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RPD || André Amado: O imortal

Leitura de alto nível, que fará esquecer as agruras da quarentena, recomenda André Amado, que nos brinda com uma análise da mais nova obra do embaixador brasileiro no México, Mauricio Lyrio

É longa e estreita a relação entre funcionários do serviço diplomático brasileiro e a Academia Brasileira de Letras (ABL). No curso da história, nada menos do que doze diplomatas ocuparam cadeiras na prestigiosa academia.[1] No momento, sempre em um universo de 40 acadêmicos, são cinco: Sergio Paulo Rouanet, Alberto da Costa e Silva, Geraldo Holanda Cavalcanti, Evaldo Cabral de Melo e João Almino.

Quando recebi O imortal de nosso embaixador no México, Mauricio Lyrio, confesso que temi tratar-se de uma obra dedicada a explorar a tradição acima mencionada, o que, convenhamos, não é tema exatamente palpitante, para dizer um mínimo.

Conhecendo, no entanto, o autor como conhecia – desde os tempos em que buscava ideias frescas sobre como dirigir o Instituto Rio Branco, honrosa função para a qual acabara de ser convidado –, não pude deixar de intuir que Mauricio teria coisas mais inteligentes a dizer, e de maneira tão brilhante quanto as que me passou lá trás, em 1995.

Não me enganei.

O imortal tem como personagem central Cassio Haddames, um embaixador lotado em Brasília sem maior brilho profissional, mas que é eleito pela Academia Sueca para receber o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro brasileiro a ser contemplado com o cobiçado galardão. Sua candidatura fora proposta pelo ministro das Relações Exteriores, em exposição de motivos, dirigida ao presidente da República, iniciativa que incluía – na verdade, tinha como objetivo maior – vender uma segunda candidatura, a de Sua Excelência o mais alto mandatário do pais ao Prêmio Nobel da Paz. O texto desse expediente, cuja leitura já vale a do livro, reproduz na ficção um exemplo frequente na Esplanada dos Ministérios, de como altos membros da burocracia tentam chaleirar o ego de seus superiores, apostando em que ninguém vira o rosto para mimos faiscantes. 

Esqueceram-se de combinar com os suecos, que aceitaram conceder o Nobel de Literatura ao embaixador, mas passaram solenemente ao largo do pleito presidencial. 

De sua parte, Haddames estava até certo ponto constrangido pela concessão do Prêmio. Tal como não se cansava de repetir um despeitado jornalista da terrinha, o próprio Cassio Haddames também tinha dúvidas quanto à justiça da honraria recebida. Ele apenas escrevera três romances, que somavam, juntos, 954 páginas. Daria para justificar a homenagem maiúscula da Academia Sueca? Tanto mais na comparação com a produção literária de um Bandeira, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, entre tantos outros, jamais considerados por Estocolmo.

Em meio a essa crise de consciência, duas surpresas aguardariam o agora ilustrérrimo embaixador em seu retorno ao Brasil. Primeira, ainda no aeroporto, um comitê de recepção desfraldava faixa monumental com dizeres em letras garrafais: O NOBEL É NOSSO! E a segunda foi de início uma sondagem, que rápido ganhou foros de irrecusável gestão, orquestrada por raposas da cena política brasileira, para que Cassio Haddames aceitasse disputar as próximas eleições a presidente da República.

Fácil de imaginar, a vida de Haddames passou por momentos de turbulência, estupefação e angústia. O autor não nomeia esses sentimentos. Cabe ao leitor identificar, em meio aos múltiplos incidentes descritos no livro, que se alternam com capítulos, de um lado, cobrindo a trajetória profissional do embaixador/presidente por Nova Iorque, Paris e Beijing e, de outro, os inevitáveis desafios das novas funções, explorando com humor os corredores do poder em Brasília (Não hesito em ressaltar a construção e o palavreado do telegrama que o embaixador do Brasil em Estocolmo envia ao Itamaraty sobre o discurso de posse de Haddames na cerimônia de concessão do prêmio, uma peça antológica do que nós, diplomatas, chamamos de “itamaratês”, código que nem por isso deixará de ser decifrado por todos que conhecem o mundo da política). 

Destaque especial merece a correspondência de Haddames com seu filho André, por intermédio da qual o embaixador compartilha sua visão de mundo – não raro, suas culpas como pai ausente -, atualizando o leitor quanto ao perfil emocional e psicológico do personagem. 

Há um momento no livro em que o leitor se pergunta: e daí? Há um romance entre Haddames e uma diplomata argentina, que parece transformar a mesmice da vida do personagem, que, somos informados, era divorciado. Mas, ainda assim, a relação não promete galvanizar a trama. À frente do Executivo, o inexperiente Chefe de Estado não se sai nada mal. Voltamos à pergunta: e daí?

E daí é quando o grande escritor tira o tapete do leitor e escolhe desfecho surpreendente, tecido de maneira magistral. O resumo da história é que vocês não podem deixar de ler O imortal. Garanto: é leitura de alto nível, que fará esquecer as agruras da quarentena.

[1] Lista por ordem cronológica de eleição: Joaquim Nabuco, Aluísio Azevedo, Domício da Gama, Oliveira Lima, Ribeiro Couto, Gilberto Amado, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Antônio Houaiss, José Guilherme Merchior, Sergio Corrêa da Costa e Affonso Arinos de Mello Franco.

*André Amado é diretor da Revista Política Democrática Online


RPD || Adriana Novaes: Filosofar com Hannah Arendt em tempos de Covid-19

Em tempos em que o novo coronavírus torna pior o que era ruim e faz com que os problemas fiquem ainda mais dramáticos, a filosofia atenua a aflição e nos socorre, avalia Adriana Novaes em seu artigo

 O escritor argentino Ernesto Sabato escreveu que quase nunca acontecem coisas. No início deste ano de 2020, uma coisa aconteceu. Uma nova doença transformou nosso cotidiano e instalou a incerteza. São tempos graves. Uma situação-limite que desafia os cientistas, os profissionais de saúde, os economistas, os políticos, os educadores. Ninguém está livre de sua ameaça e do impacto das mudanças que provocou. Já vivíamos em um período tenso, crítico, instável e incerto. A Covid-19, o Sars-Covid-2, o novo corona vírus veio para tornar o que era ruim ainda mais exposto, fazer os problemas ficarem ainda mais dramáticos, como a imensa desigualdade de nosso país. 

É nesses momentos de incerteza que a filosofia nos socorre. Não porque ela dê respostas definitivas, nem mesmo porque atenue a aflição. De modo algum. Ela é o despertar e a investigação acerca do que tem significado, a paralisação do espanto e a exigência da busca por possibilidades novas. É nas situações-limite que a filosofia vem em nosso auxílio, é nos momentos graves que somos chacoalhados e instados a nos perguntar sobre as coisas, a suspender certezas, a rever posições, a reconsiderar valores e referências. O filosofar é provocado pelas experiências que ativam de modo intenso nossa vida do espírito.

A vida do espírito foi examinada pela filósofa Hannah Arendt no final de sua vida, a última etapa de uma trajetória intelectual marcada pelo esforço de compreensão do fenômeno mais importante e traumático do século XX, o totalitarismo, e o novo tipo de mal que surgiu nele, a banalidade do mal. Dedicada ao estudo da política, dos elementos constitutivos históricos dos regimes totalitários, das revoluções, dos desdobramentos do colapso moral ocorrido na Segunda Guerra Mundial, Arendt se viu desafiada a examinar as atividades do espírito, suas concepções ao longo da história da filosofia, e resgatar seus significados. São os novos contextos emergenciais os que mais exigem de nossa vida espiritual.

Essas atividades são espirituais porque não correspondem apenas a estruturas de nossa mente, mas são capacidades em inter-relação dinâmica, habilidades que nos dão perspectivas de viver e dotar de sentido, criar e escolher, aquilo que há de mais complexo e extraordinário em nossa condição humana. Essas atividades – o pensar, o querer e o julgar – são faculdades que precisamos exercitar para agirmos de acordo com a potência de nossa humanidade.

Pensar é o exercício que fazemos ao nos retirarmos do mundo, no distanciamento, agora forçado e, às vezes, não tão só. Mas poder parar e pensar é fundamental para nos darmos conta do que estamos fazendo, nossas ações e caminhos na vida e, especialmente para Arendt, do modo pelo qual exercemos nossa vida política. Isso significa examinar como agimos em nossa vida conjunta, enquanto uma comunidade, uma nação. Pensar é examinar-se, é conversar consigo mesmo e perguntar-se sobre o sentido real das decisões que tomamos, das escolhas que fazemos. Essas escolhas são ações de nossa capacidade de julgar. 

Julgar, para Arendt, é um grande desafio porque é encarar os problemas a partir dos pontos de vista das outras pessoas. É jamais colocar os próprios interesses em primeiro lugar, mas, ao contrário, dispor-se aos outros. Porque cada um de nós é único, vê a realidade de modo único. E a realidade é tão ampla que nunca conseguimos dar conta dela. Ela é irredutível ao pensamento. É complexa demais. Por isso, precisamos do esforço da abstração de que somos capazes pelo pensamento – o que significa lidar em nossa mente com os invisíveis, os significados das coisas – e sempre nos colocarmos no lugar dos outros. É pela consideração da realidade pelo maior número possível de pontos de vista – pela consideração de vários olhares únicos como o nosso – que podemos compreender melhor o que está acontecendo. Assim, fazemos melhores escolhas.

A tentativa de compreender é muito difícil, como escreveu Eric Hobsbawm sobre o papel do historiador no exame do violentíssimo século XX. Mas, para Arendt, compreender é a tarefa do pensamento, de nossa vida do espírito, o que temos de mais extraordinário.

Outra atividade do espírito é o querer, a vontade como ímpeto para criarmos coisas novas. E criar o novo é acolher a imprevisibilidade que sempre assusta. Nesses nossos tempos, algo que até foi previsto, mas para o que poucos deram atenção, fez o mundo parar. Um novo vírus, um desafio para médicos e cientistas, também escancarou o desastre de uma civilização estruturada pela alta tecnologia que ainda precisa conviver com toda sorte de absurdos como terraplanismo, crença em remédios milagrosos, variadas bobagens pseudocientíficas, mas também a perigosa negação da eficácia das vacinas. As falsas soluções e as mentirosas explicações são usadas por governos que encolheram e se embotaram como meras burocracias, como se nações pudessem ser equiparadas a empresas, uma deformação antipolítica que ameaça de modo ainda mais pernicioso a liberdade e a civilidade. Essa negação da política compromete a consciência e a plena atuação conjunta dos cidadãos, o envolvimento responsável com a própria comunidade, a nação da qual se faz parte. 

Resgatar a dignidade da política como a esfera de exercício de nossas atividades do espírito, como âmbito do discurso que exige nossa responsabilidade, é um desafio que a obra de Hannah Arendt nos apresenta e ao qual a situação-limite em que vivemos nos lança. É preciso encarar a realidade, por mais difícil e terrível que seja. Para enfrentá-la, temos o cultivo e o exercício de nossa vida do espírito.  

* Adriana Novaes é pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.


Antonio Hamilton Martins Mourão: Limites e responsabilidades

Com sensibilidade das mais altas autoridades é possível superar a grave situação que vive o País

A esta altura está claro que a pandemia de covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas consequências pode vir a ser de segurança. A crise que ela causou nunca foi, nem poderia ser, questão afeta exclusivamente a um ministério, a um Poder, a um nível de administração ou a uma classe profissional. É política na medida em que afeta toda a sociedade e esta, enquanto politicamente organizada, só pode enfrentá-la pela ação do Estado.

Para esse mal nenhum país do mundo tem solução imediata, cada qual procura enfrentá-lo de acordo com a sua realidade. Mas nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um estrago institucional que já vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da insensatez, está levando o País ao caos e pode ser resumido em quatro pontos.

O primeiro é a polarização que tomou conta de nossa sociedade, outra praga destes dias que tem muitos lados, pois se radicaliza por tudo, a começar pela opinião, que no Brasil corre o risco de ser judicializada, sempre pelo mesmo viés. Tornamo-nos assim incapazes do essencial para enfrentar qualquer problema: sentar à mesa, conversar e debater. A imprensa, a grande instituição da opinião, precisa rever seus procedimentos nesta calamidade que vivemos. Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação. Sem isso teremos descrédito e reação, deteriorando-se o ambiente de convivência e tolerância que deve vigorar numa democracia.

O segundo ponto é a degradação do conhecimento político por quem deveria usá-lo de maneira responsável, governadores, magistrados e legisladores que esquecem que o Brasil não é uma confederação, mas uma federação, a forma de organização política criada pelos EUA em que o governo central não é um agente dos Estados que a constituem, é parte de um sistema federal que se estende por toda a União.

Em O Federalista – a famosa coletânea de artigos que ajudou a convencer quase todos os delegados da convenção federal a assinarem a Constituição norte-americana em 17 de setembro de 1787 –, John Jay, um de seus autores, mostrou como a “administração, os conselhos políticos e as decisões judiciais do governo nacional serão mais sensatos, sistemáticos e judiciosos do que os Estados isoladamente”, simplesmente por que esse sistema permite somar esforços e concentrar os talentos de forma a solucionar os problemas de forma mais eficaz.

O terceiro ponto é a usurpação das prerrogativas do Poder Executivo. A esse respeito, no mesmo Federalista outro de seus autores, James Madison, estabeleceu “como fundamentos básicos que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser separados e distintos, de tal modo que ninguém possa exercer os poderes de mais de um deles ao mesmo tempo”, uma regra estilhaçada no Brasil de hoje pela profusão de decisões de presidentes de outros Poderes, de juízes de todas as instâncias e de procuradores, que, sem deterem mandatos de autoridade executiva, intentam exercê-la.

Na obra brasileira que pode ser considerada equivalente ao Federalista, Amaro Cavalcanti (Regime Federativo e a República Brasileira, 1899), que foi ministro de Interior e ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou, apenas dez anos depois da Proclamação da República, que “muitos Estados da Federação, ou não compreenderam bem o seu papel neste regime político, ou, então, têm procedido sem bastante boa fé”, algo que vem custando caro ao País.

O quarto ponto é o prejuízo à imagem do Brasil no exterior decorrente das manifestações de personalidades que, tendo exercido funções de relevância em administrações anteriores, por se sentirem desprestigiados ou simplesmente inconformados com o governo democraticamente eleito em outubro de 2018, usam seu prestígio para fazer apressadas ilações e apontar o País “como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global”, uma acusação leviana que, neste momento crítico, prejudica ainda mais o esforço do governo para enfrentar o desafio que se coloca ao Brasil naquela imensa região, que desconhecem e pela qual jamais fizeram algo de palpável.

Esses pontos resumem uma situação grave, mas não insuperável, desde que haja um mínimo de sensibilidade das mais altas autoridades do País.

Pela maneira desordenada como foram decretadas as medidas de isolamento social, a economia do País está paralisada, a ameaça de desorganização do sistema produtivo é real e as maiores quedas nas exportações brasileiras de janeiro a abril deste ano foram as da indústria de transformação, automobilística e aeronáutica, as que mais geram riqueza. Sem falar na catástrofe do desemprego que está no horizonte.

Enquanto os países mais importantes do mundo se organizam para enfrentar a pandemia em todas as frentes, de saúde a produção e consumo, aqui, no Brasil, continuamos entregues a estatísticas seletivas, discórdia, corrupção e oportunismo.

Há tempo para reverter o desastre. Basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades legalmente constituídas.

  • Antonio Hamilton Martins Mourão é vice-presidente da República

Igor Gielow: Mourão assusta mundo político com espantalho da intervenção militar

Em artigo crítico aos Poderes e à imprensa, vice estimula teorias conspiratórias, mas que esbarram na realidade

O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, plantou um espantalho no meio do mundo político brasileiro nesta quinta-feira (14).

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o militar da reserva fez uma longa admoestação de todos os envolvidos na crise tríplice na qual o país está imerso, com seus vetores sanitário, político e econômico.

Houve um ensaio de autocrítica sobre a responsabilidade de seu chefe, Jair Bolsonaro, como um dos atores que se tornaram "incapazes do essencial para resolver qualquer problema: sentar à mesa, conversar e debater".

Houve duras críticas aos outros Poderes e à imprensa no artigo, que condensam de forma inteligível as queixas do governo nas últimas semanas, além da preocupação com a economia.

A defesa federativa, com a devida citação à fundação dos EUA, não difere em essência da nota emitida pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa) há duas semanas, que refletia a insatisfação da ala militar do governo com o que consideram cerco de Poderes ao Executivo.

Até aí, foi uma típica demonstração do pensamento militar brasileiro acerca da ideia de nação, que rejeita sentimentos autonomistas à la 1932, inclusive com o recibo passado no item Amazônia.

Mourão reclamou do artigo de ex-chanceleres queixando-se de danos à imagem externa do país inclusive pela devastação da floresta, "uma acusação leviana" para ele.

O vice coordena o comitê federal que trata da região, xodó geopolítico dos fardados desde o começo do século 20. Foi talvez o ponto mais unânime entre oficiais-generais da ativa presente no texto, assim como a noção salvacionista que foi despertada do torpor pós-ditadura com o governo Bolsonaro.

Cobrou, como já havia feito, a exposição do contraditório favorável às visões do governo na mídia. Perto dos impropérios usuais de seu chefe, foi cordato e reverenciou o papel da imprensa, um contraponto que gosta de estabelecer.

O debate seria quase acadêmico, não fosse uma advertência inicial, nada casual, de que a pandemia da Covid-19 pode se tornar uma crise de segurança.

O passado de Mourão tornou, aos olhos de muitos, preocupante sua colocação. O corolário dela pode ser aquilo que, enquanto candidato, definiu como a possibilidade de um autogolpe por parte do presidente em cenário de anomia ou anarquia.

Nunca é demais lembrar as assertivas de cunho golpista do vice, hoje visto como uma espécie de contraponto ponderado à balbúrdia representada por Bolsonaro. Em 2015, ele sugeriu o "despertar de uma luta patriótica" ao falar do processo de impeachment de sua comandante suprema, Dilma Rousseff (PT).

Dois meses depois, autorizou, sob seu comando na região Sul, uma homenagem após a morte de Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro e torturador de Dilma na ditadura. Isso lhe custou o cargo, e foi encostado em uma posição burocrática em Brasília.

Em 2017, já no meio da crise política do governo Michel Temer (MDB), Mourão sugeriu em uma palestra que a intervenção militar seria possível caso o Judiciário não desse conta da situação.

Era no fundo, assim como na questão do autogolpe, uma leitura distorcida do artigo 142 da Constituição, que prevê ações fardadas a pedido dos Poderes sob a égide da Carta, nada a ver com a ideia de "intervenção militar constitucional" que frequenta grupos de WhatsApp bolsonaristas.

Imunizado pela quarta estrela sobre o ombro, Mourão deslizou para a reserva em 2018, de onde saltou para o barco bolsonarista.

Pelo grau do temor apresentado na praça, o objetivo político primário do texto foi alcançado.

O supracitado espantalho é o temor de uma intervenção militar. Isso alimenta a teoria de que Bolsonaro estaria tratando a pandemia com desdém para que a crise social se agudizasse tanto a ponto de dar o referido autogolpe.

Uma visão conspiratória alternativa vê no texto de Mourão algo diferente: ele mesmo se coloca como a alternativa à anarquia, com um suposto apoio das Forças Armadas pelo simples fato de ser quem é.

Ambas as visões esbarram na realidade, neste momento ao menos. Não existe coesão fardada para qualquer movimento golpista real. Como a Folha já mostrou, Forças como a Marinha e a Força Aérea não são entusiastas nem da simbiose com o governo, nem do protagonismo do Exército no processo.

O necessário apoio das elites empresariais a qualquer empreitada antidemocrática não parece sair dos nichos mais bolsonaristas.

O próprio presidente tentou dar a receita, tomando carona nos efeitos econômicos da pandemia, falando em live da Fiesp na manhã desta quinta: "É guerra, tem de jogar pesado com governadores", a começar por seu adversário figadal, o governador João Doria (PSDB-SP).

Não se imaginam soluções fora da Carta com a atual geração da cúpula militar. Mas impeachment está na regra, e Mourão é a tal alternativa constitucional sempre lembrada em conversas.

Nesse sentido, seu artigo corre o risco de ser lido como um esboço da versão verde-oliva da Ponte para o Futuro, o programa liberal do MDB que cimentou a viabilidade de Temer entre a elite.

Se ele teve tal intenção, o tempo dirá. Por ora, é conveniente a Bolsonaro que o espantalho permaneça onde está, enquanto ceva o centrão para dizer que impeachment é impossível.

De quebra, visa intimidar um ameaçador Supremo, com inquéritos que ouvem generais e decisões incômodas.


André Amado usa arte para analisar ‘nova narrativa em histórias policiais’

Com texto do diretor da revista Política Democrática Online, internautas têm a opção de apreciar um ensaio diferente em tempos de coronavírus

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em tempos de isolamento social por conta dos riscos do coronavírus e da Covid-19, o diretor da revista Política Democrática Online, André Amado, entrega aos internautas um ensaio sobre a obra de Keigo Higashino, na 18ª edição da publicação. Embaixador aposentado, ele deixa em sua análise um traço marcante de seus textos: a linguagem em primeira pessoa, que estabelece uma relação mais pessoal com o seu público, como se levasse cada leitor para apreciar cada palavra escolhida para a sua melhor arte: escrever.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

A seguir, confira um trecho do artigo de André Amado:

Como muitos de minha geração, integrantes contrariados de um tal grupo de risco, cumpro isolamento impiedoso. No meu caso, vigiam-me a inflexível D. Paula e minhas cinco filhas. Aproveito, então, para ler, escrever, pensar, dormir e, torcendo para que as filhas menores não consigam escapar das atividades/incumbências orquestradas pela sempre criativa mãe, não fazer nada, absolutamente nada.

O último livro que li foi Malice (1996), de Keigo Higashino. A escolha foi influenciada pela lembrança festiva de outra obra dele, The Devotion of Suspect X (1994), que lhe valeu a referência mercadológica, para mim mais do que justificada, de “The Japanese thriller phenomenon”.

Em The Devotion of Suspect X, Higashino ambienta a história na cidade de Tóquio, mas como se estivesse em uma planície. A narrativa se desdobra em linha reta, sem trepidação nem sacolejos, a tal ponto que cheguei algumas vezes a pensar em fechá-lo. E, de repente, como se fosse uma serpente bravia, a história enrosca a trama, o Norte vira Sul, o Leste, Oeste, e o leitor é sacudido na poltrona, fascinado pela surpresa, agradecido de não ter interrompido a leitura, sorvendo o desfecho como uma taça de vinho de fina cepa.

Foi assim esperançoso que abri Malice. Nada a ver com a obra anterior, porém, embora tivesse suas qualidades. A se confiar na qualidade da tradução do japonês para o inglês, o que, de resto, é a regra com best-sellers, o livro é bem escrito, obedece à recomendação de ouro do gênero policial, de usar estilo ágil e direto, apresenta personagens críveis, com perfis psicológicos intrigantes, e se desenrola em trama que oculta mais do que revela, em sintonia com os cânones das boas histórias de detetives.

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‘Bolsonarismo ultrapassa clã presidencial’, analisa Marco Aurélio Nogueira

Em artigo na revista Política Democrática Online, cientista política aponta Bolsonaro transmite ‘mensagem de guerra’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

 O cientista político Marco Aurélio Nogueira, professora da Unesp (Universidade Estadual Paulista), critica a falta de postura de Jair Bolsonaro condizente para o cargo que ocupa. “Do presidente, não parte qualquer mensagem de apaziguamento e serenidade, fatores estratégicos para que se possa ter sucesso no enfrentamento da epidemia [do coronavírus]”, escreveu, em artigo produzido para a nova edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira). “Bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial”, afirma, em outro trecho.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados de graça no site da entidade. De acordo com cientista político, o presidente só se preocupa em mobilizar o seu próprio clã. “O presidente fala, e a malta enlouquecida que o segue reverbera imediatamente, em alto som. É uma mensagem de guerra, não contra o vírus, mas contra os que são considerados adversários do bolsonarismo”, critica.

De acordo com Nogueira, Bolsonaro não pede paz, mas atrito, conflito, ajustes de contas. “Junto vem um cálculo eleitoral rasteiro, balizado por aquele medo pânico de que o vírus estrague os planos e congestione a estrada do poder”, lamenta. “Os olhos esbugalhados apontam para 2022, e tudo é feito para que os fatos duros da vida se enquadrem naquilo que se deseja reproduzir politicamente. É o império de uma fantasia mesquinha”, afirma.

Na avaliação do professor da Unesp, conforme artigo publicado na revista Política Democrática Online, outra articulação, benéfica, mas mais complexa, envolve prefeitos e governadores, que lidam diretamente com comunidades, bairros, pessoas de carne e osso, vida concreta. “Pregam o confinamento porque sabem que, sem ele, os sistemas estaduais e locais entrarão em colapso. Tornaram-se agentes decisivos do combate à crise sanitária. Demarcam novo espaço na política nacional”, observa.

Nogueira destaca que “o bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial”. “Ele é sobretudo um estado de espírito. Não é ‘antipetista’, mas antidemocrático, segue um patriotismo tosco e cego, liberando pelos poros aquilo que tem sido chamado de ‘olavismo’, uma gosma venenosa hostil à comunidade política, à vida democrática”, analisa o professor da Unesp.

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RPD || Gloria Alvarez: Compartilhar. Um ato de cidadania

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que o mundo inteiro está vivendo com a pandemia de Covid-19, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem, avalia Gloria Alvarez em artigo

Da noite para o dia, milhões de brasileiros que diariamente trabalhavam para, naquele dia, ter o que comer em casa ficaram desamparados, sem alternativa para substituir o desemprego ou o subemprego. A chegada da pandemia provocada pelo Novo Coronavírus fora determinante e desesperante, especialmente para aqueles milhões que não pertencem ao Cadastro Único do Ministério da Cidadania, não têm Bolsa Família, muito menos FGTS, RG, título de eleitor e um simples CPF regularizado. Um desses brasileiros, respondendo a um repórter, definiu-se como “uma pessoa que não existe”. Foi quebrada a rotina diária de passar a montar a barraquinha de biscoitos, balas e chocolate, e ficar sob sol e chuva à espera do resultado de suas vendas. No final do dia, depois das contas com o “empresário” (o dono da barraquinha e dos produtos), mal ou bem, restava algum para gastar na vendinha comprando a refeição das crianças e da mulher. Agora, nem pensar. A barraca não podia mais ser montada. O negócio terceirizado dessa “pessoa que não existe” fora fulminado pelas ações preventivas para conter o vírus.

Na comunidade onde esse típico nordestino acariocado mora, instalou-se o medo. As entidades que distribuíam cestas básicas cerraram as portas. As faxinas que sua mulher fazia foram desmarcadas e a hora de pagar o aluguel do quartinho se aproximava, ao passo que os sacos de arroz e de feijão murchavam. E a recomendação geral era “não sair de casa”. Como? Ficar sem comida? Aumentar a dívida na vendinha? Como pagar depois? Esse cidadão brasileiro, invisível, não viu outra saída.

A primeira fagulha de luz no fim do túnel chegou com uma cesta básica entregue por quem menos esperava: o “empresário” que fornecia as balas e os biscoitos para ele vender. Claro que na cesta havia muita bala e biscoito. Mas também açúcar, feijão e arroz. Emocionado, agradeceu,

Logo depois, uma das clientes da mulher ligou pedindo sua conta bancária (como se ela tivesse...). Queria depositar a diária, apesar de a faxina não ter sido feita. Benza Deus!

A escola das crianças, fechada, sem aulas, mandou aviso: distribuiria para os pais o estoque de alimentos destinados à merenda dos alunos antes que o prazo de validade vencesse.
O líder comunitário comunicou que o movimento Ação da Cidadania (fundado pelo sociólogo Herbert de Souza) estava recolhendo nos restaurantes estoque de alimentos in natura, que em breve também venceriam, e entregando para as associações distribuírem nas comunidades do Rio de Janeiro.

Nosso personagem começou a sentir alguma mudança. Será? Pensou esperançoso.

Os especialistas não parecem ver, ainda, essa tão esperada mudança na cultura de doação do brasileiro. E como seria bem-vinda para ajudar esses cidadãos invisíveis a tomarem rumo e acertarem o passo no caminho de um reconhecimento social... Ora justificam que a crise econômica e a política deixaram o brasileiro desconfiado ao escolher uma causa para contribuir. Ora argumentam que é uma questão de educação, que deve vir de casa e da escola. “O brasileiro não considera a doação como um ato de cidadania”. Alegam também que não há estímulo governamental para aumentar as doações. Esses espasmos de solidariedade nos momentos de crises são previstos por esses técnicos que dirigem associações e organizações sem fins lucrativos (ONGs). A prática que têm no dia a dia, tentando reverter a vida de inúmeros cidadãos invisíveis, embasa tais opiniões.

Apontam, no entanto, que estimular a cultura de doação seria um dos grandes passos para fortalecer a sociedade civil. Algumas iniciativas criativas germinam e trabalham para promover essa mudança no conceito de solidariedade. O Arredondar (arredondar.org.br), por exemplo, desde 2011 adota as microdoações, geradas a partir do troco no varejo. De centavo em centavo, já arrecadaram quase R$ 5 milhões através de 23 milhões de doações. No portfólio da entidade estão catalogadas mais de 80 ONGs certificadas, que são beneficiadas.

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que estamos vivendo com o coronavírus, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem. Elas atuam fiscalizando o comportamento do Estado, dão voz às populações e complementam a ação das políticas públicas. Nesses momentos a credibilidade, a capacidade e a organização para receber e distribuir doações mobilizam a solidariedade. Um exemplo foi o sucesso que a Comunitas (www.comunitas.org) alcançou ao levantar R$ 4,2 milhões para doar 60 respiradores para hospitais públicos de São Paulo e ainda mais R$ 23,5 milhões e mais 345 respiradores. O link https://emergenciacovid19.gife.org.br registrava R$ 1.037.862.747,00, no dia 08/04. Era o total parcial do levantamento feito pela campanha Emergência Covid-19, através de institutos, fundações e empresas.

Ações solidárias espontâneas brotaram também de março para cá. Dois restaurantes do Recife se revezam no fornecimento gratuito de almoço para os profissionais de saúde. Na marmita, um bilhete intitulado “Um sincero obrigado”. Inúmeros professores promovem aulas gratuitas de ginástica, de inglês, artesanato, gastronomia, administração de finanças e palestras. Médicos se oferecem nos prédios onde moram e na vizinhança para “avaliar situações de gastroenterites, hipertensão e outras doenças, para renovar receitas de remédios de uso contínuo e orientar sobre sintomas de urgências”. Jovens colocam avisos nos elevadores e os distribuem pelas mídias sociais (www.vizinhodobem.com.br) oferecendo-se para atender a idosos que precisem de compras de mercado ou farmácia.

Na situação em que vivemos, com uma pandemia que está matando dezenas de milhares de habitantes do planeta e esfacelando todas as economias mundiais, só há uma esperança para quem, hoje, se sente como “pessoa que não existe”: uma radical mudança no comportamento do ser humano, adotando o ato de compartilhar tempo ou dinheiro como uma ação civil transformadora e construtiva. Como? Deixando de querer só para si e conseguindo enxergar quem está ao seu lado, implorando para deixar de ser invisível.


RPD || Ricardo Tavares: Democracia estressada

Política norte-americana segue intensa e no centro da epidemia do coronavírus Covid-19 que assola os Estados Unidos. Enquanto Trump demostra grande dificuldade em se adaptar ao novo cenário para concorrer à reeleição, os democratas definiram Biden como o candidato à Presidência

O novo corona vírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa. Nos EUA, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano.

O Presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade.
No Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o Vice-Presidente Joe Biden e o Senador Bernie Sanders; Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato Democrata à Presidência.

O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado Democrata em eleições recentes. No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho.

Trump
Trump não esconde sua decepção com a pandemia. Esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico. Em fevereiro, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

O presidente dos EUA está mostrando grande dificuldade de se adaptar ao novo cenário. Sua administração está povoada de pessoas leais, independente de sua competência. Mesmo com os pacotes de apoio a pessoas e empresas já aprovados pelo Congresso, a implementação administrativa das políticas tem sido lenta e ineficaz.

Se os eleitores decidirem se preocupar com o desempenho do Presidente na área de saúde, a situação de Trump pode ser ainda pior, dependendo do status da pandemia próximo à data das eleições, 3 de novembro. De momento, ainda falta tudo nos hospitais americanos. Médicos compram suas próprias máscaras em muitos Estados. O governo federal não coordena as iniciativas dos estaduais, é cada um por si. Alguns Estados estão-se coordenando entre si. Os EUA ainda são o único país capaz de liderar uma ampla coordenação internacional de resposta à crise da pandemia, mas a diplomacia americana parece estar falida.

Biden
As eleições de novembro serão Trump X Biden. Joe, como o candidato é popularmente conhecido, fez uma campanha bastante errática nas primárias do Partido Democrata. Perdeu as três primeiras primárias. O crescimento de Bernie Sanders assustou os centristas do Partido, que se uniram em torno de Biden para impedir uma vitória do candidato visto como socialista. O golpe de misericórdia em Sanders, no entanto, foi dado pelos eleitores negros nas primárias do sul dos EUA. Foram vitórias avassaladoras em Estados onde os membros do Partido são predominantemente negros que criaram momento para a candidatura de Biden, até o ponto em que sua vitória se tornou certa. O conceito de “classe trabalhadora” de Sanders não atraiu o eleitorado negro.

Biden é admirado por seu grande trabalho como Vice-Presidente de Barrack Obama, o primeiro presidente negro da história do país. Mais: os eleitores negros são o grupo mais fiel ao Partido Democrata. As condições sociais desta população melhoram em administrações democratas. Sem uma maciça presença de eleitores negros nas urnas – o voto nos EUA é facultativo – é quase impossível uma vitória Democrata para a presidência.

Quatro anos atrás, Bernie Sanders continuou em campanha contra Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, mesmo depois de não ter mais chances de vitória. Isto contribuiu para o desgaste da candidatura de Clinton, e foi aproveitado pela campanha de Trump. Muitos eleitores que votaram em Sanders nas primárias do Partido Democrata vieram a votar em Trump, principalmente em Estados do meio-oeste. A saída de Sanders das primárias, diante da crise da pandemia e do risco de um prolongamento até o verão americano deste processo, tenta evitar uma repetição deste fenômeno.

No entanto, é impossível prever o resultado das eleições de novembro. Biden cresceu na adversidade durante as primárias. Venceu apesar de ter menos dinheiro de campanha do que Sanders. Mas mostrou deficiências como debatedor e ator de campanhas. Biden enfrentará em novembro a campanha extremamente bem financiada de Donald Trump, que joga pesado e não hesita em usar táticas de baixo nível.

Estresse
Nenhuma democracia ocidental em um país desenvolvido possui um partido político dedicado a desencorajar estrategicamente eleitores de irem às urnas. O Partido Republicano de hoje é um partido de base rural num país totalmente urbanizado. Reúne quatro forças essenciais para seu sucesso: uma aliança de grupos “pro-business”, religiosos evangélicos, defensores do acesso fácil a armas (organizados nacionalmente pela NRA – National Rifle Association), e o importante apoio do grupo de media Fox News, do empresário australiano-americano Robert Murdoch.

Em 2016, Trump perdeu no voto popular agregado nacionalmente, mas ganhou no Colégio Eleitoral, através do qual o presidente é escolhido por delegados eleitos Estado por Estado. Este Colégio é uma influência do federalismo do sistema político americano e neutraliza a influência dos Estados e das cidades mais populosas. Como o voto é facultativo, a lógica eleitoral tem dois elementos – motivar seus eleitores a ir votar e, ao mesmo tempo, desencorajar os eleitores de seu opositor a se apresentar nos locais de votação. A eleição ocorre num dia comum de trabalho. Nas últimas eleições presidenciais, o índice de votação variou entre 49%, em 1996, ao máximo de 58.2%, em 2008, quando Obama venceu pela primeira vez. Em 2016, somente 55.7% dos eleitores inscritos compareceram às urnas.

Um episódio preocupante ocorreu na semana passada em Wisconsin. O governador do Partido Democrata, Tony Evers, determinou o adiamento das primárias no Estado para junho deste ano, a fim de evitar a aglomeração de pessoas, por conta da pandemia. O legislativo estadual, controlado por Republicanos, apesar de os Democratas obterem a maioria dos votos no Estado, recusou a mudança. O caso foi parar na Suprema Corte do EUA, que deu ganho de causa aos legisladores. O voto ocorreu sob grande risco para os eleitores.

Esta batalha pelas condições de votação durante a pandemia pode chegar até o dia 3 de novembro de 2020, data das eleições presidenciais. O Partido Democrata apoia o voto pelo correio e outras medidas para maximizar a participação popular, ao passo que o Partido Republicano resiste à adoção maciça destas medidas. Este quadro levou o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que se tornou comentarista político, a proclamar recentemente: “A democracia americana pode estar morrendo.” Não está, mas certamente está bastante estressada, ainda mais em tempos de corona vírus.

*Ricardo Tavares é consultor internacional de empresas de tecnologia. É mestre em ciência política pelo Iuperj e membro do Council on Foreign Relations (CFR).


RPD || Marco Aurélio Nogueira: Serenidade, moderação, realismo

Bolsonaro torna ainda pior o grave momento que todos enfrentam por conta da pandemia do coronavírus - Covid-19, avalia Marco Aurélio Nogueira em seu artigo. Para ele, o presidente "não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais"

Discursos e narrativas à parte, é preciso ir ao centro da crise sanitária desencadeada pelo corona vírus. Dentre muitas coisas e tragédias humanas, ela expôs e agravou outras crises, que já vinham em curso. A econômica e a política, evidentemente, mas também a crise de ideias.

Do presidente, não parte qualquer mensagem de apaziguamento e serenidade, fatores estratégicos para que se possa ter sucesso no enfrentamento da epidemia. O governo não coordena seus próprios ministros, não coordena os entes federativos, os cidadãos e os governantes subnacionais. Em vez disso, sobre os esforços do Ministério da Saúde e dos profissionais do sistema sanitário, o que há é disposição para o conflito, a arruaça, a briga de rua. Bombeiros movimentam-se o tempo todo, mas pouco fazem para conter a fúria e o ódio que se alojaram no Palácio do Planalto. A suspeita é que os que dizem querer diminuir danos não sabem bem o que desejam. Faltam-lhes coragem, clareza de propósitos, aquilo que os antigos chamavam de hombridade: honradez e determinação.

Está dada uma articulação maléfica, que se reproduz ainda que em condições menos favoráveis do que no ano passado. O presidente fala e a malta enlouquecida que o segue reverbera imediatamente, em alto som. É uma mensagem de guerra, não contra o vírus, mas contra os que são considerados adversários do bolsonarismo. Não se pede paz, mas atrito, conflito, ajustes de contas. Junto vem um cálculo eleitoral rasteiro, balizado por aquele medo pânico de que o vírus estrague os planos e congestione a estrada do poder. Os olhos esbugalhados apontam para 2022 e tudo é feito para que os fatos duros da vida se enquadrem naquilo que se deseja reproduzir politicamente. É o império de uma fantasia mesquinha. Azar da realidade.

Outra articulação, benéfica mas mais complexa, envolve prefeitos e governadores, que lidam diretamente com comunidades, bairros, pessoas de carne e osso, vida concreta. Pregam o confinamento porque sabem que, sem ele, os sistemas estaduais e locais entrarão em colapso. Tornaram-se agentes decisivos do combate à crise sanitária. Demarcam novo espaço na política nacional.

O isolamento está sendo compreendido pela população e a grande maioria, segundo pesquisas recentes, concorda que ele é vital no momento. Mas os sinais contraditórios são muitos, a dubiedade do discurso governamental confunde, a cultura presidencialista do País faz com que as pessoas valorizem o mau exemplo dado pelo presidente e desconfiem das outras orientações. É uma luta surda, diária, um embate incessante entre diretrizes que buscam preservar vidas e diretrizes tresloucadas que alegam privilegiar o trabalho.

Basta que 20% dos brasileiros desobedeçam para que 50 milhões de pessoas passem a fazer a festa do Covid-19. Só em São Paulo seriam cerca de 8 milhões. Sabe-se bem que não há como manter todos confinados por longos períodos. Não é só porque a economia não pode parar. É porque as pessoas não conseguem ficar em casa passivamente, olhando a vida pelas janelas. Há inquietação e insegurança nelas. A população é um conjunto complexo. Está composta por gente que não se controla, gente que não tem para onde ir, gente que não tem onde ficar, gente que não tem imaginação, gente que gosta de agitar. Bolsonaristas fanáticos fazem parte dela. Estão nas ruas, em carreatas e abraçando o “mito”, como se não houvesse amanhã.

São pessoas desprovidas de inteligência cívica, que não se orientam pelo bom senso. Quantos seriam bolsonaristas, quantos são simplesmente tontos ou irresponsáveis, quantos são ingênuos, desinformados ou burros? Quantos irão se arrepender ou assumir a culpa pela contribuição dada à infecção generalizada e rápida da população, com o correspondente colapso do sistema de saúde?

São perguntas que apontam para o dilema que está atravessado na garganta da democracia brasileira: como sair da crise em que nos encontramos, não somente a sanitária, mas a política, aquela que tem a ver com a reorganização do Estado e do próprio sistema representativo? Aquela que tem a ver com a organização de um governo que governe, que articule os interesses da maioria da população, promova um crescimento econômico inteligente, não produtivista, distribua renda e combata as desigualdades abissais que dilaceram a sociedade, que “pacifique” a população?

A perspectiva política precisa olhar para além do futuro imediato, por mais que tenha também de operar com os olhos nas circunstâncias do presente, na crise sanitária e nas eleições municipais. 2022 passa por 2020 e será definido pelo que vier a ser feito depois da pandemia. Há uma tarefa imediata: articular os democratas para que seja possível fazer frente ao bolsonarismo. O realismo político precisa ser cultivado com dedicação.

O bolsonarismo ultrapassa o clã presidencial. Ele é sobretudo um estado de espírito. Não é “antipetista”, mas antidemocrático, segue um patriotismo tosco e cego, liberando pelos poros aquilo que tem sido chamado de “olavismo”, uma gosma venenosa hostil à comunidade política, à vida democrática. Não é religioso, pois lhes faltam a humildade, a compaixão, a solidariedade. Sua natureza é o fanatismo, a disposição de fazer tudo aquilo que o mestre mandar. Para esse estado de espírito, a realidade não é algo que se deve compreender, mas mero componente da paisagem desenhada por ideologias e convicções.

Diferentemente das anteriores, a pandemia atual eclode em uma estrutura mundial tão interconectada e tão “móvel”, com pessoas e mercadorias atravessando sem cessar os continentes, com variações climáticas intensas, que permitem a todo e qualquer patógeno se espalhar com extrema facilidade. Ao menos no médio prazo, não haverá como impedir que outras epidemias se disseminem sequencialmente, mais avassaladoras ou menos.

A resposta para isso é conhecida por todas as pessoas sensatas: aposta na ciência, melhoria radical dos sistemas de saúde, produção autóctone de equipamentos hospitalares, educação, cooperação, articulação internacional, políticas econômicas inteligentes, ambientalismo ativo.

Caminhar em sentido contrário, propalando curas milagrosas e poções mágicas, banalizando o vírus e politizando o combate a ele é simplesmente ir contra a vida.

A pandemia modificou o cenário político, externo e interno. No Brasil, a polarização mudou de eixo. A questão passou a ser isolamento ou não, saúde ou economia. O presidente percebeu que a água chegou ao pescoço e se debate freneticamente, pratica uma barbaridade por segundo, compra uma briga por dia. Não governa, nem mostra interesse em fazer isso. Sua meta é convencer a população de que o inimigo por trás do vírus são seus adversários políticos, o PT, a esquerda e o “comunismo” à frente.

O petismo, por sua vez, encurralado e sem força propositiva, procura aproveitar a posição em que está sendo colocado, pois ela embala seus sonhos de revanche e retorno glorioso. Porém, como escreveu a jornalista Rosangela Bittar (Estadão, 15/04/2020, p. A8), “ambos, Bolsonaro e PT, recrudescem a polarização para evitar que o centro, em crescimento evidente, os atropele. Jogam para daqui a três anos sem saber o que acontecerá daqui a três horas. Mas já é possível prever que o voto antipetista não irá mais para Bolsonaro e o voto antibolsonaro não irá, necessariamente, para o PT. O mundo está se transformando e só as carolinas não veem”.

O estado de espírito bolsonarista não será enfrentado com bravatas personalistas ou lideranças carismáticas, mais populistas ou menos. Exigirá uma perseverança pedagógica, um processo de educação cívica que somente poderá ser posto em marcha se houver articulação democrática consistente. Tendo em vista a atual correlação de forças, a estrutura existencial da época e a situação social – desnivelada em termos de renda e inclusão, fragmentada ideologicamente, muito polarizada em termos políticos –, essa articulação não poderá ser “revolucionária”, quer dizer, seu ponto de inflexão não terá como se firmar a partir da esquerda. Seu campo de atuação será democrático e republicano, seu reformismo precisará ser seletivo, focado, liberal-social, não poderá ser concebida como a abertura de um ciclo de reformas estruturais profundas, “populares”. A moderação será sua condição de existência. A busca de renovação se condensará no surgimento de novas lideranças políticas e de composições políticas que estejam além dos partidos existentes. O que está estabelecido não poderá ser simplesmente reproduzido. Sob pena de se ter mais do mesmo.

De resto, é plantar no deserto, achar que a “sociedade” irá se voltar contra os políticos em nome da democracia. Se alguma revolta desse tipo ocorrer, seu Norte não será democrático, como nos revela a marcha do bolsonarismo. Se quisermos democracia, o caminho há de ser outro e terá de ser construído pelas elites políticas, pela intelectualidade, pelos partidos, pelas organizações da sociedade civil. Politicamente, com persuasão, realismo, educação cívica, serenidade e cooperação.

 


RPD || Eduardo Rocha: O pós-coronavírus - Por uma Conferência Mundial pela Produção e Emprego

Dar respostas rápidas para salvar vidas e manter a produção e serviços é o principal desafio enfrentado em todos os países por conta da pandemia do coronavírus Covid-19

A violência meteórica da pandemia global do coronavírus em todo o sistema de reprodução social do gênero humano irrompe nova época histórica, cujo enigma desafia a inteligência a decifrá-la de modo a dar respostas às exigências emergenciais – salvar vidas em risco e manter a produção e serviços –, e futuras da humanidade.

O infarto econômico mundial reconfirmou ontologicamente o trabalho – este eterno e necessário intercâmbio entre o gênero humano e a natureza para a reprodução da vida – como a força material fundante na gênese e no desenvolvimento do ser social, e revelou a necessidade de nova crítica de toda economia política vigente e a reinvenção das relações capital-trabalho.

No Brasil e no mundo, surgiram excelentes estudos explicativos sobre as recentes medidas governamentais para atenuar os efeitos recessivos da pandemia que mundialmente coexiste agora com a quarta revolução industrial. Dois fenômenos que intensificam uma conexão histórico-universal nunca vista, realçam velhas e novas contradições, operam e operarão transformações na totalidade do ser social e demandarão a criação inédita de uma governança global para a construção de uma nova sociabilidade humana ao longo do século XXI.

A pandemia retrai a taxa real de acumulação de capital e problematiza o funcionamento sistêmico do capitalismo global. A reativação econômica e a reinserção produtiva de trabalhadores demandam mais do que as atuais terapias intensivas. Demandam nova arquitetura socioeconômica global, voltada para o futuro da humanidade, de modo a livrá-la da força gravitacional da recessão sistêmica tenebrosa, da profunda insegurança, da pavorosa incerteza e de um futuro sinistro e sombrio.

Pode ajudar na construção dessa nova arquitetura socioeconômica global a realização, sob a responsabilidade da Organização das Nações Unidas (ONU), de uma Conferência Mundial pela Produção e pelo Emprego (CMPE), visando a harmonizar os fluxos monetários e financeiros internacionais, com vistas a canalizar a poupança pública e privada em investimentos reais com as globais necessidades sociais, produtivas, de emprego e desenvolvimento global dos povos.

Seria como uma “Conferência de Bretton Woods da Produção e do Emprego” focada na criação de políticas e ações multilaterais para fazer valer a reativação econômica – da produção, do emprego, do pleno funcionamento da rede de proteção social e pavimentar minimamente as vias macroeconômico-globais para impulsionar o desenvolvimento em vastas regiões do planeta.

Além dos chefes de Estado, desta Conferência deveriam participar os demais organismos multilaterais e da sociedade civil. Uma Conferência não para fazer futurologia social utópica, mas concentrar-se na reflexão e proposição de elementos constitutivos de uma macroeconomia global num quadro histórico no qual o amado e odiado clássico keynesianismo, circunscrito na esfera do Estado-nação, é insuficiente na produção de respostas. Tanto de economias nacionais integradas globalmente quanto de um mundo integrado que ainda não dispõe de um governo mundial. São muitas questões em aberto. Se a teoria é feita por dúvidas, a política é feita com convicção. E hoje esta convicção aponta para a necessidade desta Conferência.

Por fim, a questão da redução da jornada de trabalho, a contratação de trabalhadores adicionais dentro de um plano de redistribuição do emprego (na indústria, agropecuária, construção civil, comércio, serviços, setor público) com elevação da produtividade adquirirá importância universal, tanto no aspecto teórico, como no aspecto político prático para a reativação e sustentabilidade do desenvolvimento. A antítese disso é o aumento da superexploração do trabalho.

Em 1998, a França reduziu a jornada de trabalho para 35 horas com duas medidas complementares: a) redução de impostos sobre a folha de pagamento e b) contratação de trabalhadores adicionais aos já existentes. No Brasil, contudo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, em plena pandemia, prometeu reduzir impostos da folha de pagamento após a crise e não exigiu contrapartida alguma dos empresários.

O futuro das relações capital-trabalho dificilmente reeditará as atuais, que nada mais são do que a expressão superestrutural de relações de produção de um mundo que está ruindo aos olhos de todos. É ilusão querer que o mundo “volte à normalidade do passado”. Não há volta. Aquele mundo não existe mais. O caminho terminou, a viagem começa, diria Georg Lukács (1885-1971). O coronavírus abriu nova página da história e desafia o gênero humano a escrevê-la e apontar para onde ir: barbárie ou civilização?

Alea jacta est.

 


Ricardo Lewandowski: Covid-19 e federalismo

À União compete coordenar ações, estabelecer regras e ofertar apoio material 

A pandemia desencadeada pela Covid-19, que em poucos meses infectou e matou dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo revelou, dentre outras coisas, as fraquezas e virtudes das diferentes formas de governança. Entre nós, serviu para testar os limites do federalismo adotado pela Constituição de 1988.

Do ponto de vista estrutural, existem basicamente dois tipos de Estado: “unitários” e “compostos”. Os primeiros apresentam apenas um centro de impulsão política. Seus súditos submetem-se a um único governo e ordenamento legal. As circunscrições em que se subdividem só possuem autonomia administrativa. Predominam em países com dimensões territoriais ou demográficas modestas e populações homogêneas.

Os compostos, sobretudo os federais, geralmente prevalecem em nações com tamanho maior e composição mais heterogênea. Fracionam-se em unidades territoriais dotadas de autonomia política. Por isso, seus cidadãos sujeitam-se simultaneamente às autoridades centrais, regionais e locais, cujas determinações e leis são obrigados a observar.

A federação é uma novidade histórica. Resultou da associação das 13 ex-colônias britânicas na América do Norte, tornadas independentes em 1776. Foi concebida para assegurar aos associados as vantagens da unidade, sem prejuízo de preservar as distintas particularidades. Mais tarde, constatou-se que também contribui para fortalecer a democracia, pois promove a desconcentração do poder e facilita a aproximação do povo com os governantes.

Inspirado na experiência dos EUA, o Brasil adotou o modelo em 1891, na primeira Constituição republicana. A partir de então, todas as Cartas políticas subsequentes o incorporaram, exceto a de 1937, sob a qual vicejou a ditadura getulista.

Ocorre que os estados-membros, desde quando foram instituídos, em substituição às antigas províncias imperiais, jamais foram dotados de poder e recursos compatíveis com suas necessidades, permanentemente concentrados no governo central. Já os municípios, embora também vítimas de uma crônica carência de meios, sempre dispuseram de considerável autoridade para regular assuntos de interesse local.

Para sanar esse desequilíbrio, a nova ordem constitucional adotou o denominado “federalismo cooperativo”, no qual União, estados e municípios passaram a compartilhar competências e rendas para buscar um desenvolvimento harmônico e integrado.

Tal evolução, à toda evidência, precisa ser levada em conta pelos diferentes níveis político-administrativos no combate à Covid-19. À União compete coordenar as ações, mediante o estabelecimento de regras gerais e a oferta de apoio material, porque lhe incumbe, a teor do artigo 21, inciso XVIII, da Lei Maior, “planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas”.

Os entes regionais e locais não podem ser alijados dessa batalha, porquanto têm a obrigação de tomas as medidas necessárias para enfrentar a doença. Além de outras competências comuns que compartilham com a União, cabe-lhes “cuidar da saúde e assistência publica”, bem como “organizar o abastecimento alimentar” nos respectivos âmbitos de atuação, segundo o artigo 23, incisos II e VIII, do texto constitucional.

O federalismo cooperativo, longe de ser mera peça retórica, exige que seus integrantes se apoiem mutuamente, deixando de lado as divergências ideológicas ou partidárias dos respectivos governantes. A grave crise sanitária e econômica na qual nos debatemos atualmente demanda juízo, ponderação e responsabilidade de todos.

*Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo


Cristovam Buarque: Keynes ético

Quem defendeu a Ciência na epidemia deve respeitar a aritmética fiscal

O coronavírus trouxe a percepção de que a economia deve ter compromisso com a solidariedade. Mesmo veículos como “The Economist” e “Financial Times” têm manifestado a necessidade de uma reorientação na relação da economia com a sociedade, para enfrentar a tragédia da pobreza e do meio ambiente. Percebe-se a indecência da concentração de renda, da persistência da pobreza, da barbaridade dos “mediterrâneos invisíveis” barrando os pobres para proteger aos ricos. Na crise econômica do coronavírus, até os mais arraigados defensores do liberalismo econômico a qualquer custo passaram a sustentar políticas e gastos públicos para atender a necessidades da saúde, assegurar renda, recuperar empregos e proteger empresas. Passaram a apoiar medidas keynesianas, mesmo ao custo da emissão de moedas e alargamento da dívida pública.

Descobriu-se que respirar e comer são igualmente importantes para a saúde e a vida, mas o oxigênio é mais urgente que a comida. Da mesma forma que na guerra em que a produção de armas e o salário dos soldados são mais urgentes do que a produção de automóveis e o salário dos operários. Por isso mesmo, passaram a chamar essas estratégias de economia de guerra. Este exemplo correto para os tempos da pandemia do coronavírus deveria servir para o momento posterior: uma economia de guerra para superar a persistência da pobreza. E enfrentar as outras epidemias que nos contaminam há séculos: 100 milhões de pessoas sem tratamento de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões sem saber ler, 70 milhões sem educação de base, 13 milhões de desempregados, milhares com dengue, malária e sarampo. A economia de guerra adotada para enfrentar as consequências do coronavírus deve dar lugar a outra economia de guerra para enfrentar o “politicus vírus” que contamina as prioridades dos nossos gastos públicos.

Essa economia precisa entender que a pobreza não se erradica por transferência de renda mínima. O que eliminaria a pobreza é fazer com que todos tenham acesso aos bens e serviços essenciais a uma vida digna: educação de qualidade, água e esgoto, serviço de saúde eficiente, transporte urbano de qualidade e uma renda mínima. Uma solução é oferecer renda, condicionada a que a população pobre produza o que ela precisa para sair da pobreza: contratada para a construção de escolas, saneamento, sistemas de coleta de lixo, podendo consertar e pintar suas casas em terrenos com a propriedade assegurada por uma reforma da estrutura fundiária urbana, recebendo bolsas para garantir a permanência dos filhos na escola ou para os adultos serem alfabetizados. Isso é um keynesianismo produtivo e social.

Enquanto no keynesianismo tradicional dos países ricos o governo transfere renda para o beneficiado não produzir mercadoria, e o mercado oferece os bens privados para os pobres, que já contam com os serviços públicos básicos, no keynesianismo produtivo e social o governo promove incentivos sociais, transferência de renda condicionada à produção dos bens e serviços cuja oferta elimina a pobreza.

Passada a pandemia do coronavírus, o populismo vai defender a manutenção das atuais rendas criadas como emergência, sem aproveitar o poder mobilizador dessa transferência para que se produza o que os pobres precisam, em troca da renda. Mas, para que o pobre se beneficie plenamente, é preciso que o custo seja feito com responsabilidade. Quem defendeu a Ciência no enfrentamento da epidemia do coronavírus deve respeitar a aritmética fiscal, porque sem ela os pobres e os jovens pagarão depois o que receberem agora. Com a inflação e a dívida pública, como tem sido feito há décadas. Por isso, para ser eficiente e justo na guerra pela abolição da pobreza, o keynesianismo ético deve ser produtivo, social e responsável.