artigo
‘Congresso tem se omitido na definição do papel das Forças Armadas’, diz Raul Jungmann
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de agosto, editada pela FAP, ex-ministro alerta para o risco de ‘ilusão suicida’
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Congresso Nacional deve assumir suas responsabilidades e definir os rumos da defesa nacional e das Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino, defesa e democracia, avalia o ex-ministro Raul Jungmann, em artigo que publicou na edição de agosto da revista Política Democrática Online. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. A instituição disponibiliza, gratuitamente, o acesso a todas as edições em seu site.
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Jungmann é ex-deputado federal. Foi ministro do Desenvolvimento Agrário e ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC (Fernando Henrique Cardoso), ministro da Defesa e ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer. “Num mundo com riscos de conflito em alta, em que armas baseadas em tecnologias disruptivas são desenvolvidas, em que o sistema de contenção da corrida nuclear vem sendo desmontado e no qual países incrementam seus orçamentos de defesa, nos imaginarmos uma ilha de paz perpétua é ilusão suicida", alerta.
Em sua análise, Jungmann faz duras críticas ao parlamento brasileiro. "Até aqui, o Congresso tem se omitido na definição do papel das Forças Armadas nesse abrangente contexto”, afirma, para continuar: “Exemplo disso, a política e a estratégia anteriores, de 2016 a 2020, foram aprovadas pelo Senado e Câmara em votação simbólica sem debates e sem participação da sociedade".
O autor lembra, em seu texto, que a política de defesa e a estratégia de defesa de 2016, enviadas em 18 de novembro daquele ano, só lograram aprovação em 17 de dezembro de 2018, dois anos após. “Não sancionadas pelo presidente Temer, de saída, também não o foram pelo presidente atual, ficando o Brasil com oito anos de defasagem nessa área, contando apenas como os textos de 2012”.
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Edição do mês de agosto também analisa governo Bolsonaro e aproximação dele com Joe Biden
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Prejuízos da mistura de ideologia e gestão educacional no Brasil, efeito devastador da covid-19 nos povos indígenas, apelo contra omissão do Congresso na definição do papel das Forças Armadas e possível aproximação do presidente Jair Bolsonaro com o americano Joe Biden são destaques da revista Política Democrática Online de agosto. A nova edição da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, foi lançada nesta sexta-feira (14) e tem acesso totalmente gratuito no site da entidade.
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No editorial, a revista observa que completa-se mais um mês o novo figurino adotado por Bolsonaro. “Não mais confrontos com o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal; não mais ameaças, veladas ou não, ao funcionamento regular das instituições”, diz um trecho. “Aparentemente, o bloco parlamentar apelidado de ‘centrão’ teria logrado surpreendente e rápido sucesso, tanto na tarefa na de convencer o presidente a transitar pelos meandros da ordem democrática, como na de guiá-lo nesse percurso”, afirma.
Na entrevista especial concedida à nova edição da revista Política Democrática Online, o professor Arnaldo Niskie, membro da Academia Brasileira de Letras e ex-membro do Conselho Nacional de Educação, avalia que o país sofre sem um plano nacional de educação e com o principal órgão – o Ministério da Educação – minado por uma gestão precária que mistura ideologia com gestão escolar. "Essa mistura não é saudável. Prejudica os beneficiários do processo – os estudantes", avalia.
A reportagem exclusiva desta edição faz ecoar o grito de socorro dos povos indígenas no Brasil, que, cada vez mais, tornam-se vítimas da Covid-19. A doença já matou mais de 600 indígenas no país, como é o caso do líder do Alto Xingu Alto Xingu, Aritana Yawalapiti. Mais de 23 mil indígenas já foram infectados pelo coronavírus. “Entre os povos indígenas, os efeitos da doença são ainda muito maiores, já que a falta de atenção à saúde e proteção deles os deixam ainda mais vulneráveis à destruição de vidas, mitos, línguas e tradições milenares”, diz um trecho.
Em seu artigo, o ex-ministro da Defesa ex-ministro Extraordinário da Segurança do governo Michel Temer, Raul Jungmann faz um apelo ao Congresso Nacional para “assumir suas responsabilidades e definir os rumos da defesa nacional e das Forças Armadas, sob pena de ser qualificado como agente omisso do destino, da defesa e da democracia”. “Até aqui, o Congresso tem-se omitido na definição do papel das Forças Armadas”, alerta.
Já o diretor do Irice (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior), o diplomata Rubens Barbosa, observa, em seu artigo, que, diante de uma provável vitória de Joe Biden, Bolsonaro está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de segurança nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata. O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Trump seja derrotado.
A revista Política Democrática Online de agosto também tem artigos sobe modulações da guerra de Bolsonaro, novas perspectivas da covid-19 sobre a economia e novo contexto da política monetária, além de análises sobre cultura. A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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RPD | Raul Jungmann: Congresso Nacional, Defesa e Forças Armadas
O Parlamento deve assumir suas responsabilidades e definir os rumos da Defesa Nacional e das Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino e dos destinos da defesa e da democracia, avalia Raul Jungmann
À minha Casa de origem, onde durante três mandatos de deputado federal fui membro da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, permito-me dirigir um apelo em favor de um tema premente que volta à pauta legislativa para apreciação parlamentar.
A Presidência da República enviou ao Congresso Nacional a terceira revisão da Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco da Defesa Nacional. Revisados a cada quatro anos, os textos em questão contêm as mais importantes decisões sobre a defesa do país e o papel das Forças Armadas na manutenção da soberania, interesses nacionais, território, recursos, povo e identidade.
A Política estabelece os objetivos da Defesa Nacional; a estratégia, os meios e ações para alcançá-los; e o Livro Branco é um grande inventário – efetivos, equipamento, disposição e recursos – das nossas Forças Armadas, dando transparência à sua estrutura, organização, recursos e promovendo a confiança junto às demais nações.
Tornados norma pela lei complementar 136 /2010, da qual fui relator na Câmara, as três peças visam submeter ao poder político da Nação os objetivos e meios necessários para a dissuasão de ameaças externas, de sustentação ao nosso desenvolvimento e de projetação do poder nacional onde for preciso, em apoio à política externa e à capacidade de dizer não em nome da nação quando for necessário.
Até aqui, o Congresso Nacional tem-se omitido na definição do papel das Forças Armadas nesse abrangente contexto. Exemplo disso, a política e a estratégia anteriores, de 2016 a 2020, foram aprovadas pelo Senado e Câmara em votação simbólica, sem a realização de uma audiência pública sequer, sem debates e sem participação da sociedade.
Aliás, a política de defesa e a estratégia de defesa de 2016, enviadas em 18 de novembro daquele ano, só lograram aprovação em 17 de dezembro de 2018, dois anos após. Não sancionadas pelo presidente Temer, de saída, também não o foram pelo presidente atual, ficando o Brasil com oito anos de defasagem nessa área, contando apenas como os textos de 2012.
A política e a estratégia de 2020 são políticas de Estado que agora já contemplam possíveis conflitos armados na América do Sul; a situação do Atlântico Sul, por onde passam 97% de nossas exportações, atrai interesses de nações ao norte pela descoberta de petróleo no Golfo da Guiné.
A Amazônia segue sob pressão, e o Ministério da Defesa reivindica que seu orçamento passe dos atuais 1,5% do PIB para 2%. Esse cenário precisa ser analisado, debatido, modificado, ou não, e aprovado pelo Congresso Nacional.
Num mundo com riscos de conflito em alta, em que armas baseadas em tecnologias disruptivas são desenvolvidas, em que o sistema de contenção da corrida nuclear vem sendo desmontado e no qual países incrementam seus orçamentos de defesa, nos imaginarmos uma ilha de paz perpétua é ilusão suicida.
Reafirmemos nosso caráter pacífico e o respeito às demais nações. Nossa observância às regras do multilateralismo e aos acordos e tratados internacionais dos quais somos signatários, e à nossa Constituição. Mas é inexorável que nossa ascensão como nação nos conduza a maiores responsabilidades globais em que restrições e ameaças venham a tentar tolher nossos passos.
No momento em que os militares estão no centro do debate, é hora de o poder político assumir suas responsabilidades e definir os rumos da defesa nacional e das Forças Armadas, sob pena de amanhã ser qualificado como agente omisso do nosso destino, defesa e democracia.
*Raul Jungmann é ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança PPública do governo Michel Temer. Escreve no Capital Político.
RPD | Alberto Aggio: As modulações da guerra de Bolsonaro
O aumento do número de mortos provocado pela pandemia, a desastrosa atuação do governo no tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança e o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente estancaram a linha de ação da guerra de Bolsonaro
Não estamos em guerra, nem internacional, nem de libertação nacional, nem mesmo contra a pandemia que se abateu sobre nós. No entanto, a metáfora da guerra invadiu, com palavras e expressões do mesmo campo semântico, o espaço discursivo da política desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder. Até a cultura foi atingida em nome de uma insana “guerra cultural” contra tudo o que os partidários do presidente definem como “esquerda”. A militarização de parcela da gestão pública federal é parte dessa aparentemente insólita situação, com um general à cabeça do Ministério da Saúde asseverando que lá está “para cumprir ordens”.
O que pauta o governo Bolsonaro, em autodeclaração contundente, é o programa de “destruição” dos atores, das instituições e da cultura política de convivência democrática que se erigiu nas últimas três décadas, sob a égide da Constituição de 1988. Em momentos nos quais a eloquência confrontacional do presidente buscou mobilizar seus partidários, Bolsonaro chegou a ser explícito: “Isso é uma guerra, pô”. Em outras situações, nas quais quis aparentar concórdia e distensão, seu discurso procurou operar com o antônimo, pedindo “paz, em nome do Brasil”.
A “guerra de Bolsonaro” não é “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz). Não é uma guerra efetiva, embora ambicione impor uma “suspensão da política”, como se estivesse num contexto revolucionário, à la Lenin, para quem a guerra deveria ser vista como desdobramento da revolução. Não é sem propósito observar também que Mussolini venerava a guerra e se dizia um revolucionário.
Talvez por isso a sensação de crispação política nos remeta tanto à guerra como à revolução. Esta última, um devaneio rupturista que os ideólogos do bolsonarismo curam em “fogo morno” contra a democracia em seus valores, instituições e direitos. Ruptura travestida como eliminação de “comunistas” e “corruptos” do solo pátrio. Como o presidente não lidera um partido fascista ou um movimento orgânico (embora tenha mobilizado massas) que combine a rua com redes sociais e instituições da sociedade política, pode-se dizer que ele e o “núcleo duro” do bolsonarismo guardam alguma similitude com a subsistência de experiências do tipo “45 cavaleiros húngaros”, mencionada por Gramsci, nas quais uma minoria, em meio à paralisia ou desorientação das massas, consegue alcançar um sucesso inesperado.
Garantir o êxito conquistado e levá-lo avante no mesmo padrão da campanha eleitoral foi o que se fez neste ano e meio, ao se acionar uma “guerra de movimento”, aberta e confrontacional, visando a uma vitória esmagadora e histórica que impusesse uma “nova hegemonia”. Esse movimento, permanente e multifacetado, que pediu “intervenção militar” e um “novo AI-5”, atingiu seu ápice no “bombardeio fake” ao STF com fogos de artifício, sugerindo que se passasse da encenação a um efetivo “golpe de mão”. Em maio, Bolsonaro cogitou efetivamente de “intervir” no STF e destituir seus ministros[1].
Mas havia mais de uma pedra no caminho. O crescente número de mortos provocado pela pandemia e o desastroso tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança (cujo desastroso ápice foi a saída de Sergio Moro), e, por fim, o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente, envolvendo a milícia carioca, estancaram aquela linha de ação.
Ato contínuo, sobreveio uma contraofensiva democrática capitaneada pelas instituições da República, notadamente o STF, que, ladeada pela postura crítica da mídia tradicional, ganharia as redes sociais e, mesmo em plena pandemia, as ruas. Em manifestações múltiplas, a sociedade civil passou a confrontar simbolicamente as hostes bolsonaristas conclamando à defesa da democracia. Infelizmente, em função de históricas divisões, o saldo político dessa contraofensiva foi pequeno, mostrando a debilidade das forças democráticas.
Entretanto, sentindo o mandato ameaçado, o presidente acusou o golpe e, depois disso, assumiu estratégia híbrida de congelamento do movimentismo e adoção de uma “guerra de posições”, a visando evitar o impeachment. A estratégia de “suspensão da política” esgotou-se. Cooptar os parlamentares do Centrão para o campo governista tornou-se elemento essencial.
A mudança forçou um “retorno à política”, mesmo sem as convicções que uma operação como essa exige. Há claro dissabor nessa operação para quem pretendia vitória fulminante. Mas o movimento de Bolsonaro não é apenas defensivo. Ele pretende, de um lado, impedir a aproximação e uma eventual aliança entre a oposição e as principais lideranças de centro ou centro-direita no Congresso; e, de outro, capturar bandeiras sociais como o auxílio emergencial, que se somaria a outras propostas de cunho assistencial. Impedir o impeachment, por meio de uma “guerra de posições” e manter o ativismo eleitoral, rumo a 2022, define o sentido dessa mudança de estratégia; somente a severidade da crise, ao que tudo indica, pode comprometer seu êxito.
Por ora, a ameaça de destruição integral da democracia parece estancada, embora o estrago tenha sido enorme. Desorientada, a oposição viu o impeachment fugir-lhe entre os dedos, o que inevitavelmente voltou a aprofundar suas divisões. Isso fez com que Bolsonaro se recuperasse e saísse das cordas. Uma coisa é certa: Bolsonaro vacilou e criou obstáculos para não “abrir o cofre” para salvar vidas (empresas e empregos), mas parece não ter dúvidas em fazê-lo para garantir sua reeleição, o que poderá agregar às crises que já temos um aprofundamento da nossa eterna crise fiscal, de consequências imprevisíveis.
[1] Gugliano, Monica. “Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo”, Piauí, edição 167, agosto de 2020.
RPD | Rubens Barbosa: As eleições nos EUA e o Brasil
Diante de uma provável vitória de Joe Biden, Bolsonaro está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata. O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Trump seja derrotado
As pesquisas de opinião oscilam, mas passou a haver chance real de Joe Biden vencer as eleições presidenciais de novembro, com mudanças significativas nas políticas econômica, ambiental e externa nos EUA. A incerteza deriva do sistema eleitoral dos EUA, no qual o presidente é eleito não por voto majoritário, mas por um colégio eleitoral, formado por delegados dos 51 estados, alguns dos quais divididos, como Pensilvânia, Michigan, Flórida, com resultados imprevisíveis, pela mudança de sua maioria em cada eleição.
O Partido Democrata, no governo, implementará uma política econômica com forte viés nacionalista, para recuperar o dinamismo da economia e reduzir o desemprego, com grande ênfase em políticas ambientais (Green New Deal). Os EUA deverão assinar o Acordo de Paris e voltarão a dar prioridade aos organismos multilaterais, com o consequente retorno à Organização Mundial de Saúde, ao fortalecimento da OMC e da ONU. Temas como salvar o acordo nuclear com o Irã, o reingresso no acordo comércio com a Ásia (TPP), a relação com a Europa (OTAN) e a saída do Reino Unido da União Europeia estarão altos na agenda.
As crescentes tensões geopolíticas entre os EUA e a China deverão continuar e mesmo ampliar-se nas áreas comerciais, tecnológicas e militares, pois Beijing é tratada hoje como um adversário pelo establishment norte-americano. A presença da China na América do Sul poderá trazer o conflito geopolítico para a região. A decisão do governo de Washington, de apresentar candidato para a presidência do BID, contra um candidato brasileiro, pode ser o indicio de um renovado interesse político dos EUA para conter Beijing na América do Sul.
Qual o impacto sobre as relações Brasil-EUA?
Em uma de suas lives semanais, o presidente Jair Bolsonaro comentou o cenário da eleição presidencial americana. Confirmou que torce por Donald Trump, mas que vai tentar aproximação, caso Joe Biden seja o vencedor. "Se não quiserem, paciência", simplificou. Bolsonaro ouviu e está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata, ao contrário do tratamento que está sendo dado ao presidente Fernández, da Argentina.
Nesse contexto, é importante ter em mente a distinção entre a relação pessoal Bolsonaro-Trump e a institucional entre as burocracias brasileira e norte-americana. Caso Biden seja eleito, vai terminar a relação especial com Trump por influência ideológica. Em termos institucionais, o relacionamento bilateral, de baixa prioridade, deve continuar nas mesmas bases em que ocorre hoje. Mesmo no governo Trump, o Comitê de Orçamento da Câmara, um relatório do Departamento de Estado e carta de deputada democrata criticaram o governo brasileiro e pediram que não seja negociado nenhum acordo comercial com o Brasil, que haja sanções contra Brasília por conta das políticas ambiental e de direitos humanos, e que seja vetada ajuda na área de defesa ao Brasil como aliado da OTAN.
Um futuro governo democrata tenderá a ampliar essas críticas e afastar-se das posições brasileiras nos foros internacionais. O alinhamento com os EUA, nem sempre explicitado nas relações bilaterais, torna-se automático quando se trata de votações de resoluções sobre costumes, mulheres, direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais (ONU, OMS, OMC). Em muitos casos, o Brasil fica isolado com EUA e Israel e, na questão de costumes, apenas com países conservadores (Arábia Saudita, Líbia, Congo, Afeganistão). O tema da Amazônia, em vista da prioridade ambiental democrata, se sair do âmbito da burocracia e ganhar relevância na opinião pública, poderá contaminar a relação bilateral e afetar o financiamento e infraestrutura por parte de instituições públicas e privadas internacionais.
O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Biden vença a eleição. O Brasil vai ter de decidir se fará uma opção (evitada pela maioria dos países europeus e asiáticos) por um dos lados ou se preferirá permanecer equidistante nessa disputa. Eventual oposição à tecnologia chinesa no 5G e apoio à proposta dos EUA na OMC sobre a participação apenas de países de economia de mercado – o que excluiria a China – indicariam que o Brasil teria escolhido seu lado. Os EUA convencerão o Brasil a ficar contra a China? Levando em conta que a disputa entre as duas potências está apenas começando e durará por muitas décadas, manter-se equidistante parece ser a melhor atitude na defesa do interesse nacional.
RPD | Paulo Baía: Jair Bolsonaro e o fingimento como práxis política
Brasil vive etapa do fingimento na política nacional. Governo Jair Bolsonaro tenta evitar confrontos com os presidentes das casas legislativas e com os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) enquanto amplia acordo com os partidos do Centrão
Jair Bolsonaro e seu Estado Maior vão tocando o dia a dia da política nacional, como diz no linguajar popular, através da prática de ir cozinhando o galo. A relação estabelecida com o Congresso Nacional é a do não confronto com os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. E trataram de ampliar o diálogo com os partidos políticos – PSDB e MDB –, principalmente com o deputado emedebista Baleia Rossi.
Aparentemente, Jair Bolsonaro não participa da campanha para a Presidência da Câmara dos Deputados, fazendo com que os partidos fisiológicos, autodenominados de Centrão, sem se caracterizarem realmente como um centro político, finjam desconforto com o governo, mas aceitem com alegria as nomeações nos terceiro e quarto escalões da República. Além de estarem focados nas facilidades que o Governo Federal está oferecendo às campanhas municipais a serem realizadas nos dias 15 e 29 de novembro de 2020.
Apesar do descontentamento pela derrota sofrida com a aprovação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) por uma maioria qualificada, tornando-se permanente, o governo manteve-se com uma postura de aceitação. O Fundeb deixou de ser um programa e passou a ser uma política de Estado constante e de interligação entre os entes federados – municípios e estados –, e não mais como uma relação federativa formal. Inclusive, até 2023 o Governo Federal terá que efetuar uma crescente participação para a manutenção do fundo.
Como efeito da aprovação do Fundeb temos a discreta e não surpreendente nomeação para secretária da Educação Básica do MEC, da professora Izabel Lima Pessoa, experiente servidora pública com presença marcante em todos os governos, desde FHC até Michel Temer. E com ótimo trânsito na quase totalidade das secretarias municipais e estaduais de educação.
A pandemia do coronavírus permanece ativa e potente, e atingiu a triste marca de mais de 100 mil brasileiros mortos. No entanto, prefeituras e estados vêm flexibilizando o retorno de todas as atividades econômicas como parte da estratégia do Governo Federal, pensando no reaquecimento da economia, grande preocupação do presidente Bolsonaro, visando às eleições presidenciais de 2022.
Na parte educacional, as universidades públicas retomam o ensino de graduação de maneira remota, com apoio, apesar de discreto, aos estudantes carentes a partir da doação de chips e de uma bolsa para compra de computadores. O governo estenderá o auxílio emergencial até dezembro, pensando nos efeitos produzidos na aprovação do presidente nos segmentos mais pobres e sacrificados da população brasileira. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também finge que governa e estabelece diálogo sobre a reforma tributária com empresários, parlamentares, governadores e prefeitos, os quais fingem escutar e até concordar com a dita reforma.
Entramos para a etapa do fingimento na política nacional e no governo Jair Bolsonaro. Entretanto, como contraponto de realidade política, temos uma economia política da vida emergindo para milhões de brasileiros num experimentalismo comunitário vigoroso. Podemos falar do caso da auto-organização de comitês de favelas e periferias num processo de defesa potente da vida e dos meios de sobrevivência; estão se reinventando.
No início do mês de julho, Jair Bolsonaro e seu governo praticavam um silêncio pragmático para enfrentar as decisões do STF, como no caso do inquérito contra as fake news, tendo surgido um forte rumor de reuniões do presidente com forças militares para dissolver o STF, relatado pela revista Piauí. Já em agosto, inicia-se uma postura de fingimento de que não existe uma crise política profunda e ampla, potencializada pelos impactos paralisantes da Covid-19 em parceria com o ineficaz e desastroso liberalismo da morte do ministro Paulo Guedes e sua equipe.
Por sua vez, a oposição finge que faz oposição num universo paralelo e ficcional justamente por sua não atuação nas práticas políticas reais e eficazes para criar e manter um debate sobre a situação sanitária, política e econômica do país. Podemos afirmar que o signo do mês de agosto de 2020 se dá através da relação entre o fingidor e o fingimento numa tentativa de colocar a sociedade brasileira diante de um enigma. Sendo que Édipo será incapaz de decifrá-lo por se tratar de uma esfinge com signos claros de uma republiqueta do submundo periférico.
*Paulo Baía é sociólogo e cientista político.
RPD | José Luiz Oreiro: Pós-Covid 19: Estagnação Perpétua?
As previsões para o Brasil são ainda mais sombrias em comparação com as principais economias mundiais. O país deverá crescer apenas 2,9%, em 2021, de forma que o PIB brasileiro ao final desse ano ainda estará 6,25% abaixo do valor verificado no final de 2019, avalia José Luis Oreiro
A eclosão da pandemia do coronavírus no primeiro trimestre de 2020 está produzindo a maior contração coordenada do nível de atividade econômica em nível global, desde a grande depressão de 1929. A média das previsões do Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico e da Comissão Europeia aponta para uma queda de 6,5% da economia mundial, em 2020, com as economias avançadas apresentando recuo mais forte, de 7,5%. Ao passo que as economias em desenvolvimento devem apresentar retração mais suave, de “apenas” 3,0%. Claro está, contudo, que boa parte da queda mais suave das economias em desenvolvimento relativamente às economias avançadas se deve à projeção média de queda de 0,6%, em 2020, para a economia da China.
Quanto à economia brasileira, a média das previsões aponta para retração de 8,7%, configurando, assim, a mais rápida e intensa queda do nível de atividade econômica já registrada no país desde 1929.
Para o ano de 2021, a média das previsões das instituições internacionais listadas acima aponta para recuperação relativamente rápida da economia mundial, que deverá apresentar crescimento de 5,4%, em 2021. Mas a recuperação será extremamente desigual entre os países analisados. Enquanto a China deverá apresentar crescimento de 4,9%, em 2021, devolvendo toda a perda de produto ocorrida durante a crise do coronavírus, as economias avançadas deverão apresentar crescimento de 4,4% no próximo ano, insuficiente para recuperar a perda de produção e de renda ocorrida ao longo do ano de 2020. As previsões para o Brasil são ainda mais sombrias: a economia brasileira deverá crescer apenas 2,9%, em 2021, de forma que o PIB brasileiro ao final desse ano ainda estará 6,25% abaixo do valor verificado no final de 2019.
A teoria macroeconômica convencional apresenta os ciclos econômicos como oscilações de amplitude e periodicidade irregular em torno de uma tendência de longo prazo relativamente constante, determinada por fatores do lado da oferta da economia e independente das flutuações do nível de atividade. Dessa forma, períodos de forte contração do nível de atividade econômica deveriam ser seguidos por períodos de crescimento acelerado, caso a tendência de crescimento de longo prazo não seja alterada ao longo do processo. As previsões acima, contudo, parecem apontar para efeitos persistentes da crise do coronavírus sobre o nível de atividade econômica, pois as projeções de crescimento para 2021, para a maior parte dos países, indicam que suas economias chegarão ao final desse ano com um nível de atividade muito abaixo do nível prevalecente antes da pandemia.
O caso brasileiro é particularmente grave nesse quesito. Não só a economia brasileira ao final de 2021 estará operando muito abaixo do nível verificado no final de 2019, como ainda estará 9,4% abaixo do indicador verificado em 2014! Isso porque, no início de 2020, a economia brasileira sequer havia se recuperado dos efeitos da crise de 2015-2016, quando o nível de atividade apresentou contração de 6,81%. A perda de produto não recuperada ao longo do período 2017-2019 será somada à contração esperada de 9,10% (pelo FMI), no ano de 2020, totalizando queda de produto de 11,96% no período 2015-2020.
O cenário para 2021 é assustador. Os programas do Governo Federal, de manutenção de renda e de emprego, devem ser terminados no final do terceiro trimestre de 2020. Se nada for posto em seu lugar, teremos queda de renda significativa no último trimestre do ano, o que deverá produzir uma segunda contração do nível de atividade econômica e novo mergulho recessivo. Além disso, se o teto de gastos não for flexibilizado em 2020, com a exclusão dos investimentos públicos do teto a partir de 2021, então o Governo Federal será obrigado a recomeçar o ajuste fiscal, mas com uma economia que deverá registrar índices cavalares de ociosidade da capacidade produtiva.
Nesse contexto, parece pouco provável que a economia brasileira possa ter desempenho de crescimento superior ao que obteve no período 2017-2019, ou seja, um crescimento médio em torno de 1% a.a. Com esse ritmo, a economia brasileira só retornaria ao nível de PIB de 2014 em 2033! Se esse cenário se concretizar, a economia brasileira passará por período de estagnação de quase 20 anos. Não acredito que uma estagnação tão longa seja política e socialmente sustentável. Ou a sociedade brasileira se livra das amarras de um pensamento econômico obsoleto ou ela poderá trilhar o caminho da autodestruição.
José Luís Oreiro é professor Associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. E-mail joreiro@unb.br
RPD | Lilia Lustosa: Sinfonia no céu
As trilhas mudaram a nossa percepção dos filmes e foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, com parcerias bem-sucedidas e duradouras como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, Sergio Leone e Ennio Morricone, além de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, avalia Lilia Lustosa
Bem antes de o som invadir as telas do cinema com “O Cantor de Jazz” (1927), de Alan Crosland, a música já funcionava como o melhor complemento para essa nova arte que conquistava pouco a pouco sua legitimação. Não tardou nada para que as imagens em movimento inauguradas pelos irmãos Lumière ganhassem logo acompanhamentos de piano, órgão e até de orquestras inteiras. Alguns músicos, vislumbrando o potencial da arte que surgia, começaram a compor diretamente para as tais “vistas” que tanto encantavam os olhos das plateias naquele começo de século 20. O alemão Gottfried Huppertz foi um deles, compondo para alguns dos filmes mais importantes de Fritz Lang – “Dr. Mabuse” (1922), “Os Nibelungos - A Morte de Siegfried” (1924) e “Metropolis” (1927) –, estabelecendo com o diretor uma parceria de sucesso, acabando por tornar-se o compositor mais requisitado do Expressionismo alemão.
A partir daí, as “trilhas sonoras” foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, vendo surgir de quando em quando outras parcerias bem-sucedidas e duradouras, como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, ou ainda a de Sergio Leone e Ennio Morricone, compositor italiano que nos deixou em julho último, aos 91 anos de idade.
Morricone foi o grande parceiro do diretor Sergio Leone, seu colega de escola e figura emblemática do western spaghetti, gênero que nasceu na Itália e conquistou o mundo, lançando até mesmo um certo Clint Eastwood para o estrelato. O compositor, que ganhou um Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra em 2007, revolucionou a maneira de compor para o cinema, misturando música erudita (tradição hollywoodiana) com música pop, associando-lhes ainda elementos de música concreta.
“Três Homens em Conflito” (1966), cuja trilha foi baseada no som dos coiotes do “velho oeste”, é um bom exemplo dessa mescla. Uma ousadia que se impôs e fez escola, com discípulos espalhados no mundo inteiro, além de espectadores-fãs transformados em cineastas, como Quentin Tarantino, que, depois de muito insistir, conseguiu que Morricone concordasse em compor a trilha de seu “Os Oito Odiados” (2015). Uma experiência que lhe rendeu um Oscar de melhor trilha sonora original, além do título de pessoa mais velha a receber a estatueta, aos 87 anos de idade.
Não se sabe ao certo quantas músicas Morricone compôs para o cinema – algo em torno de 500, segundo especialistas –, mas onde não pairam dúvidas é quanto à diversidade de gêneros em que atuava. Aliás, ele ficava incomodado com o fato de ser sempre associado ao western, quando, na verdade, transitou por tantos outros gêneros, vide “Era uma Vez na América” (1984), “Cinema Paradiso” (1988), “A Missão” (1986) e “Os Intocáveis” (1987). Para cada um, soube encontrar a melodia certa, fazendo da partitura não só um complemento, mas também um elemento intrínseco à mise-en-scène, tal como a iluminação, os movimentos de câmaras, a cenografia etc.
Do lado de cá do Atlântico, também tivemos grandes compositores que atuaram no cinema, como Heitor Villa-Lobos, que compôs uma série de suítes para o filme “Descobrimento do Brasil” (1937), de Humberto Mauro, e acabou virando o compositor-símbolo do Cinema Novo. Movimento cinematográfico que ainda revelou Sérgio Ricardo, grande parceiro de Glauber Rocha em seus filmes mais importantes – “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), “Terra em Transe” (1967) e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969) –, bem como diretor de “Menino da Calça Branca” (1962) e de “Esse Mundo é Meu” (1964), para os quais compôs ainda as trilhas.
Assim como Morricone, Sérgio Ricardo revolucionou a música cinematográfica, deixando de lado as músicas orquestrais e os números musicais em voga no cinema do Brasil de então, partindo para uma experiência mais antropofágica. No caso de “Deus e o Diabo”, musicou as letras escritas pelo próprio Glauber em forma de cordel, cantou-as acompanhadas por um violão tocado por ele mesmo e misturou-as às Bachianas já antropofagizadas de Villa-Lobos. Em “Terra em Transe”, ampliou ainda mais a mistura, alternando o mesmo Villa Lobos com Giuseppe Verdi, Carlos Gomes, jazz, bossa nova, cantos de candomblé, marchinhas de Carnaval e ainda tiros de metralhadora e sirenes de polícia. Uma verdadeira inspiração para o Tropicalismo que emergia em nosso país daquele fim de anos 60.
Sérgio Ricardo, que se chamava João Lutfi de nascimento, partiu também neste julho, aos 88 anos de idade, apenas alguns dias depois do mestre Morricone, deixando emudecido o cinema brasileiro. Grande silêncio sentido na terra, festa sinfônica no céu.
*Lilia Lustosa é crítica de cinema
RPD | Henrique Brandão: Humberto Mauro - “Cinema é cachoeira”
Pioneiro do cinema, Humberto Mauro é considerado o mais nacionalista de todos os cineastas brasileiros. Primeiro a registrar o Brasil profundo de maneira sincera, ele realizou 11 longas-metragens e 357 curtas e médias
As novas gerações interessadas em cinema talvez não tenham ouvido falar de Humberto Mauro. Não sei se suas obras são estudadas nas faculdades. Se o são, ótimo, pois o cineasta tem lugar de destaque na história do cinema brasileiro, não só pelo legado, mas também, principalmente, pela sua maneira original de filmar.
Humberto Mauro (1897-1983) é um dos pioneiros do cinema brasileiro. Tem vasta obra. São 11 longas-metragens e 357 curtas e médias, estes últimos realizados a partir de 1936, quando foi trabalhar no Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), órgão subordinado ao MEC, a convite do antropólogo Edgard Roquette-Pinto. Infelizmente, parte desse imenso acervo se perdeu por problemas de conservação, mas é possível ter acesso a 80 deles, que estão espalhados entre o acervo da Cinemateca Brasileira e o CTAV – Centro Técnico Audiovisual da Funarte.
Na minha geração, não era fácil ter acesso aos filmes de Humberto Mauro. Meu primeiro contato com seus filmes foi com o curta “A Velha a Fiar” (1967), pequena obra-prima de realização, cheia de humor e brasilidade. Dos longas, só conheço fragmentos, dos quais destaco trechos de “O Descobrimento do Brasil” (1937), com trilha sonora de Villa-Lobos.
Nos dias atuais, continua difícil ver os filmes de Humberto Mauro. Portanto, foi com curiosidade e interesse que, como parte da comemoração dos 65 anos da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), assisti na plataforma Vimeo (programação completa em www.vimeo.com/mamrio) ao documentário “Humberto Mauro”.
O longa-metragem é dirigido por seu sobrinho-neto, André di Mauro. O fio condutor do filme são algumas entrevistas dadas pelo cineasta durante a vida. Nelas, Humberto Mauro fala de assuntos importantes relacionados à sua obra. Sobre a natureza: “A gente tem que surpreender a natureza. Eu não filmo uma cachoeira assim de cara, não. Me escondo atrás de uma bananeira para ela não saber que está sendo filmada. Senão, a água começa a cair diferente”.
Quando o assunto é a visão estética: “A roda d’água, por exemplo, é de uma fotogenia extraordinária. Aquele rodar lento, os musgos, a água batendo contra o sol. Agora, troca por um motor a turbina e vê a porcaria que fica. O progresso é antifotogênico”.
Surpreendente também era a sua visão sobre a realização dos filmes: “Eu nunca estudei cinema. O Michelangelo dizia que a escultura já estava pronta dentro do bloco de pedra, era só você ir com o martelo. Eu costumo dizer que o filme já está dentro da máquina, é só focalizar e apertar o botão que ele sai.”
Quem assiste ao documentário percebe a construção de um olhar próprio, com uma noção de país muito peculiar. Humberto Mauro foi o primeiro cineasta a registrar o Brasil profundo de maneira sincera. É generoso com o país de sua época, predominantemente rural. O olhar é de quem está integrado à paisagem. A câmera parece um elemento natural, os enquadramentos não interferem na natureza. Fosse hoje, os ecologistas construiriam um monumento em sua homenagem.
A importância de Humberto Mauro foi reconhecida posteriormente. Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), crítico e fundador da Cinemateca Brasileira, ensaísta de sólida reputação com papel decisivo na formação dos cineastas que participaram do Cinema Novo, analisou as primeiras obras de Humberto Mauro em sua tese de doutorado, mais tarde publicada em livro: “Humberto Mauro, Cataguazes e Cinearte” (1974, Editora Perspectiva), hoje um clássico da historiografia do cinema brasileiro.
Além de talentoso cineasta, Humberto Mauro também era estudioso do tupi-guarani. Já aposentado das câmeras, colaborou com alguns cineastas do Cinema Novo. Foi o autor dos diálogos em tupi-guarani de “Como era Gostoso o meu Francês”, de Nelson Pereira dos Santos (1971) e de “Anchieta, José do Brasil”, de Paulo César Sarraceni (1978).
O crítico e cineasta Alex Viany, que contou com a parceria de Humberto Mauro no argumento e roteiro de “A Noiva da Cidade” (1979), em entrevista no documentário deixa claro a admiração pelo velho pioneiro: “Você é o homem que plantou as raízes do cinema brasileiro. Seu cinema é uma coisa muito viva”.
Talvez o que melhor defina o jeito de filmar e a visão de mundo de Humberto Mauro seja a frase-síntese que deixou para a posteridade: “Cinema é cachoeira”.
*Henrique Brandão é jornalista e fundador do bloco “Simpatia é Quase Amor”.
RPD | Martin Cezar Feijó: O Multiartista de calças brancas
Pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico, Sérgio Ricardo viveu intensamente seu tempo histórico e fez muito pela cultura brasileira
João Mansur Lutfi nasceu no dia 18 de junho de 1933, na cidade de Marília, interior do Estado de São Paulo. E morreu aos 88 anos de idade no dia 23 de julho de 2020, na cidade do Rio Janeiro, depois de um longo período internado, inicialmente por Covid-19, da qual se curou, mas faleceu por problemas cardíacos, conforme noticiou a imprensa.
Foi pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico. Como dizia, só não aprendeu balé. E foi conhecido pelo nome artístico que adotou ainda moço, por sugestão de um diretor de televisão: Sérgio Ricardo. Um artista que fez muito pela cultura brasileira a partir da década de 1950, principalmente nos anos 60. Um período fértil e criativo, em que o Brasil se revelava muito inteligente na pertinente definição de Roberto Schwarz, diferente da atualidade, em que o país parece dominado pela boçalidade.
Filho de um sírio emigrado, Abdalla Lufti, que chegou no Brasil em 1926, e de uma brasileira filha de árabes, Maria Mansur, que nasceu em 1912. Era uma família musical, cantavam em casa músicas populares árabes, e Abdalla tocava alaúde. Todos os irmãos estudaram música ou se dedicaram às artes, como o caso de Dib Lutfi, um dos maiores diretores de fotografia da história do cinema brasileiro.
Aos 8 anos de idade, João Lufti foi matriculado no Conservatório Cecília, em Marília, para aprender piano, o que foi decisivo em toda sua vida. Com 17 anos, foi morar com um tio, que era proprietário de uma rádio, na cidade de São Vicente (ZYH-3, Rádio Cultura São Vicente), onde não só aprendeu tudo sobre rádio, mas também adquiriu conhecimento de música popular brasileira, que foi fundamental em sua trajetória.
Após uma temporada na Baixada Santista, mudou-se para o Rio de Janeiro, para morar com outro tio e preparar terreno para toda a família se mudar. No Rio, trabalhou na rádio Vera Cruz como locutor, depois na TV Tupi como ator.
Nesta época, foi-lhe sugerido adotar um nome artístico. Optou por Sérgio Ricardo, com o qual entrou para história da cultura brasileira. Na TV Rio, apresentou programas musicais e teve contatos com Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, o que lhe abriu as portas para um movimento musical nascente, a Bossa Nova. Como pianista, substituiu Tom Jobim na noite carioca. Tocando piano e cantando na noite, ficou conhecido no meio musical.
Em 1957, gravou seu primeiro disco (78 RPM), com as canções “Vai, Jangada”, de Newton Castro e Geraldo Serafim, e “Sou Igual a Você”, de Nazareno de Brito e Alcyr Pires.
Mas foi com “Bossa Romântica de Sérgio Ricardo”, em 1959, que demonstrou afinidades musicais com o novo estilo. O período era de grande efervescência cultural e o inquieto artista aspirava também o cinema.
A melhor maneira de seguir uma carreira coerente e multifacetada é acompanhar o próprio roteiro realizado por Sérgio Ricardo ao comemorar seus 85 anos de vida, em 2018. Foi um show com apoio do Canal Brasil, gravado em Niterói, no teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFF). Deste magnífico show – Cinema na música de Sérgio Ricardo – resultou um produto dirigido por Paulo Henrique Fontenelle 2019), hoje disponível na plataforma Now e nos formatos CD e DVD, lançados pela Biscoito Fino.
O show foi o último trabalho apresentado pelo artista, com a participação de seus filhos Marina Lutfi, idealizadora do projeto, Adriana Lutfi e João Gurgel. Com um time formado por maestros na percussão (Diego Zangado) e baixo (Giordano Gasperin). Contou ainda com as participações de Dori Caymmi, João Bosco, Alceu Valença e Geraldo Azevedo.
As músicas acompanham cenas dos filmes em que Sérgio Ricardo teve importante participação, como diretor – “O menino de calças brancas” (1961), “Esse mundo é meu” (1964), “Juliana do Amor Perdido” (1969)) e “A noite do espantalho” (1972) –, ou compositor – “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967), os dois de Glauber Rocha.
Em depoimento a publicação em fascículos da Editora Abril, lançada nas bancas em vinil na década de 70 do século passado, volume 37, dedicado à obra de Sérgio Ricardo, o amigo de longa data, Ziraldo, assim o definiu: “Sérgio não estourou em termos de massa. Certamente jamais irá estourar. Não que sua música seja elaborada demais, sofisticada ou impenetrável; o mistério é outro. Sua honestidade consigo mesmo chega a exageros que o definem como dos seres humanos mais puros e de melhor caráter que eu já conheci em minha vida. Seu pavor à mentira, à mistificação, ao engano e à hipocrisia criaram em sua volta uma certa impenetrabilidade que é a sua forma de se defender do mundo.”
Sérgio Ricardo, um artista que viveu intensamente seu tempo histórico. Coerente em busca de uma dignidade, como o menino de calças brancas, que buscava superar os limites da pobreza sonhando e realizando. Enfrentando vaias com coragem e solidário a todos que buscaram uma cultura brasileira inteligente, diversificada e bela, mesmo que nem sempre tendo o reconhecimento que merecia, mas que a História o fará.
Referências
CONTIER, Arnaldo Daraya. “Sérgio Ricardo - Modernidade e engajamento político na canção”, in: Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Marcos Napolitano, Rodrigo Czajka, Rodrigo Patto Sá Motta (organizadores). Belo Horizonte: UFMG, 2013, pp. 339-358.
HAGMEYER, Rafael, SARAIVA, Daniel Lopes (organizadores). “Esse mundo é meu: as artes de Sérgio Ricardo”. Curitiba: Appris, 2018.
NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. “A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985). Ensaio histórico”. São Paulo: Intermeios: USP – Programa de Pós-graduação em História Social, 2017.
Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).
RPD | Benito Salomão: Repensando a Política Monetária
Soluções para estimular a economia, como redução da taxa de juros e corte dos impostos e/ou expansão das despesas públicas, aliadas a uma política de estímulo fiscal estão fora de cogitação. O gasto privado, possibilidade ainda mais complexa, sofre com a falta de confiança na economia do país
O Covid agravou problema há anos presente na economia brasileira: o baixo crescimento. A dinâmica do produto preocupa desde o início da década. Segundo minha estimativa, a taxa média de crescimento desta década será de -0,27%, a depender do resultado deste ano. Isto se torna ainda mais grave quando se considera que o PIB brasileiro foi negativo em 2014, 2015, 2016 e 2020, ano para o qual se espera cifra entre -6% e -9,5%. Mais grave, porém, é que essa década, considerada como a pior da história, gerida por uma equipe econômica amadora e objeto de um debate público empobrecido, poderá, inclusive, comprometer o desempenho da próxima década.
O Brasil precisa voltar a crescer, criar empregos e gerar renda, mas como fazer isto? As soluções para estimular a economia, ao menos no curto prazo, em cenários como este, de baixa inflação, esboçam-se tradicionalmente no modelo keynesiano. Vale dizer, redução da taxa de juros e corte dos impostos e/ou expansão das despesas públicas, para conduzir a economia a seu equilíbrio de médio prazo. Isto, no entanto, não será tão simples porque muitos destes instrumentos estão esterilizados. A taxa nominal de juros, por exemplo, se encontra em seu nível mais baixo. A Selic over para o mês de julho foi de 2,15% ao ano. Se a taxa de câmbio permanecer estável em torno dos R$ 5,20, pode ocorrer que a taxa de juros caia ainda mais. Entretanto, nova queda de 0,5 ponto percentual, trazendo a Selic nominal para 1,75%, terá pouco efeito sobre o produto.
A outra política de estímulo seria a fiscal, mas ela está obstruída por uma dívida pública de 85,5% do PIB, que deve fechar 2020 em 96%. Em um contexto destes, cuja retomada não se poderá se dar pela expansão da despesa pública, a recuperação da economia só pode ocorrer pelo gasto privado, possibilidade ainda mais complexa, pois o gasto privado depende de um elemento subjetivo e fora do controle da política macro: a confiança.
Em Animal Spirits, livro recente dos Prêmios Nobel de Economia George Akerlof e Robert Shiller (foto acima), abordam-se os fatores que poderiam conduzir a economia, de um equilíbrio de baixa confiança para um de alta confiança. Para os autores, a confiança se espalha na economia através de um efeito multiplicador, isto é, quanto mais pessoas confiarem na recuperação econômica e nas instituições, mais agentes tenderão a realizar gastos e investimentos. Fatores como injustiça, corrupção e ilusão monetária estão entre os elementos que desestimulam a confiança.
No capitulo 7 do livro, os autores discutem proposta que pode ser aplicável ao caso brasileiro. Em momentos de abalo coletivo da confiança, ainda que as taxas de juros caiam, como vem ocorrendo no Brasil desde 2016, somado a medidas adicionais como liberação de depósitos compulsórios por parte do Banco Central, os efeitos sobre a confiança e, consequentemente, sobre o produto e o emprego são modestos. Diante da falta de confiança, os autores propõem que o Banco Central persiga meta de concessão de crédito, para estimular a atividade e o emprego. Em países, como o Brasil, que conta com três bancos públicos com capilaridade nacional, isto é perfeitamente factível.
As quedas recentes da taxa Selic promoveram retração considerável do spread bancário – de 18,36%, em janeiro deste ano, para 5,62%, em junho. A redução do custo do crédito não estimulou o crédito, cujas concessões acumuladas se retraíram de R$ 405 bilhões, em dezembro de 2019, para R$ 321 bilhões, em junho de 2020. Muitos desafios se impõem para estimular a economia via crédito. O primeiro é a população desbancarizada, que, em 2019, se situava em torno de 50 milhões de pessoas, fora a população de inadimplentes, de cerca de 63 milhões. Mesmo considerando-se certa interseção entre as pessoas desbancarizadas e as com pendências cadastrais, já se pode dimensionar a magnitude do desafio.
Nesse contexto, instituir meramente uma meta de crédito pode não funcionar por falta de demanda por empréstimos. Além disso, entre as pessoas físicas bancarizadas há um comprometimento médio de 26% da renda com pagamentos de dívidas não imobiliárias. Ou seja, em média, do total da renda familiar disponível, 26% estão comprometidos com o pagamento de alguma modalidade de empréstimo bancário não imobiliário.
Daí a proposta de que o Banco Central atue comprando estas dívidas não imobiliárias de pessoas físicas e jurídicas, para limpar tais passivos do setor bancário privado. Trata-se de uma medida excepcional e sem custos fiscais, que poderá contribuir para recolocar estas pessoas e famílias no circuito econômico.
*Benito Salomão é mestre em Economia e doutorando em Economia pela UFU.
RPD | Andrei Meireles: A Lava Jato é dura na queda
Sérgio Moro e a Lava Jato viraram obstáculos ao projeto de reeleição de Bolsonaro. O Palácio do Planalto avalia que o jogo vai ficar mais duro depois da posse, em setembro, de Luiz Fux na Presidência do STF. Augusto Aras, de olho em uma vaga no STF, também tem pressa de mostrar serviço contra o ex-juiz e a força-tarefa
Faz tempo que a Lava Jato, depois de sua bem-sucedida trajetória de caçadora de corruptos, virou troféu de caça de políticos dos mais variados naipes, como o PT de Lula, o MDB de Renan Calheiros e Romero Jucá, o Centrão e os tucanos, sob a batuta de Aécio Neves. Esse movimento ganhou corpo ano passado com a adesão do presidente Jair Bolsonaro que, mesmo tendo Sérgio Moro como ministro da Justiça e Segurança Pública, criou a expectativa de conseguir apoio em outros poderes para livrar seu clã das investigações na Justiça. Moro nunca lhe deu essa garantia.
Foi então costurado um acordão tácito, com o apoio dos ministros do STF Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que, desde o ano passado, vem obtendo vitórias parciais. Nesse caldeirão, foi gerado o recuo pelo Supremo Tribunal Federal da autorização do cumprimento de penas, inclusive da pena de prisão a partir da condenação em segunda instância. Foi também ali que se tentou acabar com o Coaf, um órgão de inteligência financeira que produz relatórios técnicos sobre o caminho do dinheiro movimentado pelas mais diversas organizações criminosas e é o responsável, por exemplo, em seguir a lavagem de dinheiro, do PCC aos grandes esquemas de corrupção.
Na tríplice parceria entre Toffoli, a cúpula do Congresso e Bolsonaro, o Coaf passou de mão em mão e simplesmente foi paralisado. Foi ressuscitado pelo plenário do Supremo. Mas a guerra seguiu em frente. Bolsonaro trocou Moro pelo Centrão. Se sentiu à vontade para dar as cartas, atropelou a lista tríplice do Ministério Público e escalou Augusto Aras como procurador-geral da República. Interferiu também na Polícia Federal, o outro grande braço das investigações sobre a corrupção do colarinho branco no país.
Enquanto estava no governo, Sérgio Moro até tentou segurar as pontas. Caiu fora quando foi atropelado por Bolsonaro que, em uma reunião ministerial, em abril, anunciou seu propósito de montar um sistema de inteligência para atender a seus interesses. É o que vem acontecendo desde lá. Até um sistema no Ministério da Justiça, criado para acompanhar o crime organizado, passou a bisbilhotar supostos adversários do governo, de policiais antifascistas a alguns reconhecidos intelectuais. Um deles, Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário nacional dos Direitos Humanos, hoje um curinga da ONU para relatar grandes encrencas mundo afora.
Essa obscura ofensiva contra opositores coincide com a urgência em ganhar terreno nesse final de mandato do aliado Dias Toffoli –- uma invenção do PT – na Presidência do Supremo Tribunal Federal. A avaliação é de que Sérgio Moro e a Lava Jato viraram obstáculos ao projeto de reeleição de Bolsonaro. E, no Palácio do Planalto, de que o jogo vai ficar mais duro depois da posse, em setembro, do ministro Luiz Fux na Presidência do Tribunal. Daí a pressa também do procurador Augusto Aras, de olho em uma vaga no STF, de mostrar logo serviço contra Sérgio Moro e a Lava Jato.
Em dobradinha com Toffoli, Augusto Aras conseguiu aval para transferir todos os bancos de dados de anos e anos de grandes investigações da Operação Lava Jato em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo para a Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Como era previsível, tão logo acabaram as férias de julho da Justiça (outra anomalia), o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, revogou essa decisão absurda. Mas algum estrago já estava feito. Há verdadeira rebelião contra Aras em todas as instâncias do Ministério Público. Essa postura dele, digamos, de quinta coluna, reduziu seu apoio inclusive entre seus poucos aliados.
O procurador Augusto Aras sentiu o tranco. Demitiu seu secretário-geral, o procurador aposentado Eitel Santiago – um bolsonarista assumido e o mais agressivo crítico da Lava Jato –, baixou o tom depois do bate-boca com colegas no Conselho Superior do Ministério Público Federal e não compareceu ao ato organizado por Toffoli e o governo, para reduzir o papel do Ministério Público nos acordos de leniência de empresas envolvidas em corrupção. Aras havia participado dessa negociação, mas nessa nova fase, antes de botar seu jamegão, resolveu consultar quem entende do ramo no próprio Ministério Público.
Esse aparente recuo de Aras não significa que desistiu do combate à Lava Jato. Só pisou no freio por avaliar que pode ser atropelado no caminho. Ele sabe que a caneta de Toffoli ficará sem tinta daqui a pouco. A turma da Lava Jato também sabe disso. Confia em Luiz Fux para uma volta à normalidade e uma revisão da ofensiva contra as investigações sobre corrupção.
Se há erros cometidos pela Operação Lava Jato – com certeza, os há – eles devem ser corrigidos com a perspectiva de melhorar a Justiça, para que não se repitam. E não para criar brechas para a corrupção que, com esses sinais trocados, continua a pleno vapor país afora. Basta ver o que estão roubando em nome do combate à pandemia do novo coronavírus. Esvaziar o poder de investigação dos órgãos estatais encarregados de combater o desvio do dinheiro público é uma espécie de cumplicidade com o crime.
*Andrei Meireles é jornalista