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Dorrit Harazim: Medos múltiplos

No fundo, foram falas de poltrão. Cuspidas pelo presidente da República em tom estudadamente espontâneo esta semana, os disparates não precisam ser repetidos aqui — já ofenderam o suficiente a nesga de autoestima que ainda resiste no país. A necessidade de recorrer a falas tão odientas sugere que Jair Bolsonaro está com medo. Medo de que caia a casa ostentação comprada pelo filho Flávio, medo de seu pacto de morte com a Covid-19, medo de a rua pressionar o Congresso, medo de chegar lanhado em 2022 — ou de nem sequer chegar até lá. Agora está prisioneiro do descaminho escolhido, que não tem volta: por meio da retórica (e da política) sanhosa, procura apenas manter a fidelidade de rebanho dos que o elegeram.

Bolsonaro não foi o único a tratar a Covid-19 com nonchalance suicida. De início, por interesse eleitoral ou estupidez, uma parte do Brasil envergando paletó ou farda, toga ou chinelo de dedo, também não quis ver o tamanho do perigo. Quase sempre correndo atrás do atraso e adotando políticas ciclotímicas de abre/fecha, autoridades estaduais e municipais foram tateando. Hoje 1.703 prefeitos aprendem a formar consórcios para a compra de vacinas. O Congresso, que por um ano se fingiu de adormecido, por fim acorda algo sobressaltado.

Mas o grosso da responsabilidade, pelo imenso poder de liderança, comunicação e recursos que o cargo lhe dá, é do presidente da nação. Exatamente um ano atrás, neste espaço se comentava o registro de 13 casos positivos de Covid-19 entre os 209 milhões de brasileiros. O salto para os quase 11 milhões de casos atuais, com mais de 264 mil vidas perdidas no caminho, nasceu da cartilha manicomial de Jair Bolsonaro, e nada, daqui para a frente, conseguirá apagar esse rastro.

Nem mesmo o “Penguin Book of Lies”, trabalho investigativo-literário sobre as várias formas de mentir publicado em 1990 pelo britânico Philip Kerr, conseguiria dar conta das artimanhas mentais do presidente. Talvez nem Santo Agostinho sou besse fazê-lo. O santo sustentava que “nem todo aquele que diz falsidades está mentindo se crê ou presume ser verdadeiro o que diz...”. Mas como saber se o capitão sequer acredita nas sandices que professa? Possivelmente não, são apenas escapes.

Joseph Goebbels sabia que mentia. Exercitava o ofício da propaganda com total controle e convenceu os alemães da receita nazista. Ronald Reagan, ao contrário, realmente acreditava na “América” de John Wayne e das ilustrações de Norman Rockwell. Convenceu o eleitorado de que representava o país onde sempre é possível enriquecer. Suas crenças eram simples. Foi reeleito apesar de 138 membros de seu governo terem sido investigados, indiciados ou condenados por inúmeras encrencas.

Pensadores de calibre, como Hannah Arendt, já ensinaram quanto esconder a verdade faz parte das ferramentas necessárias e justificáveis não apenas para políticos demagogos, como para estadistas de verdade. Ademais, inexiste a política da autenticidade pura, da sinceridade não contaminada. Nem deve existir, aconselha o visionário George Orwell, cada vez mais lido nos dias de hoje. Para o autor de “1984”, pior do que a hipocrisia na política, é um mundo em que ninguém mais tem sentimentos privados para manter secretos. “Quando ninguém mais tiver nada para esconder, é onde reside o terror”, escreveu. A verdade absoluta, inequívoca, aquela que silencia os que dela discordam e cancela qualquer debate, pode ser tão opressora e inimiga da liberdade humana quanto uma imensa mentira.

Nenhuma dessas considerações nem sequer consegue ser aplicada a Jair Bolsonaro, que é apenas um terrível, lamentável , primitivo e danoso aspirante a chefete do Brasil. Nos primórdios da revista “Veja”, a redação brincava de dividir a chefia do semanário em três categorias: arquitetos do caos, simuladores de produtividade e falsos ecléticos. Bolsonaro consegue ser as três coisas ao mesmo tempo e tantas outras mais.

Apenas não consegue ser humano.


Merval Pereira: Guerra é guerra

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem se mostrado competente na análise prospectiva de nossa economia, embora de nada isso lhe valha para evitar os fracassos que prenuncia. Disse que se fizéssemos muita besteira, o dólar chegaria a R$ 5,00. Chegamos a R$ 5,53 no fim de semana sem que o ministro tenha evitado. Recentemente, disse que poderíamos virar uma Argentina, ou quem sabe uma Venezuela, em poucos anos, se caminharmos para “o lado errado”.

Mais uma vez está certo, e nada indica que consiga frear essa caminhada célere para o abismo que o presidente Bolsonaro lidera. Bolsonaro sabe o que eu penso, eu sei o que ele pensa, disse Guedes durante a crise gerada pela intervenção presidencial nos preços da Petrobras. Só nós não sabemos por que Guedes não sai do governo se não consegue conter os ímpetos intervencionistas do chefe.

Por que, então, não nos transformamos em um Paraguai pelo menos por alguns dias, meses, e não saímos nas ruas até tirarmos Bolsonaro da presidência da República, cargo que ele não merece exercer pela falta de compostura, a incapacidade administrativa, e, sobretudo, a impossibilidade de enfrentar a pior pandemia em um século no Brasil e no mundo?  

“Estamos em guerra”, anunciou o Secretário de Saúde de São Paulo Jean Gorinchteyn. E se estivéssemos em guerra contra outro país, e não contra um vírus, como nos comportaríamos tendo à frente um líder como Bolsonaro, incapaz de oferecer a seus compatriotas “sangue, suor e lágrimas”?

Logo ele, sujeito de maus bofes, que vive procurando briga, irritadiço, violento, agressivo. Uma guerra de ocupação, de conquista ou defensiva, talvez encontrasse em Bolsonaro um comandante aguerrido, mas trapalhão, é o que se depreende de ele ter ameaçado pateticamente os Estados Unidos “com pólvora” numa imaginária guerra para proteger a Amazônia.

Capaz, mesmo tecnicamente sóbrio, de bravatas desastradas como a do General Leopoldo Galtieri, ditador argentino que, bêbado, declarou guerra à Inglaterra por causa das Ilhas Malvinas. Assim como não está preparado para comandar um Exército, pois falta-lhe bom-senso e não concluiu o curso de comando do Estado-Maior, Bolsonaro também não está preparado para exercer a presidência da República, mas foi eleito e tem sob seu comando vários oficiais superiores, que não lhe deixariam comandar pelotões em uma guerra, mas acham que podem ser comandados por um político medíocre, que já demonstrou o mal que pode fazer ao país.

Os militares que se subordinam ao capitão o fazem mais por uma hierarquia militar, que coloca o presidente como Comandante em Chefe das Forças Armadas, do que por amor à democracia.  Pois o amor à democracia os obrigaria a abandonar um presidente  tresloucado, que está levando a morte à população brasileira por caprichos, ignorância e cálculo político.

Em uma guerra, a morte é a regra, e, mesmo assim, o oficial que encaminha seus comandados a atos manifestamente criminosos, ou a excessos, pode ser condenado, mesmo em tempo de paz. Galtieri foi condenado por negligência na guerra das Malvinas, tendo sido anistiado depois por lei especial. A guerra contra a Covid-19, assim como na guerra tradicional, leva a morrer pela pátria, como no caso do pessoal da linha de frente médica, que se arrisca a morrer para salvar vidas. Desde o início da pandemia, segundo dados oficiais, quase mil mortes de profissionais de saúde - médicos, enfermeiros, técnicos - foram registradas.

Defender a saúde pública é dever das autoridades do país, e nenhuma delas, por mais elevado que seja seu cargo ou posto, pode desconhecer o perigo de morte, se omitir ou dificultar o seu combate, segundo juristas. Qualquer autoridade que não lute pela  preservação da vida ameaçada por uma crise de saúde pública comete  “crime de responsabilidade”, e seus atos devem ser apreciados e julgados. Sobretudo quando mais de 260 mil pessoas já morreram, grande parte por negligência governamental.

“Todo mundo vai morrer um dia”, disse o presidente Bolsonaro ao comentar o número de mortes pela pandemia. Mas apressar a morte em uma pandemia por falta de oxigênio, de leitos de UTI, ou de vacinas, é crime.


Marco Aurélio Nogueira: A pandemia, o futuro, a vida que flui

A época atual é de perplexidade, que ofusca o futuro e idealiza o passado. Com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida, incrementando ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. A pandemia do coronavírus agravou um quadro que já era dramático. Partindo desse pressuposto, o artigo procura refletir sobre algumas vias alternativas, que recuperem o diálogo, a cooperação e a solidariedade em escala global, valorizando ao mesmo tempo a democracia e o reformismo incremental

Decifrar o futuro sempre assustou e excitou os humanos. Da mítica Esfinge de Tebas, com seu enigma que exigia um esforço de autoconhecimento e de reflexão sobre os passos da humanidade (a criança, o adulto, o idoso), ao Iluminismo, com sua aposta no racionalismo como motor do progresso, o futuro fixou-se como imagem de desafio, promessa e possibilidade. Prevalecendo a razão, decifrado o enigma, o passado seria ultrapassado inapelavelmente, levando consigo um cortejo de perversidades acumuladas, sofrimentos ingentes e vidas desperdiçadas.

Utópicos variados floresceram, idealizando construções que conteriam em si a felicidade e a harmonia futura. Mas tarde, com o predomínio crescente da ciência e da técnica, defensores do progresso técnico e econômico inexorável e futurólogos se multiplicaram, convictos da capacidade que teriam de antecipar o que se teria pela frente. Com os avanços obtidos após a Segunda Guerra Mundial -- o Estado de Bem-Estar, o aumento de renda dos trabalhadores, o desenvolvimento da ciência aplicada nas áreas decisivas da saúde e do saneamento, os direitos sociais --, anunciou-se uma era de confiança no futuro.

Chegamos assim às últimas décadas do século XX, quando o aparato institucional, sociopolítico e cultural erguido no pós-guerra começou a ser abalado por uma combinação de fatores explosivos: crescimento das demandas dos cidadãos, aumento do custo das operações estatais, crise fiscal, mercado todo-poderoso, rápida evolução tecnológica, problemas de governabilidade, passagem de uma estrutura produtiva assentada na indústria metalomecânica para uma estrutura fundada na “economia da informação”, desemprego estrutural, expansão das redes de comunicação.

Deu-se então uma reversão das expectativas. Foram postas em xeque as promessas da modernização e do progresso. As ciências humanas e a filosofia ingressaram em uma fase dedicada ao mapeamento das modificações sofridas pelo moderno. Pós-modernidade, modernidade líquida, segunda modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade tornaram-se expressões de uso generalizado, sobre uma base consensual de que a realidade se tornara muito mais difícil de ser conhecida. Formou-se assim um paradoxo: quando tudo parecia estar sob controle -- da natureza e do tempo à sociedade, dos corpos às mentes -- eis que uma névoa espessa desaba sobre o mundo, vedando-o ao conhecimento crítico e travando a imaginação sobre o futuro. As utopias cederam lugar às distopias e às “retrotopias”, utopias regressistas, que olham para trás e celebram a nostalgia dos tempos passados.

Leio em Bauman: “O caminho do futuro assemelha-se estranhamente a um percurso de corrupção e degeneração. O caminho reverso, direcionado para o passado, transforma-se assim em um itinerário de purificação dos danos que o futuro produziu toda vez que se fez presente”. As esperanças de melhoramento fogem de um futuro que assusta, buscam refúgio em um passado idealizado em que se confiaria. “Tal reviravolta transforma o futuro, de um habitat natural de esperanças e expectativas legítimas, em uma casa de pesadelos”. (Bauman, 2017: 16).

Na base dessa inflexão repousa o fato de que, com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida. Incrementou ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. O mundo enveredou por uma etapa que realiza in totum aquilo que em seus primórdios foi utilizado para definir a condição moderna: “estar em movimento”, mudar compulsivamente, agir para confrontar e transformar o mundo, tornando-o diferente.

Aceleração

Como enfatizou Hartmut Rosa, as sociedades tornam-se modernas quando ganham “estabilização dinâmica”, ou seja, quando ficam “sistematicamente dispostas ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (Rosa, 2019: XI). Além de se racionalizarem, ganharem diversificação e se individualizarem, as sociedades modernas são atravessadas pela aceleração de processos, sensações e acontecimentos. Tal vetor torna-se sempre mais um princípio

básico da vida moderna, que comprime o tempo e suspende os momentos de fruição, nos quais deveria ocorrer alguma possibilidade de “desaceleração” e de repouso do guerreiro.

Hartmut Rosa explorou como esse processo ativado pela compulsão produtivista implica perdas existenciais, mal-estares e aflições (estresse, exaustão, burnout, falta de tempo, pressa permanente, depressão). A sensação de que o progresso técnico (a informatização) dilataria o tempo livre e agregaria mais horas de fruição à vida cotidiana é questionada em termos práticos pela constatação de que o tempo se tornou uma variável fora de controle.

Rosa segue uma trilha também frequentada por outros autores. Byung-Chul Han, por exemplo, constata que “a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho”. Seus habitantes não são mais “sujeitos da obediência”, mas “sujeitos de desempenho e produção, empresários de si mesmos”. Inerente a ela é a produção recorrente de transtornos e paralisias hiperativas. “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, de certo modo seres de “almas consumidas”. Os transtornos que nela se reproduzem expressam “o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”. Refletem uma “humanidade que está em guerra consigo mesma”, que vive sob o império do cansaço, do esgotamento, do excesso (de estímulos, informações, impulsos), que fragmenta e destrói a atenção. (Han, 2015).

A aceleração produz efeitos nos distintos planos da vida. Afeta o modo como se pensa, se estuda, se ensina e se aprende. O modo como se trabalha e se descansa, o lazer e a fruição cultural, os relacionamentos e os afetos. Põe em xeque os sistemas, o Estado, a família, a escola e as organizações da sociedade civil. Dificulta a compreensão da realidade e a ação sobre ela. Mundializa o mundo, mas provoca separações e desigualdades que freiam a formação de uma comunidade de destino internacional. Suspende, assim, a elaboração de visões sistemáticas do futuro e de projetos de sociedade.

Essa alteração do ritmo existencial combina-se com o fato de que, na modernidade tardia, os indivíduos desejam “dispor do mundo” livremente, tratá-lo como inesgotável, pronto para ser explorado e submetido. Essa tendência está inscrita desde sempre em nossa relação com o mundo, mas alcança nova radicalidade no século XXI, graças às possibilidades técnicas oferecidas pela digitalização e pelas restrições político-econômicas da extensão e da otimização do capitalismo financeiro e da competição desenfreada. Os humanos deparam-se, assim, com um mundo que se lhes aparece como uma sucessão de “pontos de agressão”, objetos que precisam ser conhecidos, conquistados, dominados, utilizados. A “vida”, portanto, torna-se uma luta que jamais pode ser interrompida. Turbinada pelos mecanismos do mercado e pelas ofertas várias do processo sociocultural, a

dinâmica vital termina por gerar frustrações seriais, raiva, medo e insatisfação, assim como comportamentos políticos fundados na violência e na agressão.

Na modernidade tardia, observa Hartmut Rosa, o “mundo da vida” torna-se cada vez mais indisponível, opaco e incerto. “Em consequência, a indisponibilidade retorna à vida concreta, mas modificada e angustiante, como uma espécie de monstro que teria se criado a si mesmo”. (Rosa, 2020). O programa moderno de extensão do acesso ao mundo, que transformou o mundo em um amontoado de “pontos de agressão”, produz assim, de duas formas concomitantes, “o medo do mutismo do mundo e da perda do mundo”. Se "tudo está disponível", o mundo não tem mais nada a nos dizer e “onde ele se tornou indisponível de uma nova maneira, não podemos mais entendê-lo porque ele não é mais alcançável”.

Com a “estabilização dinâmica” das sociedades modernas e os problemas dela derivados, processa-se uma mudança na percepção cultural. Crescer passa a significa mais risco e ameaça, às pessoas, às sociedades, ao Estado, à natureza. Ao futuro. Deixa de ser um valor inquestionável, ainda que não seja abandonado como vetor econômico. Estreitam-se as margens de manobra dos governos e dos sistemas políticos, que deixam de produzir resultados satisfatórios.

Grupos e indivíduos defrontam-se com a realidade estrutural da modernidade atual: “o que sustenta o jogo do crescimento não é a vontade de obter ainda mais, mas o medo de ter cada vez menos”. Grupos e indivíduos sentem-se “estruturalmente constrangidos (a partir de fora) e culturalmente empurrados (a partir de dentro) para fazer do mundo o ponto de agressão”, para converter o mundo em algo a ser conhecido, explorado, consumido, dominado. Não é difícil imaginar a repercussão explosiva e perturbadora desse processo quando ele atinge seu ápice. A sensação de um mundo indisponível invade o plano político, onde é processada de modo discursivo e reforçada pela dinâmica incontrolável da mídia e das redes sociais, “que desencadeiam em pouquíssimo tempo ondas de indignação - ou de entusiasmo -- insuspeitáveis e com consequências gigantescas, ondas cujos fluxos e refluxos são tão imprevisíveis e incontroláveis quanto suas interações”. (Rosa, 2020)

Basta girar o periscópio para constatar que não há lugar na Terra que esteja a exibir coesão, harmonia e satisfação. A fragmentação, o sentimento de impotência, a frustração, a raiva, os estados depressivos espalham-se como fogo pelas mais diferentes sociedades. A “crise” torna-se assim abrangente: põe em xeque o modo de vida moderno, o padrão de desenvolvimento, o modo como se dispõe do mundo, como ele é ocupado, utilizado, explorado. Edgar Morin fala em “megacrise” e em “poli-crises” para acentuar precisamente essa dimensão complexa e universal, em um processo que aproxima e afasta, unifica e separa: “A globalização, a ocidentalização, o desenvolvimento são os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, emaranhadas, entre as quais estão a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais, que são, elas mesmas, produtoras da crise da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue chegar à humanidade”. (Morin, 2011).

Faltam lideranças que se disponham a pensar o futuro, praticando uma política inovadora e de civilidade, voltada para a solidariedade e a qualidade de vida, que ficam na dependência de “resistências colaborativas” e “oásis de fraternidade” (Morin) de pequena escala. A política sofre para falar com os cidadãos, deixa-se enredar nos mecanismos do poder e nas manobrar eleitorais. Afasta-se quando deveria se aproximar. “A nossa é uma era de crise permanente dos instrumentos para resolver problemas”, escreveu Bauman. O poder se separou da política, ficando solto e fora de controle. Em decorrência, as instituições ficam mais impotentes e mais submetidas aos técnicos. Os governos querem se agarrar ao terreno nacional, mas são pressionados pelo supranacional. A condição cosmopolita (a interdependência, as interações) não conta com uma consciência cosmopolita que a direcione e regule. O mundo global não conta com uma política global. Sem política, não se completa a formação de uma opinião pública global e de uma consciência de que os problemas são globais. (Bauman, 2017: 262).

Já estamos em processo de metamorfose: uma metamorfose “abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas, está acontecendo de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”. Ela “ocorre em segundos, com uma velocidade verdadeiramente inconcebível; em consequência, está ultrapassando e esmagando não apenas pessoas, mas também instituições”. É por isso que ela escapa da conceituação vigente da teoria social e leva as pessoas a terem a impressão de que o mundo está louco. (Beck, 2018, p. 79).

O tempo veloz e a política

Quem governa e exerce poder vale-se da lentidão: precisa dela para respirar, fazer cálculos e decidir. Em boa medida, o governante poderoso pretende prolongar o passado, aquilo que existe. As oposições e os cidadãos têm pressa: desejam para hoje tudo o que tem sido postergado e tudo a que aspiram. Querem antecipar o futuro. A lentidão precisa ser modulada com sabedoria e capacidade de comunicação persuasiva. Se for excessiva, pode fazer com que oportunidades de avanço se percam e apoios sejam desperdiçados, levando a que não se consiga governar os ambientes. A antecipação apressada do futuro, por sua vez, pode ser feita de forma voluntarista, em nome da vontade de mudar, perdendo de vista as determinações fundamentais e as possibilidades concretas de mudança.

Hoje, a velocidade dos fatos aumenta na mesma proporção em que cresce a complexidade social (a diferenciação, a individualização, a fragmentação, o desentendimento) e acelera-se a inovação tecnológica, sobretudo a que afeta a comunicação e a informação, internet à frente. Quanto mais tribos, nichos e redes, maior é o volume de fatos e mais veloz é a sucessão deles. Dadas as interações e as trocas amplificadas, fatos passam a significar também versões e interpretações. Narrativas proliferam.

O resultado é um agregado que se movimenta sozinho, sem que encontre um centro gerador claro e preciso. O bólido gira em alta velocidade, como slides que deslizam rapidamente em um carrossel, sem que os espectadores tenham tempo de assimilá-los. Como decorrência, verdade e mentira se misturam, palpites e opiniões caem sobre a população como uma tempestade de raios, a mídia é onipresente. Forma-se uma névoa densa, que ajuda a rebaixar a qualidade das “narrativas” individuais, coletivas, governamentais ou patrocinadas por organizações. Vozes se espalham em tom de “verdade categórica”, impulsionadas por postagens e boatos espalhados por aplicativos, bots ou empresas especializadas.

Fatos se sucedem com rapidez inusitada, movidos por expectativas inflacionadas, ódios e ressentimentos à flor da pele, notícias e informações multiplicadas, discursos, debates e falas incessantes, uma cacofonia inesgotável. Há movimentos de luta, reivindicação e protesto os mais variados, condizentes com uma época que fez dos direitos humanos e das postulações identitárias um de seus signos mais fortes. Mas os avanços por eles obtidos tardam para socializar seus efeitos. A desigualdade se reproduz e chega a se expandir, misturada com discriminações várias e preconceitos que se repõem. A vida cotidiana, como sempre, mostra-se dura e pouco flexível, sobretudo para os marginalizados, os que se deparam com empregos que escasseiam e salários que declinam. Para os jovens, que sofrem para encontrar seu lugar no mundo.

Tudo incide sobre o espaço em que atuam os políticos, com seus partidos e suas agendas, e no qual se organizam as escolhas dos eleitores e as decisões dos governantes. A política, em si mesma, é revolvida de cima a baixo, com a crise despontando em cada curva do caminho, ora sob a forma do questionamento da representação, ora sob a colocação em xeque da ideia mesma de democracia, ora problematizando a figura dos políticos, ora fomentando versões de populismo. A esquerda enfrenta dificuldades para se renovar e se repor, a extrema-direita ressurge com virulência e agressividade.

No plano do pensamento, o cenário célere e mutante desafia os analistas, obrigando-os a checar mais fontes, a incluir mais ângulos de observação e a atravessar uma muralha de interpretações que complicam a relação “normal” entre essência e aparência. As análises tornam-se mais tentativas, refugiam-se no academicismo típico da hipermodernidade, movido a citações e referências e pouco atento à dimensão pública do

trabalho reflexivo. Exige-se sempre mais a incorporação de formas de pensar próximas da dialética e da teoria da complexidade, capazes de considerar que espaços dispostos em redes costumam gerar modalidades permanentes de “caos estável” (Beck), que se reproduzem e se refazem, até mesmo quando se estabilizam.

Sobredeterminando tudo isso, há a ação da época histórica. O capitalismo globalizado ganhou alento e seguiu seu curso, alheio a controles, crises e regulações. A turbulência econômica passou a ser personagem usual no mundo. O fundamentalismo foi reforçado, ganhando agora a companhia de nacionalistas xenófobos e demagogos, a democracia representativa tornou-se sensível demais às transformações que sacodem a vida cotidiana, a cultura de esquerda não conheceu o necessário revigoramento, o mundo do trabalho se desorganizou, a robótica, a inteligência artificial movida a algoritmos, os celulares e a informatização generalizada redesenharam o modo com os humanos vivem, pensam e fazem coisas.

O cenário não se fixa, parece sempre em movimento, mesmo quando se repõe. O analista que se proponha a interagir com tal cenário deve tentar captar o essencial do slide disposto pelo carrossel enlouquecido, sem perder de vista aquilo que vem em seguida e se projeta no horizonte. Precisa ser rápido sem ser apressado.

A velocidade está intimamente associada ao ritmo das mudanças. Há mudanças rápidas, outras precisam de tempos longos para amadurecer. Há épocas velozes e épocas em que a vida nem parece mudar, sociedades que navegam com as ondas e outras que mal conseguem sair do lugar. Em nossa época, muda-se tanto que a mudança ficou fora de controle. Sabemos que ela já está aí, mas não podemos dosá-la, nem direcioná-la. Mesmo assim, vivemos todos querendo mudar mais e no menor intervalo de tempo, somos praticamente subsumidos pela fascinação do novo, do que virá amanhã.

A velocidade com que o “novo” substituirá o “velho” intriga, até mesmo por não poder ser projetada. Há modulações e determinações a serem consideradas. A repentina subida da temperatura política e social pode tanto desencadear mudanças não previstas quanto bloquear outras já delineadas. Pode também desorganizar de tal forma o quadro existente que a complicação se torna inevitável, fazendo crescer enganos e ilusões. “Explosões” são sempre risco e surpresa: fascinam, geram temor, excitam esperanças, alteram humores, disposições e resistências.

O “novo” – um sistema, uma sociedade, um partido, uma elite política, uma cultura, um comportamento – não brota somente por causa de iniciativas políticas. Atos de vontade são importantes, mas não podem tudo. Não basta existir disposição, empenho e dedicação para que o “velho” seja deslocado. Ele está enraizado em terrenos muitas vezes arados pelo tempo secular, funciona como referência essencial para condutas, hábitos e pensamentos. Somente a ingenuidade política e o desconhecimento dos ritmos da história

podem relativizar “o peso que as gerações mortas têm sobre o cérebro dos vivos”, como escreveu Marx no 18 Brumário. A resistência à mudança, extenso e conhecido capítulo dos estudos sociais, não se apoia exclusivamente em interesses prejudicados, mas obtém a maior parte de sua força precisamente do “velho” que repousa entranhado nas bases da vida coletiva. Recusa-se a mudança por temor a ela, por não se saber direito o que fazer se aquilo que é conhecido deixar de existir, porque não se consegue visualizar o futuro.

Reformas complexas como são as da educação, da saúde e da previdência – os sistemas básicos de proteção social – requerem tempo para serem gestadas com um mínimo de consenso e executadas com sustentabilidade. Os cidadãos, porém, querem respostas imediatas. Os efeitos e os resultados do reformismo não são imediatos, fazem-se sentir ao longo de décadas. Enfrentam bloqueios e oposições, seja porque afetam interesses constituídos, seja porque se deparam com hábitos cristalizados, que não podem ser substituídos de um dia para outro.

Mudanças sistêmicas, que mexem com organizações e instituições, com modos de agir, pensar e sentir, não têm como ocorrer de chofre, abruptamente. Tentativas nesse sentido costumam dar errado. Justamente porque são complexas, tais mudanças vêm a conta-gotas: vencem quando são incrementais e economizam rupturas bruscas. São alterações moleculares, muitas vezes microscópicas e silenciosas, que, com o tempo, tendem a se acumular e a metamorfosear o organismo social como um todo.

O incrementalismo persegue a mudança segura, processual, blindada contra retrocessos. É uma perspectiva que valoriza a negociação e o acúmulo de forças, requerendo, por isso, a presença em cena de sujeitos políticos qualificados, dispostos a fazer “sacrifícios” e a se distanciar dos aplausos fáceis das multidões. Qualificados para resgatar a confiança perdida das pessoas, mobilizando-as para que assimilem as pressões mais disruptivas, reúnam-se e produzam consensos É uma perspectiva que requer maiores doses de inteligência política, sofisticação intelectual, paciência, bem como daquilo que os gregos chamavam de phrónesis, prudência. O incrementalismo só é sábio quando se ajusta ao tempo e à “alma” das sociedades, quando encontra um “organismo” que saiba dominar a arte do governo e se ponha na perspectiva de valorização do Estado democrático e republicano, aprofundando os pactos básicos de convivência e a formação de novos alinhamentos políticos e intelectuais.

Olhar para frente

Mas não há somente destroços e derrotas. Há crises por todos os lados, mas também estão postas as condições de possibilidade de um reformismo de esquerda que dignifique a igualdade e a democracia política. Não estamos retrocedendo.

A ambivalência é parte integrante dos processos atuais. Crises são simultaneamente risco e oportunidade. É o que leva Morin a afirmar que a globalização constitui ao mesmo tempo o pior e o melhor da humanidade. O pior decorre de seu ímpeto destrutivo, de sua adesão a um padrão de desenvolvimento desconectado das economias reais, de sua capacidade de produzir catástrofes em cadeia, que atiram comunidades inteiras no abismo da incerteza e da insegurança, ou seja, a possibilidade de autodestruição da humanidade.

Mas a globalização também abre espaços para o melhor da humanidade. “Pela primeira vez na história humana, as condições para que se ultrapasse uma história feita de guerras, na qual as potências de morte foram reforçadas a ponto de permitir agora um suicídio global da humanidade”. Agora, aumentou a interdependência de cada um e de todos, nações, comunidades, indivíduos, no planeta Terra, “multiplicam-se simbioses e misturas culturais em todas as áreas, as diversidades resistem apesar dos processos de homogeneização que tendem a destruí-las”. Ameaças mortais e problemas fundamentais terminam, assim, por criar uma “comunidade de destino para toda a humanidade”. Em suma, a globalização produziu a “infra-textura de uma sociedade-mundo”, a partir da qual podemos “ver a Terra como pátria sem que isso negue as pátrias existentes, mas, pelo contrário, englobando-as e protegendo-as”. (Morin, 2011).

É evidente que a consciência dos perigos ainda é fraca e dispersa, a consciência de uma comunidade de destino permanece deficiente, a própria globalização, com suas ambivalências, impede a formação da sociedade mundial cujas bases ela cria sem cessar. Há contradições de todo tipo, que opõem, por exemplo, as soberanias nacionais e a necessidade de autoridades supranacionais que consigam lidar com os problemas vitais do planeta. Mas a sorte de algum modo está lançada, os espaços estão se abrindo. Do que se necessita é de uma mudança de via, uma metamorfose.

Quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, observa Morin, ou ele se degrada e se desintegra, ou “revela-se capaz de criar um metassistema que o capacite para lidar com os problemas: ele se metamorfoseia”. Regeneram-se assim suas capacidades criadoras. “A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução. Preserva sua radicalidade inovadora, mas a vincula à conservação (da vida, das culturas, dos legados do pensamento e da sabedoria da humanidade). Não há como prever suas modalidades e suas formas: toda mudança de escala leva a um surgimento criativo”. O que sabemos é que, para avançar em direção à metamorfose, é necessário mudar de via. “Mas se parece possível inverter certos caminhos, corrigir certos males, ainda assim não é possível frear a invasão técnico-científico-econômico-civilizacional que leva o planeta ao desastre”.

Nada está dado de antemão. Não é simples. É preciso ir além da denúncia e das declarações de intenção. Começar a construir alternativas e formar novas consciências. Reproblematizar, repensar, recomeçar. Conectar o que está disperso e separado. Explorar o que há de “efervescência criativa” pelo mundo. Completar uma metamorfose que já está em curso.

A situação atual está assentada sobre problemas de difícil solução, que são ampliados pela disrupção tecnológica e se projetam no tempo e causam aquela “sensação de desorientação e catástrofe iminente” registrada por Harari (2018). Mas há ferramentas disponíveis, a ciência mostra sua pujança e não é de se descartar que os povos do mundo consigam conter a onda de xenofobia, isolacionismo e desconfiança que hoje varre o sistema internacional. Pelos riscos gravíssimos que produz, a desunião global é uma ameaça que tem como ser compreendida e neutralizada.

Pandemia

É evidente que esse quadro não favorece o reconhecimento do futuro como promessa e possibilidade, nem sequer como desafio ou esperança: ele simplesmente cancela o futuro, apaga-o das conjecturas. O “projeto” passa a ser administrar o presente, torná-lo maleável a ponto de permitir que todos possam continuar a se mover com celeridade para tentar alcançar alguma estabilidade pessoal ou grupal ilusória.

O ano de 2020 acrescentou nova camada à já espessa neblina que distorce a visão do presente e encobre o futuro. Em poucos meses, foi como se os povos do mundo se deparassem com a fragilidade do humano e a insuficiência dos sistemas de proteção social e de cuidados com a saúde.

Parte expressiva disso deveu-se à irrupção catastrófica do coronavírus, que estava nos cálculos mas não era esperada. A humanidade se deparou com um processo de adoecimento e de mortes sequenciais que dramatizou os meandros de seus piores pesadelos, embora estivesse delineado por pesquisadores e estudiosos há tempo. A banalização dos efeitos perversos da vida atual, a dificuldade de aceitar e compreender as transformações estruturais em curso -- o modo do capitalismo se reproduzir na era digital --, ao lado da emergência de “narrativas” anticientíficas impulsionadas por lideranças políticas e intelectuais da nova extrema-direita, fizeram com que uma onda de brutalidade e ignorância se instalasse entre os humanos, comprometendo as respostas coletivas ao Covid-19.

Não foi a primeira pandemia da história recente, como sabemos bem. A gripe espanhola (1920) dizimou em larga escala. Deu-se o mesmo com a AIDS, síndrome que se espalhou a partir de 1985 ativada pelos fluídos do amor e do sangue. Houve as epidemias de Sars (2003) e de Mers (2012), igualmente provocadas por tipos de coronavírus. O surto de ebola foi grave na África.

Em 2020, todos os filmes de horror foram reprisados, as distopias ganharam destaque na imaginação popular, combinadas com doses-extra de incerteza e insegurança, derivadas das circunstâncias em que se passou a viver: o capitalismo digital, a invasão tecnológica, a reestruturação produtiva, a desorganização das classes e grupos sociais, a individualização crescente, as novas formas de emprego, a crise do trabalho, da política, da democracia. Tudo, no fundo, foi sendo articulado de modo a formar um único pacote, que, nos primeiros momentos, não tinha como ser decodificado e traduzido em termos de vida prática. O ano transcorreu na escuridão reflexiva.

As ameaças não se restringem ao vírus, por mais que sua disseminação tenha agravado a situação e exposto as fragilidades globais. A onda autoritária-populista, de base nacionalista, manteve-se em ação, desafiando as democracias instituídas e roubando dos cidadãos parte de um imaginário composto de tolerância, respeito e defesa dos direitos humanos, confiança na ciência, solidariedade e proteção.

A brutalidade gestual, verbal, procedimental, a falta de serenidade e compostura, a grosseria e a arrogância, invadiram os ambientes em geral, indiferentes a classes, grupos, gêneros, religiões e etnias. Os esforços de cooperação internacional e de articulação entre países – como a União Europeia, o Mercosul ou o BRICS – não avançaram, com o Brexit pondo em xeque a principal delas, na Europa. Os partidos democráticos perderam propulsão e muitos cidadãos viraram as costas para a política, numa inflexão “antipolítica” que terminou por convergir com o populismo em expansão. As políticas econômicas (as políticas públicas em geral) entregaram-se a uma ideia de austeridade indiferente à necessidade de reduzir as desigualdades e de prover os serviços de que necessitam as populações. A crise climática completou um quadro de gravidade extraordinária. Incêndios florestais, aquecimento global, águas marítimas em elevação, pessoas desalojadas por enchentes e desastres ecológicos, compõem um cenário de desolação e temor.

A pandemia trouxe mais problemas consigo. Agudizou a crise econômica e, com ela, agravou o desemprego e fez com que mais 130 milhões passassem a viver em extrema pobreza. Se em 2018 a proporção da população mundial vivendo em situação de extrema pobreza (menos de US$ 1,90 por dia) era de 8,6% (cerca de 650 milhões de pessoas), entre 2020 e 2021essa proporção chegará a 8,8%. A projeção foi feita em novembro de 2020 pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujo secretário- geral, Mukhisa Kituyi, observou: “O vírus se beneficiou das interconexões e fragilidades derivadas da globalização, transformando uma crise sanitária em um choque econômico global que atingiu principalmente os mais vulneráveis”. Ele também destacou: “A covid-19 causou dor e alterou o curso da história, mas pode ser um catalisador para uma mudança necessária”, contribuindo para que se reformem as redes globais de produção e se reinicie a cooperação multilateral.

O fato é que a pandemia produziu impactos generalizados na vida prática, na política e no pensamento. O léxico se modificou, passou a dar destaque a termos que antes frequentavam os ambientes especializados: risco, incerteza, insegurança, instabilidade, turbulência, imprevisibilidade. Evidenciou-se que não há como traduzir o mundo real com abordagens fracionadas e hiperespecializadas, que brotam automaticamente das apostas cegas que a hipermodernidade faz no “prometeísmo da ciência, da razão, do racionalismo, da racionalidade, da racionalização”, fazendo com que a inteligência se afaste das determinações fundamentais e dos esforços de totalização complexa. (Carvalho, 2017: 76-77).

Particularmente nas ciências da sociedade, ganhou impulso a teoria da complexidade, seja na versão mais tradicional (a dialética da totalização), seja na versão de Edgar Morin, que trabalha com novos entendimentos da relação tempo/espaço, refuta a linearidade e valoriza a ambiguidade e a ambivalência, abrindo-se para uma compreensão mais abrangente das tensões entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, separação e reunião. Morin também insiste no valor da ciência e na necessidade de que ela se ligue aos saberes vários (mítico-imaginários) fornecidos pelas artes e ao trabalho de cooperação e solidariedade entre os próprios cientistas.

A pandemia não explica tudo, por certo. Mas fornece um excepcional posto de observação para que se compreenda melhor que as dores atuais são múltiplas e estão enraizadas nas estruturas da modernidade, hoje abaladas pela disruptiva revolução tecnológica que impõe uma nova formação social (a sociedade do conhecimento) e implode as diferentes práticas, as ideias, os modelos de organização, o Estado, as empresas, o trabalho, o ensino, a produção de conhecimentos.

A política recebe o impacto de todo esse processo. Mergulha numa crise que afeta os institutos de representação, os partidos e o próprio funcionamento da democracia. Os governos passam a governar menos e com mais dificuldades. A insatisfação social cresce e impulsiona reações variadas, que ajudam a alimentar a contestação e os movimentos de extrema-direita.

Os sinais de alerta têm sido constantes. Eles indicam com clareza que há de se retomar o empenho pela democratização, seja no plano da conduta governamental, seja em termos institucionais mais amplos, seja no plano dos relacionamentos sociais. Mais que isso: será preciso encontrar outro caminho, que consubstancie uma alternativa real ao modo como a humanidade tem vivido a vida. Não há como seguir em frente mediante a clonagem de modelos pré-existentes, o prolongamento de um padrão de desenvolvimento que produz sempre mais subdesenvolvimento, a reverberação de nacionalismos mais patrióticos ou menos, o desprezo pela ciência e pela natureza, a desconsideração de que a experiência humana é una e está radicalmente mundializada. Ou nos projetamos como integrantes de uma comunidade global de destino, ou ficaremos travados, às voltas com problemas que não conseguimos resolver.

Como acentuou Harari, “hoje, a humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas por causa do coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos”. Nos últimos anos, acrescenta, “políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. Como resultado, enfrentamos a crise atual sem líderes que possam inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada”. (Harari, 2020).

A saída não está em “desglobalizar” o mundo ou em fechar fronteiras: em vez de segregação, isolacionismo e medo dos “outros”, a solução passa por mais cooperação.

Vida que flui

Isolamento, distanciamento, quarentena. As palavras flutuam, como pluma ao vento, ao gosto. Briga-se por elas. Distanciar? Como assim, num país como o Brasil, em que a distância social já é em si mesmo obscena? Há muros que isolam brasileiros uns dos outros, os pobres e miseráveis separados dos demais.

A diretriz é evitar contatos dispensáveis e aglomerações. Ficar em casa, circular o menos possível. Confinamento, mais que isolamento: hibernação. O vírus proliferou, mesmo assim. Faltaram políticas claras, os sistemas de saúde mostraram deficiências, a população não aceitou as recomendações com facilidade. A surpresa com a agressividade da doença somou-se à surpresa com o aparecimento insidioso de um patógeno invisível que colocou a humanidade de joelhos. A perplexidade foi inevitável: numa era de revolução tecnológica intensiva, de transformações biotecnológicas profundas, como foi possível que os humanos tenham deixado que uma crise em seus ecossistemas se instalasse e ajudasse sobremaneira a facilitar a disseminação de vírus e bactérias que simplesmente não conseguem ser controlados? Como aceitar que o coronavírus avance e mate numa época em que a ciência é fulgurante e os conhecimentos estão disseminados, de braços dados com a “inteligência artificial” e a engenharia genética?

É importante lembrar que houve respostas imediatas. Em pouco tempo, os pesquisadores conseguiram sequenciar o genoma do vírus, criaram testes confiáveis para detectar pessoas infectadas e avançaram na elaboração de vacinas. Os profissionais da saúde se desdobraram para manter ativos os sistemas sanitários. Medicamentos foram testados e aperfeiçoados. Mas o número de mortes e doentes continuou a crescer.

O mundo teve então de se fechar sobre si mesmo: tornar-se menos disponível, ser menos consumido e explorado. A vida digital se sobrepôs à vida presencial e em poucos meses a humanidade ingressou em outra etapa.

Nela, foi preciso descobrir prazeres que estavam diluídos, recuperar filmes antigos, ouvir velhas e novas canções, chorar diante de fotos esmaecidas, tropeçar naqueles livros de que se esquecera, limpar gavetas e estantes. Descartar. Reorganizar. Reviver. Dar-se conta da inutilidade de certas coisas. O uso de notas e moedas. As idas diárias ao mercado, às caixas bancárias eletrônicas ou à farmácia.

Valorizar-se outras tantas. Pensar nas amizades, saber dos amigos. Saudades das praças e ruas, das visitas, dos cafés no bar da esquina, dos almoços em família, das salas de cinema. Curtir filhos e netos de modo não presencial. Amar de longe. Respeitar a ciência e seus pesquisadores. Confiar.

O confinamento acelerou processos que estavam em curso. O mergulho no mundo digital, os encontros virtuais, as calls conference, as aulas a distância, os memes, as conversas telegráficas, o teletrabalho, a velocidade, a profusão de imagens e informações. Tudo isso entrou de vez na corrente sanguínea, passou a plasmar o DNA humano. Será difícil que se volte a viver presencialmente com a mesma intensidade de antes.

A situação levou a uma espécie de introspecção coletiva, na qual se alojaram os “demônios internos” de cada um, os medos e a preocupação existencial. A perplexidade se instalou de forma plena, arrastando consigo paradigmas explicativos, convicções e certezas. A pandemia exacerbou a desconexão existente entre o pensamento crítico e a realidade fática, entre o pessoal e o global.

Por mais que os teóricos da conspiração digam, não há responsáveis pela disseminação do vírus. Não foram os chineses, nem o “globalismo”. Não se trata de “culpa”, mas do efeito colateral do tráfego humano pelo planeta, incessante e crescente desde a saída das cavernas. Decorrência, também, da incúria onipotente, da falta de higiene, da miséria produzida, da exploração desenfreada, da irresponsabilidade, dos deslocamentos desnecessários, da movimentação frenética. Da falta de solidariedade e fraternidade entre povos e pessoas.

Divergências, antagonismos, conflitos e contradições são parte da vida, e são também complementares às tendências de união e associação. Na rota de valorização de ambiguidades e ambivalência, sempre explorada por Morin, há que se “resistir à crueldade de tudo aquilo que é predador”, para com isso defender as “múltiplas solidariedades que são uma característica essencial da vida”. Ganhos consistentes de consciência planetária passam pelo reconhecimento dos paradoxos da mundialização, assim como requerem “o reconhecimento de nossa humanidade comum e o respeito das diferenças”. (Morin, 2019: 21, 40).

Boas doses de idealismo e de altruísmo nos farão bem. Podemos sair da crise em melhores condições. O importante é sobreviver, preservar o sistema de saúde e a capacidade dos hospitais, driblar o fluxo contínuo de informações contraditórias, com seus ecos paranoicos. Manter ativa a perspectiva de que lá fora, no exterior de nossos casulos, pulsa uma vida que ainda não perdemos.

O confinamento está a mostrar a cara feia do mundo, as iniquidades sociais, a ruindade dos governantes, a ausência de bússolas. O egoísmo e a generosidade. Está também a evidenciar que viver é mesmo perigoso e que precisamos nos dedicar a aprender sempre mais, a adquirir sensibilidade e empatia, a pensar no coletivo. Reaprender, quem sabe até mesmo começar de novo.

Há impactos evidentes: questionar tudo, mudar a rota, repensar o desenvolvimento, melhorar a formulação de políticas públicas, produzir consensos. Em particular no mundo da ciência, cresce a percepção de que o avanço depende do trabalho múltiplo e articulado de vários setores da sociedade e do Estado. Cooperação, articulação, coordenação. Entre gestores, pesquisadores, formadores de opinião, jornalistas, cidadãos. A comunicação pública torna-se vital. Dentro e fora de cada sociedade nacional: fortalecer as agências multilaterais, em especial as de perfil técnico, como a OMS, que se tornam estratégicas.

Será preciso pensar, também, no processamento das informações e no debate público. Os temas que estão na agenda são controversos, causam medo, desconfiança e reações irracionais. A desinformação agrava a polarização das opiniões, até porque dificulta a compreensão do que é verdade e do que é mentira. Nesse quadro, somente o diálogo permanente entre os agentes da sociedade pode produzir algum resultado. Toda opinião conta, mas será preciso levar na devida conta as evidências científicas.

O mundo impactado pela epidemia reverbera no movimento democrático. Impõe a ele a revisão de convicções e modos de atuação, a redução da ênfase nas identidades singulares e a valorização do que aproxima. Mais unidade na diversidade, mais diálogo e respeito pelas diferenças. Mais substância, menos adjetivações. Digerir derrotas e ressentimentos políticos, partir para a construção de novos patamares de atuação, fazendo o que não foi feito quando a situação era mais favorável. Em uma palavra: buscar a união e a articulação dos democratas, recurso básico para que se possa administrar a situação corrente e planejar minimamente o futuro. O diálogo e a cooperação serão os principais antídotos contra o acirramento das polarizações e da política do pior.

No horizonte descortina-se uma nova exigência de Estado ativo. O neoliberalismo, que já não vinha muito bem, tenderá a ser alijado do centro do palco. Mais gastos públicos, mais planejamento central, mais coordenação serão inevitáveis, e terão de ser equilibrados com uma economia de mercado que não tem como ser desativada e com uma sociedade que se mostra sempre mais desejosa de liberdade de iniciativa, inclusive no plano do empreendimento econômico. Continuará não havendo empregos para todos, o que exigirá grande flexibilidade em termos de política econômica, de equilíbrio fiscal e de investimentos públicos. Será um ciclo complexo e desafiador.

O núcleo desse ciclo estará preenchido por valores e critérios que devem ser considerados com atenção por ativistas, intelectuais, políticos e governantes. Generosidade, investimentos maciços em políticas públicas de inclusão e proteção social, distribuição de renda, combate firme à desigualdade, defesa dos direitos sociais, valorização da ciência, respeito ao meio ambiente e às mudanças climáticas, crescimento econômico sustentável: tudo isso precisará prevalecer como diretrizes a serem seguidas. A coesão e a pressão dos democratas serão fundamentais para que as coisas caminhem nessa direção.

*Marco Aurélio Nogueira é cientista politico, professor titular da UNESP, tradutor e colaborador do jornal O Estado de São Paulo.

Referências

BAUMAN, Zigmunt. Retrotopia. Tradução de Marco Cupellaro. Bari-Roma: Laterza, 2017.

BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo. Novos conceitos para uma nova realidade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

CARVALHO, Edgard de Assis. Espiral de ideias. Textos de Antropologia fundamental. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2017.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HARARI, Yuval Noah. Na batalha contra o coronavírus, faltam  líderes  à  humanidade. Tradução de Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MORIN, Edgar. La Voie: Pour l'avenir de l'humanité. Paris: Fayard, 2011. [Ed. Bras. A Via: para o futuro da humanidade. 2a ed. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013].

MORIN, Edgar. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Palas Athena, 2019.

ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Tradução Rafael H. Silveira. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

ROSA, Hartmut. Rendre le monde indisponible. Paris: La Découverte, 2020.


Alon Feuerwerker: O ano dos balões de ensaio

A situação do governo Jair Bolsonaro, especialmente dele próprio, é contraditória. De um lado, o governismo venceu as eleições para a presidência da Câmara dos Deputados e ergueu um muro contra tentativas de impeachment. Também ganhou no Senado, o que completa o desenho favorável à aprovação das propostas centrais da equipe econômica. Desde que negociadas, claro, no Congresso Nacional. Mas isso é do jogo.

Ainda pelo lado favorável a Bolsonaro, todas as pesquisas apontam sua liderança na corrida presidencial para 2022, posição sustentada no cerca de um terço do eleitorado que, por enquanto, segue firme com ele. Isso o coloca facilmente no segundo turno. Para completar, o presidente parece ter sobre os mecanismos de Estado capazes de desestabilizá-lo uma ascendência bem maior que os dois antecessores imediatos.

Na outra face da moeda, Bolsonaro enfrenta problemas. O grau de liberdade para o presidente ser ele mesmo diminuiu. Diz a sabedoria filosófica que quando alguém transforma a realidade ela também modifica quem a transformou. Os partidos do dito centrão hoje são de fato governo e protegem o presidente. Porém este também passa a depender mais deles. Até aí, nada de muito novo no Brasil. Mas talvez para Bolsonaro seja novidade.

Outro complicador é o contra-ataque do Supremo Tribunal Federal, facilitado pelo passo em falso do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). O potencial campo político antibolsonarista pode estar dividido nas ambições para 2022, mas anda coeso no apoio a iniciativas do STF que criem constrangimentos ao comandante do Planalto. Igualmente a esmagadora maioria da imprensa. É uma verdadeira frente ampla.

A resultante das forças no momento indica que nem a oposição tem músculos para retirar Bolsonaro da cadeira, nem este terá espaço e terreno livre para ganhar muita tração neste resto de primeiro mandato. Daí a tendência a se manter uma guerra de posição relativamente prolongada. A não ser, naturalmente, que sobrevenha o fato novo. Mas sempre repito por aqui que o imprevisível é muito difícil de prever.

E tem a pandemia. Até o momento, ela talvez tenha contido a capacidade de o presidente ampliar o mercado eleitoral dele, mas não corroeu significativamente sua fatia. E o que ele possa ter perdido com o divórcio da Lava-Jato ganhou a partir da operação do orçamento federal. Vamos ver como evolui. Se a vacinação contra a Covid-19 andar, é provável o cenário continuar meio congelado. Se der chabu, aí o voo de Bolsonaro enfrentará fortes turbulências.

A vacinação vai no Brasil mais ou menos em linha com a maior parte do mundo. Tudo meio devagar, desde que algumas potências reservaram para elas o grosso dos imunizantes nesta primeira etapa. Mas por aqui somou-se a isso a subestimação presidencial da necessidade de vacinar. Se o cronograma não andar conforme o projetado vai introduzir um forte elemento de instabilidade.

E o termômetro para medir a coisa será sempre a popularidade presidencial. Se baixar muito, os políticos ficarão tentados a pensar em alternativas imediatas. 

Se a eleição de 2022 fosse hoje o presidente provavelmente iria ao segundo turno e teria grande dificuldade para fechar a fatura. Pelas pressões em favor de uma frente ampla na reta final, dada a progressiva convergência dos opositores em torno da vontade de impedir a continuidade do capitão. Decorre também daí a briga de foice do outro lado. Pois o cenário atual faz do potencial adversário de Bolsonaro na reta final um nome bem forte, qualquer que seja ele. É um bolo apetitoso demais.

Por isso, é ilusão imaginar a sedimentação rápida do cenário para 2022. A hora é de testar as águas. E o que não falta são balões de ensaio. 2021 será o ano deles.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Cristovam Buarque: Insanidade e falta de lucidez

Esta semana comprovou que o presidente não é sano e que a oposição não é lúcida.

Em um gesto irresponsável, de voluntarismo e capricho infantil, o Presidente da República demitiu o presidente da Petrobrás, com a clara intenção de interferir nos preços dos combustíveis. Demonstrou o despreparo de quem não tem ideia das consequências de seu ato em uma economia já sofrendo forte escassez do fator Confiança e em uma empresa com capital no mercado aberto. Na mesma semana, no momento mais dramático da epidemia, repete apologia de desprezo às medidas protetoras e assusta os pais dizendo que a máscara prejudica às crianças.

Na mesma semana em que o presidente e seu governo demonstram insanidade, dois de seus principais opositores para 2022 demonstram falta de lucidez ao trombarem entre si. Ciro dizendo que seu papel é derrotar Lula, o que passa a ideia de que derrotar Bolsonaro é secundário, e como se ele fosse capaz de vencer a eleição sem o apoio de Lula e do PT. Haddad, por sua vez, responde dizendo que Ciro é de direita, como um adjetivo de desqualificação para enfrentar Bolsonaro, como se os dois fossem a mesma coisa.

Triste momento em que o presidente é insano e a oposição não é lúcida. De um lado o presidente brinca de governar irresponsavelmente, de outro os líderes da oposição brincam de disputar eleição. Quando esta seria a hora de perceberem a gravidade de uma reeleição do Bolsonaro. Declararem-se aliados, lançarem um manifesto ao país dizendo que estão juntos contra a tragédia, chamarem os outros candidatos que se opõem a Bolsonaro e proporem a escolha de um nome, entre todos, que passe credibilidade e apresente a menor rejeição entre os eleitores. Ciro e Haddad têm capacidade de reorientar suas posições para enfrentar Bolsonaro, unirem-se entre eles e com os demais candidatos democráticos. Mas cada dia isto fica mais difícil: cada um se consolida para realizar seu projeto pessoal e atender as estratégias de seus partidos. Como se o destino do Brasil não estivesse em jogo.

Pobre Brasil com um presidente insano a uma oposição sem lucidez, ou sem compromisso com o país. Felizmente ainda é tempo para a oposição mudar.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


George Gurgel de Oliveira: Brasil Insustentável - Um ano de pandemia

O Brasil, após um ano de pandemia, vive um momento trágico da sua realidade política, econômica e social.

Porque chegamos a esta situação?

Qual a responsabilidade de cada um de nós frente a esta tragédia que estamos vivendo?

Qual a responsabilidade dos que governam, da cidadania e da sociedade em geral?

A maneira como o Brasil enfrentou e está enfrentando a pandemia é causa e/ou consequência da sociedade brasileira historicamente construída ou é responsabilidade dos atuais governantes da Federação?

São estas as questões a ser enfrentadas por cada um e por todos nós se quisermos efetivamente superar a trágica realidade vivida atualmente, em plena pandemia, por toda a sociedade brasileira.

Desde o início da pandemia, a sociedade brasileira foi desafiada a mudar a sua maneira de viver, de se comportar nas suas relações políticas, econômicas e sociais frente aos desafios colocados para o enfrentamento da pandemia, causada pelo Covid 19.

Então, a atuação governamental e os resultados obtidos até agora no combate à pandemia no Brasil ficaram muito a desejar: não estão comprometidos com as agendas sociais, econômicas e ambientais necessárias para o enfrentamento dos desafios trazidos pela pandemia à sociedade brasileira, particularmente na área da saúde.

Ainda não temos um Programa Nacional de Vacinação confiável, com metas e cronogramas estabelecidos que tranquilize e passe confiança à sociedade brasileira, demonstrando a incapacidade governamental de planejar ações básicas de combate à pandemia – caso explícito da compra de vacinas: as evidências demonstram que o Governo Federal foi e está sendo negligente – não planejou a compra, e o processo de vacinação em curso é a mais completa tradução da tragédia.  O ritmo de vacinação continua lento por falta de vacinas, diferente da situação de muitos países da América Latina, cuja população já tem disponibilidade de vacinas de diferentes países, inclusive da China e da Rússia.

Assim, a ideologização da questão e a falta de planejamento caminharam juntos, com consequências graves para a sociedade brasileira.  Aqui a maior responsabilidade é do Governo Federal, que minimizou e minimiza a gravidade da situação vivida pela população, desde o início da pandemia. Some-se a isto a desconstrução e as inúmeras mudanças acontecidas nesse período na área de saúde, inclusive com a nomeação de três Ministros no período, o que retrata a maneira como o Governo Federal enfrentou e está enfrentando a situação. O comportamento bipolar de Bolsonaro, no dia-a-dia no exercício da Presidência, vem agravando a situação.

O cenário político atual é de judicialização da Saúde entre os entes federativos: os governadores foram ao Supremo Tribunal Federal para terem o direito de comprar as vacinas. Ao mesmo tempo foi deflagrado um movimento de governadores e prefeitos para a compra direta de vacinas – aumentando a pressão de toda a sociedade que quer ter a vacina como o único instrumento efetivo de combate à Covid 19.

A situação atual é caótica e preocupante frente à crise econômica e de saúde pública que vive o Brasil. Cenas de horror, de mortes por falta de leitos hospitalares e de oxigênio, da falta de assistência médica em geral, inclusive na área privada, coloca, após um ano de pandemia, a dimensão real da tragédia brasileira – a incapacidade do Governo Federal, dos Estados e dos Municípios de construir um programa mínimo, em diálogo com a sociedade, para o enfrentamento dos problemas urgentes provocados pela pandemia no Brasil.

Os brasileiros estão aterrorizados. A insegurança é total. Os dados em relação à contaminação e às mortes são assustadores. São milhões de contaminados e milhares de mortos – colocando o Brasil no segundo lugar em relação a contaminados e mortos pela Covid 19 no cenário internacional. 

Qual o limite da tragédia?

Banalizou-se a morte pela Covid-19 como um fenômeno natural: “todo mundo morre”, segundo o presidente Bolsonaro. A pandemia já faz parte do cotidiano da sociedade. As estatísticas negadas pela área federal estão sendo sistematizadas e espetacularizadas por um conglomerado da área de comunicação, chegando diariamente às nossas casas. Hoje, já não existem leitos disponíveis na área pública, nem privada, na maioria das capitais brasileiras.

Vivemos o pior momento da pandemia no Brasil. A população continua desnorteada. O Governo Federal, como principal responsável pela Política Nacional de Combate à Pandemia, com sua política negacionista, só faz agravar a situação com falas que agridem ao bom senso e à sociedade brasileira, e até a mundial. 

Portanto, os comportamentos políticos e sociais em questão refletem as disputas políticas e as narrativas extremas que pouco ajudam a resolver a crise, manifestando-se, por exemplo, no comportamento de uma parte considerável da população, particularmente da juventude: no auge da pandemia, continua afrontando o uso de máscaras e o isolamento social. Uma rebeldia inconsequente que está levando à morte de jovens e, muitas vezes, dos entes mais velhos da própria família, que mesmo isolados recebem a contaminação trazida das ruas pelos filhos e netos.

Como racionalizar tais comportamentos?

O que ainda pode acontecer?

As narrativas construídas na conveniência de cada discurso político trazem embates cotidianos sem nenhum foco na questão principal: o combate efetivo à pandemia que deveria unir toda a sociedade brasileira. Os interesses são outros: vislumbram a próxima disputa político-eleitoral de 2022 – em uma democracia avançada, essa gente estaria respondendo na sua maioria a processos em tribunais (alguns, a bem da verdade, já estão respondendo, principalmente por corrupção, antes e durante a pandemia – inclusive governadores, senadores, deputados e prefeitos).

Urge a Federação funcionar como Federação e a Cidadania como Cidadania. As narrativas hegemônicas no atual cenário político brasileiro e os embates entre os entes federativos não resolveram e nem vão resolver a difícil realidade em que estamos vivendo.

No Brasil, como sempre, os que mais precisam do Estado, milhões de brasileiros, estão abandonados à própria sorte - frente ao desemprego, à falta de uma renda emergencial que lhes assegurem o mínimo de dignidade para atravessar a crise social, agravada com as doenças trazidas pela  pandemia: já são milhões de contaminados e milhares de mortes durante o ano e o pior: a falta de medidas governamentais para o enfrentamento real dos problemas do cotidiano já existentes e os ampliados com a pandemia.

A sociedade está desafiada a se unir a favor de um Programa Nacional de Vacinação:   vacinar com a urgência devida toda a população é a única maneira de retornar à vida social com segurança. São estas as questões imediatas a serem enfrentadas pelos que detêm mandatos e toda a cidadania brasileira.

Nesta perspectiva é possível enfrentar a pandemia, abrindo o diálogo necessário entre as forças democráticas no caminho de uma pauta que leve a um efetivo enfrentamento dos reais problemas econômicos, sociais e ambientais vividos hoje pela sociedade brasileira. 

O protagonismo dos movimentos sociais em defesa de uma maior participação política das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos LGBT+, nas questões sociais e ambientais em geral e no enfrentamento da pandemia em particular, são aliados fundamentais nessa construção. Pode-se e deve-se trazer a voz rouca dos excluídos da sociedade para o exercício da política, pressionando os que governam a República para pautar os problemas urgentes da população, buscando a melhoria da qualidade de vida dos milhões de excluídos, que vivem em condições precárias de moradia, segurança, educação, saúde, saneamento e mobilidade urbana no Brasil.

Assim a Federação, a Sociedade e a Cidadania estão desafiados ao enfrentamento sistemático destes graves problemas sociais, econômicos e ambientais, agravados com a pandemia que deverá se estender por todo o ano de 2021. As polarizações das narrativas hoje existentes na sociedade não resolveram e não resolvem, neste ano de pandemia, as dificuldades cotidianas da população, muitas vezes, agravam, dificultando a enfrentar os reais problemas sociais. O Brasil bipolar, dos extremos, não conseguiu e nem consegue construir soluções para os complexos desafios da realidade brasileira, nem a nível municipal, estadual, muito menos, em escala nacional.

Finalmente, há que se considerar a necessidade de uma visão sistêmica e de escolha de prioridades para o combate à pandemia, através do diálogo permanente entre governantes e governados, que garantam a implementação de políticas públicas voltadas para a sustentabilidade, articuladas às políticas regionais, sob responsabilidade municipal, estadual e federal, construindo uma efetiva cooperação entre o Estado, o Mercado e a Sociedade Civil, através de redes regionais e nacionais, com foco na melhoria do bem-estar da população, ampliando a capacidade de diálogo e de construção  de pactos políticos e sociais que façam avançar e ampliar a democracia, no caminho da transformação da realidade brasileira.

São os desafios atuais dos brasileiros, durante e pós-pandemia.

*George Gurgel de Oliveira, Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia.


Fernando Henrique Cardoso: A epidemia e a política

Como disse o senador Jereissati, é preciso gritar alto um ‘basta’ e dar nome aos bois

Primeiro é bom ressaltar que a “crise” (usa-se tão amiúde o vocábulo que ele acaba por perder o significado) começou a se manifestar antes do maldito vírus ter sido percebido entre nós. Nisso me refiro à “crise econômica”, não à política, que parece ser permanente em nosso caso. Mas o certo é que o mar tranquilo em que navegaram os governos de Lula e, parcialmente, de Dilma perdeu-se no passado, antes da pandemia, apesar dos esforços corretos do governo Temer.

Com isso não quero dizer que o governo Bolsonaro seja “o” responsável pelos descaminhos por que passa a economia brasileira. A questão é mais complicada, depende de vários fatores, alguns internacionais. Tampouco seria correto imaginar que a pandemia seja “a causa” do fraco desempenho da economia. Este a antecedeu.

Mas, convenhamos, é muita má sorte do País ter de enfrentar, além da epidemia, uma economia trôpega, com exceção apenas do setor agrícola. Este já ia bem e assim continua, ao menos quanto às exportações. Pior, aos maus ventos anteriores somou-se o apego popular a um líder que não chega a ser populista, mas parece haver-se sentado numa cadeira na qual não se sente bem, ou não foi preparado para ela, apesar dos anos de Câmara. Os tempos de “baixo clero” fazem custar-lhe a se adaptar a situações novas. Coisas da democracia.

Os mais inquietos só veem uma saída, o impeachment. Eu, que já vi de perto dois, sou cauteloso: é alto o custo político de uma intervenção congressual no que foi popularmente decidido. Às vezes não há outro jeito. Mas tal desiderato depende mais das ações (ou inações) de quem foi eleito do que, como comumente se diz, da “vontade política”. É melhor ir devagar com o andor.

Melhor aguentar quem hoje manda – o quanto seja possível – e preparar candidatos para as próximas eleições que possam bem desempenhar a função presidencial. Enquanto isso não ocorre, aproveitemos o tempo para treinar civicamente o eleitorado. Ingenuidade? Talvez. Mas sem certa dose de otimismo corre-se o risco de jogar fora não só a água do banho, mas a criança, a democracia.

Quousque tandem?, perguntava Cícero na antiga Roma. Vale repetir a pergunta: até que ponto os “minimis” de Bolsonaro serão suportáveis? Ninguém sabe ao certo, e ele pode dar a volta por cima. Em larga medida depende não só da paciência do povo, mas dele próprio, Bolsonaro, manter seus “fiéis” e também conter seus impulsos de franqueza autoritária. Do ponto de vista político, mais que tudo depende de quem vocalize o “outro lado”. Por enquanto o que se vê é uma mídia quase unânime na crítica à falta de condições de quem nos governa para manter um mínimo de coerência na ação. É muito, mas é pouco. Enquanto não aparecer alguém com força para expressar outro caminho viável, o presidente leva vantagem.

A verdade é que os partidos ou não são capazes de se opor, ou quando o fazem não convencem os seguidores de forma a abalar quem está no poder. Será sempre assim? Depende, por exemplo, dos trejeitos do presidente, que costuma jogar a culpa nos outros, ou, em outro exemplo, menosprezar o sofrimento das vítimas da pandemia. Mas depende, sobretudo, do surgimento de quem encarne “o novo”. Como disse o senador Jereissati, é preciso gritar bem alto um “basta” e dar nome aos bois.

Não é novidade que o sistema de partidos, por si, perdeu a capacidade de guiar as escolhas populares. Daí que o que aparece como “personalismo” acaba por ser condição necessária para sair da paralisia em que nos encontramos. E enquanto houver democracia e liberdade de opinião, o verbo conta. As falas, por enquanto não chegam a ser ouvidas pelos eleitores. Há, sim, murmúrios no povo, mas não ainda contra quem governa, e sim contra a difícil situação de vida.

De imediato, o que interessa é a saúde. Logo depois será o emprego. Os dados recentes mostrando um encolhimento de 4,1% do PIB somam-se ao aumento consequente do desemprego, que vinha de antes. Se já havia 12% de desempregados, agora não se trata apenas de serem 13% ou 14%, mas de a economia não dar sinais de vida para absorver cerca de 25 milhões de pessoas, somando-se aos que procuram trabalho, os “inimpregáveis”. É muita gente. Terminada a pandemia (oxalá!), daremos com a insuficiência da economia para abrigar tantos, principalmente os de menor qualificação.

O panorama é desanimador. Para quem governa e para quem está contra os governantes. Só há um jeito: buscar uma trilha de maior prosperidade e alento. Recordo-me dos tempos de JK: ele “inventou” um país. Abriu a economia a capitais de fora, ampliou a produção de automóveis, expandiu a indústria naval, etc. E ainda por cima “inventou” Brasília. Reatou um sonho antigo num horizonte de esperanças. Não me esquecerei jamais da conferência que André Malraux fez na FFCL da USP, na qual mostrava a nós, críticos de tudo, o significado simbólico de transcendência da capital imaginada por Niemeyer e Lúcio Costa.

É disso que precisamos: de alguém que indique um caminho de superação e permita voltarmos a acreditar em nós próprios. E cujas palavras e ação não se percam na retórica chinfrim, mas animem muitos outros mais a dar vida ao que se propõe. Que se reinvente nosso futuro.

*Sociólogo, foi presidente da República


Evandro Milet: Transformar para não quebrar

Transformação digital(TD) está na moda. E como toda moda na gestão de empresas parte de uma visão nova que faz todo sentido, mas é entendida por muitos, e aplicada, de forma superficial e equivocada, se tornando em muitos casos apenas um irrelevante modismo. O livro “Transformação Digital” de Antônio Salvador e Daniel Castello dá boas dicas para um entendimento correto do tema.

Um primeiro equívoco é achar que TD é tecnologia. TD é muito mais que tecnologia. É o redesenho da operação, da forma de gerar valor ao consumidor, do modo de pensar e da maneira de competir, bem como a capacidade de entrar em novos mercados.

A jornada da TD passa por três estágios. O primeiro é embarcar na empresa novas ferramentas, trocar processos físicos por digitais e automatizar tarefas. Por exemplo, colocar um chatbot(robô de software) para conversar com clientes no telefone, como já fazem bancos e outras empresas. O segundo é a transformação digital de funções. A adoção de tecnologias altera os papéis das pessoas nas empresas, impactando a rotina de áreas inteiras como RH, financeiro ou operações. O terceiro estágio - e o mais complexo - é a TD do negócio, que acontece quando a empresa se reinventa usando as tecnologias digitais disponíveis e os novos modelos de negócio que melhoram sua performance como um todo ou até ampliam sua atuação para outras áreas.

A TD verdadeira é mudança de cultura. TD é a possibilidade de ter processos nunca feitos antes, que eram impossíveis de imaginar, seja por limitações de comunicação ou tecnologia.

E por quê as startups têm um papel importante na TDs? Tudo na startup é ágil. Elas usam dados intensamente para entender o que está acontecendo. Confiam mais em fatos que em feeling e, claro, não têm nada a perder - nem reputação, nem uma fatia do mercado, como acontece em negócios maiores ou mais estabelecidos. Por isso tendem a assumir mais riscos. Como diz uma piada conhecida do setor de tecnologia, Deus só construiu o mundo em sete dias porque não tinha “legado”. Outras características dessas empresas: se convencem os investidores de que possuem uma boa ideia, podem ficar com tanto dinheiro em caixa quanto muitas organizações gigantes do setor; além da ausência de compromisso com o lucro durante o período de crescimento.

O livro dá algumas dicas para um processo de TD. Primeiramente, manter uma hiperatenção sobre o ambiente. É a capacidade de observar o ambiente de negócios e constantemente coletar informações para detectar mudanças ou oportunidades, inclusive no próprio negócio. E ter um senso de futurismo. Construir essa competência começa por consumir informações. Pode ser lendo notícias, vendo um documentário, fazendo um curso, conversando com especialistas, frequentando eventos, monitorando várias fontes sem estar ancorado por uma única perspectiva.

Outra dica é praticar a cultura da experimentação. Antes da era digital fazer testes custava caro, demorava, era arriscado e envolvia uma complexidade logística, pois o cliente não estava a um clique de distância. Agora, com o uso de tecnologia e dados e a possibilidade de monitorar o comportamento de pessoas em tempo real, é possível experimentar mais, de maneira mais barata e com menos risco antes de empacotar o produto.

Por fim, implementar a capacidade de execução rápida com organização de squads(pequenos grupos multidisciplinares) e a utilização de metodologias ágeis. Enfim, trazer o espírito startup para dentro das empresas.

Não é fácil fazer, mas quem não fizer arrisca o seu negócio.


Paulo Roberto de Almeida: Desafios da pandemia e pós-pandemia para o desenvolvimento da diplomacia

O mundo pós-pandemia não será muito diferente do que temos hoje, assim como o mundo pós-Peste Negra, no século XIV, não foi muito diferente daquele que existia no cenário pré-pandemia, que dizimou, ao que parece, entre 25% e 30% da população da Europa ocidental em suas diversas ondas. O que ocorreu foi, se ouso dizer, até “positivo”, uma vez que, com a diminuição de uma oferta abundante de mão-de-obra (que vinha sendo garantida por progressos lentos, mas reais, na produção de alimentos ao longo do período final da Idade Média), tanto o custo do trabalho quanto a produtividade do trabalho registraram ganhos expressivos. Tampouco o mundo pós-Gripe Espanhola, que na verdade era americana em sua origem, foi muito diferente daquele que existia ao final da Grande Guerra, apenas que, talvez, mais propenso a acelerar as pesquisas científicas que levaram, alguns anos depois, a novas vacinas e ao milagroso antibiótico, assim como a melhores cuidados com saneamento básico e medidas associadas a tratamentos preventivos e curativos.

O mundo, tal como ele existe em suas estruturas braudelianas de longa duração, não se altera radicalmente como resultado das pandemias; tampouco as diplomacias nacionais conhecem mudanças significativas, apenas que determinadas tendências existentes são aceleradas, ao passo que outras podem ser relegadas a segundo plano. A Peste Negra trouxe várias mudanças nas relações de trabalho e nos ganhos de produtividade, assim como a Gripe Espanhola gerou progressos gerais nos serviços de saneamento básico e nas instituições estatais cuidando da saúde pública. No plano da psicologia coletiva, o mundo do século XV e o mundo da terceira década do século XX não conheceram mudanças significativas no comportamento das pessoas, dada a tendência a esquecer os horrores vividos, esquecer os mortos e tratar dos sobreviventes e dos novos vivos. A humanidade tende a esquecer grandes tragédias, como ocorreu, talvez, ao final da Grande Guerra e no seguimento do Holocausto da segunda Guerra Mundial, que só começou verdadeiramente a ser relembrado duas ou três décadas depois. Não ocorreu nenhum Tribunal de Nuremberg ao final da Grande Guerra e o que foi realizado em 1945-46 não produziu instituições permanentes de condenação de criminosos de guerra, até o surgimento do mais recente Tribunal Penal Internacional. 

As mudanças foram mais significativas no campo das relações internacionais. A diplomacia da segunda metade do século XX deu grandes passos para aprofundar a nova modalidade do multilateralismo, mas essa já era uma tendência que vinha sendo reforçada desde as grandes conferências do final do século XIX – propriedade intelectual, comunicações, direito internacional da guerra e da paz, acordos setoriais, etc. – e que conheceu um grande impulso com o surgimento da Liga das Nações, mas ela foi mais o resultado dos 14 pontos de Wilson do que da Gripe Espanhola, que começou a se propagar desde que os soldados americanos chegaram à França em 1917; o presidente Wilson pode, aliás, ter sido vítima dessa gripe, pois nunca se recuperou quando retornou de vários meses de estada na Europa. 

O desafio ao principal ponto de seu plano de paz, a própria Liga, veio mais do Senado americano do que da pandemia, e assim parte do grande exercício de “pacificação” das relações internacionais no pós-Grande Guerra se perdeu, inclusive porque surgiram problemas para acomodar os interesses das grandes potências militaristas e fascistas – Itália mussoliniana, Alemanha hitlerista, Japão expansionista e União Soviética stalinista – e o ambiente de crises e depressões econômicas tampouco ajudou no restabelecimento de relações de cooperação entre os principais atores das relações internacionais. Foi preciso uma nova e devastadora guerra, impulsionada por essas mesmas potências desafiadoras para que, a partir de Ialta, Potsdam e San Francisco, se desenhasse uma espécie de “paz cartaginesa”, com a derrota completa, a destruição e ocupação das potências agressoras, que permitiu o surgimento de um arranjo neo-westfaliano capaz de impor a paz e a segurança internacional com base em mecanismos fortemente oligárquicos (como aliás já tinha sido o caso no modelo original do século XVII, em Viena em 1815, e em Paris em 1919). 

Depois de Bretton Woods, os progressos do multilateralismo foram realmente vários e relevantes, embora o processo decisório nas grandes agências do sistema multilateral das Nações Unidas tenha permanecido mais ou menos oligárquico entre 1945 e 1980. Apenas na terceira onda da globalização, as novas dinâmicas econômicas, a partir da consolidação do processo de convergência – depois de quase dois séculos da Grande Divergência –, criaram uma abertura nos processos decisórios, embora tenha sido apenas dez anos atrás que o “resto do mundo” superou, pela primeira vez na história, o pequeno pelotão das economias mais avançadas na formação do PIB global. Esse processo começou nos anos 1960, quando a industrialização das nações periféricas aumenta a participação do Terceiro Mundo na oferta de produtos manufaturados. Desde então, graças sobretudo à Ásia Pacífico, em especial a China, que tinha sido a maior economia mundial até o século XVIII, e a mais avançada cientificamente até o início da era moderna, quando a Europa ocidental conhece sua fulgurante ascensão para a hegemonia mundial. Mas, já no final da Guerra da Secessão, uma nova potência ascendente marca sua presença dominante no contexto da segunda Revolução Industrial. O mundo tinha sido europeu do século XVI ao XIX, e passa a ser americano, a partir do século XX, talvez desde 1898, e mais acentuadamente a partir de 1917, quando os boys desembarcam pela primeira vez nos campos de batalha do velho mundo.

O século americano, inclusive na diplomacia, teve uma vigência de apenas um século, e o século XXI começa pela fulgurante ascensão da China, retomando posições que ela já tinha tido num passado distante. O impacto dessa ascensão será sentido pelo resto do século, mas sua influência nas relações internacionais, e nas práticas diplomáticas, tem muito mais a ver com as dinâmicas econômicas do que com os efeitos sistêmicos da pandemia. Esta será superada em relativamente breve tempo, graças aos avanços fantásticos das tecnologias farmacêuticas, e ela terá consequências sobretudo na aceleração de tendências já presentes anteriormente na economia e na política mundiais, não tanto em mudanças estruturais de grande monta. Ou seja, o mundo não será muito diferente no pós-pandemia, a não ser que diversas atividades – inclusive a diplomacia – terão continuidade no terreno virtual, o que antes seguia um ritmo de tartaruga, dadas as facilidades de transportes e comunicações. A partir de agora, contatos, reuniões e viagens serão mais facilmente substituídos pela versão digital, aliás, com menos despesas e maior frequência.

Uma grande consequência tem a ver com a nova geopolítica do restante do século XXI, mas ela depende mais da postura americana no “enfrentamento” da ascensão chinesa do que propriamente das novas modalidades de práticas diplomáticas. Não tenho tempo de desenvolver aqui essa questão, que vem sendo muito mal conduzida pelos acadêmicos dos EUA em relações internacionais, que aparentemente foram contaminados pela paranoia dos generais do Pentágono, na adoção de uma postura confrontacionista em relação à China. Parto do princípio que a segunda Guerra Fria, que tem um caráter sobretudo econômico, já foi vencida pela China, que tem uma estratégia correta, assim como foi a estratégia da Grã-Bretanha no estabelecimento de sua hegemonia no século XIX, que foi a globalização e o livre comércio, assim como a exportação de capitais, assim como a consolidação de meios e instrumentos de pagamentos que mantiveram Londres no centro das relações econômicas mundiais durante um século e meio. O eixo financeiro só se deslocou de Londres para Nova York com o deslanchar da Segunda Guerra Mundial, embora desde a Grande Guerra os EUA já fossem um grande credor e investidor internacional. Esse eixo vai ter uma base sólida na Ásia Pacífico, em especial na China, inclusive por meio de criptomoedas que vão oferecer concorrência ao dólar, dominante neste século americano (e ainda influente nas próximas décadas). 

A própria pandemia revelou enormes fragilidades do sistema americano de saúde, inclusive pelo efeito acrescido da grande desigualdade social que ainda caracteriza o gigante norte-americano, comparativamente a estruturas mais igualitárias na Europa ocidental. Mas a China acaba de proclamar a eliminação da pobreza, ou da miséria, em seu território, o que é um feito extraordinário para um país que tinha falhado sua inserção nas duas primeiras revoluções industriais e que só se encaixou realmente na globalização no decurso da quarta revolução industrial. O mundo do futuro não será necessariamente chinês, mas ele será forçosamente mais diversificado, inclusive com a ascensão do segundo gigante asiático, a Índia, embora ela continua persistentemente protecionista, a ponto de ter preferido não integrar o RCEP, o grande bloco comercial liderado pela China. 

Quanto ao Brasil, ele é a grande decepção mundial nas últimas três ou quatro décadas, e não parece perto de ser capaz de superar suas enormes dificuldades políticas para vencer obstáculos estruturais – educação, produtividade, nova industrialização e redução das desigualdades sociais e regionais – que se opõem à sua inserção econômica global. Na verdade, o Brasil exibe uma não inserção na interdependência mundial, dado seu renitente protecionismo e a introversão típica de um país dotado de elites tacanhas e mesquinhas (não fosse assim não teriam demorado tanto tempo para extinguir o tráfico e abolir a escravidão). No plano diplomático, aliás, o Brasil é um dos raros países no mundo a ter perpetrado uma espécie de suicídio diplomático, ao ter deliberadamente escolhido ser pária, um pouco como a Coreia do Norte e Mianmar. É algo realmente vergonhoso para um país que tinha construído, ao longo dos quase dois séculos de independência, uma diplomacia tida por excelente, e que teve um papel decisivo na construção da nação, como já argumentou o embaixador Rubens Ricupero em sua obra clássica A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (2017). Mas, imagino que sua leitura, atualmente, teria o dom de provocar depressão em boa parte do corpo diplomático profissional, assim como na quase totalidade dos analistas e estudiosos das relações internacionais do Brasil. 

*Texto de apoio para exposição oral de 30 minutos no 3º. Congresso de Relações Internacionais, dia 27/02, 19h45, via WebinarJam.


O Globo: Bolsonaro dobra presença de militares em cargos estratégicos no governo

Em setembro de 2020, 342 egressos das Forças Armadas ocupavam cargos comissionados nas maiores faixas de remuneração da máquina federal, em postos de coordenação, diretoria, secretaria ou de ministro

Maiá Menezes, Bernardo Mello e Marlen Couto, O Globo

RIO — Em paralelo a crises vividas pelo presidente Jair Bolsonaro, a presença de militares em funções de comando nos ministérios praticamente dobrou nos últimos dois anos. Em setembro de 2020, 342 egressos das Forças Armadas ocupavam cargos comissionados nas maiores faixas de remuneração da máquina federal, em postos de coordenação, diretoria, secretaria ou de ministro. Em janeiro de 2019, início do governo, eram 188 militares nessas funções. Dois movimentos feitos pelo governo nos últimos dias vão aprofundar a participação: o general Joaquim Silva e Luna foi indicado para a presidência da Petrobras, enquanto o almirante Flávio Rocha deve ser o novo chefe da Secretaria Especial de Comunicação (Secom).

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Os dados foram obtidos em levantamento dos gabinetes do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) e atualizados pelo GLOBO. Além do Ministério da Defesa, que habitualmente abriga membros de Exército, Marinha e Aeronáutica, pastas como Saúde e Meio Ambiente registram avanços significativos. Para especialistas, o salto ignora a necessidade de experiência prévia em áreas sensíveis, como o combate à pandemia da Covid-19 e o controle do desmatamento, e expõe a dificuldade de Bolsonaro em articular uma base.

Percentual de militares em altos cargos no governo federal Foto: Editoria de Arte
Percentual de militares em altos cargos no governo federal Foto: Editoria de Arte

Ao longo das gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer, o percentual de ocupação desses cargos não passou de 2,5%. No governo Bolsonaro, em setembro, havia presença militar em 6,5% dos postos com remuneração bruta entre R$ 6 mil e R$ 16,9 mil. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), há, ao todo, 6,1 mil militares em funções civis no governo federal — em 2017, havia 3 mil.

Ordens cumpridas

Para o cientista político Maurício Santoro, da Uerj, a ampliação do espaço de militares, inicialmente ligada à tentativa de criar uma imagem “técnica” do governo, passou a obedecer uma lógica de crises.

Percentual de militares em altos cargos no governo por órgão Foto: Editoria de Arte
Percentual de militares em altos cargos no governo por órgão Foto: Editoria de Arte

— Os militares passaram a assumir as tarefas ideologicamente controversas. Assumiram a Saúde porque o presidente não encontrava médicos dispostos a implementar uma visão negacionista. Entraram no Ibama, onde Bolsonaro tinha problemas com sua política ambiental. Também é o que ocorre, em parte, na Petrobras — diz Santoro.

A mudança na petroleira, após insatisfação de Bolsonaro com o aumento do preço dos combustíveis, é citada pelo cientista político Christian Lynch como exemplo de uso dos militares como “interventores”. Atuar para conter a subida de preços é uma medida simpática aos caminhoneiros, base eleitoral do presidente.

— Bolsonaro tenta dar uma impressão ordeira para seu eleitorado, mas o que importa mesmo a ele é que cumpram suas ordens em assuntos que podem afetar sua reeleição. Por isso, se cerca dos militares que compartilham deste projeto político — afirmou.PUBLICIDADE

No conselho de administração da Petrobras, no qual Silva e Luna também deve ingressar, há dois militares indicados por Bolsonaro. A participação também ocorre em estatais como Eletrobras e Correios, nas quais há promessa de privatização — esta última é presidida por um militar.

Após um primeiro ano de governo marcado por quedas de popularidade e pelo avanço de investigações contra a família de Bolsonaro, a Presidência da República teve o maior incremento entre todos os órgãos, com nomeações de 34 militares para postos estratégicos. O principal deles foi a chefia da Casa Civil, assumida pelo general Braga Netto em fevereiro de 2020. Flávio Rocha, nomeado secretário de Assunto Estratégicos na mesma época, agora é cotado para a Secom. O Ministério do Meio Ambiente, criticado em meio a recordes de queimadas, teve nomeações de militares nas superintendências do Ibama no Amazonas, Amapá, Pará, Mato Grosso do Sul e Rio. A presença cresceu até agosto de 2019 e voltou a subir no início de 2020, na sequência do período mais crítico na Amazônia.

Militares no Ministério da Saúde Foto: Editoria de Arte
Militares no Ministério da Saúde Foto: Editoria de Arte

— Em geral, essas pessoas ocupam cargos de altíssimo nível, sem entender sua especialidade. Conforme a crise cresceu, aumentou-se o número de militares na Saúde — exemplificou a deputada Tabata Amaral.

A pasta da Saúde é hoje a terceira área com mais militares no governo, atrás apenas da Defesa e da Presidência. O ministro Eduardo Pazuello, general da ativa, nomeou 21 dos 30 militares nesses postos. Para Gonzalo Vecina, ex-presidente da Anvisa e professor de Saúde Pública da USP, eles carecem de “domínio total”da área de atuação.

— Há também uma lógica de comando em que falta espaço para o diálogo, sempre essencial na Saúde — afirma.

Entre os militares do time de Pazuello, há exemplos de descumprimento de medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a Covid-19. O major da reserva Angelo Martins Denicoli, nomeado no fim de maio como Diretor de Monitoramento e Avaliação do SUS, fez publicações encorajando o uso da cloroquina, remédio sem comprovação científica contra o coronavírus. Denicoli tem formação em Educação Física, MBA em Economia e Gestão e atuou na Comissão de Desportos do Exército.

“Campo desconhecido”

Pazuello também nomeou três coordenadores distritais de Saúde Indígena que não informam, em seus currículos, experiência na área: o capitão da reserva Gildo Henrique de Azeredo, no Distrito Especial de Saúde Indígena (DSEI) Xavante; o capitão Eloy Ângelo dos Santos Bernal, no DSEI Porto Velho; e Joe Saccenti Junior, coronel da reserva, à frente do DSEI Mato Grosso do Sul. O trio está subordinado ao secretário especial de Saúde Indígena, o coronel da reserva Robson Santos da Silva, nomeado por Luiz Henrique Mandetta, e que se apresentava como consultor em educação a distância.

— Mais importante até do que a formação é a experiência em gestão na área de Saúde, o que não se vê nesses militares. No caso da Saúde Indígena, não estão conseguindo aplicar todas as doses de vacina destinadas às aldeias. Falta compreensão das políticas públicas — afirmou o infectologista Julio Croda, ex-diretor de Vigilância em Saúde.

O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão enxerga “incompatibilidade” na trajetória dos militares.

— O departamento de Monitoramento do SUS acompanha indicadores de saúde muito específicos. Já a Atenção Especializada atua em transplantes, com hospitais de excelência e tratamentos como hemodiálise. Os escolhidos foram nomeados para um campo desconhecido para eles.

O Ministério da Saúde disse adotar “critérios técnicos” para as nomeações e que conta com “um corpo técnico de servidores qualificados que mantêm a normalidade das atividades da pasta”. (Colaborou Raphaela Ribas)


Alon Feuerwerker: Curva de aprendizagem na Câmara. E como funcionam as coisas por aqui

E o novo comando da Câmara dos Deputados vai percorrendo sua curva de aprendizagem. Ela tem um formato de leves semelhanças com os trechos inicial e intermediário da curva epidemiológica, agora popularizada pela Covid-19. De início, a proficiência acelera-se, depois desacelera e em seguida caminha para a estabilização. No caso específico da política brasileira, a estabilidade pode resultar em situações de equilíbrio estagnado ou de produção consensual. Vamos esperar para ver que bicho dá.

Na eleição para a mesa da Câmara, os vitoriosos perceberam que têm votos ali para impor derrotas eleitorais internas às correntes hegemônicas da opinião pública – ou publicada (copiei do Roberto Campos). Já nas votações do caso Daniel Silveira, até o momento, pôde-se notar um Legislativo independente apenas até o limite em que ouse um avanço decisivo contra a influência do eixo hegemônico construído ao longo dos últimos quase oito anos. Desde as “jornadas de junho” de 2013, e consolidado com a Operação Lava-Jato e a captura da política pelo Judiciário.

Os deputados até tentaram uma manobra inteligente, na teoria. Aprovaram por larga margem a prisão de Silveira (PSL-RJ). Com a condição de, em seguida, avançar a regulamentação da imunidade parlamentar. Vamos ver como caminha na comissão especial, foi a válvula de escape encontrada quando faltaram votos em plenário (mesmo no virtual) para aprovar qualquer coisa com significado prático. Mas, na semana que termina, os deputados e deputadas não resistiram a 72 horas do noticiário negativo que introduziu um “p” em “imunidade”.

Ou seja, neste início de 2021, a política mostra ter energia suficiente para definir suas relações internas e criar alguns constrangimentos para os ainda musculosos adversários. Mas não anda tão forte assim para poder traçar seus próprios caminhos, também porque sempre surge algum tipo de divisão interna. Como agora, quando o PT, na vigília à espera do juízo da Segunda Turma sobre as condenações impostas a Luiz Inácio Lula da Silva, revela-se um repentino defensor do Supremo Tribunal Federal na arenga em torno da imunidade parlamentar.

Desse relativo equilíbrio na correlação de forças nasce um certo empate. Que se expressa, por exemplo, na dura resistência dos senadores a desvincular recursos orçamentários como compensação a estender o auxílio emergencial.

Tem lógica. Por que o parlamento vai ficar contra o senso comum popular se na hora "h" os operadores da opinião pública acabam apoiando toda e qualquer violência contra o Legislativo? Não seria esperto.

Donde se conclui que as prometidas reformas administrativa e tributária, para não empacar, vão precisar atender a requisitos capazes de produzir consensos legislativos, que necessariamente implicarão lipoaspirações. Até onde as propostas originais vão se enfraquecer? É a pergunta no ar.

A discussão da reforma administrativa talvez seja menos complicada, porque os efeitos práticos dela só serão sentidos muito lá na frente. E sua votação oferecerá a tradicional photo-op para deputados e senadores aparecerem nas imagens celebratórias. Já a tributária é um enrosco maior, pela vigência quase imediata. Então, ou parte-se para uma versão simplificada, e simplificadora, ou também se jogam os efeitos dela para um futuro distante. A primeira opção é a mais viável. Mas, como sempre, será prudente aguardar.

E tem aquele outro detalhe. Estamos em plena segunda onda feroz da Covid-19, que leva jeito de querer consumir boa parte do que resta do semestre. Quando se abrir a segunda metade do ano, acelerar-se-á o processo eleitoral para 2022, inclusive porque eventuais mudanças nas regras precisarão ser aprovadas até outubro. E os candidatos a candidato já estão aquecendo na pista. Roncando os motores e queimando a borracha no asfalto.

É como funcionam as coisas por aqui.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


George Gurgel de Oliveira: Brasil - Os Desafios da Sustentabilidade. Qual PETROBRAS?

A PETROBRAS volta à cena política nacional. Na verdade, sempre esteve. É uma das joias da Coroa, devemos cuidá-la e preservá-la, mesmo se for transformada em uma Empresa de Energia, como sugerido no presente texto. Ela faz parte da nossa identidade nacional, desde a fundação em 1953, quando colocou o Brasil no seleto grupo de países com indústria de petróleo. Desde então, ela foi sempre discutida, defendida e atacada no Brasil e no exterior. Portanto deve ser avaliada permanentemente por toda a Sociedade, além do Estado e do Mercado, considerando as transformações que estão acontecendo na área de energia, particularmente na indústria de petróleo mundial.

As minhas primeiras lembranças sobre a PETROBRAS são familiares: meu pai e seus companheiros do PCB na Bahia, como milhares da geração dele, participaram da campanha o Petróleo é Nosso – o povo nas ruas venceu, com apoio de Getulio e dos militares - não foi pouca coisa.

Ainda, e por isso tudo, a minha escolha profissional quando fui estudar na URSS foi na área de petróleo e gás, de novo a PETROBRAS em minha vida: lembro do entusiasmo que escrevi à sua direção, quando estava iniciando a minha dissertação de mestrado, no início de 1980, em Moscou: queria fazer meu trabalho em uma área que houvesse algum interesse da própria PETROBRAS – a minha frustração foi enorme, nunca obtive resposta do meu bem intencionado gesto.

A vida seguiu e o meu interesse pela Indústria de Petróleo, pela Energia nas suas diversas formas, e a questão ambiental persistem até hoje.

Como avaliar a PETROBRAS? A partir da sua própria história, realidade atual e o que ela e a sociedade brasileira almejam hoje e no futuro próximo – analisando a situação da própria PETROBRAS, da Indústria Mundial de Petróleo e de outras formas de energia: qual a matriz energética que temos e a que queremos ter nos próximos anos, no horizonte de 5, 10, 15, 20 anos?

São questões relevantes a serem enfrentadas para uma melhor compreensão do papel atual e do futuro da maior empresa brasileira e dos sistemas energéticos brasileiros.
A questão energética, particularmente a que envolve a Indústria de Petróleo, caso explícito da PETROBRAS, reflete interesses variados de caráter público e privado, tanto nos países capitalistas industrializados, grupo seleto no qual está concentrado o consumo energético mundial, quanto nos países não industrializados, nos quais vive a maioria absoluta da humanidade, com baixos níveis de consumo de energia.

A maneira como o petróleo e o gás são apropriados da natureza, produzidos, distribuídos e consumidos ainda determina os níveis de bem-estar de uma determinada sociedade e suas inter-relações com a própria natureza. Assim, a escolha nos tempos atuais de um modelo empresarial na área de petróleo e gás é reflexo das distintas realidades nacionais, a partir das potencialidades energéticas de cada sociedade.

No Brasil, a discussão em relação à PETROBRAS deve ser feita com e além da própria empresa, avaliando as demandas existentes da Sociedade em relação à indústria de petróleo e o lugar desta indústria na matriz energética, na economia e na indústria brasileira em geral.

O Sistema PETROBRAS, como o Sistema ELETROBRAS, de BIOMASSA, Solar, Eólico e Nuclear no Brasil foram e são opções construídas a partir de decisões e múltiplos interesses políticos, econômicos e sociais estabelecidos na Sociedade brasileira.

Nessa perspectiva, a PETROBRAS é parte do problema e da solução. A partir dos anos 90, o processo de privatização do Sistema Elétrico e do Sistema Petrolífero e a criação das respectivas agências reguladoras e da própria Agencia Nacional de Petróleo, a ANP, nos anos 90, mudam o funcionamento do Sistema Energético brasileiro.

Desde então, os diversos Sistemas Energéticos, o modelo da Agência Nacional de Petróleo, como também da Agência Nacional de Energia Elétrica, de Biomassa, Solar e Eólica são os responsáveis pela regulação da Política Energética brasileira. Em relação ao funcionamento das Agências reguladoras, constata-se desde a criação, uma forte influência do Executivo federal na definição dos dirigentes e da prevalência dos interesses de conjuntura no funcionamento destas Agências, retirando a necessária autonomia para o cumprimento das suas funções institucionais, de pensar a questão energética com uma visão sistêmica, para atender as demandas energéticas atuais e futuras da Sociedade brasileira.

Institucionalmente, a área energética deveria reestruturar-se buscando a integração dos diversos sistemas (elétrico, petrolífero e gás natural, álcool e bagaço de cana, carvão mineral, lenha e carvão vegetal, solar e eólica), buscando criar mecanismos, construindo novas relações entre o Estado, o Mercado e a Sociedade, que proporcionem uma participação social mais ampla na discussão, formulação e implementação dessa nova Política Energética desejada para o Brasil.

Hoje, quando mais uma vez a PETROBRAS está na berlinda, quais as questões a serem discutidas sobre a empresa? As mudanças a serem realizadas nela devem estar vinculadas a um projeto maior de reforma do Estado brasileiro, a uma política industrial e tecnológica, enfim a um projeto sustentável para o Brasil. Urge a volta de políticas públicas nacionais de longo prazo, particularmente em relação à questão energética e à própria indústria de petróleo.

A PETROBRAS para sobreviver e ser contemporânea do futuro deve se tornar uma empresa de energia, não apenas de petróleo e gás. Discute-se muito e pouco se fez e se faz nesta direção. Aqui as parcerias são fundamentais, algumas estratégicas: a partir de iniciativas da própria empresa, em diálogo com a comunidade cientifica, com outras empresas da área de energia, com as agências reguladoras, com a indústria brasileira e com toda a Sociedade, buscando definir um novo formato dela para atender as demandas atuais e futuras de energia da Sociedade brasileira.

Nesse processo de mudança, no caminho de uma economia de baixo carbono, a PETROBRAS – por tudo que ela representa, pode e deve ter um papel relevante. Em parceria com outras empresas que trabalham com a questão energética no Brasil e no mundo, ela pode desencadear um processo virtuoso na economia brasileira, com reflexos positivos na área social, de educação, científica e tecnológica, possibilitando ao nosso país aproveitar as suas potencialidades e riquezas naturais, nos levando a construção de uma economia de baixo carbono, aproveitando a energia solar, eólica e de biomassa, cada vez mais, na matriz energética brasileira.

Assim, o Brasil e a PETROBRAS devem caminhar juntos no fortalecimento do Sistema dela, reconhecendo a sua importância como empresa e a necessidade de realizar mudanças, transformando-a em uma empresa de energia, contemporânea no presente com o futuro da Sociedade brasileira. A PETROBRAS e a Sociedade brasileira estão desafiadas de juntas colaborarem na construção de um Brasil moderno, afirmando e reafirmando os valores da Democracia, da Cultura, da Educação, da Ciência e da Tecnologia, apontando para um Brasil solidário, com mais inclusão social, respeitando a diversidade e preservando a natureza.

*George Gurgel de Oliveira, Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade, da UFBA e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia