artigo 142
‘Não creio que Bolsonaro produzirá conflito que leve à ruptura’, diz Nelson Jobim
Ex-ministro da Defesa concedeu entrevista à revista Política Democrática Online e diz que horizonte de solução da crise política passa pelas eleições de 2022
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Em entrevista exclusiva concedida à revista Política Democrática Online, o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República. “É equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores”, afirma. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo”, diz, em outro trecho.
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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. “Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo”, afirma.
Jobim foi ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do governo Dilma. Ele também foi deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto.
O horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente, segundo Jobim, passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento.
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RPD || Entrevista especial: Constituição não permite Forças Armadas intervirem contra um dos poderes, diz Nelson Jobim
Ex-ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do Governo Dilma, Nelson Jobim é enfático em afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República
Por Caetano Araujo, Alberto Aggio e Arlindo Fernandes de Oliveira
"O texto constitucional de 1988, em seu artigo 142, diz que as Forças Armadas deverão garantir os poderes condicionais contra pressões de terceiros, mas não eventuais conflitos entre eles, dentro da lógica de que os militares não podem tomar partido em questão interna. Não são um poder, são uma instituição", avalia o entrevistado especial desta 20ª edição da Revista Política Democrática Online, Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa durante o segundo mandato do ex-presidente Lula (2007-2011) e no primeiro ano do governo da ex-presidente Dilma Roussef (2011). O artigo 142 da Constituição Federal é, hoje, o centro da mais nova polêmica envolvendo o Governo Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Dessa forma, avalia Jobim, "é equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores". Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. "Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo", completa.
Deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto. Jobim avalia que o horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento.
Na entrevista especial que concedeu à Revista Política Democrática Online, Nelson Jobim também trata de temas como a influência do bolsonarismo nas polícias militares dos estados e questões judiciais envolvendo o combate à pandemia de coronavírus no país. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
"Os militares da ativa enfrentam dois problemas. O primeiro surgiu com aquela manifestação do Presidente Bolsonaro na frente do QG do Exército, em Brasília. O segundo, com a retirada do controle e do monitoramento das armas"
Revista Política Democrática Online (RPD). Em sua opinião, nossa democracia está em risco? E, em caso afirmativo, quais seriam as tarefas dos democratas?
Nelson Jobim (NJ): Não creio que esteja em risco, porque isso teria de envolver as Forças Armadas (FFAA), o que não é o caso. Refiro-me aos militares que comandam tropa, não os que comandam escrivaninha. E os militares da ativa tiveram duas preocupações. A primeira foi a manifestação do presidente Bolsonaro na frente do QG do Exército, em Brasília. A segunda, com a retirada do controle e do monitoramento das armas. Mas os militares estão tranquilos em relação a isso.
Há uma retórica do conflito, porque Bolsonaro resolveu substituir o presidencialismo de coalizão pelo de colisão, ou seja, de conflito. Talvez isso se tenha consolidado, pois era uma característica anterior do presidente, com a mão que o então juiz Moro deu, ao divulgar diálogo entre a Presidente Dilma e o ex-Presidente Lula. É assim que o Presidente Bolsonaro prefere operar e isso leva a certa instabilidade. Só que tem havido ampla mobilização pública no sentido de preservar o processo democrático, incluindo todos os setores de oposição, à exceção do Presidente Lula, que já se declarou contrário à iniciativa de uma frente comum.
Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o Presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo.
RPD: Qual é a sua interpretação do artigo 142 da Constituição? Os militares podem desempenhar papel de poder moderador?
NJ: Em 1987, quando discutimos esse tema na Constituinte, houve uma tentativa de entendimento do relator, o deputado Bernardo Cabral, com os militares, concretamente, com o General Leônidas, então ministro do Exército. À época, não existia o Ministério da Defesa. Cogitou-se de manter o modelo que vinha desde 1991. Até 1988, os militares tinham a faculdade constitucional de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação. Eles eram, digamos, os árbitros de quando deveriam intervir, embora nominalmente o Presidente da República fosse o comandante supremo das FFAA. Alguns militares queriam reproduzir essa normativa, em sintonia com a teoria desenvolvida pela Escola Superior de Guerra, ainda durante o regime militar, segundo a qual as FFAA poderiam intervir no interior do país, se julgassem necessário. Chamava-se a teoria de guerra revolucionária interna. Discutimos isso na Constituição de 88, que decidiu restringir a intervenção das FFAA, subordinando-as à convocação por um dos poderes da República, para a manutenção da lei e da ordem. Não só não existe mais, portanto, a possibilidade dessa intervenção, ao não ser a pedido de um dos três poderes, mas também dispõe o texto constitucional que as FFAA deverão garantir os poderes condicionais contra pressões de terceiros, mas não eventuais conflitos entre eles, dentro da lógica de que os militares não podem tomar partido em questão interna. Não são um poder, são uma instituição.
É, assim, equivocada a tese, verbalizada pelo Doutor Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores. Trata-se de uma prática tão comum como nociva, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo. À época, lembro-me que alguns militares protestaram quanto à redação. Fernando Henrique e José Richa, entre outros, intervieram para superar o impasse e, finalmente, logrou-se apaziguar o conflito, de maneira que hoje temos uma redação solidamente inequívoca do artigo 142.
"Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o próprio Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar uma ruptura do processo"
RPD: No contexto da discussão sobre a separação dos poderes, alega-se possível judicialização da política, certa extrapolação de competências do Judiciário, em geral, e do Supremo, em particular. Qual é sua visão?
NJ: Esse fenômeno é recorrente em todo o mundo, mas me concentro no caso brasileiro. Registro, de início, uma disfuncionalidade no processo político. As regras de solução de conflitos pela política acabaram sendo substituídas pela tentativa de introdução do Poder Judiciário. O Poder Judiciário – o Supremo, no caso específico –, não tem iniciativa de ofício, depende de provocação de parte dos partidos políticos ou de outras entidades. Pelos idos de 1990, um senador, líder de um partido político, dizia em alto e bom som que tinha mais visibilidade quando interpunha perante o Supremo uma ação direta de inconstitucionalidade do que quando votava no Senado.
A composição do Supremo, às vezes, também é um problema. Todos os ministros, sem exceção alguma, são, desde 1891, indicados pelo presidente da República e, depois, submetidos a sabatina no Senado. Muitos tinham relações diretas ou indiretas com o presidente da época, como o meu caso, por exemplo, com o Fernando Henrique; o do José Paulo Sepúlveda Pertence, com o Sarney; o do Moreira Alves, com o Geisel. Muitos já detêm biografia, lato sensu, antes mesmo de entrar no Supremo. Outros precisam do Supremo para completar suas biografias e, entre esses, há os que escolhem temáticas mais agudas para se sobressair, exibindo independência em relação ao governo, ou votando sistematicamente contra as propostas do Planalto.
Há ainda aqueles ministros que se dispõem a romper a jurisprudência do Supremo, na expectativa de criar um leading case e se celebrizarem como os pais da pretensa “inovação”.
E, no caso específico da questão política, tínhamos uma contenção muito grande quando se falava em intervenção na atividade interna de outros poderes. Por exemplo: o Ministro Fux deu uma decisão em que sustentou ser equivocada a tese antiga do Supremo, de autocontenção quanto às matérias do Congresso. Para ele, essa distinção não fazia sentido. Sua origem fora um embate entre a Câmara e o Senado, e o ministro entrou na análise do regimento interno de ambas as Casas, quando nunca foi de nossa prática, no Supremo, decidir questões relativas a matérias interna corporis, ou seja, matérias regimentais. Esse é um dos problemas.
Outro problema é, digamos, a pulverização do processo decisório, mais na Câmara que no Senado. Diante da existência de número elevado de partidos – que deve ser reduzido em breve, depois da reforma recém-concluída –, a composição de maiorias resulta mais difícil, em prejuízo da nitidez de posições e da autoridade dos líderes partidários. O momento de inflexão ocorreu com a eleição do Severino Cavalcanti. Antes, os deputados dependiam dos líderes para ter acesso à Mesa da Câmara e ao governo. Com a chegada do Severino, que não era um candidato das lideranças partidárias da época, a intermediação passou a ser feita pelo presidente da Câmara, e os líderes perderam importância. Hoje, não é fácil nomear os líderes partidários; logo, a formação da vontade majoritária não tem passado pela capacidade eventual dos líderes, de comandar suas bancadas. O preço a pagar por isso é a ambiguidade. Para se votar uma matéria, fazer a redação de um texto legal, quanto mais ambíguo, melhor, para poder abrigar quatro ou cinco interpretações. Daí a transferência, para o Poder Judiciário, da interpretação das leis, como se fosse uma espécie de Poder Legislativo supletivo, o que gera tantos conflitos.
Existe, pois, uma série de elementos para a chamada judicialização da política, que se está agravando. Eu acho péssimo, porque sentença judicial não compõe o futuro: sentença judicial examina uma situação passada e verifica se as condutas de ontem se podem ajustar à legislação vigente. Decide-se, assim, sobre o passado e aplica-se uma solução para os personagens envolvidos no passado.
Nas ações abstratas, a mesma coisa: examina-se se uma legislação está conforme à Constituição, mas tem um problema nas ações diretas. Vivemos, hoje, uma diarreia de princípios. Todo mundo inventa um, tem princípio para tudo. Atualmente, na discussão entre a norma jurídica, a proposição jurídica e o princípio privilegia-se a sobreposição do princípio sobre a norma jurídica, ao disposto legal, e gera-se uma interpretação principiológica, interpretação que é uma espécie de traveller-check, um salvo conduto para o que se concebeu. E aí é a hora de inventar um princípio. Essa é outra disfuncionalidade dentro do Poder Judiciário.
Essas decisões, agora, sobre a abertura ou fechamento das atividades na pandemia: que capacidade tem um juiz de direito para entender de abertura ou não do comércio? Acho isso muito ruim, vamos ter problemas, mas temos que passar por isso, estamos hoje, eu diria, na travessia do deserto, mas vamos chegar lá.
RPD. Há, em relação à pandemia, claramente, senão uma cizânia, no mínimo um dissenso, entre a Presidência, o Poder Executivo Federal e os governadores. Do ponto de vista constitucional, as FFAA são subordinadas ao Poder Executivo. Ao mesmo tempo, as Polícias Militares, que parecem hoje mais ligadas não à Presidência, mas ao bolsonarismo, são subordinadas aos governadores. Isso pode constituir-se em uma ameaça de conflito entre a União e os Estados?
NJ: Este é um ponto importante, relevante para a análise da situação atual e definidora para as condutas que se devam tomar. Consideremos, primeiro, o problema, digamos, evolutivo das Polícias Militares. Antes da Revolução de 30, antes de Getúlio Vargas, as Polícias Militares eram o braço armado dos presidentes dos Estados. Exemplo mais claro disso ocorreu na presidência de Flores da Cunha, no Governo do Rio Grande do Sul. Quando Getúlio assumiu, ele cortou esse braço armado dos governadores, além de ter reduzido, digamos, a qualificação dos presidentes de Estado para governadores, uma espécie de descenso semântico nominal. Ele submeteu, naquele momento, o efetivo e o armamento das forças públicas ao escrutínio do Exército, que controlava o efetivo e o armamento.
"É equivocada a tese, verbalizada pelo Doutor Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustando a legislação nova aos pressupostos anteriores"
Na Constituição de 34, passou-se a considerar as Polícias Militares como reservas do Exército, para eventual conflito. Isso foi mantido até o golpe de 64. Em 64, houve uma maior aproximação das Polícias Militares com o Exército. Por quê? Porque, no início, imediatamente após o golpe, os chefes, os comandantes da Polícias Militares estaduais eram normalmente coronéis do Exército. E os secretários de Segurança dos governadores, indicação da Presidência da República, inicialmente militares. Não estava na lei, mas era o que se praticava. Os coronéis passaram a ser secretários de Segurança dos Estados e comandantes da polícia. Com a Constituição de 67, ampliou-se a participação do Exército no controle da Polícia Militar, porque se submeteu também ao Exército a instrução das Policias Militares, nas escolas do Exército, como se fossem soltados de infantaria. Para isso, influenciou aquela doutrina da guerra revolucionária interna. Urgia aparelhar as Polícias Militares, que tinham mais capilaridade que o próprio Exército, espalhadas por todo o país, um apoio imprescindível na eventualidade de perturbações internas.
Em 1988, reservamos grande atenção a esse ponto. O Deputado José Genoíno foi um dos que estudaram o tema, e ocorreu longa e ampla discussão com os militares. Ao final, retirou-se a instrução das Polícias Militares pelo Exército, voltando à regra anterior.
RPD: Seu relato dá a impressão de que tudo ocorreu naturalmente. Que antecedentes terão pesado em favor dessa transição?
NJ: Muitos. De início, o afastamento dos militares das academias das Polícias Militares. Pouco a pouco, também, os secretários de Segurança passaram a ser indicados pelos governadores, podendo ser civis. E o presidente Castelo Branco tomou, dentro das FFAA, decisão de grande impacto. Ele mexeu na carreira militar. Antes de 67, os generais poderiam ficar o tempo que fosse no generalato. Cordeiro de Farias, por exemplo, permaneceu vinte e tantos anos como general. Castelo decidiu acabar com os “generais chineses”, como chamava, os donos do Exército. Estabeleceu o limite para a permanência no generalato, hoje de 12 anos. Como general de brigada, general de divisão e general do exército, o oficial só poderia ficar 12 anos, sendo quatro em cada escalão. Se não fosse promovido ao final de quatro anos de um escalão a outro, passaria automaticamente para a reserva, com o que se introduzia, também, uma expulsória adicional àquele limite de 12 anos, sob a forma de uma renovação de um quarto dos efetivos de cada escalão. A legislação de Castelo contribuiu para acabar com os militares líderes políticos. Durante os quatro anos e meio em que ocupei o Ministério da Defesa, não convivi, por exemplo, com os mesmos oficiais superiores, à luz da mencionada rotação promovida por Castelo.
Castelo tentou também alterar a legislação que regia a atividade política dos militares. Pretendia, pelos registros que conhecemos, que os militares, para entrarem em atividade política, se afiliarem a partidos, devessem ter a mesma conduta que os juízes de direito: deixar a carreira. Mas não conseguiu. Conseguiu, porém, outra coisa. Quando o militar se filiasse a um partido político, ficaria logo agregado à força. Se fosse eleito, continuaria agregado à força. Assim, se, lá adiante, não fosse reeleito, não retornaria para a força, como no passado. Castelo criou, ainda, o domicílio eleitoral, que tinha destinação especifica: impedir que generais fossem candidatos a governos nas eleições indiretas.
RPD: Voltando às Polícias Militares.
NJ: Voltando ao tema, antecipo alguns problemas. O que está fazendo o Presidente Bolsonaro? Percebendo que a posição legalista e constitucionalista das FFAA é ineludível, vem tentando fazer carinho nas Polícias Militares. O primeiro carinho foi a sinalização que deu quando ele, antes da vedação legal, aceitou o aumento dos soldos da Polícia Militar do DF. Essa sinalização foi financeira. O carinho político veio quando daquela "rebelião" no Ceará. O ex-ministro Moro elogiou líderes do movimento.
Outra sinalização, para mim mais preocupante, é uma emenda constitucional que já foi aprovada na Câmara, monitorada pelos policiais e oficiais militares que são deputados, permitindo o retorno à força se não forem reeleitos. Procuram ressuscitar a regra anterior a Castelo. A PEC está parada no Senado, mas a intenção é, em seu momento, tentar mobilizar as Polícias Militares. Mas, a meu ver, tudo depende da habilidade dos governadores, para manter o controle de suas polícias e, claro, das próprias lideranças policiais.
"O carinho foi a sinalização que Bolsonaro deu quando ele, antes da vedação legal, aceitou o aumento dos soldos da Polícia Militar do DF. Essa sinalização foi financeira. O carinho político foi em relação àquela ‘rebelião’ no Ceará"
Lembrem-se, ainda, que os militares da ativa estranharam a posição de Bolsonaro quando ele alterou aquelas portarias do Exército sobre o controle de armas, até agora de competência do Exército. O que fez a revogação das quatro portarias? Primeiro, aumentaria o número de aquisições de munições; segundo, e mais importante, o Exército perderia o rastreamento das armas. E a quem interessa a ausência de controle sobre a compra e o rastreamento das armas? Às milícias.
Temos, assim, dois eixos: as milícias (fala-se, inclusive, em alguma ação judicial para impedir esse “namoro”) e o aceno às Polícias Militares, o que é ruim. Mas eu não creio que as Polícias Militares rompam seu princípio de hierarquia e disciplina, que é muito forte. Mas, como disse, tudo depende da habilidade que possam ter os governadores. Recordo que quem trouxe os policiais militares para a política foram os partidos, porque os votos neles se somariam aos dos outros candidatos, para formar o coeficiente partidário. No início, esses policiais militares atraídos para a política não eram, em geral, os comandantes da força, mas os presidentes dos clubes de subtenentes e sargentos, que se candidatavam a vereadores e deputados estaduais; depois, a coisa cresceu. Temos que estar atentos, imaginem um oficial desses militares eleitos podendo voltar à força.
RPD: O senhor defendia a teoria de que, na História do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto. Mantém essa visão?
NJ: Mantenho e acrescento que o horizonte de solução da crise corrente passa pelo processo eleitoral de 2022. Fala-se em impeachment agora, mas não tem rua ainda para isso. Os riscos de contágio na pandemia podem não estar permitindo a mobilização. Então, deixemos o problema da pandemia passar.
O afastamento do presidente da República pode dar-se pelo impeachment, que é o remédio mais doloroso, envolve somente a Câmara e o Senado, um para receber, e outro para julgar, ou pelo afastamento do presidente por seis meses, por conta de uma denúncia de um crime impetrada pelo Ministério Público, e a Câmara dos Deputados aceitando o prosseguimento da ação penal perante o Supremo.
Essa segunda hipótese ocorreria com um processo que resulta do inquérito decorrente daquelas declarações do ex-ministro Sérgio Moro. A prova afirmada por ele estaria no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. Do meu ponto de vista, falando como advogado, entendo que aquilo não ajudou muito. Pelo contrário, o vídeo, embora terrível para nós, foi avaliado como positivo pela ala bolsonarista: um presidente forte e destemido, bem ao gosto desses setores. O inquérito está lá no Supremo e já foi prorrogado, inclusive, por mais 30 dias, pelo Ministro Celso de Melo. A meu juízo, pelo menos com base naquele vídeo, não dá condenação, salvo se houver outras provas
E a terceira hipótese – esta mais preocupante, pelo menos para o governo – é a ação em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Lembre-se que começou como uma grande campanha contra os movimentos, contra as fake news etc., mas, se chegar a envolver o processo eleitoral, pode levar à cassação da chapa, vale dizer, a nova eleição. Se ocorrer até o segundo ano do mandato do Presidente Bolsonaro, teríamos uma eleição direta, para um novo presidente completar o mandato.
Por enquanto, nenhum desses três mecanismos parece caminhar. Creio que agora não é o momento estratégico para se abrir um conflito concreto. Mas é preciso juntar o povo, juntar as pessoas e não o ódio, motivação preferida pelos bolsonaristas.
Volto ao tema da conciliação, em que continuo acreditando. Durante o Governo Collor, estava no Palácio do Itamaraty e passeava os olhos, distraído, por um quadro tendo como motivo D. Pedro I. Diga-se de passagem, que não é só o Palácio do Planalto que tem obras do Império. No Itamaraty não se vê sequer uma fotografia republicana. É o Barão de Rio Branco e o resto, só imperador, princesa, rainha etc. Acontece o mesmo nos salões da Marinha, aliás. Admirava o quadro, como ia dizendo, quando o Darcy Ribeiro comentou: "Jobim, está estranhando esse quadro?... Esse aí não é o Dom Pedro I, esse é o Dom Pedro IV, olhe para as comendas no peito dele, são de Portugal, não do Brasil. Esse aí é o Dom Pedro IV. Vê como é que é o Brasil? Nós botamos um quadro na parede, do Dom Pedro IV, pensando que é o Dom Pedro I, e aí fica tudo igual".
O que bem ilustra o processo de conciliação. A República foi um processo que decorreu de um conflito do Exército com o gabinete liberal do Visconde de Ouro Preto, onde havia um problema, falando a linguagem moderna, de contingenciamento. O Marechal Deodoro protestou e o que inicialmente um golpe contra o gabinete imperial do Visconde de Ouro Preto se transformou em derrubada do Império.
O espírito de conciliação se estampa na sobrevivência de personagens de um regime no outro. Rui Barbosa, por exemplo, era imperial e resolveu aderir à República, com a retórica de que entrava na República porque ela iria impor a Federação. Na transição de Getúlio, 1945/46, o que é que nós tivemos? Grande parte dos interventores dos Estados, nomeados por Getúlio, virando governadores, e o presidente da República, Dutra, tendo sido o ministro da Guerra anterior. Foram transposições, mesma coisa agora: o regime militar participou da negociação da transição, cujo eixo central foi a concessão da Anistia, que querem derrubar hoje, aliás. Mas a Anistia foi base da transição.
Outra contribuição muito importante foi a posição do Presidente Sarney. Escolhido com vice-presidente na chapa do Tancredo Neves, no lugar do Deputado Nelson Marchezan, o preferido inicial pelo político mineiro. Sarney assumiu a Presidência em momento muito delicado. Ainda fervilhavam os efeitos da campanha liderada pelo Dante de Oliveira, em favor das “Diretas Já”, e a nação mal se recuperava do trauma da morte do presidente eleito. O Presidente Sarney soube conduzir a transição de regime militar em civil com muita habilidade e criatividade. Para devolver os militares aos quartéis, deu-lhes claro sentido de missão, ao atribuir-lhes a incumbência de liderar, por exemplo, o projeto Calha Norte, estratégico para a supervisão da soberania nacional em toda a imensa área de fronteira do Brasil na Amazônia.
A esquerda mais radical não queria isso. À exceção do Partido Comunista, o partidão, os outros partidos de esquerda haviam pregado a guerra armada clandestina. Questões como a guerrilha no Araguaia, por exemplo, retardaram o avanço da transição, acirrando o conflito com os falcões das FFAA, vistos como heróis na luta contra os guerrilheiros, um equívoco político de ambas as partes que retardou por muito tempo a transição.
Acho, portanto, procedente a visão de que foi o processo de conciliação, de negociação, apadrinhado pela transição, que permitiu o apaziguamento. Não vejo, hoje, possibilidade de um conflito porque não existem mais, digamos, generais políticos. Os oficiais superiores das FFAA estão tranquilos, isto é, estão tranquilos, embora preocupados com os movimentos que possam ocorrer. Mas penso que não querem mais, digamos, aceitar vivandeiras, como diria o Castelo, circulando os quartéis.
*Nelson Jobim é jurista, político e empresário brasileiro. Exerceu os cargos de deputado federal, ministro da Justiça, ministro da Defesa e ministro do Supremo Tribunal Federal.