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RPD || Dawisson Belém Lopes: A política externa brasileira num labirinto borgiano

Pária mundial “por opção”, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo, o governo Bolsonaro é responsável por um dos piores momentos da política externa brasileira, deixando de perseguir interesses concretos do país

Não faz muito tempo, o Brasil jactava-se de seu universalismo. Era o país que não conhecia inimigos. Alcançava praticamente todo recanto do planeta com sua rede diplomática. Chefiava organismos prestigiosos, como a OMC e a FAO, e cedia seus nacionais para tribunais e cortes internacionais. Orgulhava-se de sua chancelaria. Tinha no Ministro das Relações Exteriores um signo da melhor tradição intelectual. Liderava agendas centrais, como a do meio ambiente, e era consultado em assuntos de direitos humanos, governança da internet, paz e segurança. Nossa República Federativa fazia boa figura no teatro global.

Esse tempo de bem-aventurança, contudo, ficou para trás. O Brasil, hoje, é “pária por opção” – invocando aqui palavras do chanceler Ernesto Araújo. Num contexto de desafios, em que despontam a rivalidade sino-americana e o arrasamento pandêmico, o governo federal vê diminuir a margem para manobrar. Opções estratégicas sobre a mesa vão minguando, à medida que nos indispomos com potências e abdicamos de pretensões de liderança no entorno geográfico, deixando de perseguir interesses concretos do país.

Responsável por mais de 30% do comércio externo brasileiro, a China é quem ajuda a manter as contas no azul. A despeito disso, Jair Bolsonaro e asseclas hostilizam Pequim sem cessar, desde a campanha eleitoral, em 2018, até o presente. Xi Jinping já emite, por meio de seus representantes empresariais e diplomáticos, ameaças de represália. Segundo lugar entre parceiros comerciais, além de maiores investidores no Brasil durante a década de 2010, os Estados Unidos também são fundamentais no grande esquema das coisas. Porém, como o incumbente do Planalto amarrou os destinos da nossa nação a Donald Trump, não se deve esperar atitude benevolente de Joe Biden no porvir.

Entre europeus, nada muito distinto. Terceira parceira comercial, a Holanda rejeitou, pela via parlamentar, o acordo UE-Mercosul, sob argumento de defesa da Amazônia. A Espanha, quinta no ranking do comércio externo, é governada pela esquerda, o que dificulta interlocução mais profícua. A Alemanha vive às turras com o maior país da América do Sul; além do desgaste da imagem, negócios permanecerão parados enquanto as práticas ambientais não forem revistas. A França, outra investidora no Brasil, faz objeção vocal à política ambiental e, como os chineses, planeja deixar de comprar os grãos que movem o agronegócio pátrio.
Na América Latina, a configuração não é menos dramática. Por quase um ano, os chefes de Estado de Brasil e Argentina (esta, a nossa quarta maior parceira comercial) não trocaram uma palavra sequer. O silêncio foi rompido recentemente, por iniciativa de Buenos Aires, mas os canais seguem obstruídos. Já o oitavo lugar no ranking de parceiros comerciais, o México, também é liderado pela esquerda, o que inviabiliza o diálogo – segundo a lógica sectária bolsonarista. México e Argentina coordenam entre si as iniciativas regionais, na ausência do Brasil. Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, resume o imbróglio: “o Brasil ficará isolado em seu autoritarismo.”

Uma nota sobre a pandemia. O enfrentamento brasileiro ao novo coronavírus foi considerado, numa amostra de 98 países, o pior de todos, segundo think tank australiano. Parte dessa desastrosa condução deveu-se à incompetência nas mediações com o restante do mundo. Com uma indústria farmacêutica que importa 90% de seus insumos e diante da opção por não investir na fabricação de imunizante nacional para controlar o espalhamento da covid-19, o Brasil tornou-se refém de suprimento externo. Em tempos de escassez, porém, cada estado favorece primeiramente a população local. De exemplo em políticas públicas para vacinação em massa, passamos a figurar entre os que, pela incapacidade de lidar com a doença, sabotam o esforço de contenção do vírus.

Diante de fracassos retumbantes na política externa, como reagem o presidente da República e seu chanceler? Em gestos que exemplificam um descolamento de fatos e estatísticas, Bolsonaro e Araújo reúnem a fina flor da direita populista – de Andorra à Ucrânia, passando por Hungria e Índia – para clamar por “liberdade” e “família”, ao mesmo tempo em que flertam com monarquias teocráticas do Oriente Médio. Talvez seja o que lhes tenha restado no tabuleiro geopolítico. Como num conto de Borges, fica para o observador a incômoda sensação de que, quanto mais avançamos por estas sendas, mais se bifurcam os caminhos do labirinto.

*Dawisson Belém Lopes é Professor Associado de Política Internacional e Comparada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e, desde março de 2018, Diretor-adjunto de Relações Internacionais da UFMG.


RPD || André Amado: Os grandes escritores e o término de suas obras

André Amado analisa, como os grandes autores garantem, por meio da técnica literária, o interesse do leitor até o fim das tramas de suas histórias

Se dependesse de consenso, obra alguma dos grandes escritores terminaria. Vejam só.

Com a autoridade de ter sido o autor de A Room With A View (1908) e Howards End (1910) e reconhecido como o decano dos críticos literários, E. M. Foster estimava que as histórias devessem ter começo, meio e fim. Ilustrava com As Mil e Uma Noites, em que a narrativa seguia a cronologia de o jantar vir depois do almoço; a terça, depois da segunda; e a decadência, depois da morte.

Henry James (1843-1916) chamava o último capítulo de um livro de wind-up (arredondamento), quando se distribuíam prêmios, pensões, maridos, esposas, filhos, milhões, parágrafos acrescentados e comentários alegres. Já Italo Calvino (1923-85) dribla a ironia de James e distingue tipos diferentes de término das narrativas: quando o herói supera as adversidades, morre ou amadurece; e, no caso dos romances policiais, quando se descobre o culpado. De maneira geral, para Calvino, o final de um romance deveria ocorrer sempre que contribuísse para evitar a repetição, na mesma linha do que dissera Jane Austen (1775-1817): o romancista não tem como ocultar o momento em que a história acaba.

Outros escritores seriam até mais contundentes. Atribui-se a Flaubert (1821-80), por exemplo, a sentença de que é burrice querer concluir uma história. Para Ricardo Piglia (1941-2017), sem finitude não há verdade, declaração quase idêntica à de Stephen Koch (1968-): se não houver final, não há história. Carlos Mastronardi (1901-76) arrematou: Não temos uma linguagem para os finais; talvez uma linguagem para os finais exija a total abolição das linguagens.

Alberto Manguel (1948-) acrescenta um complicador. Resgata a Divina Comédia para revelar o truque de Dante – o propósito da peregrinação é contar as aventuras. Vale dizer, a narrativa da viagem consiste em situar no final o começo. É o que também pensa Allan Poe. Em “Assassinatos na Rua Morgue” (1841), o desfecho da história determina a ordem e a causalidade dos eventos narrados no começo. Trata-se da técnica do closure (fechamento), pela qual o escritor se fixa no desfecho e constrói a narrativa de trás para frente, buscando, assim, assegurar-se do controle completo do desenvolvimento da trama e da santidade do mistério, que só poderá ser revelado no último momento, tornando-se quase um personagem invisível da trama.

Tudo bem. Enfim, o consenso parece formar-se: a retenção do segredo da história garante o interesse do leitor. Melhor técnica para o fechamento da obra, impossível. Só que Patricia Merivale e Susan Sweeny (1999) exploraram outras opções que batizaram de história metafísica de detetives, segundo a qual o objetivo da investigação não seria mais encontrar uma resposta clara para o enigma perfeito dado a priori, mas decifrar o sentido do próprio texto. Em “La Muerte y La Brújula”, Jorge Luiz Borges reforçaria a transgressão: desafia a estrutura da narrativa fechada, ao não resolver os mistérios e a suscitar outros mistérios igualmente impenetráveis.

Garcia-Roza (1936-2020) admirava Allan Poe e Borges e, por isso, convidou ambos para enriquecer sua visão da literatura. De um lado, recusou que o autor pudesse sozinho desfazer as intrigas e decodificar a trama das histórias. Para ele, existiriam tantos autores de uma obra quanto leitores. Daí não ser mais possível uma única interpretação. Ao leitor, a tarefa, portanto, de produzir sua própria interpretação. De outro, Garcia-Roza citava Poe (A essência de todo crime permanece oculta, “O homem da Multidão”, 1940) para ressaltar o conceito de inescrutabilidade, significante que não permitia simplificação. Em uma palavra, mistérios podem ser explicados, mas a interpretação de um enigma requer nova interpretação e, assim, sucessivamente, sem fim. Não há, pois, solução para o enigma. Nunca.

Como todo escritor de gênio, Ian McEwan não chega a celebrar o consenso sobre o término de uma obra, mas, de alguma maneira, nos explica porque a alternativa é até mais convincente. Em Atonement (2001), Briony demora a vida toda para entender que não tem como chegar a final algum para a história que está contando, o que, por sua vez, acaba afetando a própria forma final da obra que o leitor tem em mãos, na qual ele tampouco encontra um fim satisfatório, bem fechado, como aqueles das histórias fabulosas em que a Briony acreditava tão piamente, quando criança (Tatiana Souza, tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual da Paraíba).

Podem-se encerrar as provocações reunidas neste artigo com a reflexão de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual um livro sobre a literatura contemporânea não pode ter conclusão, porque o contemporâneo é o inacabado, o inconcluso. Pode-se, ainda, recorrer ao bruxo do Cosme Velho e reviver o final inesquecível de Memórias Póstumas: Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

*André Amado é embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line


Monica de Bolle: Índia, Rússia e China reinventaram a economia com foco na saúde pública para a covid-19

Cabe pensar como os países devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece

Nesses primeiros dias de fevereiro a Anvisa suspendeu a exigência de que ensaios clínicos de fase III sejam conduzidos no país para qualquer empresa farmacêutica que queira solicitar o uso emergencial de vacinas. Diferentemente do que circulou, a agência não deixou de exigir os ensaios de fase III, que nos fornecem as informações sobre a segurança e a eficácia das vacinas, sendo, portanto, críticos. O que a Anvisa fez foi remover a exigência de que eles sejam feitos em território nacional. A decisão produz efeitos de pronto. Abre espaço para que o Governo negocie a compra de mais doses de outras vacinas, ampliando o leque de imunizantes disponível à população.

O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de negociar a compra de doses da vacina Sputnik V, produzida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, e da Covaxin, produzida pelo laboratório Bharat Biotech, da Índia. A Sputnik V jáestá sendo usada em cerca de 16 países, embora os ensaios de fase III ainda estejam na fase final de conclusão. A Índia, por sua vez, começou a vacinar sua população com a Covaxin, vacina de vírus inativado (como a Coronavac), mesmo sem os dados dos ensaios clínicos. Caso a Anvisa venha a aprovar o uso dessas vacinas —e espero que os faça tendo disponíveis os dados dos ensaios de fase III—, o Brasil passará a usar vacinas de três países emergentes com os quais compunha os BRICs: China, Índia, Rússia.

Tenho pensado muito na importância desses três países nas campanhas de vacinação dos países emergentes, que não tiveram acesso às vacinas gênicas, as da Pfizer e da Moderna, ou mesmo a outros imunizantes. É fato documentado, inclusive por mim e coautores em artigo recém-publicado pelo Peterson Institute for International Economics, que os países ricos adotaram a estratégia de comprar o máximo de doses que podiam de tais imunizantes, sem dar muita atenção à necessidade de cooperação global. Nesse contexto, países como Rússia, China e Índia perceberam a saúde pública como eixo reconfigurante da economia e viram nessa reconfiguração a oportunidade de serem fornecedores de vacinas para o resto do mundo, em que a escassez vacinal é a realidade.

O movimento dos três países suscita outras inquietações. A pergunta que todos se fazem é: quando a pandemia irá acabar? Penso, no entanto, que a pergunta é equivocada. Não temos resposta para ela, o que ficou ainda mais evidente com o surgimento de variantes virais preocupantes, as chamadas VOCs (Variants of Concern). O SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19, é ardiloso. O mais provável é que tenhamos de lidar com ele por tempo prolongado, atualizando vacinas à medida que ele encontre novas formas de escapar às nossas respostas imunológicas. Desse ponto de vista, podemos passar de uma pandemia aguda para uma pandemia crônica, ou seja, talvez tenhamos de aprender a conviver com o vírus e suas inevitáveis novas formas. Foi assim com outro vírus causador de doença distinta, a aids. Embora muitos não pensem tanto no assunto hoje em dia, a aids ainda é uma pandemia de acordo com as definições da Organização Mundial da Saúde (OMS). A diferença é que passamos de uma pandemia aguda para uma crônica.

Sendo esse o cenário adiante de nós, cabe pensar como as economias devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece. Porque, sim, há muitas oportunidades nesse cenário, como mostram no presente as ações da Rússia, da China, da Índia.

Como disse, os três países reorganizaram sua economia com centro na saúde pública, e isso faz sentido por motivos diversos: da segurança nacional à proteção social, da ordenação dos gastos públicos ao meio ambiente. No caso do meio ambiente, ter a saúde pública como eixo de políticas públicas significa garantir a existência de uma rede abrangente de saneamento básico, reduzir a poluição do ar, as emissões de carbono, preservar as reservas naturais para, inclusive, evitar o contato com novos vírus zoonóticos, aqueles capazes de pular espécies chegando a nós.

No caso do Brasil, não faltam vantagens comparativas para uma reorganização da economia nesses moldes. Temos um sistema de saúde público bem montado, dispomos de recursos naturais, possuímos alguma capacitação tecnológica. Nossas competências e experiências sanitárias sobram, já tendo sido motivo de orgulho nacional. A reorientação da nossa economia para a saúde pública sob o pano de fundo de uma pandemia crônica possibilitaria o renascimento da nossa indústria farmacêutica, voltada para as necessidades domésticas e para o abastecimento do mercado internacional, como têm feito a Rússia, a Índia, a China.

Novos empregos seriam criados, assim, na indústria e se abririam chances reais de inserção no comércio internacional, nas cadeias de valor ligadas à saúde. Tal inserção, por sua vez, ajudar-nos-ia a ampliar as possibilidades de saltos tecnológicos, que hoje inexistem. Economias voltadas para a saúde necessitam de serviços diversos, que vão de cuidadores e acompanhantes a profissionais de alta qualificação. O setor de serviços, tão abalado pela pandemia, teria a oportunidade de se reerguer a partir desse eixo, sobretudo com as necessidades que já surgem. São muitas as pessoas afetadas por sequelas de covid-19 e a elas muitas mais se somarão. Essas pessoas precisarão de atendimentos diversos.

Deixaríamos de fazer as reformas necessárias para o país? Pelo contrário. Faríamos essas reformas, agora com objetivo claro: sustentar e aprimorar o eixo central da saúde pública. O objetivo da reforma administrativa? A saúde pública. O objetivo da reforma tributária? A saúde pública. O objetivo de outras reformas fiscais? A saúde pública.

A pandemia nos tem apresentado muitas tragédias, dificuldades, dilemas, conflitos. Em meio à gestão de uma crise humanitária aguda, não é fácil elaborar o que sobrevirá. Mas é muito importante começar a fazê-lo, e isso implica abrir mão dessa espécie de pensamento mágico de que a pandemia vai acabar. A pandemia aguda, sem dúvida, acabará. Mas dela virá a pandemia crônica, essa que nos oferece o desafio e a oportunidade de uma transformação real da economia brasileira. A economia do cuidado é aquela que tem na saúde pública o eixo central e que se desenha explorando a reconfiguração do mundo que o vírus nos está apresentando. É claro que não acredito que o Brasil irá trilhar esse caminho nos próximos dois anos, com um Governo antibrasileiro. É mais provável que o país seja testemunha do que outros farão para pôr a saúde pública no centro das suas políticas. Mas quem sabe se os assistindo dessa vez, pela primeira vez, nós não nos articulamos para aproveitar a oportunidade visível, mesmo que tardiamente.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.


Luiz Werneck Vianna: Encontro marcado (se possível, suspenso por força maior)

Com os êxitos eleitorais das forças conservadoras no Senado e na Câmara Federal experimentamos um momento inédito na política brasileira de captura dos instrumentos do poder por parte de elites parasitárias do Estado, agrupadas no chamado Centrão, assim conhecido na linguagem dos jornais, melhor designado pelos cientistas sociais como o reduto do nosso atraso político-social. Tais elites nos acompanham ao longo do nosso processo de modernização, de Vargas a Lula, sempre como coadjuvantes, fornecendo bases de sustentação em seus rincões aos diferentes surtos de modernização que se sucederam na história republicana moderna no processo de imposição do capitalismo brasileiro.

Foi assim com a política de Vargas, que nos trouxe ao moderno da industrialização em aliança com o atraso – basta lembrar sua recusa em levar a legislação trabalhista ao campo –, com a de JK, com a do regime militar de1964, especialmente no desenvolvimentismo do governo Médici, que confiou sua política à Arena, partido formatado com as elites do atraso. Chegamos à modernização por meio desse conúbio, classicamente uma modernização conservadora, que nos embaraçou em nosso movimento em direção ao moderno.

O ineditismo da hora presente reside, pois, nessa abstrusa situação em que o coadjuvante chega ao proscênio na ausência de um protagonista. Para que um ator exerça protagonismo em cena é indispensável que ele seja portador de um papel ativo na condução de um enredo em que ele centralize o sentido das ações, papel que o Centrão, por natureza um conjunto amorfo de políticos sem luz própria, não tem como exercer. Bolsonaro igualmente não cabe nesse perfil, presidente acidental que chega ao governo num lance de fortuna e que tem como único projeto a conservação do poder, desconfiado como os tiranos clássicos de tudo e de todos ao seu redor.

O cenário é de desconcertante miséria política numa sociedade carente de lideranças que lhe apontem um rumo em meio às suas dolorosas aflições pela ação de uma cruel pandemia, acossada pelo desemprego e com boa parte dela às portas da miséria absoluta. As respostas a essa situação de descalabro inaudito são desalentadoras, como a do prefeito de Salvador, ACM Neto, virtual candidato ao governo do seu estado, indicando seu alinhamento a Bolsonaro, como foi a do ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, que por cálculos mesquinhos sentou-se em cima de dezenas petições em favor do impeachment presidencial. E chegam ao inacreditável com a recusa de Lula de compor uma ampla coalizão democrática na próxima sucessão presidencial em nome de uma candidatura do seu partido.

Não há governo e nem sequer uma oposição digna desse nome, assombrada diante da mula sem cabeça assentada em seu destino a sociedade clama por uma voz e ações que venham a seu socorro, que somente podem provir de suas entranhas, como estão vindo das comunidades populares e dos seus artistas e intelectuais, dos profissionais da saúde e das nossas maiores personalidades intelectuais, que fazem coro aos parlamentares que receberam no Congresso o presidente que aí está aos brados de facínora genocida.

Mais do que denunciar o caráter perverso do atual governo, por sua incúria em enfrentar a pandemia, os movimentos que se fazem presentes na luta contra ela têm importado em impulsos para a auto-organização da vida social, registrando-se inclusive petições de impeachment apresentadas por personalidades das atividades de saúde pública. Cabe ao campo democrático amplificar a ressonância dessas vozes traduzindo-as em um sonoro clamor público, chave acionada para nos livrar do horror a que estamos submetidos.

É verdade que temos um encontro marcado com o que aí está em 2022, se não conseguirmos antecipar essa data com um reparador impeachment. Para ele devemos nos preparar, em primeiro lugar com a apresentação de um projeto de soerguimento do país, de reanimação da sua vida econômica e cultural que devolva esperança aos brasileiros. Sobretudo com a articulação de uma frente política tão ampla quanto possível, e que encontre suporte na sociedade civil na forma que aprendemos a fazer nas lutas contra o regime militar.

As condições para tal empreendimento estão dadas e visíveis a olho nu, como no cenário internacional em que a potência dominante defenestrou o populismo reacionário de Trump, e entroniza como eixo estratégico da sua política os temas ao meio ambiente e dos direitos humanos, calcanhares de Aquiles do atual governo que logo sentirá os efeitos perturbadores dessa nova orientação. Internamente, o experimento exótico de um governo dominado pelo Centrão com a consistência das gelatinas, em que pesem as cabriolas hermenêuticas que rolam por aí, promete ser minado pela fúria dos apetites desencontrados dos seus quadros numa feroz competição que ignora quem a arbitre, tal como se testemunha no interior do DEM, satélite enrustido do Centrão.

A composição dessa frente implica em engenho e arte por parte das forças democráticas, particularmente da esquerda, artífice de importância crucial de sua elaboração, cabendo a ela tecer os fios de comunicação entre as forças convergentes no propósito maior de servir a afirmação dos seus valores e princípios. Não chegou ainda a hora da fulanização, para se usar uma expressão de Fernando Henrique, ela virá do processo de construção da frente democrática conforme sustenta Guilherme Boulos em sua resposta a uma precoce proposta de candidatura por parte do PT.

É preciso reconhecer que os recentes resultados negativos nas eleições congressuais adensaram a neblina dos mares que singramos, mas contamos com os bons conselhos do poeta que nos recomenda que, em meio ao nevoeiro, levemos o barco devagar. Devagar, mas em frente, sugerem as suas palavras. A tempestade já passou, ficaram para trás os delírios de um novo AI-5, e é preciso tirar proveito da aragem amável que nos bafeja, seguir viagem ao lugar pretendido. Se formos firmes e prudentes, ele está logo ali, ao alcance da mão.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio  


Luciano Huck: Sistema imunológico da sociedade brasileira dá respostas à altura das agressões do bolsonarismo

Para cada negacionista que orbita o poder no Planalto, há milhares de cidadãos empenhados em combater os efeitos da maior crise sanitária da história

O Brasil será vacinado contra a Covid mesmo com as omissões, os erros e os arbítrios do governo federal. Entramos no terceiro ano da Presidência de Jair Bolsonaro, mas no 33º ano do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Para cada negacionista que orbita o poder no Palácio do Planalto, há milhares de brasileiros empenhados em combater de peito aberto os efeitos da maior crise sanitária da história.

São os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde na trincheira para salvar vidas e que estoicamente ignoram os delírios obscurantistas de seus superiores. Gente que há quase um ano se desdobra no atendimento dos doentes e agora tocam a campanha de vacinação.

São os cientistas e técnicos nas frentes de pesquisa, garantindo que as vacinas sejam produzidas e aplicadas com toda segurança.

São nossos diplomatas mundo afora que não se deixaram capturar pelo tradicionalismo, como o diligente time da representação na Índia, que assegurou as importações de vacina apesar do disfuncional que os lidera em Brasília.[ x ]

Butantan e Fiocruz financiados pelos nossos impostos se tornaram merecidamente o símbolo dessa resistência humanitária.

Mas os heróis da resistência democrática são muitos. Incluem os jornalistas que nunca trataram a doença como uma “gripezinha”. Os líderes comunitários que organizam exércitos de mobilização. Os políticos verdadeiramente comprometidos com o povo sem cair no populismo. Os empresários que entenderam a gravidade do contexto e abraçaram a agenda da inclusão, sem filas paralelas ou qualquer outro privilégio.

Muita gente fez —e faz— a diferença ao enfrentar a miopia e a descoordenação apesar da insistência em atrapalhar de quem deveria liderar o país atualmente.

Temos de reverenciar a resposta diária dos professores nos estados e municípios e aplaudir os projetos públicos de ensino digital como, por exemplo, do Maranhão e do Rio Grande do Sul, que são ações bem sucedidas, apesar de a educação ter sido jogada às traças por ministros extremistas e alienados do marco democrático.

É necessário reconhecer o amadurecimento do debate nacional sobre renda básica e, da mesma maneira, é justo louvar o esforço do Congresso em 2020, que aprovou o auxílio emergencial, apesar da insensibilidade social de um governo que nunca priorizou os mais pobres.

Precisamos celebrar ainda os avanços dos movimentos feministas, LGBTQIA+ e antirracistas, que conquistaram inédita centralidade na discussão pública apesar da misoginia, da homofobia e do racismo da narrativa desvairada palaciana desde a posse.

A discussão nas redes sociais apodreceu de vez? Não se a gente se lembrar do inquérito das fake news no STF, da atuação das agências de checagem, da autocrítica das próprias plataformas e da posição esclarecida de muitos influenciadores digitais.

​Os ataques contínuos esvaziaram a grande imprensa? Não se a gente verificar que o jornalismo festeja audiências sem precedentes.

Nossas contas públicas foram totalmente comprometidas por um governo avesso à transparência? Estão aí os portais especializados e os tribunais de contas para mostrar que é difícil esconder até suspeitas de leite condensado superfaturado.

O momento é crítico, mas temos de manter acesa a chama da esperança.

Apesar da situação calamitosa na Amazônia devido ao negacionismo presidencial, o Brasil tem tudo para reverter as curvas do desmatamento na região.

Aos poucos e aos trancos, produtores rurais percebem que a rastreabilidade e o plantio/pecuária sustentável são imperativos no mercado global. O sistema financeiro começa a estrangular o crédito de quem insiste em desmatar e ignora as diretrizes ESG, que cobram uma postura moderna em relação ao meio ambiente, ao desenvolvimento social e às práticas de governança.

Nossas exportações vão bater recorde, nossa agroindústria se fortalece, debates sobre produção e sustentabilidade seguem mais vivos do que nunca apesar da tenebrosa política externa atual e da orientação federal de fazer “passar a boiada”.

Apesar de esforços técnicos, o descompromisso com a pauta verde cria atrito com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Ao ponto de o comitê de política ambiental da OCDE cancelar a deliberação sobre elevar o status do Brasil —de convidado a participante— no órgão internacional.

Há quem cometa crimes nas florestas? Há. Em contrapartida, há muita gente disposta a se sacrificar em defesa do meio ambiente.

E se as autarquias hoje estão politicamente diminuídas, a maioria dos funcionários públicos continua cumprindo sua missão de fiscalizar, alertar, denunciar. A voz dos climatologistas nunca foi tão amplificada.

Falam que a PGR hoje oscila entre silêncios constrangedores e pareceres equivocados apesar de manifestações recentes do Conselho Superior do Ministério Público que mostram parte da corporação vigilante e pronta a responder.

Dizem que as Forças Armadas estão desmoralizadas. Quem conhece de perto os quartéis, os oficiais da ativa e a rotina das tropas, porém, sabe da contínua e inestimável contribuição dos militares para o país —sobretudo nos rincões mais pobres.

As Forças Armadas não têm um só sobrenome e nem são reféns do familismo. Prefiro enaltecer figuras honradas como o general Antônio Miotto, que perdeu a batalha para a Covid e não para a vaidade.

Não menciono aqui todos esses casos com propósito acomodatício. Moderação não é passividade. Não dá para tapar o sol com a peneira. A realidade brasileira não admite ingênuos. Não sugiro, portanto, guardar as panelas, engavetar o debate do impedimento, banalizar os crimes de responsabilidade, normalizar a dor e a violência, deixar de lado a indignação.

Pelo contrário, faço aqui o devido registro da potência do nosso sistema imunológico, celebrando nossa capacidade de reagir.

É importante fazer uma análise em perspectiva, especialmente nesta conjuntura tão polarizada, conturbada e por vezes contaminada por interesses mesquinhos.

O vírus expôs a fragilidade do nosso contrato social, que precisa ser repactuado. E as instituições estão sofrendo em mãos irresponsáveis. Mas os pilares da nossa democracia seguem de pé graças à intervenção de muitos.

Se é verdade que a sociedade agora está machucada e traumatizada, também é fato que temos tudo para sair dessa e emergir mais zelosos com nossos direitos, fortalecidos pelas conexões que realizamos e tonificados pelas novas reflexões que fazemos. A mudança depende de nós. Somos nós que construímos nosso destino coletivo.

Projetos políticos autoritários e truculentos têm problemas inerentes de sustentabilidade. Num país como o Brasil, imenso em seu território, imenso em suas desigualdades e imenso em suas potências criativa e empreendedora, autocratas acabam quebrando a cara e ficando impopulares.

Uma presidência desprovida de razão e de coração não tem como vingar por muito tempo entre nós. Por isso, este governo —sem querer— na sua trajetória errática vai ajudar a revitalizar a sociedade civil e a consolidar a percepção de que o messianismo nunca foi – nem nunca será – um atalho para a prosperidade do país.

O brasileiro voltará a sonhar quando a boa política sacudir a poeira da polarização e dos “ismos” e, assim, ajudar a nação a dar a volta por cima.

Então chegará a hora da generosidade, de reconectar as pessoas, de ouvir e acolher quem pensa diferente, de buscar pontos em comum e transformar as melhores ideias em realidade.

Chegará a hora de ouvir, unir e agir! Estou entre aqueles que se engajam nesta construção. Amanhã há de ser outro dia apesar da triste realidade de hoje. Jamais vamos desistir do Brasil. Sabemos que mesmo a pior das tempestades ajuda a florescer o jardim.

*Luciano Huck é apresentador de TV e empresário


Antonio Fausto: Ascensão e crise do movimento sindical no Brasil

A organização dos trabalhadores brasileiros, em Sindicatos, tem início nos primeiros anos do Século XX, derivada do movimento anarquista, trazido pelos imigrantes, que durante meio século (1880/1930) chegaram a quatro milhões de pessoas, a maioria estabelecida no Estado de São Paulo, de onde saíram muitos militantes e dirigentes socialistas revolucionários, influenciados pela revolução russa de 1917.

A produção em bases capitalistas, no Basil, começou no último quartel do século XIX com o surgimento  do mercado de trabalho assalariado,  possibilitado pela abolição da escravatura e a deterioração das estruturas tradicionais. A fabricação têxtil foi durante muitos anos o principal ramo da indústria nacional, que cresce e se diversifica em várias regiões do País.

Três séculos e meio de dominio do escravismo e de outros sistemas arcaicos,  exploração sem limites legais e  opressão social das camadas despossuídas, escravos e pobres livres  foram mutilados moral e fisicamente. A falta de instrução mínima, analfabetismo mesmo,  tradições e costumes primitivos foram obstáculos à exploração da mão-de-obra existente. Daí que os fazendeiros de café e os industriais principiantes preferissem contratar operários-imigrantes.

A primeira etapa da formação do sistema foi concluída ao fim da Primeira Guerra Mundial e com ele se consolida a organização dos trabalhadores em entidades sindicais. Já em 1903, no Rio de Janeiro, ocorrem duas grandes greves, com a participação de cerca de 25 mil operários. Em 1908, foi criada a Confederação Operária Brasileira-COB, a primeira Central Sindical nacional, de influência anarco-sindicalista. Em São Paulo (1917/1919), duas greves gerais (foto acima, greve em 1917), abrangendo cem empresas industriais e milhares de trabalhadores.

Durante quarenta anos, a organização sindical do proletariado brasileiro ocorre no quadro da República oligárquica (1889/1930), cujo traço profundamente repressivo norteou a relação do Estado com as classes subalternas da Sociedade. Desde o início da República, até os anos 20 do Século passado, leis de exceção foram eliminando progressivamente as liberdades previstas na Constituição de 1891, a primeira do regime republicano.

"O desterrro será um instrumento largamente utilizado para reprimir as classes subordinadas, a revolta contra a vacina, de 1904, as lutas contra a carestia, as greves dos anos dez e as rebeliões tenentistas a partir dos anos vinte.

O Código Penal de 1890  considerava reincidente o "vadio ou vagabundo" que não encontrasse ocupação dentro de quinze dias a partir da pena, e o infrator seria recolhido a colônias penitenciárias em ilhas marítimas, nas fronteiras do território nacional ou em presídios militares. Se fosse estrangeiro seria deportado. Entre 1907 e 1915, 342 (trezentas e quarenta e dois) deportações, grande parte de militantes operários. O desterrro será um instrumento largamente utilizado para reprimir as classes subordinadas, a revolta contra a vacina, de 1904, as lutas contra a carestia, as greves dos anos dez e as rebeliões tenentistas a partir dos anos vinte.

Também houve conquistas sociais, formuladas em lei, tais como definição da jornada de trabalho, descanso semanal, regulamentação do trabalho feminino, férias remuneradas e previdência social, estabilidade no emprego dos dirigentes sindicais, ainda que aplicadas parcialmente ou desconsideradas na maior parte do  País e somente efetivadas a partir da Revolução de 1930, acrescidas do salário mínimo e de outros benefícios, enfeixados na Consolidação das Leis do Trabalho-CLT,  em favor somente dos trabalhadores urbanos.

No período de 1930/1945, uma ditadura,  o governo dirigido pelo presidente Getúlio Vargas (foto acima. Arquivo Nacional) alternou benefícios sociais e trabalhistas com violações da liberdade e autonomia sindical, utilizando o Ministério do Trabalho  e uma legislação intervencionista. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, retorno ao Estado de direito, uma Constituição de muitas disposições democráticas, e do próprio presidente Vargas, por via eleitoral direta, em 1950, substituindo um remanescente do Estado Novo, que arrochou salários e reprimiu violentamente as manifestações dos trabalhadores e de suas organizações sindicais. Em Maio de 1954, o salário mínimo, congelado desde 1943, foi dobrado pelo Presidente,  ao preço de uma crise político-militar provocada pelo Manifesto dos Coronéis das Forças Armadas, contrários à medida, resultando na queda do então Ministro do Trabalho, João Goulart.

A partir de meados da década de cinquenta, no governo Kubitschek (1956/1960), intensificou-se a presença do capital estrangeiro. Indústria automobilística, construção naval e demais ramos manufatureiros datam dessa época, ao abrigo da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito-SUMOC, embrião do Banco Central, com ampla disponibilização de privilégios aos capitais dos países desenvolvidos. Aumentaram igualmente os  investimentos estatais, construção de Brasília, de autoestradas, modernização dos portos e ferrovias, centrais elétricas e siderúrgicas. Recrudescimento da inflação, da espiral preços/salários e da dívida externa.

A industrialização acelerada gerou muitos empregos, também o agravamento da situação material de grande parte da população, bastante aumentada pela migração interna  campo/cidade, a par do desemprego urbano resultante das novas tecnologias. A grande conquista social do período foi a lei 3807/60, 26/08/1960, Lei Orgânica da Previdência Social, que consolidou e deu mais consistência jurídica á legislação previdenciária existente.

Em Setembro de 1961, chega ao poder o governo João Goulart (foto acima. Arquivo Nacional), como desfecho de uma crise político-militar de enormes proporções que, por muito pouco, nao levou o País a uma guerra civil. Desde o início da era Kubitschek e em decorrência dos grandes investimentos acima relatados, a economia ganhou escala e com ela o movimento sindical e associativo das massas populares, agora em clima de orientação nacionalista, democrática, liberdade e autonomia - frente ao Estado - das organizações dos trabalhadores, mais na prática que inscritas em leis.  Surgem novas categorias profissionais, crescem as já existentes, despontam o sindicalismo rural, as associações de camponeses pobres, de profissionais liberais e de funcionários públicos.

A concentração e o verticalismo ministerialista perdem terreno, com o surgimento de entidades horizontais, conselhos estaduais de categorias estratégicas, mais enraizamento nos locais de trabalho. Até mesmo uma central sindical bastante representativa, o Comando Geral dos Trabalhadores-CGT, embora ao arrepio da legislação vigente. Greves e manifestações se multiplicaram, algumas abusivas, prejudicando a população. Também os excessos e postulações utópicas, peculiares a todo movimento de massas, que desgastavam o governo democrático e incentivavam o golpismo civil-militar, vindo a efetivar-se em Março/Abril de 1964. Além de correções salariais mais ou menos favoráveis aos trabalhadores, destacou-se como conquista trabalhista a criação do Décimo Terceiro Salário.


REFORMA DA ESTRUTURA SINDICAL, DIREITOS SOCIAIS CONSTITUCIONALIZADOS E SINDICALISMO DE ESTADO

As forças político-militares, que assumiram o poder em Abril de 1964, desencadearam repressões em massa contra seus adversários,  cassação dos direitos políticos de centenas de personalidades, milhares de pessoas foram presas e demitidas do serviço público civil e militar. Grande número de sindicatos foi colocado sob  intervenção  do Ministério do Trabalho. Foram proibidas as greves. Elevaram-se as tarifas dos serviços essenciais, eliminados subsídios para importação do trigo e aumento  dos impostos indiretos, reduzindo de imediato o poder aquisitivo dos salários. De 1964 a 1967 o salário mínimo diminuiu vinte por cento em termos reais, vindo a ser aumentado somente em 1975. Ainda assim, foi trinta e nove por cento inferior ao  de Janeiro de 1963, no governo deposto. O regime militar também registrou êxitos econômicos e crescimento que não se revelaram sustentáveis e conduziram a seu esgotamento e retorno ao Estado de direito democrático.

A partir de 1978, os trabalhadores organizados em Sindicatos retornaram á cena política. A greve numa fábrica de automóveis em São Paulo abrangeu, rapidamente,  toda a indústria metal-mecânica do Estado, com mais de duzentos mil operários. No ano seguinte, incorporaram-se ao movimento categorias do funcionalismo público e dos assalariados agrícolas. No período de 1978/1980, houve mais de quatrocentas paralisações, o direito de greve foi reconquistado na prática e prosseguiu pelas décadas seguintes. Aumentou a filiação sindical, atingindo contingente significativo da população  economicamente ativa.

A organização em sindicatos expandiu-se bastante, difundiu-se largamente pelo meio rural, diversificou-se, incorporando amplos setores das classes médias urbanas e de profissionais liberais. Os anos oitenta viram nascer legalmente as centrais sindicais. Houve mudanças legislativas, com abolição do estatuto padrão, que subordinava inteiramente o movimento laborativo ao Estado. A Constituição de 1988 foi o corolário desse processo de democratização e reforma, também de continuidade da subordinação aos Poderes do Estado, Executivo, Legislativo e Judiciário.  Desde sempre, a necessidade de reconhecimento oficial pelo aparelho de Estado é o elo fundamental da estrutura sindical, a unicidade, as contribuições dos trabalhadores e a tutela da Justiça do Trabalho.

Os anos oitenta, a década perdida, foram marcados pela estagnação do crescimento, pela instabilidade das políticas econômicas do governo,  das regras de correção salarial e dos mecanismos de controle da inflação, que redundaram na queda do poder aquisitivo dos salários, no crescimento  da terceirização das relações de trabalho, informalidade e  trabalho precário, superando largamente o contrato  formal e o asseguramento dos direitos sociais.

"Persistência do peleguismo e do sindicalismo de negócios, que embora tenham perdido a direção das entidades mais importantes, ainda controlam a esmagadora maioria dos sindicatos oficiais."

O sindicalismo de Estado, no Brasil, nasceu com os primeiros governos populistas, a partir da Revolução de 1930 e da ditadura do Estado Novo. A Constituição de 1988 consagrou a liberdade e autonomia sindical e os próprios direitos sociais foram elevados á condição de normas constitucionais, um avanço sem precedentes no ordenamento jurídico vigente no País, embora com exclusão de mais da metade da força de trabalho.

Uma nova onda de populismo e atrelamento ao Estado ressurge com os governos petistas, a partir de 2003, culminando na destinação de parte expressiva do ainda existente Imposto Sindical às Centrais Sindicais, que evoluiram para perto de uma dezena, com intensa proliferação de sindicatos de "carimbo", levando um presidente da CUT a declarar ser mais fácil fundar um sindicato que uma pequena empresa, e mais lucrativo.

Em agosto de 1981, em Praia Grande, Estado de São Paulo, realizou-se a I Conferência Nacional da Classe Trabalhadora - CONCLAT. Presentes 1091 entidades sindicais e 5036 delegados. O meio rural participa com 348 sindicatos, 17 federações e uma Confederação, a CONTAG. Em 1983 é fundada a CUT, em 1984, a CGT, as duas primeiras centrais sindicais nacionais, legalmente constituídas, pelo menos no plano político, ante o esgotamento do regime militar e o retorno ao Estado de direito, no ano seguinte.

Em que pesem todos os avanços, o movimento sindical  continuou a conviver com antigas e novas distorções. Baixo índice de sindicalização e de organização nos locais de trabalho, à exceção de algumas poucas categorias, manipulação política na distribuição de cartas sindicais pelo governo, forte instrumentação do assistencialismo, continuismo e prorrogação de mandatos,  adiamento de eleições,  mediante alterações estatutárias, aparelhamento partidário e  formação de clientelas eleitorais. Persistência do peleguismo e do sindicalismo de negócios, que embora tenham perdido a direção das entidades mais importantes, ainda controlam a esmagadora maioria dos sindicatos oficiais.

Convivência submissa com o baixo grau de escolaridade dos trabalhadores, em torno de cinco anos, excessiva rotatividade,  conduzindo ao achatamento dos salários, desigualdade social e crescente pobreza de massas, burla da legislação trabalhista e previdenciária com a pejotização dos titulares de remunerações mais elevadas. Rebaixamento de grande parte das aposentadorias e pensões  para um salário mínimo e seu entorno, obrigando a maioria dos beneficiários a continuarem no mercado de trabalho, realimentando o desemprego das novas gerações de trabalhadores.

Foto: Altemar Alcantara/Semcom/Manaus

A pandemia do Coronavirus há quase um ano,já ultrapassando mais de duzentos mil mortos, a maioria de idosos, agravou todas as contradições da Sociedade.  O desemprego, incluídos os desalentados, atinge vinte milhões de trabalhadores, um quinto da força de trabalho, somente atingido na Grande Depressão dos Anos Trinta do século passado. Com tendência de alta em face das novas tecnologias, que automatizam e simplificam processos e subutilizam instalações físicas.

O fim do auxílio emergencial e as pressões inflacionárias remetem à pobreza e indigência milhões de trabalhadores, que poderão corresponder a 30,8%  da população, segundo pesquisador da Uerj. O movimento sindical e associativo dos trabalhadores brasileiros tem um peso político, na Sociedade, que deve ser exercitado no sentido de agilizar a vacinação em massa da população, negligenciada pelo governo, o restabelecimento de alguma forma de ajuda aos desempregados e informais e a retomada do crescimento da economia, com investimentos públicos e privados e reformas estruturais.

*Antonio Fausto é administrador e ex-dirigente sindical

Obras de referência: 1) Estratégias da Ilusão - Paulo Sérgio Pinheiro - Companhia das Letras - 1991. 2) Brasil, Passado e Presente do Capitalismo Periférico -  A. Karavaev - Edições Progresso - 1987. 3) O Sindicalismo Brasileiro Nos Anos 80 - Armando Boito Jr. (org) - Editora Paz e Terra - 1991 4) Brasil: Uma Biografia - Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling - Companhia das Letras - 2015.


RPD || Sérgio C. Buarque: Quando a tormenta passar

Manutenção do Teto dos Gastos e equilíbrio fiscal em 2021 serão fundamentais para o país em 2021. Vacinação da população é condição fundamental para a reanimação da economia, avalia Sérgio C. Buarque

A tempestade sanitária e econômica que sacudiu o mundo e o Brasil em 2020 ainda não passou. Nos últimos dias do ano, coincidindo com nova onda da Covid-19, vários países, incluindo alguns da América Latina, começaram a vacinação em massa da população, o que deverá superar o principal determinante da forte retração da economia mundial. Depois de uma queda de 4,4% do PIB mundial no ano que se encerra (estimativa do FMI), tudo indica que, em 2021, haverá recuperação moderada da economia mundial e do comércio global (o FMI projeta crescimento de 5,2%, arrastado pela China). Se confirmado o êxito das vacinas, a tormenta da pandemia deixará de travar a economia mundial ainda no primeiro semestre. E o mundo tem mais uma razão para respirar aliviado em 2021: a estupidez sairá da Casa Branca com a posse do democrata Joe Biden que promete retomar a cooperação internacional e liderar iniciativas de redução da emissão de gases de efeito estufa.

Com um cenário internacional favorável, o Brasil está muito atrasado na vacinação da população, condicionante fundamental da reanimação da economia. No meio de uma possível outra onda de propagação do vírus, impondo novas medidas de isolamento social, os brasileiros observam perplexos a disputa política contaminada pela ideologia obscurantista do presidente da República, deixando o Brasil despreparado para uma rápida e abrangente campanha de vacinação. No primeiro semestre de 2021, a vacina contra o Covid-19 deve alcançar apenas parcela reduzida da população, profissionais de saúde, idosos e pessoal de alguns serviços públicos essenciais. O vírus vai continuar circulando e matando brasileiros forçando algum isolamento social, enquanto a vacinação não avançar em larga escala.

A persistência da crise sanitária no primeiro semestre deve demandar ainda ações emergenciais na economia e na proteção da população vulnerável. Mas o pesado fardo econômico e fiscal herdado de 2020 (desmantelo das finanças públicas e alto endividamento) não deixa folga para ampliação de gastos. O ano começa com uma dívida pública perto de 100% do PIB, concentrada em títulos de curto prazo (43% com vencimento em 12 meses e 65,5% em até três anos) elevando os juros da rolagem para cerca de 7% ao ano (3,5 vezes a Selic). Por enquanto, o endividamento tem sido compensado pela da taxa básica de juros reais (Selic) negativa, à qual está indexada cerca de 36% dos títulos da dívida.

A se confirmar a lentidão no processo de vacinação, o desempenho da economia brasileira em 2021 dependerá da forma como o governo lidar com as restrições fiscais e sua capacidade de aprovação da PEC Emergencial e da Reforma Administrativa, que ajudariam a conter a inércia de crescimento das despesas primárias. A eventual suspensão do auxílio emergencial em 2021 funciona como trava na retomada do crescimento econômico depois de uma profunda recessão e acentua a crise social, especialmente no primeiro semestre convivendo ainda com a pandemia. Mas sua manutenção (ou a criação da Renda Cidadã) ameaça estourar o Teto de Gastos, provocando novo salto no endividamento público e o desequilíbrio completo das contas públicas, acendendo o alerta de alto risco de insolvência.

A orientação de Bolsonaro nesta encruzilhada política continua incerta. A intuição populista do presidente não aceita a queda de sua aprovação com o fim do “dinheiro na veia da população” (segundo sua expressão), o que é reforçado pela pressão do Centrão, sua base política no Congresso, sempre ávido pela abertura da torneira do Tesouro Nacional. A expansão dos gastos poderia estimular o crescimento no primeiro semestre (apesar da pandemia) ao custo de forte desajuste macroeconômico que comprometeria a expansão no segundo semestre, quando se aceleraria a vacinação. Em todo caso, a proposta orçamentária para 2021, que estima déficit primário de R$ 247 bilhões, não contempla o auxílio emergencial nem o lançamento do programa Renda Cidadã.

Para escapar da escolha entre um perigoso expansionismo e um ajuste fiscal contracionista, será necessário aprovar as reformas, que embora não gerem resultados imediatos, sinalizam para a manutenção do Teto dos Gastos e uma trajetória de equilíbrio fiscal. A recuperação da economia mundial em 2021 cria oportunidades para o Brasil. Mas dificilmente o país alcançará o ritmo das nações emergentes por conta do atraso na vacinação e da profundidade da crise fiscal, combinação perversa que modera o potencial de crescimento da economia, mesmo saindo de uma profunda recessão.

*Economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.


RPD || Paulo Baía: O Brasil não conhece o Brasil

Brasil vive à beira do precipício como quem tenta fazer uma travessia em cima de uma corda bamba, à espera de um milagre, independente de uma política governamental, critica Paulo Baía

Não, o Brasil não quebrou. Milhões de pessoas todos os dias acordam sem nada para comer. Sem um tostão no bolso, vão para as ruas de nossas cidades com o intuito de "se virar". A novidade dos últimos tempos é a ideia de que cada cidadão deve vir-a-ser um empreendedor com garantia de sucesso e estabilidade num padrão de sucesso dentro da lógica do mercado. O qual existe e funciona para o 1% da população brasileira que permanece no mesmo patamar em qualquer crise. Então, na atualidade, existem espalhados por todos os cantos do país os "empreendedores" de si mesmo. O que existe na realidade são biscateiros, camelôs, vendedores de doces em semáforos, procurando ganhar algo para o sustento e que lhes traga alguma condição de subsistência. Outros, mais aquinhoados na discrepância de nossa profunda desigualdade de renda e social, são trabalhadores aviltados pelas plataformas digitais com seus empregos ainda mais precarizados, dentro de uma lógica de deformidades trabalhistas aprovadas e que se tornaram recorrentes nos últimos quatro anos.

O Brasil está à beira do precipício como quem tenta fazer uma travessia em cima de uma corda bamba, em que cada um que se vire por si próprio, independente de uma política governamental. Vivemos ao Deus dará, sem imaginar acreditar em falsos profetas à espera de um milagre, a não ser os que acreditam no mito, que não saberemos até quando durará após o fim do auxílio emergencial. Afinal, para o Presidente da República, a pandemia sequer existiu, foi fabricada por mentes doentias que tinham a missão única de conspirar para derrubá-lo e impedir que seu governo fosse bem-sucedido.

As redes de proteção social do Estado brasileiro foram detonadas por um Parlamento que roda, roda, e a cada eleição permanece preso a seus próprios negócios e interesses. E, no caso atual, em conluio com um Poder Executivo subserviente ao 1% mais rico da população, que não pode perder em nenhuma situação, nem mesmo diante de uma peste mundial.

Não somos um país quebrado. Temos uma produtividade espantosa da maioria dos 220 milhões de habitantes. Levantem suas cabeças e prestem atenção às ruas, principalmente olhem para as nossas periferias. A produção de redes de proteção, de assistência, de criatividade, tem feito com que a roda gire e os faça existir numa afirmação permanente da vida. De forma independente dos 'nãos' em excesso, vindos tanto do poder legislativo como do executivo, com suas políticas que atuam para retirar e criar barreiras em que a população nunca sai do mesmo lugar em que deve permanecer – à margem. Contudo, debaixo da terra existe vida pulsando e criando novas possibilidades existenciais, que marcam novas formas de existir, para além de uma ideia de resistência. Pois a atuação dos líderes comunitários, das redes de artistas e de pensadores dentro das comunidades busca soluções concretas, com o desejo de reafirmar a vida e não lutar contra uma correnteza que deseja única e exclusivamente afogá-los.

Enquanto o 1% da população brasileira permanece sem dividir o eterno bolo, que só cresce em suas barrigas narcísicas, as favelas criaram grupos de apoio em que, através de uma rede de solidariedade, conseguem se reinventar e criar condições para atravessar as dificuldades. Existem diversas ações em andamento, mas gostaria de ressaltar a ação humanitária Mães da Favela. De acordo com pesquisa realizada pelo Data Favela e pelo Instituto Locomotiva, existem 5,2 no país milhões de mães faveladas. Deste número, em torno de 72% delas afirmam que, com a ausência de renda decorrente do isolamento, terão problemas na alimentação e, obviamente, não possuem poupança. E oito a cada 10 dizem que a renda já caiu, e as despesas aumentaram, com os filhos em casa sem ir às escolas. Com isso, criaram o vale-mãe - em que elas recebem 120 reais com pagamentos sendo feitos pelo celular através de uma empresa. Atualmente, a ação tem uma página na rede que se chama “mães da favela on”, denominada Fundo Solidário Covid-19 para as Mães da Favela, que já arrecadou R$ 169.120.680,00. Existem 65 mil pessoas mobilizadas para a entrega das cestas com 5 mil favelas atendidas, sendo cerca de 1.379.794 famílias atendidas e 5.519.056 pessoas impactadas, perfazendo uma média de 4 pessoas por família, num total de 18.227,552 toneladas de alimentos, média de 13,5 kg por cesta. De fato, a música está certa – O Brasil não conhece o Brasil.

*Sociólogo e cientista político.


RPD || Martin Cezar Feijó: PANDEMIA, EMPATIA, CIDADANIA

Martin Cézar Feijó nos lembra do significado destas três palavras e de sua importância para o grave momento em que estamos vivendo por conta da pandemia do novo coronavírus

Quando Freud citou o poeta Heine sobre uma verdadeira definição de felicidade, ele lembrou a vista de um vale verdejante, uma árvore frondosa, e uma tranquilidade sem fim.

O isolamento não seria, portanto, o problema. A solidão tampouco. Mas a tranquilidade de se ter a mão todo o necessário para a sobrevivência diária seria indispensável.

PANDEMIA

Penso neste trecho em um texto clássico para refletir sobre esta pandemia do Covid-19. Pandemia que parece não ter fim, embora já tenha ultrapassado no Brasil mais de 200 mil mortos neste início do ano de 2021.

O que estamos passando não tem precedente, nem na Gripe espanhola, que de espanhola não tinha nada, como se sabe. A angústia do conhecimento científico que exige que, para alcançarmos uma imunidade e não sermos alcançados pelo vírus, temos que preservar o isolamento social, o uso de máscaras e aplicação de álcool em gel nas mãos.

Mesmo com a descoberta de várias vacinas, é preciso ter paciência com a demora de sua aplicação em escala global. Isso leva tempo, principalmente, de uma capacidade logística para se atingir o maior número de pessoas.

E para quê?

Não só para se proteger a própria pessoa de ser contaminada, mas também proteger os outros da disseminação do vírus.

Quanto maior a proteção, menor a capacidade de o vírus se propagar, inviabilizando até sua sobrevivência. E isto se chama “imunidade de rebanho”, quando são tantas as pessoas protegidas que o vírus não tem mais a guarida dos corpos humanos para sua propagação.

E esta é a única forma dele desaparecer e a humanidade se livrar de um problema que a afetou durante todo o ano de 2020.

EMPATIA

Só que tem gente que confunde imunidade de rebanho com rebanho que se julga imune.

E aí entramos na capacidade humana de se reconhecer no outro, de se colocar no lugar do outro, e entender que todos os protocolos sugeridos implicam que não só me protejo no plano individual, mas também me preocupo com a proteção dos outros.

E, neste quesito, o Brasil está revelando uma face obscura que, se não surpreende totalmente, ainda assusta pela falta de compromisso, em alguns casos de caráter, com os outros.

A relação entre os interesses pessoais e os interesses coletivos.

CIDADANIA

Compreender que a pandemia é um problema sanitário tanto como um problema sociológico. Uma nação se revela na forma como um povo lida com ela. E, apesar do caráter heroico dos profissionais de saúde, muitas pessoas parecem não se dar conta de como uma atitude individual se reflete no coletivo.

Tudo piora se o chefe da nação se especializa em dar exemplos que revelam ignorância e fanatismo, promovendo aglomerações, seja nadando em praias lotadas ou frequentando lotéricas cheias, contribuindo para a propagação do vírus e, ao mesmo tempo, defendendo que as pessoas desconfiem das vacinas.

Aí chegamos aos inimigos do povo! Aqueles sujeitos que exercem alguma liderança, buscando não os melhores exemplos – fundamentados na empatia –, mas defendendo ideias polêmicas, de resto predominantemente criminosas.

O maior exemplo disso foi o incitamento à insurreição contra a democracia, de parte do chefe da nação mais poderosa do mundo, ao instigar hordas milicianas armadas, lembrando grupos de assalto nazistas, a invadir a sede na qual se reúnem os representes do povo que deveriam deliberar sobre o reconhecimento da vitória eleitoral do opositor que tanto desagradou o presidente autoritário.

O dia 6 de janeiro de 2020 - dia de Reis, epifania para os católicos – entrará para a história como dia em que invasores fanáticos tentaram impedir uma ação parlamentar democrática em nome de uma ideia falsa da existência de fraude numa eleição reconhecida e inteiramente normal.

Um ato, portanto, autoritário, violento, de agressão ao reconhecimento de um processo eleitoral legítimo. 2021 começa, assim, sob dupla sensação: de um lado, o início das aplicações de vacinas que vão finalmente pôr fim à pandemia; e, de outro, a negação da democracia, o contrário da cidadania. Fica claro quem são os inimigos da verdade. São os mesmos inimigos da democracia, da cidadania e da empatia com os diferentes.

Voltando à citação de Freud a partir do poeta Heine, onde descreve a verdadeira definição de felicidade: estar no alto de uma montanha com uma vista deslumbrante em frente a uma árvore frondosa; e nela enforcados todos os inimigos do povo, da democracia e da verdade.

Claro que me utilizei de uma licença poética, até porque isto é apenas uma metáfora, claro!


RPD || Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues de Almeida: Os efeitos da política de “Deus acima de todos”

Discurso de ódio, numa interpretação bíblica supremacista, une grupos de perfil evangélico-pentecostal, tráfico e milícias em ataques aos direitos de grupos minoritários, como os afrorreligiosos, nas regiões metropolitanas das grandes cidades do país

As denúncias de violações de direitos envolvendo religiosos afro acompanham a expansão do neoconservadorismo de grupos de perfil evangélico-pentecostal. As perseguições se distinguem das de outros momentos históricos, pela Igreja Católica e/ou pelo Estado, porque hoje há formalmente mecanismos institucionais de garantia de direitos dos povos de terreiro.

Uma das razões é a interpretação da liberdade religiosa, prevista em lei, a partir de uma matriz evangélica que se afirma vítima de perseguição, ao mesmo tempo em que constrói uma agenda política de “direita cristã”, inspirada no modelo estadunidense, com forte presença na formulação de políticas públicas, a partir dos anos 1980. Isto se identifica já nos debates para a Constituição Federal de 88, quando a bancada evangélica despontou com perfil “conservador” e “tradicionalista”, difundindo discursos que, em nome de Jesus, atacavam direitos de grupos minoritários. Este modelo se opõe ao defendido pelos afrorreligiosos, que têm lutado pela garantia da liberdade de crença, sujeita a limitações, porque não se pode impedir o exercício de outros direitos fundamentais.[1]

A chamada “nova onda conservadora” tem afetado o desenvolvimento de uma política democrática na manifestação plural das diferenças no espaço público, revelando nuances de políticas “cristofascistas”[2], que lidam de forma binária com os povos tradicionais - associados às práticas maléficas, num ideário inspirado na supremacia branca estadunidense.

Se até 2000 eram comuns conflitos entre afrorreligiosos e evangélicos em relações de proximidade (vizinhos, parentes, etc.), há décadas as agressões envolvem também traficantes e/ou milicianos, seguidores de igrejas pentecostais. O fenômeno deixou de ser mera conversão de “bandidos” e tornou-se uma disputa por outros fronts – econômicos e político-eleitorais – que misturam imperativos teológicos e doutrinários com projeto político de nação. Nos Estados Unidos, as consequências dessa direita cristã se veem na política externa internacional e nas ações voltadas ao meio ambiente e direitos humanos.[3] No caso brasileiro, além desses efeitos é preciso destacar a emergência de outra dimensão – o papel dessas igrejas na interação de grupos paramilitares (tráfico e milícias), para consolidação de um “domínio armado”[4], que tem resultado em ataques e expulsão de terreiros e na unificação de áreas nas regiões metropolitanas das grandes cidades sob um mesmo comando, como é o caso do “Complexo de Israel”, favelas da zona norte do Rio, que sob a bandeira de Israel, são geridas pelo tráfico e milícia juntos. Tudo isso é fundamentado por discursos de ódio que possibilitam a consolidação e visibilidade dessas ações extremistas, numa interpretação bíblica supremacista. As consequências diretas desses conflitos são o agravamento de preconceitos em relação às moralidades, aos saberes e práticas dos afrodescendentes e dos indígenas, bem como na produção de uma nova forma de colonização política, discursiva e territorial.

Consideramos que esse processo de radicalização do ideal supremacista branco, baseado no tripé fenótipo-origem-religião[5], presentes no imaginário nacional desde o século XIX, foi atualizado e produz novas narrativas de inferiorização. A emergência da política nacional do “Deus acima de todos”, adotada pelo presidente Jair Bolsonaro, é, portanto, a expressão de um projeto de poder que associa o expansionismo ao racismo ao tratar as minorias como símbolos do “atraso”, ao mesmo tempo que reinventam povos eleitos e ressuscitam a teoria do branqueamento no país.

A afirmação do vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), um homem heteroidentificado como “pardo”, de que o Brasil herdou a “indolência” dos índios e a “malandragem” dos africanos, é um exemplo de como essa política recusa a alteridade, em nome de Jesus, e mistura os discursos nacionalista e supremacista, com a defesa de uma ordem imposta pela força. A “ilusão brasileira da brancura”[6] está a serviço da invisibilidade das práticas institucionais genocidas que seguem agindo, a despeito das salvaguardas legais, num projeto de extinção de todos que não se representem como “brancos”. Assim, o ideal supremacista no Brasil está a serviço da manutenção dos privilégios da aristocracia, que não se prende ao fenótipo, mas a uma ideologia de “mérito” que o mito da democracia racial criou e que a teologia da prosperidade glorifica – a branquitude como hegemonia segue como a representação social consagrada no Brasil.

*Professora de Antropologia da UFF; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)

** Bolsista de Pós-Doutorado da FAPERJ; Pesquisadora do INC-INEAC-UFF)

[1] MIRANDA, A.M. 2020. “Terreiro politics” against religious racismo and “christofascist” politics. Vibrant, 17: 1-20.

[2] O termo classifica políticas públicas e sociais que, em nome do cristianismo, excluem os grupos minoritários. In HEYWARD, I. C. Saving Jesus from Those who are Right: Rethinking what it Means to be Christian. Minneapolis: Fortress Press, 1999.

[3] RESENDE, E. S. 2010. “A Direita Cristã e a política externa norteamericana: a construção discursiva da aliança entre Estados Unidos e Israel com base na ideologia evangélico-protestante”. Carta Internacional, 5 (1): 3-20.

[4] MIRANDA, A.M.; MUNIZ, J.O. 2018. “Dominio armado: el poder territorial de las facciones, los comandos y las milicias en Río de Janeiro”. Revista Voces En El Fenix, 68: 44 - 49.

[5] ALMEIDA, R. R. “A luta por um modo de vida: as narrativas e estratégias dos membros”, Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2019.

[6] CÂNDIDO, A. 2002. Racismo: crime ontológico [Entrevista]. Ethnos Brasil, I (1): 21- 28.


Fernando Henrique Cardoso: Annus horribilis

Num ano terrível, a democracia triunfou nos EUA, um alento para seguirmos lutando para melhorar a vida da maioria

Mal escrevi o título deste artigo (usando o pouco latim de que ainda me recordo), e já me arrependi. Será mesmo, ou o ano que nos espera à frente será ainda pior? Difícil imaginar, mas não impossível. É certo que a pandemia, o novo coronavírus, mata sem piedade e... Não só os mais velhos, molesta também os mais jovens; o que piora a situação. Também é certo que nos tocou um governo com pouca imaginação e que olha o país por um espectro curto. Mas, se olharmos para o mundo, pelo menos não houve guerra global, e a recessão, embora forte, não é comparável com outras crises que paralisaram os negócios internacionais. Enfim, sem “panglossismo”, bem-feitas as contas, o ano foi mal, mas poderia (como quase sempre) ser pior...

Não digo isso para me consolar, ou, quem sabe, apascentar o eventual leitor. Digo porque é preciso olhar para frente com alguma esperança. Sei também que é mais fácil imaginar que “não fosse este governo”, a pandemia talvez não tivesse matado ou maltratado tanta gente. Será verdade? Provavelmente. Mas, o vírus é soez e está dizimando as pessoas, independentemente da qualidade dos governos. Parece uma saída simples “culpar” só o governo (no caso o federal) pelos males que nos afligem. Claro, não é sensato —para dizer o mínimo — trocar tantos ministros da Saúde e nomear, por fim, quem, por profissão, não conhece a matéria. Tão grave quanto isto é considerar os adversários como “inimigos”, jogando o país em divisões imaginárias. E sempre é possível ampliar a lista do que falta aos governantes para que tudo dê certo...

Não é hora, contudo, para o ajuste de contas. A experiência mostra que é melhor esperar que o tempo escoe do que precipitar o fim de governos. Mais um pouco — se o povo não insistir nas antigas preferências e se tivermos a sorte de existir alguém que abra um caminho mais promissor — haverá novas eleições. Mudaremos algo?

Para responder com franqueza, e deixando de lado o que não entendo (fico na torcida pelo fim da pandemia), temo que continuemos a “não ver”. Talvez o maior problema do país seja a desigualdade. E ela “se naturalizou”. Podemos até vê-la e fazer comentários gerais a seu respeito. Mas, no dia a dia, como o problema vem de longe, acabamos por, implicitamente, aceitá-la. E esta talvez seja a maior dificuldade para obter o que, em geral, mais desejamos: que o país continue crescendo economicamente. Na cultura tradicional é como se crescimento equivalesse a melhor distribuição de renda. Existe, é claro, uma relação entre a prosperidade econômica e o bem-estar geral. Mas é enganoso crer que basta a economia crescer para as “questões sociais” se resolverem.

Nos dias que correm, não só a oferta de empregos está reduzida como as transformações tecnológicas do mundo requerem maior capacitação profissional. Torna-se mais visível que educação e saúde são requisitos para a modernização da sociedade e da economia. Como, entretanto, somos mais de duzentos milhões de pessoas, os setores dominantes parecem não se dar conta de que no longo prazo não haverá prosperidade com tanta miséria. Quem sabe a crise atual, dupla, a de saúde e a do desemprego, despertem não só “o governo”, mas cada um de nós. Quem sabe nos permita “ver” melhor e perceber que a transformação necessária é mais profunda e mexe com as pessoas, com cada pessoa, e não só com as instituições.

Que pelo menos quanto à pandemia sejamos capazes de assumir nossas responsabilidades individuais. Não basta dizer: “Fiquem em casa”. Para isto é preciso “ter casa”. Ter emprego, sentir solidariedade. Se não estiver ao nosso alcance fazer as mudanças de maior profundidade, assumamos nossa parte: se puder, isolemo-nos; quando a vacina chegar — quanto antes, melhor — vacinemo-nos. Pelo menos isso.

Neste ano terrível, a democracia triunfou sobre o preconceito e a intolerância nos Estados Unidos. A nação estava profundamente dividida em termos de filiação partidária e visão de sociedade. A maioria dos eleitores brancos, protestantes, pessoas sem diploma universitário e moradores nas cidades do interior votou em Trump. A maioria das mulheres, jovens, negros, pessoas com diploma universitário e moradores das grandes cidades votou em Biden. A recusa de Trump em reconhecer a gravidade da pandemia lhe custou caro. Como também suas atitudes misóginas e racistas. Suprema ironia, o voto negro foi decisivo tanto na escolha de Biden como candidato do partido democrata quanto em sua vitória nos estados de Pensilvânia, Michigan e Geórgia que lhe deram a maioria no colégio eleitoral. O espírito de liberdade, fundamento da democracia americana, prevaleceu sobre a polarização. As manifestações de protesto do movimento Black Lives Matter, em vez de assustar o eleitorado conservador, consagraram o respeito à diversidade como um valor constitutivo da América.

Isso nos dá alento para continuarmos vivos e lutando para melhorar a vida da maioria: menos desigualdade, maior prosperidade. Mais respeito às leis e às pessoas. É o que desejo neste novo ano de 2021.


O que mostra a eleição de Bruno Covas em São Paulo? Paulo Fábio Dantas Neto explica

Em artigo na revista da FAP de dezembro, professor da UFBA analisa relação do resultado das urnas com governador João Doria

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O doutor em ciência política e professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Paulo Fábio Dantas Neto diz que há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das eleições de 2020 na capital paulista. Em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro, ele cita que a primeira mostra que a reeleição do prefeito Bruno Covas foi uma vitória do governador João Doria e a segunda aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional.

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Todos os conteúdos da publicação mensal, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Na primeira hipótese, segundo ele, poderia se estimular uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Na segunda, acrescenta, o objetivo seria superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.

Na avaliação de Dantas Neto, o peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. “Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram”, afirma. “Em Fortaleza, a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu”, acrescenta.

Dessa bifurcação surge uma outra questão, de acordo com o autor do artigo, que foi vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994). “Saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda”, acrescenta.

Isso, segundo ele, pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. “Do nome, ainda estão longe”, afirma o professor da UFBA. “Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com ‘essência’ de centro-direita”, diz.

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