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RPD || Alberto Aggio: Em meio à pandemia, um espectro nos assola
A pandemia da Covid-19 está obrigando a repensarmos a economia, a cultura, a política e até nossa “filosofia de vida”, Avalia Alberto Aggio. O avanço do coronavírus mostrou onde a política falhou e onde acertou
Ao contrário da filosofia por vezes alucinante de Slavoj Zizek, que passou a profetizar o “novo comunismo” como resultado da superação da pandemia e da tresloucada contestação de Ernesto Araujo, que o tomou como dado de realidade a atestar a existência da ameaça comunista, não há nenhum espectro desse tipo a assombrar o mundo[1]. O que há é a realidade factual da pandemia a ditar: “decifra-me ou te devoro”.
O enfrentamento do coronavírus implicou ouvir especialistas e procurar seguir suas orientações. Contra algo desconhecido, os cientistas de todo o mundo trabalham para produzir medicamentos mais eficazes e uma vacina duradoura. Mobilizaram-se recursos, organização e informações claras à população. Mas o alarme foi dado: somos nós, os humanos, que precisamos decifrar o mundo que inventamos. Essa peste não vem dos céus, vem da natureza, e fomos nós que a disseminamos. Não haverá o nascimento da “boa sociedade” a partir de ruínas. Não é razoável supor isso. A pandemia nos obriga a repensar a economia, a cultura, a política e até nossa “filosofia de vida”. Força-nos a repensar a necessidade de governança em plano mundial – Daniel Innerarity construiu uma bela imagem: Pandemocracia, seu mais recente livro[2].
O avanço da pandemia mostrou onde a política falhou e onde acertou. Lideranças previdentes agiram rápido e obtiveram êxitos. Lideranças obtusas, como Jair Bolsonaro, agiram sob interesses pessoal e eleitoral, e as consequências estão sendo desastrosas.
Fernando Gabeira observou que, diferente de outros países, nosso problema é termos “o vírus e Bolsonaro”. O presidente minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, ataca a mídia e insanamente perambula, sem máscara, por Brasília e cidades próximas, promovendo aglomerações e apoiando manifestações contra a democracia.
Pensou-se que o Brasil teria um gap de vantagem frente aos países onde o vírus emergiu mais cedo. Mas essa vantagem foi perdida a partir do momento em que Bolsonaro transformou a saúde num território de guerra. Isso inviabilizou que se estabelecesse uma estratégia séria e planejada de “isolamento social”.
Enquanto a pandemia avançou, Bolsonaro martelou pela “volta ao trabalho” e também propôs, na reunião ministerial de 22 de abril, um decreto para armar a população contra as restrições adotadas por governadores e prefeitos. Mais do que politizar o combate à pandemia, Bolsonaro avançou o sinal, sugerindo uma “rebelião armada” de “resultados imprevisíveis” e seguramente deletérios para a Nação.
O resultado da política de Bolsonaro em relação à pandemia não tardou e instalou a cizânia entre autoridades, acabando com a sinergia entre os entes federativos. A conexão informativa do Ministério da Saúde com a sociedade evaporou-se. A consequência veio no aumento do número de mortos e de contaminados, que o governo só não seguiu a estratégia de sonegar informações porque a reação foi generalizada e a ameaça de impeachment seria real.
Sem Estado nem governo, indefesos, os brasileiros se socorrem nas informações da mídia e nos profissionais da saúde, vistos como verdadeiros heróis. Exauridas, as autoridades subnacionais, que continuam resistindo, empreendem, sob pressão de diversos setores, uma temerária flexibilização da quarentena em situação absolutamente desfavorável.
Entrar ou sair do confinamento foi, em vários países, determinação impingida pelo vírus e não uma opção irrefletida. O que esteve em jogo foi a vida das pessoas e o bem comum. Foram escolhas políticas a partir de orientações científicas, mas sem obediência cega, ressaltando a importância tanto da complexidade quanto da responsabilidade coletiva que tem a política em âmbito local, nacional e mundial.
Em Zizek e Araujo só há fantasmagorias advindas de uma visão mitológica do comunismo, no primeiro, e de um anticomunismo em roupagem antiglobalista, no segundo. O espectro que ameaça o país é outro. Isolá-lo e superá-lo demandará que nossa “intransigência democrática” caminhe ao lado do realismo e conte com muita articulação política. Mesmo sob ameaças reiteradas do bolsonarismo – com sugestões golpistas envolvendo as FFAA –, observam-se crescentes sinais de que os brasileiros começam a se mover para enfrentar essa insensatez que, entre nós, acompanha o vírus, na sua senda de exaurimento da democracia e da Nação.
*Alberto Aggio é historiador e professor-titular da Unesp
[1] Cf. Žižek, Slavoj. Virus. Milão, Ponte Alle Grazie, 2020; o texto de Ernesto Araujo está em https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus
[2] Innerarity, Daniel. Pandemocracia – una filosofia de la crisis del coronavirus. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2020.
‘Nova epidemia é só uma questão de tempo’, afirma Pedro Scuro Neto
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, sociólogo destaca necessidade de focar nas desigualdades que fazem as crises serem mais devastadoras
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“No mundo real, enquanto os países se mobilizam para conter o coronavírus e suas nefastas consequências, não se pode perder de vista quadro bem mais assustador: uma nova pandemia é só uma questão de tempo”. A afirmação é do sociólogo e jurista Pedro Scuro Neto, diretor da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris), em artigo que publicou na 19ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.
Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online
Pedro Scuro, que também é autor de Sociologia Geral e Jurídica, cuja 8ª edição (A Era do Direito Cativo) é publicada pela Saraiva, diz que o surto global de Covid-19 não foi uma anomalia. “Doenças infecciosas emergem e reemergem em velocidade nunca vista ao longo da história. De 1980 a 2013, o número de epidemias anuais oscilou de 1.000 a mais de 3.000”, alerta.
Segundo o artigo de Scuro publicado na Política Democrática Online, doenças infeciosas, como Zika, MERS-CoV, SARS, cólera, tuberculose, HIV, influenza e ebola, matam milhões todos os anos e, no seu rastro, destroem economias, causam pânico e, como no Brasil, crises institucionais. “Situação que expõe a fragilidade das economias, a insuficiência das redes de segurança social e permanente subinvestimento em sistemas de saúde pública”, critica ele.
Em sua análise, Pedro Scuro Neto sugere que, primeiro, é preciso reforçar a capacidade do sistema de saúde na detecção e contenção de doenças com organismos centralizados de vigilância de dados que articulem informações de laboratório com dados populacionais e medidas clínicas.
Em segundo lugar, conforme ele aponta, é necessário desenvolver comunicação e coordenação, articulando centros de controle e prevenção com organismos da sociedade civil capazes de guiar respostas durante as crises e preparar protocolos baseados em evidências e boas práticas de saúde mesmo em tempos em paz. “Finalmente, focar nas desigualdades que fazem as crises tão devastadoras, atentando para pequenas empresas, trabalhadores e pessoas mais vulneráveis”, pondera.
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‘Aldir Blanc foi um monstro, um gênio da palavra’, afirma Henrique Brandão
Em artigo na revista Política Democrática Online, jornalista destaca perfil de compositor vítima do coronavírus
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“O que dizer de Aldir Blanc em um momento de profunda tristeza como esse?”, pergunta o jornalista Henrique Brandão, em artigo que publicou na 19ª edição da revista Política Democrática Online. “Como compositor, é um dos maiores que a MPB já teve. Um monstro, gênio da palavra”, ele responde, em seguida. Aldir também foi poeta, letrista e cronista.
Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online
A revista é produzida e editada pela FAP, que disponibiliza todos os conteúdos da publicação, gratuitamente, em seu site. O compositor Aldir Blanc, conhecido por músicas como "O Bêbado e a Equilibrista", eternizada na voz de Elis Regina, morreu em 4 de maio deste ano, no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, após luta contra o coronavírus. Ele tinha 73 anos.
“Todos nós somos ‘reféns’ de Aldir”, diz Brandão. “Quem nunca sambou um samba seu? Quem nunca dançou, com a ponta torturante de um band-aid no calcanhar e embalado por uísque com guaraná, um bolero dele?”, questiona.
Segundo o autor do artigo publicado na Política Democrática Online, o Aldir mais conhecido de todos é o letrista de sucessos maravilhosos, tanto na parceria com João Bosco como com músicos do talento de Guinga, Moacyr Luz e Cristóvão Bastos, entre outros, responsável por sucessos que qualquer um assobia fácil pelas ruas, entoa nas mesas dos bares ou ouve com frequência nas rodas de samba.
“É aquela música que o cidadão comum conhece, canta inteira, mas, muitas vezes, nem sabe quem é o autor. Isso é privilégio de poucos, reservado somente aos maiores, escolhidos a dedo pelo que o destino lhe reservou. Coisa de Caymmi, Luiz Gonzaga, Noel, Vinícius”, escreve o jornalista.
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Pandemia deixa mais dramática imensa desigualdade no Brasil, diz Adriana Novaes
Em artigo na revista Política Democrática Online, pesquisadora diz que novos contextos emergenciais são os que mais exigem de vida espiritual
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Em tempos em que o novo coronavírus torna pior o que era ruim e faz com que os problemas fiquem ainda mais dramáticos, a filosofia atenua a aflição e pode socorrer a população. A avaliação é da pós-doutoranda em filosofia pela USP (Universidade de São Paulo) Adriana Novaes, em artigo que publicou na 19ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.
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Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. “A Covid-19, o Sars-Covid-2, o novo coronavírus, veio para tornar o que era ruim ainda mais exposto, fazer os problemas ficarem ainda mais dramáticos, como a imensa desigualdade de nosso país”, observa.
De acordo com a autora do artigo publicado na Política Democrática Online, é nesses momentos de incerteza que a filosofia pode ser um socorro. “Não porque ela dê respostas definitivas, nem mesmo porque atenue a aflição. De modo algum. Ela é o despertar e a investigação acerca do que tem significado, a paralisação do espanto e a exigência da busca por possibilidades novas”, explica.
A vida do espírito foi examinada pela filósofa Hannah Arendt no final de sua vida, a última etapa de uma trajetória intelectual marcada pelo esforço de compreensão do fenômeno mais importante e traumático do século 20, o totalitarismo, e o novo tipo de mal que surgiu nele, a banalidade do mal. “Arendt se viu desafiada a examinar as atividades do espírito, suas concepções ao longo da história da filosofia, e resgatar seus significados. São os novos contextos emergenciais os que mais exigem de nossa vida espiritual”, conta Adriana.
Segundo a pesquisadora, essas atividades são espirituais porque não correspondem apenas a estruturas de nossa mente, mas são capacidades em interrelação dinâmica, habilidades que nos dão perspectivas de viver e dotar de sentido, criar e escolher, aquilo que há de mais complexo e extraordinário em nossa condição humana. “Essas atividades – o pensar, o querer e o julgar – são faculdades que precisamos exercitar para agirmos de acordo com a potência de nossa humanidade”, escreve ela.
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O imortal, de Maurício Lyrio, é opção para esquecer agruras da quarentena
Em artigo na revista Política Democrática Online, André Amado recomenda obra de embaixador do Brasil no México
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online, André Amado, recomenda leitura de alto nível, que, segundo ele, fará esquecer as agruras da quarentena. Ele conta aos internautas uma análise sobre o livro O Imortal (Companhia das Letras), a mais nova obra do embaixador brasileiro no México, Mauricio Lyrio, em artigo que publicou na 19ª edição da revista, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).
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O Imortal é o segundo livro de Lyrio e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2019 e do Prêmio Oceanos – Itaú Cultural, no mesmo ano. A seguir, leia trechos do artigo de André Amado:
O imortal tem como personagem central Cassio Haddames, um embaixador lotado em Brasília sem maior brilho profissional, mas que é eleito pela Academia Sueca para receber o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro brasileiro a ser contemplado com o cobiçado galardão. Sua candidatura fora proposta pelo ministro das Relações Exteriores, em exposição de motivos, dirigida ao presidente da República, iniciativa que incluía – na verdade, tinha como objetivo maior – vender uma segunda candidatura, a de Sua Excelência ao Prêmio Nobel da Paz. O texto desse expediente, cuja leitura já vale a do livro, reproduz na ficção um exemplo comum na Esplanada dos Ministérios, de como altos membros da burocracia tentam chaleirar o ego de seus superiores. No caso, do mais alto mandatário do pais, na aposta de que ninguém vira o rosto para o horizonte faiscante de tamanho mimo?
Acontece que os suecos aceitaram conceder o Nobel de Literatura ao embaixador, mas passaram solenemente ao largo do pleito presidencial.
De sua parte, Haddames estava até certo ponto constrangido pela concessão do Prêmio. Tal como não se cansava de repetir um despeitado jornalista da terrinha, o próprio Cassio Haddames também tinha dúvidas quanto à justiça da honraria recebida. Ele apenas escrevera três romances, que somavam, juntos, 954 páginas. Daria para justificar a homenagem maiúscula da Academia Sueca? Tanto mais na comparação com a produção literária de um Bandeira, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, entre tantos outros, jamais considerados por Estocolmo.
Em meio a essa crise de consciência, duas surpresas aguardariam o agora ilustrérrimo embaixador em seu retorno ao Brasil. Primeira, ainda no aeroporto, um comitê de recepção desfraldava faixa monumental com o nome do premiado e dizeres em letras garrafais: O NOBEL É NOSSO! E a segunda foi de início uma sondagem, que rápido ganhou foros de irrecusável gestão, orquestrada por raposas da cena política brasileira, para que Cassio Haddames aceitasse disputar as próximas eleições para presidente da República.
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Everardo Maciel: A indispensável tarefa de cuidar dos vivos
A tragédia da pandemia, no Brasil, tornou visíveis graves patologias no Estado e na Sociedade, que permaneciam disfarçadas pela nossa histórica incapacidade de tratar os problemas com responsabilidade e pela degradação do pouco que existia de empatia.
O Estado, vilipendiado pela corrupção sistêmica e pelo corporativismo, é incapaz de exercer suas responsabilidades mínimas.
A saúde pública, por exemplo, a despeito do honroso esforço dos que nela militam, é ineficiente e dispendiosa. Sua gestão, não raro, se subordina, ao loteamento político, que desagua invariavelmente em escândalos.
Na elite do serviço público, sequer se fez valer a regra constitucional do teto remuneratório.
No Judiciário, são espantosos os artifícios para concessão de gratificações disfarçadas em indenizações para contornar o teto. É inadmissível a concessão de auxílio moradia, quando milhões de brasileiros não têm onde morar ou moram em condições indignas.
No Legislativo, as superlativas cotas para o exercício da atividade parlamentar constituem uma deplorável forma de remuneração, atentatória à pobreza da população.
As repercussões sociais e econômicas da pandemia serão devastadoras. Como, todavia, iremos cobrar sacrifícios de todos, se a elite do serviço público goza de privilégios, antes inaceitáveis e hoje acintosos? O exemplo é uma didática eficaz.
Poucas vezes, em nossa história, o equilíbrio institucional esteve tão ameaçado. A sensatez é espancada diariamente por incontinência verbal ultrajante. As redes sociais são dominadas por ódio e polarização extrema. O vandalismo, mesmo nas atuais circunstâncias, está presente nas ruas.
Tudo faz lembrar o que disse Ortega y Gasset (“Meditações do Quixote”), em 1914: “A moradia íntima dos espanhóis foi tomada a tempo pelo ódio, que permanece ali artilhado, movendo guerra ao mundo”.
Torço vivamente por um desfecho civilizado, mas receio que venhamos a ter graves transtornos.
A hora é de prosseguir com o enfrentamento da pandemia. É falso o dilema entre saúde e emprego. Seria insensato prescrever isolamento social senão como estratégia - não a única - de política sanitária. Ainda que seja óbvio, não esqueçamos que mortos não produzem, nem pagam impostos.
O enfrentamento não pode, entretanto, interditar reflexões sobre o que fazer para além da política sanitária.
Atribui-se ao Marquês de Alorna, resposta dada a Dom José I, rei de Portugal, que indagara sobre o que fazer após o terremoto que, em 1755, devastou Lisboa: “sepultar os mortos e cuidar dos vivos”.
Ainda que nem sempre estejamos sepultando os mortos com a reverência ditada por ancestrais tradições, é preciso recrutar contribuições para o futuro.
Apresso-me em oferecer mais sugestões no campo tributário.
Convém que, imediatamente, se proceda à completa desoneração tributária da produção e distribuição de vacinas. Tal iniciativa dispensa justificações e seria inviável se estivéssemos amordaçados pela infeliz tese da alíquota única e vedação de incentivos.
A administração tributária deveria cuidar da certificação de créditos e prejuízos acumulados, que somados aos precatórios, facultem, no futuro, uma ampla compensação com créditos inscritos em dívida ativa.
Tributos com vencimento postergados de setores debilitados terão que ser parcelados. Sem prazos fixos e anistias, como tem sido habitual, mas vinculados à receita bruta, a exemplo do Refis original (1999), permitindo assim uma convivência flexível com a crise.
É tempo de disciplinar o Bônus de Adimplência Fiscal (Lei nº 10.637 de 2002), que reduz a tributação dos contribuintes que não têm litígio fiscal, estimulando, portanto, uma conduta amistosa, na esteira das sanções premiais preconizadas por Norberto Bobbio. Mais ousadamente, poder-se-ia cogitar da adoção de novas hipóteses para concessão do bônus.
A tarefa futura de reequilibrar as contas fiscais não será fácil e exigirá muita determinação e criatividade. Esse, todavia, será um problema, mais que brasileiro, universal.
Coronavírus: ‘Pandemia deve produzir maior queda da economia do capitalismo’
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, José Luis Oreiro analisa perspectiva econômica do Brasil e guerra no governo
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O governo do presidente Jair Bolsonaro criou mais uma disputa interna entre a equipe econômica do governo e a ala militar, encabeçada por Braga Neto, originada no fato de que a agenda de privatização, reformas estruturais e abertura comercial não tem apresentado os resultados prometidos. A avaliação é do pesquisador e professor associado do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) José Luis Oreiro, em artigo que ele produziu para a 19ª edição da revista Política Democrática Online.
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A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da entidade. Em sua análise, Oreiro observa que, entre os economistas das mais diversas tendências de pensamento, formou-se um consenso: “a pandemia em curso deverá produzir a maior queda do nível de atividade econômica na história do capitalismo, superando em intensidade a Grande Depressão de 1929”.
De acordo com o autor, uma vez contida a pandemia e suspensas as medidas de distanciamento social, a recuperação econômica será extremamente lenta e dependerá, tal como na década de 1930, de uma forte atuação do Estado na forma de vultosos investimentos em infraestrutura. “No caso dos países europeus, abre-se uma janela de oportunidade para realizar mudança estrutural importante, qual seja: a descarbonização da economia, com vistas à redução da emissão de CO2 na atmosfera de maneira a conter o fenômeno do aquecimento global, ameaça de longo-prazo a sobrevivência da própria humanidade”.
O volume de investimentos necessários para essa mudança estrutural é gigantesco, constituindo-se, portanto, no vetor de demanda necessário para a recuperação das economias europeias no pós-pandemia, de acordo com o artigo da revista Política Democrática Online. “O Brasil também terá que recorrer ao investimento público, para se recuperar dos efeitos da crise atual”, afirma o professor da UnB.
O ritmo anêmico de crescimento da economia brasileira anterior à pandemia, segundo o pesquisador, já era prova cabal de que, sem aumento significativo do investimento público em infraestrutura, não é possível obter aceleração consistente do crescimento. “A história brasileira mostra de forma muito clara que, no período de crescimento acelerado, entre as décadas de 1930 a 1980, o investimento público, direto ou por intermédio de empresas estatais, teve papel fundamental”, analisa.
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RPD || Pedro Scuro Neto: Admirável vírus novo
Em tempos de crise, até mesmo inimigos podem ajudar-se uns aos outros para superar os desafios impostos pela pandemia do novo coronavírus Covid-19 em todo o mundo. Papéis da Ciência, da mídia e da administração pública passam por reavaliação, avalia Pedro Scuro Neto
Que maravilha!
Quantas boas criaturas temos aqui!
Como a humanidade é bela!Oh admirável mundo novo
Que tem gente assim.
William Shakespeare, A Tempestade.
A sociedade trata os intelectuais com desconfiança, mas, em tempos de crise, fecha os olhos e daqueles menos escrupulosos encomenda profecias. Narrativas que a grande imprensa, na função de sentinela do sistema, agenda para fazer a opinião pública confiar que “quando tudo isto tiver passado, o mundo não será mais o mesmo”. [1] E o que esse mundo será, um dos literatos, dentre os profetas o favorito, se encarrega de dizer. Um mundo diferente, em que aprenderemos a lidar com “políticos irresponsáveis”, os mesmos que nos fizeram perder a confiança na ciência, nas autoridades e na mídia, que doravante serão os grandes mediadores das mudanças. Para fazer a diferença a palavra-chave será “solidariedade”, pois se “escolhermos desunião apenas prolongaremos a crise, trazendo catástrofes ainda piores”. Mas, se, ao contrário, “optarmos pela solidariedade global, venceremos não somente o coronavírus, mas toda e qualquer epidemia ou crise que sobrevier neste século”. [2] E como fazer isso? Em tempos normais, não se pode resgatar a confiança perdida, mas, como estes são “tempos de crise”, os espíritos podem mudar e até mesmo inimigos encontrarão “reservas secretas de confiança e amizade, dispondo-se a ajudar um ao outro”.
Na base de soluções proféticas estão sempre estratagemas. Neste caso, o truque é “naturalizar” o surto como se fosse algo íntimo, uma crise pessoal, que pede mudança de lentes para se enxergar melhor. Exige, sobretudo, confiar em intermediários, a mídia, a ciência e as autoridades, que, sob a influência da “maior crise da nossa geração”, vão ficar mais sintonizadas e sensíveis aos dramas de cada um. Em vez de monitorar, como sempre fizeram, vão propiciar “escolhas pessoais mais informadas”. A decisão final, porém, seguirá sendo dos indivíduos. Razão pela qual “a crise do coronavírus pode ser a batalha decisiva, pois entre privacidade e saúde as pessoas escolherão a segunda”. Mas, o que fazer com os incorrigíveis “egomaníacos”, os políticos, os “irresponsáveis” a quem deve ser imputada toda a culpa da crise de confiança nos “mediadores”? Neste preciso momento, desmorona toda a argumentação do profeta favorito, que desconhece os fatos e os atores.
Para começar, a ciência, o “mediador” mais neutro, fonte de probidade e veracidade, porém há décadas imerso em uma crise que nada tem a ver com políticos, mas com práticas ruins. A saber, em primeiro lugar, reprodutibilidade insatisfatória – recentemente, um projeto replicou 100 experimentos descritos em revistas indexadas de uma determinada ciência, cujos “efeitos alcançaram apenas a metade da magnitude original”.[3] Em segundo lugar, abusiva dependência de métricas, metas e indicadores, que, em lugar de sustentar avaliação qualificada, oprimem consciências, distorcem comportamentos e corrompem carreiras. Por último, problemas de revisão por pares, a menos ruim de todas as formas de governança acadêmica, mas assim mesmo assombrada por escândalos e denúncias. Tudo isso foi tema do livro de um sociólogo norte-americano, o primeiro a entender que os problemas da ciência não estão em seus fundamentos epistemológicos, mas nas imperfeições de suas práticas. Meio século depois, ele ainda denuncia as “pressões corruptoras” de uma “ciência industrializada”, cujos “incentivos perversos” obrigam os cientistas a se submeter a uma gig economy de contratos de curto prazo, sem direitos, sob o domínio de supervisores caprichosos.[4]
Por conta disso, a qualidade tornou-se instrumentalizada e a excelência perdeu espaço para o “impacto”, a nova regra do jogo. Situação agravada por tecnologias de guerra cientificamente informadas, pela manipulação financeira e pela predação ambiental, que, mesmo “aumentando as possibilidades de uma catástrofe civilizacional”, mostram que “o rei está nu”. Não se depender de literatos agenciados pela mídia para desviar nossa atenção de práticas ruins e de seus verdadeiros agentes.
Na administração, o segundo “mediador”, a prática mais nociva é a corrupção, “inerente às indústrias de mineração, petróleo e gás, construção e engenharia, todas de alto risco e objeto de investigação no mundo inteiro”.[5] A questão não é tanto o governo ou os políticos, mas o setor, num contexto em que a influência de organizações multilaterais se tornou preponderante. Caso do Banco Mundial, que, em 2011, orgulhosamente anunciou que seu braço no setor privado, a International Finance Corporation, tinha aberto linha de crédito de 50 milhões de dólares para a construtora Norberto Odebrecht. Fundos imediatamente transformados em ações de 250 milhões, como garantia de contratos de projetos de obras públicas.
Tudo documentado, mas, quando sobrevieram os escândalos, rapidamente deletado da base de dados do banco: “parcerias público-privadas” de 30 bilhões de dólares que a Odebrecht e outras quatro empreiteiras receberam de um banco estatal de desenvolvimento para operações na África e América Latina. Parcerias e suas indefectíveis “renegociações contratuais”, “terreno fértil para corrupção” – segundo Christopher Sabatini, professor da Universidade de Columbia, para quem “todo mundo sabia”, ou seja, que “a Odebrecht agenciava corrupção” com a chancela do Banco Mundial. Uma “tramoia evidente desde o começo”, na qual a IFC e o banco não corriam nenhum risco – “investigações de corrupção não chegam a outros países implicados e, nos países-clientes, os representantes do banco estão blindados contra processos judiciais”.[6]
O último ‘mediador’ do admirável mundo novo anunciado pelo profeta é a mídia, cujo “papel satânico” (Bauman) é “revolucionar os mecanismos de percepção do mundo” e instrumentalizá-los. Indústria conformadora de consciências que permeia todos os setores da sociedade, assumindo funções de controle e orientação. Não devido à informação que transmite, mas ao “conteúdo” – o que Marshall McLuhan chamava de “pedaço de carne”, que o ladrão traz para distrair o cachorro enquanto saqueia a casa. Indústria em crise, não por conta de políticos, mas de fatores estruturais relacionados com uma drástica queda na venda de mídia impressa e na saturação do mercado que obriga à competição com modalidades de mídia menos formais e profissionais. O que obriga a mover céus e terras para manter a clientela e fatias de mercado através da exploração do sensacionalismo, de uma incessante produção de notícias e de uma frenética busca por “inimigos”, para os quais se antecipa punição.
Crise não de agora, mas desde quando o primeiro grande centro produtor e difusor de notícias, a Igreja Católica, começou a perder o monopólio dos púlpitos e o status de “fonte” suprema, à qual todos, do mais rico e poderoso ao mais miserável, davam ouvidos com reverência.
Na antiguidade, os futurólogos eram “profetas da desgraça” que anunciavam cruéis castigos de Jeová para o povo – principalmente para dirigentes indignos (“os políticos”). Os atuais parecem mais atraídos por “renunciantes” budistas portadores de notícias acerca da “vida boa”. Laicizadas, mas sempre avessas à linguagem da democracia, suas derrapadas metafísicas desbordam o contexto estritamente religioso e invadem o âmbito da intimidade pessoal – cujas sutilezas só podem ser entendidas através dos inesgotáveis recursos da literatura. O que fez Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) há noventa anos, imerso na tempestade perfeita desencadeada depois da Primeira Guerra. Identificou estabilidade como a “necessidade original e derradeira” da civilização que luta para sobreviver a crises múltiplas. Como as de hoje, causadas por um modelo social, econômico e político falido, miseravelmente pego de surpresa por um minúsculo agente infeccioso. Crises agravadas por superpopulação e pelos meios de controle usados para submetê-la – dentre os quais Huxley destacaria as drogas e a sugestão subliminar, pedindo resistência para defender a democracia contra o autoritarismo, mais uma vez aos nossos portões.
No mundo real, enquanto os países se mobilizam para conter o coronavírus e suas nefastas consequências – a pior das quais é o colapso dos sistemas de saúde – não se pode perder de vista quadro bem mais assustador: uma nova pandemia é só uma questão de tempo. O surto global de Covid-19 não foi uma anomalia; doenças infecciosas emergem e reemergem em velocidade nunca vista ao longo da história. De 1980 a 2013, o número de epidemias anuais oscilou de 1.000 a mais de 3.000. Doenças infeciosas como Zika, MERS-CoV, SARS, cólera, tuberculose, HIV, influenza e ebola matam milhões todos os anos e, no seu rastro, destroem economias, causam pânico e, como no Brasil, crises institucionais. Situação que expõe a fragilidade das economias, a insuficiência das redes de segurança social e permanente subinvestimento em sistemas de saúde pública.
É preciso, primeiro – e antes de qualquer coisa – reforçar a capacidade do sistema de saúde na detecção e contenção de doenças com organismos centralizados de vigilância de dados que articulem informações de laboratório com dados populacionais e medidas clínicas. Em segundo lugar, desenvolver comunicação e coordenação, articulando centros de controle e prevenção com organismos da sociedade civil capazes de guiar respostas durante as crises e preparar protocolos baseados em evidências e boas práticas de saúde mesmo em tempos em paz. Finalmente, focar nas desigualdades que fazem as crises tão devastadoras, atentando para pequenas empresas, trabalhadores e pessoas mais vulneráveis.[7]
* Pedro Scuro Neto é sociólogo, diretor da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris), autor de Sociologia Geral e Jurídica, cuja 8ª edição (A Era do Direito Cativo) é publicada pela Saraiva: S. Paulo.
Mais informações:
[1] Francesca Melandri (2020). https://www.theguardian.com/world/2020/mar/27/a-letter-to-the-uk-from-italy-this-is-what-we-know-about-your-future
[2] Yuval Harari (2020). https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75
[3] https://osf.io/ezcuj/wiki/home
[4] Jerome Ravetz (2016). https://www.theguardian.com/science/political-science/2016/jun/08/how-should-we-treat-sciences-growing-pains
[5] Andreas Pohlmann, Folha de S. Paulo, 22/9/2015.
[6] Roberto Bissio (2017). Leveraging corruption – How World Bank funds ended up destabilizing young democracies in Latin America, http://www.socialwatch.org.
[7] Jane J. Kim e Michelle A. Williams (2020), https://fortune.com/2020/03/29/coronavirus-pandemic-public-health-preparedness.
RPD || Maria Amélia Enríquez: Vida e economia nos tempos da Covid-19
Contradições da sociedade brasileira são expostas fortemente por conta dos efeitos da pandemia do coronavírus Covid-19. Debate sobre quem é mais importante, a defesa da vida ou da economia, ganha força
A pandemia do Covid-19 tem permitido escancarar as profundas contradições da sociedade brasileira, reveladas pelas péssimas condições sanitárias de 48% da população, sem esgoto e sem saneamento básico; precariedade do trabalho informal de 38,6 milhões de brasileiros, 41% da força de trabalho; míseros R$ 420,00 com que 52 milhões de brasileiros subsistem e, seu oposto, a extrema concentração da renda, a segunda maior do mundo, em que os 1% mais ricos detém 28,3% da renda total do País. Paralelamente, a pandemia e seus efeitos têm provocado um debate, até então pouco aprofundado, sobre o suposto antagonismo entre a defesa da vida e a defesa da economia.
Esse falso dilema pressupõe que a esfera econômica está apartada da vida das pessoas e tem existência própria, manifestando-se no mercado financeiro, na bolsa de valores, câmbio, transações bancárias, números do PIB etc. A vida real dos cidadãos e suas famílias, por seu turno, se passa em outra esfera, em seus domicílios e na rotina de seu cotidiano. O desastre econômico desencadeado pela pandemia mostra quão irreal é essa percepção.
Além de acesso aos recursos ambientais e materiais, a economia, enquanto reprodução material da vida, depende fundamentalmente da motivação humana, da energia, do engenho, da coragem, da criatividade, enfim, do trabalho e do talento das pessoas que precisam, antes de tudo, estarem vivas, confiantes e dispostas, para além de produzir e poder consumir.
Adam Smith (1776) demonstrou que o trabalho humano é a principal causa do desenvolvimento econômico. A tradição clássica subsequente reafirmou a produtividade do trabalho como chave para geração da riqueza e, não obstante todo o avanço da era digital e da indústria 4.0, com a retirada de cena de parte do trabalho por causa da pandemia assiste-se a um tombo na economia sem precedentes.
Mas, para além do trabalho, a dinâmica econômica requer confiança para consumir, gerar emprego e investir, enfim, assegurar a indispensável “demanda efetiva”. Para Keynes (1938), é o “estado de confiança” que molda as expectativas sobre essas decisões econômicas cruciais, mas, quando não há confiança do setor privado, surge uma onda de negatividade, com aumento do desemprego e queda da renda, o que gera e aprofunda a “armadilha recessiva”. Para combatê-la, a solução é aumentar as inversões públicas, que devem ser financiadas com déficit. A renda injetada provoca efeito de encadeamento que restabelece a confiança, essencial para impulsionar o crescimento.
Fukuyama (em Trust, 1995) demonstrou que o vínculo entre confiança e economia é a cooperação, fator explicativo dos diferentes padrões de crescimento entre países; além de substância do “capital social”, básico nos processos de desenvolvimento.
Assim, partindo-se do pressuposto de que a confiança é indispensável para a saúde econômica, nada mais lhe é tão nocivo quanto o medo, medo da morte por uma doença cruel, que exclui e isola do convívio familiar o paciente, cujo corpo nem poderá ser visto para consumar o rito. A argumentação de que doenças como H1N1 e dengue matam quantitativamente mais pessoas não tem sustentação, pois, além de as fatalidades ocorrerem em menor intensidade e escala, são conhecidas, evitáveis ou tratáveis. O que mais aterroriza na Covid-19 é a roleta russa que impõe, principalmente porque, no Brasil, um quarto das mortes é de jovens e sem comorbidade.
Como então readquirir motivação ao trabalho e confiança para consumir, investir e gerar emprego? Simples, se houvesse cura ou vacina, mas como ainda não existem, os cenários ajudam a ponderar. Em um cenário de ampla abertura das atividades, como lidar com a (falta de) confiança e cooperação no ambiente de trabalho e entre empresas? Como equacionar o mercado internacional se não houver demanda, já que outros países igualmente enfrentam depressões profundas?
O Brasil saiu na vantagem de entrar na pandemia “tardiamente”, mas não levou a sério a lição de que a única maneira de adiar a propagação do vírus para evitar uma crise humanitária seria o isolamento social e está presenciando a acumulação de cadáveres nos IMLs, em especial na Região Norte. Portanto, o cenário de ampla abertura da economia em meio à pandemia, além de cruel, apenas posterga os custos econômicos que inevitavelmente ocorrerão.
Monica de Bolle tem reiterado que a pandemia alterou por completo os rumos da economia e que o mundo não voltará automaticamente ao que era antes[1]. Ressalta, assim, a necessidade de uma renda básica permanente para pessoas em extrema vulnerabilidade e a reconversão industrial para a produção de insumos e equipamentos médicos. Este cenário impõe enorme desafio para países emergentes e com crônicos problemas de financiamento, como o Brasil.
Apresentar desde já um horizonte crível para a crise é um dos melhores meios para se resgatar a confiança. Todavia, parafraseando Galbraith (1995), o futuro será a resultante de ações realizadas no presente que, por seu turno, são fruto das decisões do passado. E, olhando para trás, constata-se que, em nome da economia, foram cometidas muitas atrocidades com as pessoas e a natureza. A pandemia está dissolvendo concepções e demonstrando que pode haver caminhos diferentes.
A ruptura das cadeias de valor, a dissolução dos preços do petróleo e das commodities em geral, o respiro ambiental nos grandes centros, as inúmeras demonstrações de compassividade e cooperação em prol do bem comum de empresas e da sociedade, em especial dos mais humildes, como é o caso de Paraisópolis (SP), abrem espaço para repensar a crônica insustentabilidade do modelo dominante de reprodução material da vida humana.
Talvez um dos efeitos secundários dessa crise seja ousar pensar na possibilidade da emergência de uma nova economia, que tenha como pilar estruturante a regeneração da natureza e da sociedade, uma “economia da reconversão”, que permita resgatar dívidas social e ambiental, tendo como valores o compromisso e a solidariedade com as gerações presentes e futuras. Isso é possível a partir de investimentos em atividades de alta efetividade que sejam economicamente sustentáveis. Para isso, a crise sanitária oferece excelente oportunidade de, finalmente, realizar investimentos maciços em saneamento básico, abastecimento de água, coleta e tratamento de resíduos; pois o déficit é brutal e o retorno é crescente, com vantagem de empregar muitas pessoas e resolver um dos problemas estruturais mais críticos do país[2].
A crise também permite revalorizar cadeias produtivas locais, mas, para isso, é imprescindível um amplo programa de qualificação e requalificação a esse novo mundo do trabalho, como a experiência, de baixo custo e de alto impacto, do “Pará Profissional” [3], vencedor do prêmio “Excelência em Competitividade”; além de estímulos ao aumento da competitividade com a intensificação da transferência de tecnologia para os processos produtivos locais, a partir de incentivos à pesquisa aplicada. Enfim, há muitas iniciativas e bons exemplos que precisam ser replicados e ganhar escala, mas para que ocorram é imperativo o engajamento com a causa!
* Maria Amélia Enríquez é economista, Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), conselheira da Fundação Astrogildo Pereira (FAP).
Mais informações:
[1] https://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2020/04/17/monica-de-bolle-a-economia-requer-mais-imaginacao/[2] Segundo o Instituto Trata Brasil, a falta de saneamento básico provoca mais de 300 mil internações por ano no país. Excluídas as doenças, há ineficiência da entrega de água. Em 2017, o Brasil teve prejuízo de R$ 11 bilhões, o que daria para ter abastecido 30% da população, além do que o país ganharia R$ 1,1 trilhão nos próximos 20 anos se universalizasse o saneamento básico, a um custo de R$ 470 bilhões.
RPD || Lilia Lustosa: A morte do cinema. De novo?
Novas tecnologias, como o som, cores, a televisão, o VHS e a tecnologia digital transformaram o cinema desde o seu nascimento, em 1895. Hoje, em tempos de pandemia e na era do streaming, a disputa entre a telona e a telinha ganhou novos contornos, tons e sonoplastias, analisa Lilia Lustosa em seu artigo
Desde o nascimento do cinema, em 1895, vários foram os momentos em que sua existência foi colocada em questionamento. A chegada do som, em 1927, foi um dos mais marcantes. Salas de cinema tiveram que ser adaptadas, e sets de filmagem, reconfigurados, já que a exigência da proximidade dos ainda não tão potentes microfones acabava por limitar o movimento dos atores. O resultado foi uma espécie de retrocesso na mise-en-scène dos filmes até que toda a indústria pudesse estar adaptada à novidade. E muitos foram os cineastas que se opuseram à mudança, defendendo que a fala acabaria com a aura da nova arte. Charles Chaplin fazia parte desse time, resistindo a não mais poder à incorporação do som, rendendo-se, finalmente, em 1940, ao lançar seu corajoso O Grande Ditador.
A chegada da televisão, do VHS e, mais recentemente, da tecnologia digital foram outros momentos de grandes medos e transformações, em que mais uma vez se questionou a sobrevivência do cinema. Técnicos tiveram que aprender a manejar novas câmeras e novos softwares de edição; cineastas tiveram que apurar o olhar à nova imagem, agora com menos textura e mais artificialidade; atores tiveram que aprender a contracenar com fundos verdes ou azuis, a usarem fios grudados em seus corpos; e as salas de projeção tiveram mais uma vez que ser adaptadas para receber as novas máquinas. Até hoje, ainda há diretores que se recusam a filmar em digital, apegando-se à pureza da imagem analógica, ao granulado e à nostalgia de sua composição. Tarantino é um deles! Além de filmar exclusivamente em película, comprou até o pequeno New Beverly Cinema, em Los Angeles, só para garantir a preservação do cinema à moda antiga.
Estamos agora na era do streaming, e a existência da sétima arte como concebida naquele longínquo 1895 parece mais ameaçada do que nunca. A disputa entre telona e telinha, que já andava acirrada nos últimos tempos, ganhou novos contornos, tons e sonoplastias... E não foi pela chegada de uma nova tecnologia, não! A ameaça agora vem de um vírus que pegou a todos de surpresa, atingindo de uma só vez o corpo e a alma do cinema, contaminando toda a cadeia cinematográfica. De repente, não mais que de repente, criadores e espectadores tiveram seus movimentos engessados. A pandemia da Covid-19 fechou salas, interrompeu filmagens, adiou lançamentos e fez com que milhões de profissionais perdessem seus empregos. As ações das grandes produtoras despencaram, e a maioria dos exibidores e das pequenas produtoras está decretando falência. E o pior, tudo isso ainda sem solução no curto prazo, já que teatros, cinemas e shows estão entre as últimas atividades a serem retomadas, em função de suas naturezas aglomerativas.
Em meio a esta crise sem precedentes na história do cinema, as empresas de plataformas de streaming saem como as grandes (e talvez únicas) beneficiadas, com suas ações atingindo índices altíssimos e com o número de clientes aumentando a uma velocidade “de contágio” maior que a do próprio coronavírus. Um a zero para a telinha nesta fase da era do streaming! E, sem querer tomar partido nessa disputa, a meu ver, incongruente, a sobrevivência da sétima arte parece estar assim ao menos assegurada, já que assistir a filmes se tornou um dos grandes antídotos para sobreviver à dura realidade do confinamento. Nunca se assistiu a tantos filmes e séries como agora!
Seria, então, o “algoz” da sétima arte – segundo alguns puristas – hoje seu salvador? Será esse o futuro do cinema? O da telinha? A chance é grande, até porque nada pode nos garantir que esta pandemia seja a última do século. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood já até alterou seu regulamento a fim de permitir que filmes lançados e exibidos apenas na Internet possam concorrer ao Oscar em 2021, encerrando briga recorrente nos últimos anos. E, apesar de a maior parte dos grandes estúdios ainda se recusar a lançar seus blockbusters diretamente pelas plataformas digitais, lançamentos como o de Trolls 2, da Dreamworks/Universal Pictures, feito diretamente em VOD (video on demand), demonstraram ter seu valor. Cada visualização, a 19,99 dólares, rendeu cerca de 100 milhões em alguns dias “em cartaz”. Nada mal para um lançamento sem salas de cinema!
O fato é que, depois que as quarentenas forem levantadas, a experiência de ir ao cinema não será mais a mesma. Mudanças terão que ocorrer para que os espectadores possam se sentir seguros para voltar às telonas. Nos Estados Unidos, alguns Estados começam a dar os primeiros passos nessa direção. O Texas já autorizou a reabertura de salas, desde que com apenas 25% de ocupação. Massachusetts, que anda também ensaiando a reabertura, anunciou as mudanças que devem ocorrer: fileiras e cadeiras serão retiradas para que haja pelo menos 1,5m de distância entre os espectadores; as compras de ingressos serão feitas exclusivamente online, com impressão do bilhete feita em casa pelo espectador ou apresentação no formato digital (celular); álcool em gel estará disponível em vários pontos das salas, que, por sua vez, contarão com mais portas de saída.
Diante do novo cenário, é impossível não prever aumento no preço dos ingressos, o que fará com que a ida ao cinema seja cada vez mais um programa de elite. Mais pontos para a telinha?
Outro problema que se impõe quando da reabertura das salas é o dos conteúdos a serem exibidos. Quer dizer, com as produções todas em pausa por tantos meses, a que filmes iremos assistir? Em um primeiro momento, o mais provável é que entre em cartaz a leva represada de blockbusters – Viúva Negra, Mulan, Tenet, 007 etc. – que tiveram seus lançamentos adiados por medo de não conseguirem recuperar o montante estratosférico de dinheiro investido, caso tivessem optado pelo lançamento digital.
Em seguida, tendem a ganhar força as produções mais baratas, que exijam equipes pequenas, menos equipamentos e mais agilidade na conclusão dos projetos. Documentários também devem ter seu destaque, porque, em geral, cabem dentro de um orçamento mais modesto e podem ser montados com imagens de arquivos, entrevistas e, consequentemente, menos contatos humanos envolvidos. Quem sabe, agora, pequenas produtoras e coletivos de cinema ganhem mais espaço. Quem sabe consigam finalmente ter seus filmes devidamente distribuídos nas novas salas carentes de conteúdos. Estaríamos diante de um “neo Neo-realismo” ou de um “novo Cinema Novo” ?
Independentemente do que esteja por vir, neste cenário pós-pandemia, o Estado terá papel decisivo na retomada da atividade cinematográfica. No caso do Brasil, então, então, com uma indústria bem menos consolidada do que a americana, tendo tido também vários lançamentos adiados (A Menina que matou os pais, Três Verões, A Febre etc.) e produções interrompidas, a Ancine pode (e deve) ser a grande ferramenta de reconstrução do cinema nacional, ampliando as linhas de financiamento às pequenas e médias produções, criando linha de crédito para que os exibidores possam reabrir suas salas e incentivando as grandes empresas a investirem em cinema em troca de incentivos fiscais. Coisa que já acontecia, claro, mas que esteve ameaçada nos últimos tempos e que agora não pode falhar nem faltar. Obviamente, essas ações não vão impedir que a indústria cinematográfica entre em uma crise profunda, mas, além de aliviar o tamanho da queda, servem para dar-nos esperança e tempo para repensar o formato do cinema nestes novos tempos pandêmicos.
A pergunta que fica martelando é: quando tudo isso passar e o corona vírus já tiver virado História, voltaremos às salas de cinema como antes? Ou estaremos já tão acostumados à tela pequena que não nos daremos mais ao trabalho de sair de casa em prol da experiência coletiva da sala escura e da tela grande? Teremos aprendido a dar mais valor a produções mais artísticas, menos cheias de efeitos especiais? E os blockbusters, com seus budgets exorbitantes e suas equipes gigantescas, tornar-se-ão coisa do passado, símbolos de uma época sem riscos de contaminação?
Sobram perguntas e escasseiam respostas. Mas, nestes tempos de incertezas, angústias e questionamentos, uma única coisa parece certa: o cinema não vai morrer. Não vai ser desta vez…
*Lilia Lustosa é doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).
RPD || José Luis Oreiro: Plano Pró-Brasil: Um New Deal para a economia brasileira?
Governo Bolsonaro criou mais uma disputa interna entre a equipe econômica do governo e a ala militar, encabeçada por Braga Neto, originada no fato de que a agenda de privatização, reformas estruturais e abertura comercial não tem apresentado os resultados prometidos
No final de abril, o ministro Chefe da Casa Civil, General Braga Neto, anunciou a intenção de realizar um grande pacote de investimentos em obras de infraestrutura até 2031, no valor de R$ 280 bilhões, dos quais R$ 30 bilhões sairiam dos cofres públicos e os restantes R$ 250 bilhões seriam obtidos por intermédio de concessões à iniciativa privada. Na coletiva de imprensa na qual o anúncio foi feito, notaram-se duas ausências. A primeira foi o detalhamento dos projetos que fariam parte do assim denominado “Plano Pró-Brasil”. Na verdade, a apresentação de Braga Neto se resumiu a sete lâminas de power point, em que absolutamente nada de substantivo foi apresentado. A segunda ausência foi a do ministro da Economia Paulo Guedes, quem, em tese, deveria encabeçar esse tipo de iniciativa.
Comentários de bastidores que circulam livremente em Brasília mostram a existência de disputa entre a equipe econômica do governo, liderada por Paulo Guedes, e a ala militar, encabeçada por Braga Neto. Essa disputa tem sua origem no fato de que a agenda de Paulo Guedes – Privatização, Reformas Estruturais e Abertura Comercial – não tem apresentado os resultados prometidos em termos de aceleração do crescimento econômico. Com efeito, apesar da aprovação de uma reforma da previdência muito mais profunda do que a pensada durante o governo Temer, o primeiro ano do governo Bolsonaro conseguiu a proeza de apresentar taxa de crescimento de apenas 1,1%, inferior à média obtida no governo Temer (1,2% entre 2017 e 2018) e muito abaixo da tendência de longo prazo de 2,81% a.a para o período 1980-2014.
Em segundo lugar, a equipe econômica do governo mostrou, nas primeiras semanas da crise do corona vírus, enorme dissonância cognitiva, recusando-se a tomar as medidas necessárias para atenuar os efeitos econômicos das medidas de distanciamento social; sendo assim atropelada por iniciativas que partiram do Congresso Nacional, como, por exemplo, o programa de renda emergencial. Esse comportamento contrastava com as medidas adotadas de forma célere pelos governos dos países desenvolvidos, os quais destinaram valores que somavam 20% do PIB (por exemplo, no caso da Espanha), para atenuar a queda abrupta do nível de atividade econômica.
Entre os economistas das mais diversas tendências de pensamento, formou-se um consenso de que a pandemia atualmente em curso deverá produzir a maior queda do nível de atividade econômica na história do capitalismo, superando em intensidade a Grande Depressão de 1929. Uma vez contida a pandemia e suspensas as medidas de distanciamento social, a recuperação econômica será extremamente lenta e dependerá, tal como na década de 1930, de forte atuação do Estado na forma de vultosos investimentos em infraestrutura. No caso dos países europeus, abre-se uma janela de oportunidade para realizar mudança estrutural importante, qual seja: a descarbonização da economia, com vistas à redução da emissão de CO² na atmosfera, de maneira a conter o fenômeno do aquecimento global, ameaça de longo prazo à sobrevivência da própria humanidade. O volume de investimentos necessários para essa mudança estrutural é gigantesco, constituindo-se, portanto, no vetor de demanda necessário para a recuperação das economias europeias no pós-pandemia.
O Brasil também terá de recorrer ao investimento público para se recuperar dos efeitos da crise atual. O ritmo anêmico de crescimento da economia brasileira anterior à pandemia já era prova cabal de que, sem aumento significativo do investimento público em infraestrutura, não é possível obter aceleração consistente do crescimento. A história brasileira mostra de forma muito clara que, no período de crescimento acelerado, entre as décadas de 1930 a 1980, o investimento público, direto ou por intermédio de empresas estatais, teve papel fundamental. No período pós-pandemia, os níveis elevados de desemprego e de ociosidade da capacidade produtiva vão inviabilizar qualquer retomada da atividade liderada pela demanda do setor privado.
Também é pouco provável que, dada a demanda por financiamento nos países europeus, os investidores internacionais se mostrem dispostos a financiar volume grande de projetos em infraestrutura no Brasil. A retomada do crescimento irá exigir um New Deal para a economia brasileira. O problema é que os militares não têm, ainda, a mais remota ideia de como fazer isso.
*José Luis Oreiro é professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e Pesquisador Nível IB do CNPq. E-mail: joreiro@unb.br. Página pessoal: www.joseluisoreiro.com.br.
RPD || Henrique Brandão: Aldir, nunca haverá outro igual
Nos versos de Aldir Blanc havia um sentimento vitalista de malícia, ironia, crítica social e de imagens brilhantes. Vítima da Covid-19, ele deixa mais de cem canções gravadas e uma música inédita
O que dizer de Aldir Blanc em um momento de profunda tristeza como esse? O bardo da Muda, na expressão de seu amigo Eduardo Goldemberg, merece todas as homenagens e elogios do mundo, pelo grande poeta, letrista e cronista que foi. Como compositor, é dos maiores que a MPB já teve. Um monstro, gênio da palavra.
Todos nós somos “reféns” de Aldir. Quem nunca sambou um samba seu? Quem nunca dançou, com a ponta torturante de um band-aid no calcanhar e embalado por uísque com guaraná, um bolero dele? O cara não era profeta, longe disso. No entanto, quem há de discordar que seus versos em “Querelas do Brasil”, música do distante ano de 1978, em parceria com Maurício Tapajós, haveriam de soar tão atuais quando dizem que “O Brazil não merece o Brasil / O Brazil,tá matando o Brasil”?
Aldir morreu de Covid-19, mas sua saúde, assim como a do país que ele tanto amava, foi sendo solapada pela tristeza galopante, com a velocidade de uma brigada de cavalaria, na descrença de que um horizonte mais generoso ainda fosse possível. O país preconizado por atual presidente psicopata, com sua perspectiva cada vez mais autoritária, está muito aquém do Brasil tão amado e cantado pelo poeta.
O Aldir mais conhecido de todos é o letrista de sucessos maravilhosos, tanto na parceria com João Bosco como com músicos do talento de Guinga, Moacyr Luz e Cristóvão Bastos, entre outros, responsável por sucessos que qualquer um assobia fácil pelas ruas, entoa nas mesas dos bares ou ouve com frequência nas rodas de samba. É aquela música que o cidadão comum conhece, canta inteira, mas, muitas vezes, nem sabe quem é o autor. Isso é privilégio de poucos, reservado somente aos maiores, escolhidos a dedo pelo que o destino lhe reservou. Coisa de Caymmi, Luiz Gonzaga, Noel, Vinícius...
Mas tem um outro Aldir, menos conhecido do público, que é tão talentoso quanto o letrista. É o cronista. Sua verve foi exercida, inicialmente, no Pasquim, semanário de humor de saudosa memória, onde jornalistas e colaboradores do quilate de Jaguar, Millôr, Ziraldo, Sergio Cabral, Ivan Lessa e Sergio Augusto esculachavam a ditadura. A colaboração profícua rendeu seu primeiro livro, Rua dos Artistas e Arredores, reunião das crônicas publicadas no tabloide. A primeira edição é de 1978.
A Rua dos Artistas, com este belo nome, fica em Vila Isabel. Aldir morou nela quando garoto, na casa dos avós. Fez daquele microcosmo do subúrbio carioca, a partir de suas lembranças e de sua perspicaz imaginação, crônicas que dialogam com o mundo, esteja você no Rio, Pequim ou Budapeste. Relendo-as, é impossível conter o riso. Os dramas, casos, personagens e apelidos de cada um, que vivem na fictícia, porém muito real, comunidade “vilaisabetana”, misturam grosseria, poesia e generosidade, na proporção exata que só Aldir sabia dosar. Como cronista, assim como letrista, também foi dos grandes, no nível de João do Rio, Lima Barreto, Sergio Porto.
Além do livro, as crônicas geraram um filhote. Foi do nome de um dos personagens de Aldir, o Esmeraldo “Simpatia é Quase Amor”, que, em 1994, leitor de seu livro, sugeri a um grupo de amigos o nome para um bloco de carnaval que pretendíamos fundar. Aldir acabou virando o patrono do bloco. Como era de seu feitio, sempre se esquivou das nossas inúmeras tentativas de homenageá-lo. Participou de alguns desfiles, sempre discretamente. Chegava sem avisar e ia para o meio da bateria tocar seu tamborim. Quando o descobríamos já era tarde, o bloco estava na rua.
Desde então, há 36 carnavais que, sob a benção de Aldir, o “Simpatia” desfila pela orla de Ipanema. Por ocasião do aniversário de 15 anos, gravamos um CD com todos os sambas cantados em nossos cortejos. Dessa vez, fruto de sua benevolência, quem prestou homenagem ao bloco foi o Aldir, ao gravar um depoimento que abre o CD. Diz ele: “O bloco da minha mocidade foi o ‘Bafo da Onça’, de saudosa memória, do Catumbi, Estácio e adjacências. Mas nem mesmo o ‘Bafo’, com suas rainhas e princesas de polução noturna, me deu emoção tão forte como o ‘Simpatia é Quase Amor’. Criei em livro o ‘Simpatia’ para proteger a identidade de um primo do subúrbio (...). É bonito ver um primo da Zona Norte virar bloco na Zona Sul. Com este gesto simpático, saiu ganhando São Sebastião do Rio de Janeiro. No ‘Simpatia’, onde minhas filhas saíram pequenas, hoje, 15 anos depois, desfilam meus netos”. Esse depoimento enche a todos nós, fundadores e foliões do bloco, de imenso orgulho.
Segue em paz, Aldir.
* Henrique Brandão é jornalista e fundador do bloco “Simpatia é Quase Amor”.
Aforismas do gênio Aldir (alguns do Rua dos Artista e Arredores, Mórula, 2016).
“Se você está pensando que o tijucano é um estado de espírito, aqui ó! O tijucano é um estado de sítio”“Alto funcionário da Polícia Federal lembra a seus subordinados em Brasília: o piso é a prova de fogo, o preso, não”
‘Na inauguração do novo Distrito Policial, coube ao delegado dar o pontapé inicial”
“No Hipódromo da Gávea, um garanhão traçou uma égua, depois de uma... informação de cocheira”
“No Jardim Zoológico, o avestruz concretista, depois de uma bimbada, suspira: Pô, Ema...”
“Eu nunca marco derrota do meu time na Loteria. Me sinto um traidor”
“O amor tanto se mete a edredon, que acaba velha colcha de retalhos”
“Querido diário, hoje foi um dia incrível. Nem te conto”