No mesmo período, a proporção de entrevistados que diziam que a economia estava no caminho errado passou de 50% para 57% –e só 30% acham que esse caminho está certo.
Vem desses dados a preocupação de Bolsonaro em transferir para os governadores a responsabilidade pela piora nos indicadores econômicos. Desde o fim de fevereiro, ele ataca quase todos os dias as medidas de restrição à circulação nos estados, omitindo o fato de que elas só são tomadas para conter o colapso de sistemas de saúde e salvar vidas.
Já o malabarismo para reduzir o preço dos combustíveis e a promessa de "meter o dedo na energia elétrica" são tentativas de conter a inflação.
Esse componente do desajuste econômico costuma provocar uma reação imediata do eleitorado –que tende a ser mais intensa com um auxílio emergencial menor. Em janeiro, o Datafolha mostrou que 96% dos brasileiros diziam ver aumento de preços da comida, 86% citavam o gás e 84% falavam da conta de luz.
Hélio Schwartsman: Como explicar os enigmas da pandemia?
Países riquíssimos sofrem, enquanto nações pobres se saem (até aqui) bem
Normalmente, quanto mais pobre um país, pior ele se sai em epidemias. A Covid-19 não é normal. Estamos vendo países riquíssimos, como os EUA e vários membros da União Europeia, comendo o pão que o diabo amassou, enquanto nações muito mais pobres, como o Vietnã e Burundi, se saem (até aqui) bem.
Não estamos falando de diferenças de 300% ou 400% na taxa de mortalidade, mas de variações de milhares de vezes. Na Bélgica, a Covid-19 matou, até aqui, 1.930 de cada milhão de habitantes. No Burundi, cujo PIB per capita é 1/177 do belga, essa taxa é de 0,26. E isso não ocorre porque os países mais pobres foram poupados do vírus. Estudos de soroprevalência mostram que muitos deles foram tão atingidos quanto os ricos.
Como explicar esses enigmas epidemiológicos? Siddhartha Mukherjee, autor do best-seller “O Imperador de Todos os Males”, faz uma bela tentativa em artigo publicado há pouco na New Yorker.
Para Mukherjee, não temos uma só causa, mas um “blend” delas. Há razões para crer, por exemplo, que haja uma subnotificação importante nos óbitos em países pobres, mas não suficiente para resolver a charada. Quando o coronavírus pega de verdade, não há como ignorar os cadáveres. Vimos isso Guayaquil e Manaus.
Bons candidatos a explicações parciais incluem a estrutura demográfica (proporção de idosos), comorbidades, governos mais ou menos eficazes no controle da doença e a imunidade, inata ou ativada por outras moléstias.
Um ponto de Mukherjee que eu quero destacar é que o método científico nos induz a buscar explicações parcimoniosas, de preferência únicas, mas isso pode ser um equívoco. A navalha de Ockham é útil para conter os piores exageros de nossa imaginação fértil, mas não há na natureza nenhum princípio que favoreça o simples em detrimento do complexo. Insistir muito na parcimônia depende de nossa fé num Universo elegante. E ele talvez não seja elegante.
Janio de Freitas: Brasil passou a ser visto como imenso vírus assassino
Com um governo que se alia à morte em massa provocada pela pandemia, país se tornou um perigo para o mundo
O Brasil é um perigo para o mundo. Assim está posta a opinião das autoridades, do jornalismo e dos mais informados mundo afora. Não é Bolsonaro, não é o governo militarizado e desatinado, mas o Brasil. E está certo: é o país que, dividido entre os voltados para seus interesses, os acovardados e a grande massa dos pobres de conhecimento, permite um governo que se alia à morte em massa, constrói por sabotagens a calamidade social e atraiçoa os objetivos do país como trai a população.
O Brasil, visto do mundo, é um imenso vírus assassino, composto pela infinidade de vírus letais que correm, livres, de um brasileiro a outro. E deste seu paraíso deixam-se levar, pelos meios mais insidiosos, para frustrar países que lutam contra a ferocidade pandêmica.
Esse capítulo faltava na história da incivilização brasileira. O seu fim desconhecido, caso não seja abreviado, contém hipóteses terríveis. Uma delas, por exemplo: a contaminação, já com novas e mais perigosas variantes do vírus, continuará aumentando, com reflexo direto nas restrições internacionais ao Brasil.
O medo de contaminação de produtos brasileiros não será surpreendente, resultando em caos alimentar interno e cortes arruinantes de exportações, com desarticulação de toda a economia. O que aí pareça exagero e pessimismo é uma possibilidade já considerada entre técnicos mais lúcidos.
O mundo conhecia o Brasil folclórico, musical, carnavalesco em tudo e imoral não só na corrupção escancarada. Descobre o Brasil propriamente dito, das massas relegadas e impotentes, do servilismo político e administrativo ao militarismo mais primário, da condução nacional conforme ao gosto avaro e ganancioso das classes possuidoras.
Tudo isso sintetizado em 260 mil mortes, tantas delas feitas pelo descaso do governo, e expressado na ameaça ao mundo —uma espécie de Bin Laden em dimensões continentais.Nas duas últimas semanas, o Supremo, atuais e ex-procuradores da República respeitáveis, governadores, prefeitos, secretários, a rediviva ABI, cientistas, médicos e uns poucosparlamentares saíram ao enfrentamento do exército de ampliadores do Brasil mortífero. São um início, uma promessa, se não arrefecerem como é próprio das boas iniciativas do Brasil. Tudo, emnosso futuro, depende disso.
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Bia Kicis na presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, com sua condição de investigada no Supremo por comprovadas pregações contra a democracia e a Constituição, seria um desaforo do seu protetor Arthur Lira e da própria Casa aos cidadãos e, em particular, ao STF.
Aécio Neves na presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, como pagamento ao seu golpe no PSDB para ajudar a eleição de Lira, é uma indecência capaz de ser ainda maior. Corrupto múltiplo, gravado em extorsão de R$ 2 milhões a Joesley Batista, do grupo JBS, Aécio continua solto graças a trampolinagens judiciais do PSDB. Não é raro saírem do Oriente Médio pacotaços para cargos que se ocupem de questões relativas à área mais conflitiva do mundo.
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As mulheres de São Paulo podem reequilibrar o confronto com o cafajeste Fernando Cury (Cidadania), que passa por deputado. A elas cabe fazer campanha contra o voto feminino, primeiro, nos membros do Conselho de Ética que aprovaram apenas 119 dias de aparente suspensão para o agressor sexual da deputada Isa Penna (PSOL). Depois, veto aos deputados que impeçam no plenário a perda do mandato de Cury. Façam suas listas.
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Científica: o macaco está para Charles Darwin assim como Bolsonaro está para a Teoria da Involução.
Ricardo Noblat: Bolsonaro, o arquiteto bem-sucedido do caos que o país vive
Criadas as condições para a tempestade perfeita
Na noite de 17 de março de 2019, em sua primeira viagem aos Estados Unidos como presidente da República, Jair Bolsonaro ofereceu um jantar na embaixada do Brasil em Washington para oito expoentes da direita americana, e mais o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, guru dos seus filhos e dele também.
Bolsonaro apresentou-se aos seus convidados como o brasileiro ungido pela “vontade de Deus” para estancar a suposta caminhada do Brasil para “o socialismo, o comunismo”. Reiterou o lema bíblico de sua campanha eleitoral: “Conheças a verdade e a verdade te libertará”, do capítulo 8 do Evangelho de São João.
E, em seguida, antecipou o que pretendia fazer ao longo do seu primeiro mandato, porque desde já, embora não tenha dito isso na ocasião, já pensava no segundo: “Nós temos de desconstruir muita coisa, de desfazer muita coisa para depois começarmos a fazer”. Destruir “o sistema” era seu principal objetivo, diria mais tarde.
Dois anos e três meses depois, o sistema continua de pé. Bolsonaro a ele aderiu com medo de combatê-lo e de ser derrubado. Concentrou sua força destruidora em setores com menor capacidade de resistência – saúde, meio ambiente, educação, cultura, direitos humanos e relações exteriores.
A pandemia da Covid veio em boa hora para ele. Serviu para que demonstrasse sua compulsão pela morte. O caos que toma conta do país onde morreram 10 mil pessoas nos últimos sete dias e quase 265 mil de um ano para cá, tende a se agravar nas próximas semanas com o apocalipse sanitário mais do que anunciado.
Sem a chegada de mais doses de vacinas não haverá como impedi-lo. Acontece que furou a previsão oficial de novas doses. Nos últimos três dias, o Ministério da Saúde diminuiu em quase 35% o número de doses de vacina disponíveis em março. Em três dias, a estimativa inicial de 46 milhões de doses caiu para 30 milhões.
Até este sábado, dia 6, pouco mais de 8.130.000 de pessoas receberam a primeira dose da vacina. Isso equivale a 3,84% da população. A segunda dose foi aplicada em 2.686.500 pessoas – ou seja: apenas 1,27% da população. Má vontade com o Brasil dos fabricantes das 11 vacinas em circulação no mundo?
Não. Falta de interesse do governo brasileiro em comprá-las a tempo. Um ministro da Saúde foi demitido em meio a pandemia, e outro preferiu pedir demissão por discordar da orientação de Bolsonaro de conceder passe livre ao vírus. Uma vez que o vírus infectasse 70% das pessoas, acabaria derrotado.
Esse é o entendimento de Bolsonaro desde o início, e por isso ele sabotou e sabota a compra e a aplicação de vacinas. A história está repleta de exemplos de governantes autoritários com compulsão pela morte, o que os tornava indiferentes à sorte alheia – Hitler, Stalin, Mussolini, Mao Tsé-Tung, Pol Pot, ditador do Cambodja.
Em mais um encontro com seus devotos nos jardins do Palácio da Alvorada, depois de despachar para Israel uma comitiva do governo atrás de um spray contra a Covid sequer ainda bem testado por lá, Bolsonaro declarou como se fizesse uma grande e generosa concessão:
– O que é a vacina? Não é um vírus morto? Eu já tive o vírus vivo. Estou imunizado. Lá na frente, depois que todo mundo tomar, se eu resolver tomar, porque no que depender de mim é voluntário, então tomarei.
A vacina deve ser tomada mesmo por quem já contraiu o vírus – Bolsonaro sabe. Como sabe que estão criadas as condições para uma tempestade perfeita que poderá desabar a qualquer momento. Espera salvar-se politicamente, pouco importa o número dos que venham a ser sepultados. Covas também estão em falta.
Bernardo Mello Franco: A mansão de Flávio Bolsonaro e a profecia de Dom Bosco
Na noite de 30 de agosto de 1883, o padre italiano Giovanni Bosco sonhou que fazia uma viagem pela América do Sul. Entre os paralelos 15 e 20, ele vislumbrou uma “enseada bastante longa e larga, que partia de um ponto onde se formava um lago”. Uma voz divina assoprava em seu ouvido: “Quando vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível”.
Dom Bosco morreu em 1888, virou santo em 1934 e inspirou os fundadores de Brasília em 1960. A cidade foi erguida entre as coordenadas geográficas do sonho e à beira de um lago artificial, o Paranoá. O sacerdote se tornou onipresente no Planalto Central: batiza igreja, colégio, farmácia e pizzaria. Agora seu santo nome também está associado aos negócios da família presidencial.
Flávio Bolsonaro virou morador do Setor de Mansões Dom Bosco, uma das áreas mais valorizadas da capital. O senador comprou uma casa de 1.100 m² de área construída, com quatro suítes, oito vagas de garagem, piso de mármore e piscina aquecida. Com salário líquido de R$ 24 mil, ele arrematou o imóvel por R$ 6 milhões.
A mansão é o mais novo símbolo do enriquecimento dos Bolsonaro na política. Quando disputou sua primeira eleição, em 2002, o primeiro-filho declarava como único bem um Gol 1.0. Cinco mandatos depois, ele pilota um Volvo XC e acaba de adquirir seu 20º imóvel em 16 anos.
A casa também simboliza a crença da família na impunidade. Em novembro, o Ministério Público do Rio denunciou o senador por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele fechou o negócio dois meses depois, às vésperas de o Superior Tribunal de Justiça julgar seus recursos contra a investigação.
Seguindo a tradição da família, a transação está encoberta por mistérios. O Zero Um registrou a compra do imóvel na cidade-satélite de Brazlândia, a 58 quilômetros da mansão. O cartório atropelou a Lei de Registro Público e tarjou a escritura pública para ocultar seus dados patrimoniais. O Banco de Brasília (BRB), ligado ao governo do Distrito Federal, financiou parte da operação com juros abaixo do mercado.
Irritado com a descoberta da mansão, Flávio atacou a imprensa e negou irregularidades. Ele disse ter comprado o imóvel com o valor da venda de um apartamento e de uma franquia da Kopenhagen, apontada pelo MP como fachada para lavar dinheiro. “Tá tudo redondinho, dentro da lei e sem problema nenhum”, afirmou, em vídeo divulgado nas redes sociais.
Eleito com a promessa de combater a corrupção, o presidente ainda não falou sobre a casa milionária. Há poucos dias, ele abandonou uma entrevista para não responder sobre as manobras do herdeiro no STJ.
Depois de 138 anos, os Bolsonaro dão novo significado à profecia de Dom Bosco. Ao se instalar entre os paralelos 15 e 20, o clã passou a ostentar uma riqueza inconcebível. A diferença está no detalhe: em vez de leite e mel, a mina do primeiro-filho faz jorrar chocolate.