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RPD || Gianluca Fiocco: Da pandemia se sai pela esquerda?
Alemanha teve eleições com resultado histórico, que favorece a causa europeísta
Gianluca Fiocco / RPD Online
A recente votação na Alemanha marcou, de alguma forma, o fim de uma era. Angela Merkel, cuja chancelaria caracterizou fortemente o cenário alemão e europeu por 16 anos, não se candidatou. Seu afastamento representou sério problema sobretudo para seu partido, o CDU, que ficou órfão de sua presença carismática e estabilizadora. Mas todo o sistema partidário, desprovido de líderes minimamente comparáveis a sua estatura, sofreu com o fechamento desse ciclo.
Podemos considerar históricos os resultados que saíram das urnas: pela primeira vez desde o pós-guerra, as duas colunas tradicionais da política alemã – a socialdemocrata e a democrata-cristã – ficaram ambas abaixo de 30%. A ligeira prevalência do SPD (25,7% dos votos) conduziu as negociações para a formação de uma coligação que está sendo chamada de "semáforo" – vermelha, amarela e verde, respectivamente, dos socialdemocratas, liberais (11,5) e do partido ecológico do Grünen (14,8). As negociações foram anunciadas, porém não são fáceis, e seu fracasso também recolocaria a CDU no jogo.
Em todo caso, o debate antes e depois das eleições favoreceu a causa europeísta. A capacidade de Merkel de colocar a UE em novos caminhos, realçando seu perfil, foi especialmente enfatizada. Com exceção dos partidos mais extremistas (a eleição foi particularmente ruim para a esquerda do Linke, mas também para a direita ultranacionalista do AFD, que seguiu o mesmo ritmo), todos os candidatos se perfilaram para assegurar as responsabilidades alemãs na Europa e a centralidade da dimensão europeia nas grandes escolhas da Alemanha. Também a anunciada intenção de reunir no programa do futuro governo as questões sociais, as necessidades de estabilidade financeira e os objetivos da transição ecológica (com a meta de abandonar o carvão até 2030) representa um dos desafios políticos que hoje está diante de toda a Europa, como "potência civil" capaz de representar um modelo de desenvolvimento equitativo e sustentável.
Uma das primeiras atitudes de Merkel após as eleições foi visitar Roma, onde encontrou Mario Draghi e o Papa Francisco. Foi uma iniciativa significativa já que a própria conexão Merkel-Draghi se revelou fundamental para o lançamento das políticas de auxílio do Banco Central Europeu que têm salvaguardado o euro e a solidez da UE.
A Itália também vivenciou eleições, embora apenas em nível local. Cidades importantes como Roma e Turim estiveram envolvidas. Ao contrário da Alemanha, onde o sistema partidário mostrou sua vitalidade e o nível de participação dos cidadãos foi alto, o voto italiano mostrou um difuso descontentamento com a dimensão administrativa e rachaduras gritantes na relação entre os cidadãos e as forças políticas. Um observador autorizado como Sabino Cassese chegou à amarga conclusão de que "todos perderam. Perderam as forças políticas que tiveram de encontrar seu candidato fora delas, porque dentro delas não foram capazes de selecionar e formar uma classe dirigente. Perderam as classes políticas locais porque os eleitores nas eleições municipais diminuíram na última década mais do que o dobro em relação às últimas eleições gerais. Perderam os vencedores dos segundos-turnos porque só conseguiram o apoio de um quarto ou um quinto do eleitorado".
Se nos anos noventa a eleição direta de prefeitos encarnou na Itália a ideia de renovação das instituições, mais próximas das necessidades das pessoas, agora parece evidenciar as dificuldades dos partidos em manter raízes efetivas na sociedade. Este é um sinal de alerta a ser levado em conta frente às futuras eleições para a renovação do Parlamento. Os dados estatísticos dos últimos anos indicam que existe um interesse pelas questões políticas em comparação com os dados de muitos parceiros europeus, mas a confiança nos mecanismos e no valor da participação na vida política tem caído.
Os resultados da Itália premiaram claramente a centro-esquerda, ao passo que a direita (tanto a Lega, no governo, quanto Fratelli d’Italia, na oposição) sofreu duro golpe. Nestes casos, é difícil, talvez impossível, estabelecer em que medida os fatores locais ou nacionais favoreceram o êxito. Talvez não seja tão forçado dizer que fatores europeus também pesaram: a associação da direita com os chamados soberanistas (embora bastante moderados na versão italiana) não rendeu, e até se mostrou negativa, nesse momento em que o apoio da UE aparece como uma esperança de sair da crise sanitária, econômica e social desencadeada pela pandemia. Os fundos europeus extraordinários da Next Generation EU permitiram o lançamento do ambicioso “Plano Nacional de Recuperação e Retomada”, que é gerido por uma figura intimamente ligada ao plano pró-europeu, como Mario Draghi. O Partido Democrático (PD) foi visto como o defensor mais consistente desse plano, e seus candidatos se beneficiaram dele.
A aposta europeísta expressa precisamente a forte conexão entre os votos da Alemanha e da Itália. Em ambos os países, as questões europeias têm influenciado as escolhas dos eleitores de uma forma que parece demonstrar confiança generalizada no papel que a UE vem desempenhando na segurança e no bem-estar dos seus cidadãos. Como observou o historiador Sandro Guerrieri, “a União Europeia funciona quando se encontram soluções que representam um valor agregado às políticas e linhas de conduta dos governos individuais”. O atual esforço de recuperação é um desses momentos e pode ser decisivo para uma retomada do europeísmo de cunho social e progressista. “Da pandemia se sai pela esquerda”, declarou o secretário do PD, Enrico Letta, comentando o novo equilíbrio político alemão. Se o novo chanceler for realmente uma expressão da aliança vermelho-amarelo-verde, essa perspectiva certamente ganhará impulso.
*Tradução de Alberto Aggio
Saiba mais sobre o autor
Gianluca Fiocco é professor e pesquisador de História Contemporânea vinculado a Universidade Roma2, “Tor Vergata”. É também membro do Conselho de Direção Científica da Fundação Gramsci de Roma. Dentre as suas publicações está Togliatti, il realismo della política, Roma: Carocci, 2018.
RPD || Fábio Fonseca Figueiredo: Cidades sustentáveis, a cidade para as pessoas
Objetivo principal de um bom planejamento urbano é o de tornar a cidade mais equilibrada, sustentável, humanizada e agradável para todos
Fábio Fonseca Figueiredo / RPD Online
A cidade é uma forma de aglomeração humana fantástica! Composta de ambiente natural e artificial, a cidade é um organismo vivo que, na sua disformidade, se vai moldando perante o tempo. Necessidades, tipo de relação entre as pessoas e entre as pessoas e o ambiente natural, fazem da cidade esse lugar distópico, caótico porém, como uma orquestra sinfônica, pulsa de maneira concatenada cada dia.
Contudo, o fato de uma orquestra sinfônica fazer funcionar instrumentos tão diferenciados não quer dizer que tais instrumentos não necessitem reparos, e assim são as cidades. Quando pensamos nas cidades brasileiras logo nos vêm à mente lugares diferenciados, com ilhas de prosperidade e pujança econômica rodeadas de favelas, palafitas, pessoas vulneráveis sobrevivendo com o mínimo necessário para sua existência e sobrevivendo mesmo das sobras de uma sociedade cada vez mais concentradora, centralizadora e segregada. Analisando a urbanização brasileira, Milton Santos diz que a cidade em si se torna criadora de pobreza, tanto pelo seu modelo socioeconômico, como pela sua estrutura física que faz dos seus habitantes das periferias ainda mais vulneráveis. Para ele, a pobreza não é só o resultado do modelo socioeconômico atual, mas também do modelo sócioespacial das cidades.
O ano de 2008 é considerado um marco na história da humanidade, pois foi a primeira vez que mais pessoas passaram a morar nas cidades do que no campo, em todo o mundo. Projeções indicam que, em 2030, serão seis de cada dez pessoas que viverão nas pólis e, para 2050, estima-se que 2/3 da população mundial serão urbanas. No Brasil, em 2010, o último censo do IBGE, apontava que 85% da população viviam nas cidades e, destes, 26%, nas cidades litorâneas. Essas estatísticas dão a noção da complexidade de pensar o planejamento urbano, desenvolvendo-o de forma equilibrada e trazendo esse planejamento para privilegiar as pessoas.
As cidades concentram 70% do PIB mundial, mas se distribuem em apenas 2% da superfície terrestre. As cidades também são responsáveis por consumir 60% de toda energia produzida no planeta, contribuem com 70% da emissão de gases do efeito estufa e geram 70% dos resíduos sólidos. Some-se a essas estatísticas o crescimento desordenado e a densidade populacional que potencialmente acarretam problemas de mobilidade urbana, contaminação nas suas diversas formas e a segregação socioespacial.
Pensando na questão urbana como problema e tratando de propor alternativas no ano de 2016, a ONU realizou a Habitat III na cidade de Quito/Equador. A ideia dessa conferência foi lançar as bases para a formação de cidades como ambientes economicamente viáveis, socialmente justos, culturalmente aceitáveis e ambientalmente corretos: em síntese, tornar as cidades mais sustentáveis, cidades humanizadas, cidades para as pessoas. A nova agenda urbana, documento produzido no Habitat III, conecta-se com os ODS, em especial com o ODS 11 que versa sobre cidades e comunidades sustentáveis e apregoa: tornar os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
Ou seja, tanto os ODS como a agenda urbana possuem como objetivo tornar as cidades espaços de sinergia, menos segregadas e mais sustentáveis. Na prática, implica dizer que os planejadores urbanos, gestores públicos e sociedade civil organizada devem pensar modelos de cidade resgatando aquela na qual o citadino seja o protagonista do planejamento urbano.
Se até final dos anos 1950 as cidades eram pensadas para as pessoas, o modernismo com sua visão de cidade como máquina de produção capitalista alargou ruas, verticalizou vivendas, distanciou pessoas e retirou o verde do espaço natural urbano. Assim, no que tange ao meio ambiente, a importância das áreas verdes no espaço urbano deve ser analisada levando-se em consideração que o meio ambiente urbano é cada vez mais um meio artificial e, como tal, o planejamento deve se moldado no sentido de equilibrar o natural com o artificial. As áreas verdes proporcionam qualidade de vida pelo fato de garantir áreas destinadas ao lazer, melhorar a estética do local, possibilitar espaços de sociabilidade e humanidade e melhorar a qualidade do ar.
Para Jan Gehl, aclamado urbanista dinamarquês, o século XXI nos traz um momento de ambiência favorável para a nova remodelação das cidades. Para o autor, já temos conhecimentos suficientes para entender que há conexões entre a forma física das cidades, ou seja, como as cidades vão se desenvolvendo, e o comportamento humano, em uma relação de causa-efeito. Portanto, cabe à sociedade atual cambiar o modelo de uma cidade antropofágica, devoradora de agenciamentos humanos e espaços naturais para uma cidade pensada a partir de um urbanismo para as pessoas.
Nesse sentido, entendemos que a melhor cidade é a cidade que proporciona que as pessoas se encontrem e possar fazer desses encontros um bom momento da vida cotidiana. E deve ser o primeiro objetivo de um planejamento urbano, tornar a cidade mais equilibrada, sustentável, humanizada e agradável para todos.
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Fábio Fonseca Figueiredo é professor do Departamento de Políticas Públicas e pesquisador do grupo de pesquisa SEMAPA (Socioeconomia do Meio Ambiente e Política Ambiental) da UFRN.
RPD || Vicente Costa Pithon: A promessa do clube-empresa
Validade da Lei das SAFs ainda provoca intensos debates e pode representar mudança estrutural e profunda no futebol brasileiro
Vicente Costa Pithon / RPD Online
Tal qual um fla x flu dos anos 80, cujos embates entre os times de Zico e Assis manipulavam as atenções da massa no Maracanã, o clássico atualmente em voga no futebol brasileiro se dá entre os entusiastas da transformação de nossos clubes de futebol em empresas formalmente constituídas, com suas características legais inerentes, versus os defensores da manutenção de sua atual estrutura associativa hegemônica, sem a figura de “donos” e cujos desígnios (em tese) são decididos pela comunidade de sócios (não confundir com torcedores). Nesse debate, perpassam sentimentos atávicos de identidade cultural, palavras de ordem, interesses comerciais, preconceitos ideológicos, saudosismos e um antagonismo entre visões românticas e econômicas do ludopédio.
Quase a totalidade de nossos clubes de futebol foi criada entre o final do século passado e o começo deste século por meio de entidades associativas e recreativas, sem fins lucrativos e de caráter sócio-cultural. E assim se mantiveram ao longo dos anos, angariando grande número de adeptos e simpatizantes e se consolidando como fortes ícones culturais. O simples jogo de bola criado por estudantes ingleses iria, no curso do século XX, se transformar num verdadeiro fenômeno de massa, atraindo não só torcedores (transformados em consumidores), mas também grandes interesses econômicos e políticos.
Transitamos, neste período, entre o amadorismo puro de sua era inaugural, passando por um semi-amadorismo de arrumação, até a década de 1970/80 com a explosão do marketing esportivo, da espetacularização do jogo e do “sport business”.
Se dentro de campo abríamos a vanguarda, até aquele momento do tricampeonato mundial, fora dele, na arena das cifras, começávamos a ficar para trás.
É simbólico que Pelé tenha terminado a carreira no Brasil e recomeçado fora pouco tempo depois, atraído pelos milhões dos americanos.
Ali era inaugurada a diáspora de nossos craques, cujos destinos preferidos variaram no tempo conforme a força econômica das ligas importadoras. Nesse período, nossas associações se mantiveram como entidades fechadas e autocentradas, em sua maioria comandadas por feudos políticos e dirigentes eleitos por uma parcela de sócios ou conselheiros que não representam nem 1% de seus adeptos. A título de ilustração, a última eleição no Flamengo teve um universo de pouco mais de 3 mil votantes, para uma torcida calculada em cerca de 40 milhões de pessoas.
No começo da década de 90, a chamada Lei Zico foi a primeira que autorizou a transformação de nossos clubes em empresas. Poucos anos mais tarde, em 1998, a Lei conhecida por outro craque, Pelé, chegou a obrigar essa transformação. Mas logo depois essa imposição viria por terra, deixando novamente a critério dos clubes seu formato jurídico.
Posteriormente, houve uma avalanche de investimentos no futebol mundo afora. Grandes multinacionais, fundos de investimento e até mesmo soberanos de países autocráticos entraram no mundo da bola. O formato empresarial alcançou a maioria das grandes ligas europeias, sendo mandatório em boa parte delas e incrementando significativamente seu poder financeiro. Ao mesmo tempo, problemas surgiram com casos de investidores ineptos, lavagem de dinheiro e o chamado “sportswashing”, ou o uso do esporte para melhorar a imagem ou reputação de países e líderes nacionais.
Nesse período, nossos clubes mais tradicionais acumularam dívidas, sob o beneplácito estatal. O teto de receitas em um ambiente sem fair play financeiro ou uma liga profissional que torne o produto dos jogos mais rentável, associado a dirigentes amadores que usaram seus clubes apenas como trampolins políticos, formaram a equação que levou instituições como Vasco da Gama, Cruzeiro e Botafogo à bancarrota. E a solução apontada foi o clube-empresa.
Os ecos chegaram ao Congresso Nacional em 2019. Inicialmente, aprovou-se na Câmara dos Deputados projeto de lei de formato empresarial aberto, pró-mercado e sem levar em conta as particularidades bastante específicas do futebol. Por uma mudança de forças políticas, o Senado acabou por aprovar outro projeto (e que prevaleceu), criando a Sociedade Anônima do Futebol-SAF, de inspiração ibérica e com condicionantes e formatação exclusivas para o futebol.
A validade da Lei das SAFs provoca, desde então, intensos debates na dinâmica interna do futebol brasileiro. De solução à ameaça, de aposta necessária a risco, ela pode, sem dúvida, representar uma mudança estrutural e profunda no futebol brasileiro. Se será bem executada, como uma falta magistralmente cobrada por Zico, só o tempo dirá.
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Vicente Costa Pithon é consultor legislativo do Senado, mestre em Direito pela UnB e especialista em Direito Desportivo.
RPD || Élida Graziane Pinto: Inadiável necessidade de revisão do teto
Como está hoje teto tem asfixiado fiscalmente as políticas públicas asseguradoras dos direitos fundamentais
Élida Graziane Pinto / RPD Online
O teto vintenário chega a cinco anos de vigência em 2021, com impasses que foram se acumulando desde sua criação. Enquanto foram congelados os pisos em saúde e educação, houve controversa capitalização de empresas militares, persiste cessão de margem fiscal do Executivo para os outros poderes e órgãos para além do prazo definido inicialmente, e têm sido usados créditos extraordinários para pagar despesas previsíveis no segundo ano da pandemia. Na prática, o teto tem constrangido o custeio de políticas públicas amplas, mas não conseguiu conter o trato balcanizado das emendas do Orçamento Secreto, tampouco enfrentou as renúncias fiscais.
O maior impasse no teto dado pela Emenda 95/2016, porém, é sua seletiva incidência apenas sobre as despesas primárias. Ora, não é democrática, tampouco equitativa a interdição do mais amplo e íntegro levantamento de alternativas para fins de avaliação da sustentabilidade intertemporal da dívida pública brasileira.
Obstar o debate que inclua o maior número possível de interessados sobre os desafios sociais da nação, a pretexto de uma impossível neutralidade fiscal, é literalmente frustrar qualquer chance consistente de pactuar o futuro comum do país no pós-pandemia. Sem tal horizonte de planejamento, a sociedade fica presa ao curto prazo decisório dos agentes mais fortes do ponto de vista político e econômico.
Urge rever o teto, nesse contexto, uma vez que ele limita desarrazoada e exclusivamente a capacidade estatal de cumprimento da Constituição de 1988. É iníquo asfixiar fiscalmente as políticas públicas asseguradoras dos direitos fundamentais, sem correlata preocupação com as opções de arrecadação tributária e de gestão das despesas financeiras que impactam a dívida pública de forma opaca e ilimitada.
Sob a falsa premissa de que o teto deve ser mantido a qualquer custo mesmo diante dos efeitos prolongados da pandemia da Covid-19, muitas outras regras fiscais brasileiras têm sido submetidas a um cenário de terra arrasada. Com isso, implodem-se, pouco a pouco, os pilares institucionais e civilizatórios do país para manter a aparência de sustentação de um teto evidentemente em ruínas. A título de exemplo, cabe destacar que foram preteridas a transparência e a aderência ao planejamento das emendas de relator (Orçamento Secreto) e das transferências especiais definidas pela Emenda 105/2019, o que propiciou a ampliação significativa do balcão fisiológico de negócios no ciclo orçamentário brasileiro.
Tais exemplos atestam, sem pretensão de exaustividade, que não houve maior racionalidade alocativa com a imposição do teto global de despesas primárias no nível federal. O diagnóstico enviesado de que a crise das finanças públicas brasileiras estaria centrada apenas em tais despesas que amparam direitos sociais e serviços públicos universais apenas acirrou a histórica desigualdade pátria em patamar ainda mais extrativista.
O prognóstico para a crise fiscal brasileira em 2016 era o de que se precisava reduzir o tamanho do Estado. Em 2021, há clareza de que os vieses na identificação do problema e na proposta aprovada para sua resolução a partir da Emenda 95 agravaram a realidade fiscal do país tão frágil, quanto suscetível à captura de curto prazo eleitoral e de compadrio nas relações do Estado com o mercado e com o terceiro setor.
Tem sido corroído o aprendizado de mais de duas décadas da Lei de Responsabilidade Fiscal, tanto quanto se vive uma espécie de efeito dominó na mitigação de diversas balizas normativas em que se assentam as contas e as políticas públicas do país.
O maior risco, contudo, é o de que a sobrevivência artificial do teto, tratado como um fim em si mesmo por alguns, imponha o próprio esfacelamento do Estado Democrático de Direito. Ajuste fiscal equitativo reclama debate amplo sobre todas as opções de receitas e sobre todas as despesas, até porque tanto o orçamento, como a dívida pública somente são legítimos à luz da Constituição de 1988.
Mais cedo ou mais tarde a sociedade brasileira se dará conta de que manter o teto a qualquer preço pode custar o próprio núcleo de identidade do pacto constitucional civilizatório erigido há trinta e três anos. Afinal, a fome primordial é de alguma civilidade, sobretudo porque não há futuro comum onde prepondera a pilhagem do mais forte em sua lógica de curtíssimo prazo.
Saiba mais sobre a autora
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e Professora de Finanças Públicas da FGV-SP
RPD || André Amado: Despedidas. Sempre para melhor
A Revista Política Democrática Online (RPD), publicação da Fundação Astrojildo Pereira, passa a ser veiculada em novo formato a partir de dezembro
André Amado / Diretor da Revista Política Democrática Online
Chegou a hora de mudar. Foram mais de três anos, 37 entrevistas, o mesmo número de editoriais, reportagens, charges do JCesar e centenas de artigos. A Revista Política Democrática Online (RPD) passou a ser minha vida. Trabalhava em montar uma edição já de olho na seguinte. E isso sem ser jornalista, como se jornalista fosse uma profissão, e não – bem mais do que isso – uma disposição de desafiar a realidade, a que virou passado e a que se pretende futuro, como se estivéssemos no meio de uma partida de tênis, a cabeça girando da esquerda para a direita, à cata de respostas a perguntas que sequer foram formuladas.
Aprendi a ir atrás das ideias dos outros, do que viam, de como viam o mundo florir ou murchar. Não importava meu ponto de vista, não era o que me cobravam, eu não fazia parte desse diálogo. A notícia, a interpretação dos outros e a reflexão sobre seus principais desdobramentos eram as pautas. Lembrou Flaubert quando comparava o escritor a Deus: está em todos os lugares, mas não pode ser notado. Assim me sentia no timão da RPD.
Ao participar de uma entrevista, conferir a sequência de uma reportagem, revisar a redação dos artigos, de procedência e motivações plurais, fascinava-me a sensação de que, estaria, quando muito, sendo o intermediário do que, uma vez publicado, haveria de enriquecer, indignar, fazer sorrir um leitor em geral, tão voraz, como impaciente, tão criativo como intolerante, militante e apolítico, um intelectual sem condescendência com verdades prontas, clichês e proselitismo, um guerreiro das trincheiras da cidadania, e não me refiro ao partido que financia a Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que, por sua vez, patrocina a RPD.
O curioso foi que somente nos últimos dias na direção da Revista me inteirei da definição do sentido de missão da FAP: promover o sentido de reflexão crítica da sociedade de maneira a construir referências teóricas e culturais relevantes para a defesa, a consolidação e a reforma do Estado de Democrático de Direito. Digo curioso, porque segui à letra esse desiderato por mero instinto, acrescentando, apenas, como contribuição pessoal, que as matérias da RPD seriam sempre mais confiáveis e legítimas se, mesmo refletindo as tendências e preferências de seus autores, optassem por explorar a força e o valor das ideias, ao arrepio de filiações político-partidárias.
Conheci gente fantástica dentro e fora da FAP. Penso ser hoje amigo de pessoas cuja existência só me era indicada pela assinatura de textos jornalísticos ou acadêmicos, ou pela figura simpática na tela de televisão. Cresci muito nesses últimos três anos, sinto-me mais bem equipado para decifrar os enigmas da vida contemporânea. Agradeço a todos e a cada um de vocês que me ajudaram nessa bela jornada. Espero que o novo formato da Revista seja de seu agrado. Seria uma de minhas recompensas. Obrigado.
Saiba mais sobre o autor
André Amado é diretor da Revista Política Democrática Online (2018-2021)
Armínio Fraga: Linha fina e rede furada
Tripé macro é provavelmente o único viável para uma economia moderna e livre
Arminio Fraga / Folha de S. Paulo
Caro Ciro Gomes, atendo aqui a seu convite feito no artigo publicado terça-feira (2) nesta Folha ("A rede está furada") em resposta ao meu de domingo ("Banco Central age como se estivesse pescando com uma linha fina", 31/10). Mantenho aqui o construtivo espírito de busca de convergências. Digo de cara que, sim, a rede (fiscal) está de fato furada!
Uma resposta mais completa pode ser encontrada em artigo que publiquei nesta Folha em 29 de setembro de 2019 ("No final do arco-íris tem um pote de ouro"). Lá está exposta uma estratégia consistente de combate à desigualdade e aceleração do crescimento. Contém, inclusive, propostas praticamente idênticas às suas para o lado da receita, e apresentadas em mais detalhe na revista Novos Estudos Cebrap em dezembro de 2019. Vale dar uma debruçada lá.
Estamos juntos no entendimento de que responsabilidade social e fiscal se complementam e representam uma base sólida para a construção de um futuro melhor. Concordo com a necessidade da construção de um arcabouço fiscal sustentável no tempo (ou seja, robusto para permitir políticas macroeconômicas e sociais anticíclicas).
Não há política anticíclica sem se acumular gorduras em épocas boas. E mais: não há possibilidade de juros baixos e sustentáveis e, portanto, câmbio competitivo, sem a casa em ordem. Não há crescimento sustentado sem estabilidade e previsibilidade na macroeconomia. Não há país que resista a recorrentes crises cambiais e inflacionárias, como sabemos melhor do que ninguém. Não há investimento em infraestrutura sem regras claras para preços públicos e confiança no longo prazo. Não há renda para o trabalhador no caos da inflação e no escuro da bagunça fiscal.
O tripé macro foi criado para consolidar o sucesso do Plano Real. Sigo acreditando que é o melhor sistema, provavelmente o único viável para uma economia moderna e livre. Penso que, enquanto foi praticado com disciplina e coerência, gerou bons resultados. Não há nada no tripé que proíba crescimento, muito pelo contrário. Gostaria de ver uma alternativa coerente que pare de pé.
Experimentos voluntaristas de reduções de juros na marra sempre acabaram em inflação mais alta do que antes. Aventuras com controles de preços e de câmbio, com renúncias fiscais e subsídios absurdos e direcionamento massivo do crédito sempre nos levaram ao caos e à desigualdade.
O regime de meta para inflação permite incorporar a inércia de preços (como os administrados) e os choques de oferta, desde que conduzido com transparência e apoiado pelas outras pernas do tripé. Permite também combater recessões e inflações.
Dizer que o tripé vigorou desde 1999 não procede. A criatividade fiscal começou no segundo mandato de Lula, e o colapso final do regime fiscal data de 2014, quando Dilma Rousseff buscava a reeleição.
Destacam-se no "modelo" o uso indiscriminado de subsídios e dos bancos públicos e as pedaladas. Desde então, convivemos com déficits primários, crescimento negativo e desigualdade crescente. Não houve continuidade do tripé.
É verdade que o gasto público vem crescendo há décadas, e com ele a carga tributária. Não dá para falar em reduzir a carga sem reduzir o gasto. Tenho defendido um ajuste de grandes proporções, para ancorar a paz macroeconômica e redirecionar recursos para áreas que, ao mesmo tempo, geram mais crescimento, igualdade e oportunidades (tais como saúde, educação, infraestrutura e uma rede de proteção social melhor).
Sei que você é a favor disso tudo. Mas faltou dizer de onde vêm os recursos. Tenho me esgoelado de repetir aqui que o grosso deve vir de três áreas: dos espaços da receita já mencionados, da folha de pagamentos do setor público e da Previdência. Estes dois últimos itens representam 79% do gasto do governo como um todo! Não temos chance sem uma boa reforma do RH do Estado e de mais esforços na Previdência, que consome 13% do PIB versus 10% para saúde e educação.
Por fim, não procede dizer que recursos foram torrados com a privatização. A extraordinária revolução que ocorreu em vários setores, mormente na telefonia, não teria ocorrido. E o fracasso no setor elétrico, não privatizado e mal regulado, teria sido evitado.
Um abraço cordial.
*Arminio Fraga é sócio-fundador da Gávea Investimentos, é presidente dos conselhos do IEPS e do IMDS, ex-presidente do Banco Central e colunista da Folha
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/11/linha-fina-e-rede-furada.shtml
Arnaldo Jardim: Biogás vai ajudar o Brasil com os desafios da COP26
Setor precisa de ambiente regulatório favorável para dar retorno em empregos e sustentabilidade
Arnaldo Jardim / Cidadania – SP
Na COP – 26, o grande desafio dos Países-membros será conter as emissões de metano. Com a exploração do Biogás, o Brasil tem uma oportunidade de contribuir decisivamente para a redução do aquecimento global.
Nesta semana em que o mundo volta suas atenções inteiramente para Glasgow, apresentei Projeto de Lei para incentivar a cadeia produtiva do Biogás e do Biometano. Com contribuições da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás) e da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), e apoio técnico do Ministério da Agricultura e da Embrapa, o PL tem por objetivo aprimorar o arcabouço institucional do setor.
Considerando a produção de lixo no Brasil (cerca de 80 milhões de toneladas/ano), e que 50% de todo esse resíduo sólido urbano (RSU) é matéria orgânica, o potencial de produção de Biogás que o País deixa de aproveitar poderia suprir cerca de 30% da demanda de energia elétrica do país, ou substituir até 70% de todo o nosso consumo de óleo diesel. Ao invés disso, o Biogás representa menos de 0,1% da matriz energética brasileira, com apenas 304 MW instalados.
Segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS, Lei nº 12.305/2010, da qual fui relator, o gerenciamento de resíduos sólidos deve observar uma ordem de prioridade, indo para os aterros sanitários somente os materiais que não possuem qualquer viabilidade técnica e econômica de aproveitamento.
Na União Europeia, há, desde 1991, restrições à disposição de resíduos recicláveis e orgânicos em aterros sanitários, como forma de aumentar cada vez mais o seu aproveitamento. Nos Estados Unidos, mais de 23 estados proíbem o aterramento de RSU sem tratamento ou recuperação dos materiais orgânicos e inorgânicos.
As ações de valorização dos RSU’s no Brasil têm se limitado à queima do Biogás dos aterros sanitários para geração de energia elétrica. Esse sistema, entretanto, resulta em um menor rendimento, além da emissão difusa do metano. A ampliação do uso da biodigestão para o tratamento da fração orgânica do lixo é o caminho para ampliarmos o aproveitamento energético dos resíduos.
Diante do enorme potencial e do incipiente desenvolvimento do setor, reforça-se a importância de políticas públicas que promovam a inserção de novas fontes na matriz energética nacional. Em 2017, a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo - ARSESP, já havia estabelecido regras para que o Biometano fornecido pelos produtores pudesse ser inserido na rede pública de gás canalizado.
O Plano Safra 2021/22 assegurou, no âmbito do Programa da Agricultura de Baixo Carbono – Plano ABC, o financiamento subsidiado de até R$ 20 milhões para projetos em Biogás e Biometano . E agora, passo decisivo foi dado com a realização do Leilão A-5 pelo Ministério de Minas e Energia, que incluiu, entre as fontes de geração, a incineração direta de Resíduos Sólidos Urbanos.
É importante destacar que o perfil de geração a partir do Biogás envolve atributos necessários ao sistema elétrico, como a capacidade de produzir energia quando o sistema mais precisa (despachabilidade), armazenabilidade e alto fator de capacidade, além dos benefícios locacionais da geração distribuída em localidades aonde a rede elétrica não chega ou é precária.
Além disso, o aproveitamento do Biometano, gerado a partir da purificação do Biogás, terá impacto significativo no aquecimento global, haja vista que o metano passou a ser descrito como um dos agentes mais perigosos para estabilização do clima. A União Europeia e os Estados Unidos já lideram o “Compromisso Global de Metano”, que busca reduzir em 30% a emissão do gás até 2030.
O Biogás tem grande potencial de crescimento em um ambiente regulatório favorável. O desenvolvimento da cadeia produtiva e de tecnologia nacional gerará emprego e renda, especialmente no interior do país, contribuindo para a descarbonizando da matriz energética e solucionando problemas ambientais com a destinação ambientalmente correta dos resíduos.
*Deputado Arnaldo Jardim / Cidadania–SP
Luiz Sérgio Henriques: A jornada ao centro
Defesa das instituições está longe de se restringir à esquerda ou mesmo aos setores progressistas
Luiz Sérgio Henriques / O Estado de S. Paulo
Nas nossas sociedades o centro político não é a região habitada pelos mornos – os que não são nem quentes nem frios – de que nos falam as Escrituras e que, por isso, serão impiedosamente vomitados no Apocalipse. Ao contrário, há teóricos para quem o centro é o “lugar” em que se cruzam e se confrontam por vezes com contundência, e também entram em algum tipo de acordo, as diversas propostas hegemônicas presentes na comunidade política. E, se de hegemonia se trata, sempre há movimento e mudança, sempre se registram avanços e recuos, mas nunca a eliminação física ou espiritual do adversário. O centro, em suma, move-se, indica o estabelecimento (provisório) de equilíbrios mais ou menos progressistas, mais ou menos permeáveis aos impulsos democratizadores.
A existência de um centro é o que nos permite logicamente identificar a presença de forças desestabilizadoras e, portanto, ex-cêntricas. Estas aparecem como risco e ameaça, especialmente quando são vetores de destruição pura e simples e dão vazão a forças irracionais em períodos de intensa mudança social. Como diz a frase famosa, em tais períodos tudo o que é sólido se desfaz no ar, e o desafio de entender e assimilar dialeticamente os novos termos do mundo – desafio que indivíduos sensatos se colocam – pode ser varrido por uma vontade particularmente anômala de retornar a um passado harmonioso, mas inexistente.
Este risco e esta ameaça operam concretamente entre nós. E operam não como força evanescente, mas como realidade política concreta. A direita dita iliberal, ou antiliberal, tem nossa democracia como seu troféu desde 2018. O rastro de destruição está à vista de todos e se estende do meio ambiente ao mundo da cultura, das normas básicas de civilidade aos fundamentos do Estado democrático. Particularmente perverso o ataque desferido contra a ciência e seus pressupostos em tempo de pandemia e num país, como o nosso, de firme adesão prática a regras sanitárias. A perversidade se conta, como sabemos, em algumas centenas de milhares de compatriotas mortos, muitos deles de modo cruel e desnecessário. Sem exagero retórico, a maior tragédia nacional em cinco séculos de existência coletiva.
Muito penoso ter testemunhado, desde o início, a retórica antiestablishment mobilizada por figuras reconhecidamente menores do próprio establishment em qualquer uma das suas áreas, na economia ou na política, na vida civil ou na militar. Rancor e ressentimento foram, e são, os traços distintivos do “estilo de época” que se impôs a partir de 2018. E não por acaso o “subversivismo elementar” a que tal estilo serve volta-se violentamente, em primeiro lugar, contra a própria noção de centro político, tal como acima mencionamos.
Para dar dois exemplos no plano discursivo. A fala inaugural do presidente da República, ainda no parlatório de Brasília, traz os elementos mais primários da alucinada guerra ultradireitista de valores, como, entre outros, a luta contra a “correção política” identificada com o solerte “socialismo”. E a última “declaração à nação”, na qual o presidente recua dos graves atropelos institucionais do Dia da Independência, conclui com o lema integralista (fascista ou filofascista) em desafiadora caixa alta. Ora, com tais simulacros de ideias, não há como “ir ao centro” para travar a saudável batalha hegemônica com os demais atores que compõem a sociedade aberta. A ex-centricidade está dada, é elemento constitutivo de uma força que, tendo obtido maioria eleitoral, se inscreve entre as que têm promovido ativamente a “recessão democrática” destes nossos tempos.
A defesa das instituições está longe de se restringir à esquerda ou mesmo aos setores que se autodefinem como progressistas. Recentemente, a propósito, a historiadora Anne Applebaum, ao deplorar a metamorfose do velho Partido Republicano em instrumento da “grande mentira” trumpista, chamou a atenção para a importância de haver bons partidos de centro-direita capazes de esvaziar o chamado selvagem da extrema direita. Uma consideração realista, que evidentemente se aplica a nós. Os adeptos do liberalismo político, não importa sua filiação específica, têm uma visão de mundo por demais sofisticada para regredirem ao território das distopias organicistas, por definição anuladoras do indivíduo e da tradição iluminista.
A esquerda política, ao menos nas suas expressões mais significativas, terá de apetrechar-se para sua própria “jornada ao centro”, afastando-se dos caudilhismos que assolaram a última “onda rosa” latino-americana. Por certo, divergências legítimas à parte, o ex-presidente Luiz Inácio da Silva não é a versão espelhada do atual presidente, mas, entre outros, Hugo Chávez ou Nicolás Maduro o são, razão pela qual nenhuma complacência é possível ou justificável. De resto, só uma esquerda finalmente animada pela ideia da “democracia (política) como valor universal” poderá reivindicar para si coerência programática e lealdade institucional, mais além das tentações iliberais que periodicamente costumam rondá-la. Hic Rodhus.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-jornada-ao-centro,70003868692
Paulo Delgado: Pomar sem água. País precisa de normalidade
O Brasil precisa de normalidade sem fatos extraordinários, a vida comum das ações e emoções verdadeiras
Paulo Delgado / O Estado de S.Paulo
O mundo está cheio de cretinos e este número aumenta quanto mais se afasta de Montana. Se a piada do Velho Oeste norte-americano se aproximar do Brasil, este número também aumenta. Feliz, realizada, rica, suspensa acima da terra e livre de todas as leis, a política brasileira dominou os ambientes onde cada um só cuida de si. É como obra de arte que, para ser admirada, não pode ser compreendida.
O deslumbramento com o open tudo das engenhocas digitais, o liberalismo fora da costa à moda dos corsários, o bilionário de aplicativo, a tecnologia sem ciência a serviço da agressividade, a reforma que deixa restos do Estado patrimonial dispensado de obedecer às leis, a autarquia estatal milionária dos partidos políticos. Tudo sob gestão política e judicial oficiais e sua incapacidade de dizer não a não ter direitos. Tal beatitude estabeleceu esta forma de amizade com o cretinismo sem fronteira e noção de perigo.
A palavra “indefensável” saiu do vocabulário quando a elite dos Três Poderes regulou sua conduta por princípios próprios. O indesejável tornou-se irredutível e fez ruir o suporte que sustenta a admiração por um ideal na política.
A crise de recato que vivemos – a confusão entre conectar e conhecer, clicar e conversar, paraíso liberal e fiscal, informação e privilégio, somada à moral como prótese removível – envolve hoje as pessoas e as instituições que mais precisam de mudar, mas não aceitam mudança. Os que têm o poder de falar em nome de outros e se oferecem para ser admirados são os que mais andam enganando o Brasil. Por culpa deles todas as memórias estão virando uma coisa só. A de um país da elite errada e do legal indefensável.
Não funcionamos por princípios gerais de nação. E a administração pública parece dizer para as pessoas comuns relax, há outra maneira de viver no Estado. O responsável pela economia que investe fora do Brasil deveria se afastar da sua função. Como o magistrado na ativa que cobra por palestra sobre o que faz para instituição do próprio Estado deveria considerar pilhagem o honorário. Como parlamentar que forma o patrimônio da família com salário de seus funcionários. Ou ministro sem orçamento, que não pede para sair. Sempre foi assim, todos são assim. Não são piratas. É impossível desenrascar-se de vulgaridade tão trivial que é a benevolência do povo com o espírito de corsário de mandachuva brasileiro.
Com o discernimento embotado sobre a responsabilidade dos heróis atuais, melhor não apostar em outro funcionamento da política. A insatisfação do desejo que começa a se manifestar ainda não é o desejo de outra coisa desconhecida. Melhor não arrastar tudo para a psicologia ou a ideologia dos dois uns que se opõem. O caminho mais fácil na vida nem sempre é o melhor.
É o labirinto sem centro que faz os brasileiros indiferentes, confusos ou crédulos. Falta um líder daqueles a quem a prosperidade legítima dos outros não incomoda. Felizmente, é possível perceber que a espécie humana tem um secreto brasileiro que se fez, por discrição e cansaço, inútil à política. É a pessoa tranquila no cumprimento usual do dever, legal, ajuizada, humorada, livre, não se entusiasma com a crítica fácil interessada no sofrimento humano. Nem sai por aí na televisão enfiando a carapuça em uns e outros.
O brasileiro inútil presume a responsabilidade coletiva de todos pelo fracasso das nações. Ele sabe que muitos que vivem crises de gratificação em política normalmente são os responsáveis pela própria frustração.
Estamos, outra vez, às vésperas de uma eleição sem desassossego, charme, cuidado, com muitos engodos e suspiros. O real verdadeiro que é a felicidade humana não está em nenhum aplicativo ou rede social. Se a eleição for uma disputa de algoritmo, melhor se abster. É preciso reinventar a eleição, os partidos e seus candidatos, sabendo o que nos é permitido esperar. Uma coisa é certa, o Brasil não precisa de presidente personal. Menos ainda de quem acha que tudo é política, tudo é educável, tudo é diagnóstico, polícia e juiz. O Brasil precisa de água no seu pomar, normalidade sem fatos extraordinários, a vida comum das ações e emoções verdadeiras.
Todos os conectados já foram computados. É hora de buscar a maioria desbussolada, antipáticos a personalidades coativas que gostam de gente treinada, obediente e previsível. Alguém capaz de falar para os inúteis, sem obrigá-los a responder ou agir no sentido enfático como um exército de ativistas.
A honestidade no Brasil é um hábito, mais do que uma prática. Como se a ética fosse um dilema, não conduta. Os ligados acham que os bons são bobos por preferirem inteligência a maldade. Deixe estar.
Quem conseguir entender a política verá que os fatos e eventos que a envolvem são apenas interesse, ilustrações dos princípios dos próprios políticos. Não há mal nisso, é uma função necessária e relevante. O problema é quando por trás dos fatos não se encontram princípios. Tem sido a sina brasileira: viver o ridículo e a chateação de ser governado por vitorioso que despertou esperança e não se comportou à altura.
*SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGADO.COM.BR
Fonte: O Estado de S. Paulo
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RPD || Lilia Lustosa: Belmondo, Nouvelle Vague e cia
Movimento cinematográfico mostrou uma França mais moderna, dinâmica. Jean Paul Belmondo era seu grande ícone
Em setembro, o mundo perdeu um de seus grandes atores, Jean-Paul Belmondo. Símbolo maior da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico francês revolucionário que, inspirado no neorrealismo italiano e no cinema-verdade de Jean Rouch, acabou por influenciar diversos novos cinemas em todo o mundo.
Desde o lançamento de Acossado, naquele março de 1960, o cinema mundial nunca mais seria o mesmo. Não por ter sido esta a pedra fundamental do movimento, mas, mais precisamente, por ter se convertido em uma espécie de manifesto da Nouvelle Vague, ao apresentar na telona estética e temática totalmente novas. O filme, dirigido por Jean-Luc Godard e baseado em argumento de François Truffaut, mandou às favas as regras já consolidadas do cinema comercial, trocou o tripé pela câmera na mão, usou película fotográfica ultrassensível para escapar da obrigatoriedade dos estúdios e ainda transformou bandidos em protagonistas, levando plateias inteiras a torcerem para que Michel (Belmondo), mesmo depois de ter roubado um carro e matado um policial, escapasse para Roma com a bela Patricia (Jean Seberg).
A partir dali, o mundo começava a entender que já não era mais preciso se render à predatória indústria cinematográfica norte-americana, nem à francesa, nem a qualquer outra. E que era possível, sim, realizar bons filmes com poucos recursos, câmeras leves, ao ar livre, equipe reduzida, tratando de temas moralmente questionáveis. Foi a retomada do “cinema de autor”, preconizado pelos vanguardistas dos anos 1920/30.
No Brasil, um dos herdeiros da Nouvelle Vague foi o Cinema Novo, que adotou a câmera na mão como slogan e levantou a bandeira da independência dos grandes estúdios, nacionais e internacionais. A liberdade era o grande lema dos jovens cinemanovistas que viam nessa nova maneira de fazer cinema uma forma de descolonizar também sua cultura. Filmes como Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, beberam diretamente da fonte do movimento francês, sendo vistos com admiração até mesmo pelos próprios críticos do Cahiers de Cinéma, berço da Nouvelle Vague. No filme de Guerra, Norma Bengell protagonizou o primeiro nu frontal da história do cinema brasileiro. Um escândalo para a época!
Mas o Cinema Marginal também assimilou características da “marginalidade” do movimento francês, levando-os, porém, a um paroxismo nunca visto no Brasil. O crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet aponta várias influências de Godard em O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, filme-marco deste movimento que sucedeu o Cinema Novo. Para ele, Acossado teria sido o filme que mais influenciara o cineasta paulista em sua obra. O anti-herói Jorge (Paulo Villaça) tinha muito de Michel-Belmondo, seu suicídio tendo sido moldado, porém, a partir da morte de outro personagem de um filme de Godard, Ferdinand de O Demônio das Onze Horas (1965), também interpretado por Belmondo.
Já nos Estados Unidos, a Nouvelle Vague impulsionou o nascimento da New Hollywood, deixando como herança a liberdade temática adotada a partir de então, com tramas que passavam a dialogar mais diretamente com o contexto sociopolítico daqueles rebeldes anos 60. Tópicos como igualdade racial e de gênero, pacifismo e liberdade sexual passaram a aparecer sem pudor nas telas de cinema. Anti-heróis viraram protagonistas e foram ganhando espaço no coração dos espectadores. Algo impensável até a estreia de Bonnie e Clyde (1967), de Arthur Penn, filme que abriu portas para uma nova geração de cineastas, composta por Scorsese, Coppola, Spielberg, Georges Lucas e outros. Diretores que mergulharam Hollywood em outra dimensão estética, sendo até hoje venerados e idolatrados por um sem-número de cinéfilos mundo afora. Cineastas que influenciaram, por sua vez, outras gerações que seguem trabalhando em busca de novas inspirações e tecnologias que possam revolucionar ainda mais a sétima arte.
Mas, voltando à França e ao grande ícone da Nouvelle Vague, Belmondo nunca hesitou em assumir que não era lá muito fã daquele tipo de cinema que ele considerava “intelectual” demais… Um dos filmes em que mais gostou de atuar foi O Homem do Rio (1964), de Philipe de Broca, uma aventura nada nouvellevaguiana, rodada em Paris e no Brasil, uma espécie de live-action de Tintim, em que Adrien (Belmondo) viaja por terras tupiniquins para salvar sua amada Ignès (Françoise Dorléac), raptada por índios sul-americanos. Certamente, um retrato-clichê de nosso país, mas que serviu para conquistar espaço nas telas e nos corações dos franceses e de todo o mundo.
Merci et au revoir, Belmondo!
*Lilia Lustosa é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.
RPD || Kelly Quirino: Que projeto de país temos para o futuro?
Erradicar a polaridade política atual e discutir questões estruturais se faz urgente para a construção de um país para o século XXI
Que projeto temos para o futuro do Brasil? Um país estruturado em violência, exploração do trabalho, sexismo e racismo entra na década de vinte do século XXI escancarando seus problemas históricos, e as principais lideranças políticas do nosso país ainda não conseguem apresentar uma resposta para estas demandas.
Começo por esta indagação, porque ao final do século XIX o projeto das nossas elites era modernizar o país. A ciência foi uma aliada para trazer o desenvolvimento e as políticas de imigração europeia para o Brasil ter uma mão de obra assalariada e também embranquecer nosso país, considerado preto demais para época. Era o projeto que até hoje é ostentando na nossa bandeira: “Ordem e Progresso”.
A ideia de desenvolvimento pautado pela implantação da indústria no Governo Vargas, continuada por JK e pelos militares, durante a ditadura, foi responsável pelo chamado milagre econômico brasileiro que colocou o Brasil entre as dez principais economias do mundo.
Ocorre que a exploração do trabalho, a violência e o racismo fizeram com que este projeto desenvolvimentista não fosse usufruído por grupos historicamente marginalizados: negros e indígenas.
Por mais que desde o século XIX José de Alencar já celebrasse a miscigenação como uma identidade nacional – primeiro a partir da exaltação aos indígenas e portugueses –, e Mário de Andrade reconhecendo que a identidade do povo brasileiro era soma dos três povos: indígenas, negros e brancos, no célebre Macunaíma, a riqueza gerada se concentrou nos grupos de homens brancos e continuou mantendo as piores estruturas sociais para negros e indígenas.
Aluísio de Azevedo, em O Cortiço, já apontava que o Estado brasileiro reservava os cortiços como moradia para os pretos no final do século XIX. Na década de 50, do século XX, Carolina Maria de Jesus em O Quarto de Despejo - denunciava os políticos, por negligenciar o povo favelado enquanto ela catava papel para alimentar seus três filhos.
No nosso projeto de país no século XX, os que são considerados cidadãos são privilegiados, e utilizam o discurso da meritocracia, para justificar seus lugares sociais. E pior, não possuem vergonha de ter irmãos pátrios que passam fome, são assassinados diariamente e não possuem moradia e nem trabalho digno.
Nosso projeto de país, criado no século XIX e que foi implementado no século XX não tem vergonha da desigualdade e ainda quer manter privilégios. As obras clássicas fundantes da sociologia brasileira nos ajudam a compreender este fenômeno parcialmente. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, defende que o brasileiro é um homem cordial. Avalio que seja cordial com seus iguais: homens, brancos, cristãos, instruídos, heterossexuais. Quem não faz parte disso, é tratado de forma violenta. Daí a importância de trazer a obra de Abdias do Nascimento, para refutar a tese de Buarque de Holanda. Em O Genocídio do Negro Brasileiro, Abdias afirma que o brasileiro não é cordial com as pessoas negras. A cada 23 minutos um homem, jovem e negro é assassinado no Brasil. O Atlas da Violência 2021 aponta que 77% das vítimas de homicídio do nosso país em 2019 eram negras.
Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala defendia que a colonização no país foi harmoniosa, negros e portugueses se relacionavam de forma amistosa, e o sexo entre senhores e negras era consensual. E aqui Lélia Gonzalez, no artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, refuta esta tese ao afirmar que as mulheres negras e indígenas no Brasil foram vítimas de estupro, e, no nosso projeto de país, elas são a mulata para transar, a preta para trabalhar e a mãe preta para servir. É preciso trazer à luz na Sociologia brasileira obras como as de Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez para compreender o outro lado que Buarque de Holanda e Gilberto Freyre não contemplaram.
E chegamos no século XXI como resultado de tudo isto, em um cenário obscurantista negando a ciência que tanto nos ajudou a sermos um país industrializado, negando que somos violentos, racistas, sexistas e ainda sem um projeto de país. E a pandemia ainda agravou muito mais estas desigualdades econômicas, raciais e de gênero: 14 milhões de pessoas desempregadas e voltamos para o mapa da fome.
Que projeto de país temos para o futuro? Ainda não sabemos. Daí a importância de erradicarmos a polaridade política atual e discutir questões estruturais do nosso país, apontadas no decorrer deste artigo. Se faz urgente a união de vários setores da sociedade brasileira – intelectuais, políticos, organizações, sociedade civil organizada, partidos, sindicatos e as pessoas que estão nas redes sociais para construirmos um projeto de país para o século XXI. Do jeito que estamos, cada dia nos tornamos chacota mundial.
Kelly Quirino é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasilia (UnB), Mestre em Comunicação Midiática e Jornalista Diplomada pela Universidade Estadual Paulista. Pesquisa jornalismo, relações raciais e diversidade.