arthur lira

Ribamar Oliveira: A preocupação já é com o próximo ano

A nova “cláusula de calamidade” será usada em 2022

O governo ainda não explicitou a sua proposta para o “novo marco fiscal”, que negocia com os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). As fontes consultadas pelo Valor informaram, no entanto, que a preocupação das autoridades é aprovar um marco legal que permita ajustar as contas públicas do próximo ano, principalmente na eventualidade de que a pandemia da covid-19 se prolongue por mais alguns meses.

Algumas notícias desencontradas dificultam a compreensão do que está acontecendo. Em primeiro lugar, a prorrogação do auxílio emergencial, com benefício mensal em valor substancialmente inferior ao concedido no ano passado, não depende de novos cortes de despesas ou de medidas fiscais adicionais. Simplesmente porque elas já foram adotadas para este ano e constam da proposta orçamentária para 2021, que ainda está em análise pelo Congresso Nacional.

A lei complementar 173/2020 proibiu, até 31 de dezembro de 2021, que a União, Estados e municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia concedam aumento, reajuste ou qualquer vantagem salarial aos membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos. A LC abriu exceção para aqueles aumentos que já tinham sido aprovados pelo Congresso anteriormente, como foi o caso do reajuste para os militares.

O presidente da República, os governadores e os prefeitos ficaram proibidos também de criar emprego, cargo ou função que implique aumento de despesa, realizar concurso, admitir ou contratar pessoal a qualquer título, criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus ou abonos, criar despesa obrigatória de caráter continuado e de adotar medida que implique reajuste de despesa acima da variação da inflação.

Todas as proibições estão previstas no artigo 8º da LC 173, que passou a ser conhecido na área técnica como “cláusula de calamidade pública”. Ela foi uma compensação às imensas despesas da União para preservar os brasileiros e a economia dos efeitos nefastos da pandemia. Quando elaborou a proposta orçamentária para 2021, em agosto do ano passado, o governo adotou as medidas definidas no artigo 8º da LC 173. A “cláusula de calamidade pública” está, portanto, sendo cumprida.

O problema é que, embora a pandemia tenha arrefecido no segundo semestre de 2020, se intensificou no início deste ano, apresentando agora uma segunda onda, tão letal quanto a primeira. Discutiu-se muito a prorrogação do decreto de calamidade pública editado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas a equipe econômica avaliou que a medida não seria necessária. O número de óbitos não parava de diminuir e a economia estava recuperando em “V”.

Com base nessa avaliação, o governo concluiu que não seria necessário prorrogar o auxílio emergencial. E, por isso, não há previsão, na proposta orçamentária para 2021, de despesa com o benefício. Assim, a meta de déficit primário para este ano, proposta pelo governo em dezembro do ano passado, foi definida sem essa despesa.

Agora, diante da segunda onda da covid-19, o governo decidiu prorrogar o auxílio, que custará algo próximo de R$ 30 bilhões. Com essa despesa, não será possível cumprir a meta fiscal estabelecida. O governo precisa, portanto, de um dispositivo legal que o desobrigue de cumprir a meta. No ano passado, a LC 173 deu essa permissão. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que precisa de uma “PEC de Guerra” com a mesma permissão.

Necessita também, segundo informou, de uma “cláusula de calamidade pública”, que defina as medidas a serem adotadas para conter as despesas, nos moldes do artigo 8º da LC 173, compensando a elevação do endividamento público provocada pelo pagamento do novo auxílio emergencial. Guedes precisa da “cláusula” para elaborar a proposta orçamentária de 2022. Isto significa que, se ela for aprovada, os membros de Poder e os servidores não terão aumento salarial também no próximo ano.

Há uma novidade na proposta de Guedes. Ele quer que a “cláusula de calamidade” seja permanente e mais ampla. Ou seja, que ela possa ser acionada em qualquer calamidade que assole o país, um Estado ou município brasileiro. E que não tenha prazo determinado, como ocorreu com a LC 173, cuja cláusula só vale até 31 de dezembro deste ano.

Não está claro qual será a amplitude do conceito de “calamidade”. A situação de insolvência das contas públicas também está incluída no conceito? Se estiver, qual será o limite de deterioração das contas que será considerado como “calamidade”? Não ficou claro também quais serão as medidas de ajuste. A única indicação obtida pelo Valoré que a relação de medidas será maior do que a lista da LC 173.

A prorrogação do auxílio cria outra dificuldade para o governo. Como não havia previsão de pagamento do benefício neste ano, a equipe econômica não incluiu a despesa no montante de títulos que o Tesouro Nacional será obrigado a emitir neste ano para pagar despesas primárias.

A Constituição determina que o endividamento público não pode aumentar acima das despesas de capital (investimentos e amortizações). O princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas. Para emitir títulos para pagar despesas correntes, o governo necessita de autorização do Legislativo. O pedido de crédito suplementar precisa ser aprovado por maioria absoluta de deputados e de senadores.

A proposta orçamentária deste ano prevê que o governo deverá emitir R$ 453,7 bilhões em títulos para cumprir “a regra de ouro”. Com o novo auxílio, o valor vai aumentar. A despesa com o benefício não está submetida ao teto de gastos da União. Ele será pago com crédito extraordinário, que fica fora do teto.

Por fim, é importante observar que tentar criar uma “cláusula de calamidade pública” abrangente e permanente por meio de PEC é um risco considerável, pois ela precisa ser aprovada por três quintos de senadores e deputados, em dois turnos. Talvez fosse melhor criar a “cláusula” por projeto de lei complementar.


Vinicius Torres Freire: Bolsonarismo e bolsonarices custam caro para economia e pobres

Brucutus causam crises políticas que emperram decisões de governo e Congresso

O bolsonarismo custa caro até para Jair Bolsonaro, embora este governo não seja lá muito capaz de fazer certos cálculos pragmáticos a respeito de sua sobrevivência.

O sururu sórdido causado por esse deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) é um exemplo menor, em termos práticos. Afora imprevistos, essa crise não deve paralisar o Congresso por mais que um par de dias. É pouco, mas o tempo já era escasso para aprovar a emenda constitucional que deve abrigar o novo auxílio emergencial e o Orçamento —é preciso fazê-lo até março. Outras bolsonarices ou suas sequelas podem causar mais tumultos políticos e parlamentares que afetariam até as perspectivas abaixo de medíocres da economia para este 2021.

Dezembro e também janeiro foram meses abaixo das expectativas já limitadas de atividade econômica. A julgar pelo valor das vendas por meio de cartões, janeiro foi parecido com dezembro, mês em que, pela estatística do IBGE, as vendas no varejo caíram 6,1% em relação a novembro de 2020. A confiança do consumidor e das empresas continuou baixando no início do ano. É um efeito óbvio de piora da epidemia e do fim do auxílio emergencial e do benefício de complementação de salários reduzidos pelas empresas.

Em junho, pico desses benefícios, os pagamentos foram de R$ 51,8 bilhões (uma vez e meia a despesa anual do Bolsa Família). Em setembro, baixaram a R$ 27,5 bilhões. Em dezembro, para R$ 19,5 bilhões. Em janeiro, para quase nada, restos. Sem demanda a economia volta a murchar. A segunda perna do “V” da recuperação de Paulo Guedes vira uma língua caída para fora.

A fim de criar um novo auxílio emergencial em seus termos, o governo tem de convencer o Congresso a aprovar uma emenda constitucional de “Orçamento de calamidade” associada a corte de gastos, dado de barato pelo comentarismo político e econômico. Como se diz faz meses nestas colunas, isso dá rolo.

Exemplo. Com muito aperto e ajuda de leis, a despesa com a folha de servidores federais caiu de R$ 333,8 bilhões em 2019 para R$ 331,8 bilhões em 2020 (valores ajustados pela inflação). “Ajuste” de R$ 2 bilhões. Pelas novas contas do governo, o novo auxílio deve custar R$ 42 bilhões em 2021 (quatro parcelas de R$ 250 para 42 milhões de pessoas) —no Congresso, a conta tende a ficar maior.

É fácil perceber que não bastará arrumar conflito apenas com o funcionalismo. De onde vão sair outras “compensações”?

Se o rolo for grande, a emenda do novo auxílio pode demorar ou até passar sem as “compensações”, com o que haverá algum custo financeiro (dólar e/ou juros mais salgados).

Quanto mais rolo político, mais difícil aprovar qualquer coisa além do básico do básico (auxílio e Orçamento).

No entanto, como se não bastasse a baderna da sua milícia de brucutus, Bolsonaro decreta coisas como o dilúvio de armas e munições, por exemplo. Em si mesmo uma selvageria, o decreto pode causar mais confusão no Congresso.

Mesmo que a economia não tenha por ora perspectiva decente no médio prazo, Bolsonaro poderia manter o vento a seu favor se lidasse de modo menos idiota com os problemas de agora (vacina, Orçamento, a ideia de que não haverá explosão fiscal no curto prazo). Por ora, está quieto e assim frustra suas milícias por não dar apoio ao deputado brucutu, o “Daniel de Quê?”, segundo Luiz Fux, do Supremo. Mas o bolsonarismo está sempre à beira de dar um tiro no pé, no mesmo com que pisa no pescoço dos brasileiros.


Bruno Boghossian: Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto

Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto

Quando ainda frequentava manifestações que defendiam o fechamento do Congresso e do STF, Jair Bolsonaro trabalhou para proteger os golpistas de seu grupo político. Em abril do ano passado, ele indicou que era preciso mudar o comando da Polícia Federal para frear uma investigação contra deputados que atacavam outros Poderes.

A tentativa de blindagem foi registrada numa mensagem enviada pelo presidente ao então ministro Sergio Moro. Bolsonaro reagiu a uma notícia sobre o inquérito contra seus aliados e escreveu: "Mais um motivo para a troca". Agora preso, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) era um dos integrantes daquele time.

O presidente forçou a troca na PF e produziu uma crise com a demissão de Moro. O governo não conseguiu segurar as investigações, mas o episódio mostrou que Silveira e os demais integrantes daquela tropa de choque não eram um apêndice insignificante do grupo que chegou ao poder depois de 2018.

extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto porque faz parte de um projeto. Em busca de concentração de poder, Bolsonaro investe na corrosão da confiança nas instituições, trabalha para armar apoiadores contra seus adversários políticos e questiona a legitimidade de processos eleitorais, para ficar em exemplos recentes.

Ainda que Bolsonaro tenha fabricado uma trégua com o STF e contratado amigos no Congresso, a máquina golpista continua girando. O presidente pode disfarçar, recusar convites para protestos ou mandar para o exílio um ministro que deixa escapar seus desejos autoritários, mas o vídeo gravado por Silveira ainda reflete a doutrina bolsonarista.

A prisão do deputado é uma ferramenta precária para uma punição necessária. Com boas chances de ser derrubada pela Câmara, a decisão deve ampliar tensões e abastecer os instintos radicais que dão vida ao extremismo político. Para sobreviver, instituições que foram omissas por décadas terão que acordar e reforçar a vigilância."


Maria Hermínia Tavares: Acolhida assegurada

O jornal registrou com destaque a grande manifestação coletiva da comunidade acadêmica contra o regime militar

"Com 6 mil inscritos, SBPC abre sua reunião", foi a chamada de primeira página da edição de 6 de julho de 1977 desta Folha, anunciando a 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. O destaque se explica por não ser aquele mais um evento como os que a organização promovia para discutir, com reduzido grupo de iniciados, trabalhos geralmente ininteligíveis para os leigos.

Proibido de se realizar na Universidade Federal do Ceará, o encontro foi transferido para a PUC de São Paulo, onde se tornaria a primeira grande manifestação coletiva de repúdio da comunidade acadêmica ao regime militar, dando assim a partida ao seu engajamento aberto na luta pela democracia.

Durante uma semana, nenhum tema relevante para o país foi esquecido: do acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha, alvo de críticas da Sociedade Brasileira de Física, à desigualdade de renda produzida pela política de arrocho salarial da ditadura; do papel do Estado na economia ao modelo político autoritário; das mudanças demográficas ao surgimento de novos movimentos e demandas sociais. Ao longo desse período, os principais debates foram registrados por este jornal. Podem ser lidos no seu arquivo digital.

Foi um momento importante da década de transição do autoritarismo para a democracia. A ele se seguiram outros como os protestos estudantis, as greves operárias no ABC paulista, pronunciamentos empresariais, as eleições de 1982 e a campanha das Diretas Já. Mas o episódio da SBPC, importante em si mesmo, marcou também a abertura de espaço neste diário para o debate de ideias e para os intelectuais que as vocalizaram. Até então, eram território quase exclusivo da imprensa chamada nanica —em semanários como O Pasquim, Opinião ou Movimento. Abrigados pelos grandes veículos, ganharam outra ressonância. Produziram ideias e valores que iriam desembocar na visão generosa de país plasmada na Constituição Cidadã de 1988 e nas políticas sociais das décadas seguintes.

O restabelecimento do regime de liberdades, depois de 20 anos, foi uma obra tocada a muitas mãos e em diferentes palcos, erguidos na sociedade e na esfera da política. Assim também a defesa do sistema democrático hoje ameaçado pela extrema direita virulenta, cujo mentor, de arminha apontada para o direito à informação sem mordaça, vocifera que "o certo" seria "tirar de circulação" os principais órgãos da imprensa. Eis por que o debate informado e acessível a um público amplo é uma dimensão desse interminável empreendimento coletivo, com acolhida assegurada em um jornal centenário.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 


Roberto Macedo: Sistema político passou ao incentivado presidencialismo de cooptação

Parlamentares ficam soltíssimos para defender interesses pessoais e grupais

Há o presidencialismo de coalização, descrito como uma combinação do presidencialismo com o apoio de uma coalizão multipartidária no Legislativo. Segundo o cientista político Sérgio Abranches, que criou esse conceito, “... é um requisito imprescindível da governabilidade no modelo brasileiro. Nem todos os regimes presidenciais multipartidários dependem tanto de uma coalizão majoritária. No Brasil, as coalizões não são eventuais, são imperativas. Nenhum presidente governou sem o apoio e o respeito de uma coalizão. É um traço permanente de nossas versões do presidencialismo de coalizão”.

E há o presidencialismo de cooptação. Nele o presidente busca o apoio de parlamentares por meio do toma lá verbas e cargos e o dá cá apoio parlamentar. Outra diferença relativamente ao de coalização é que essa troca se dá com parlamentares específicos, ou um grupos deles, e pode ser feita mesmo contrariando a orientação das lideranças e dos programas partidários.

A recente eleição para a presidência da Câmara e a do Senado foi bem mais na linha da cooptação do que da coalizão. Meu artigo anterior neste espaço destacou a reportagem deste jornal Por eleição, Planalto libera R$ 3 bi a parlamentares, publicada em 29 de janeiro. Nela, o que chamou a atenção foi a grande dimensão desse valor, a coincidência dos entendimentos com o período pré-eleitoral nas duas Casas e o amplo alcance de negociações individuais. O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que tentou articular uma candidatura em oposição à apoiada pelo Executivo, até reclamou quanto à cooptação praticada.

O senador Tasso Jereissati, em entrevista ao jornal O Globo digital no domingo passado, afirmou: “... esse período agora é diferente, (...) todos os partidos, todos, foram triturados (...) pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. (...) Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. (...) o processo (...) nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual”.

A cooptação individualizada envolveu grupos de tamanho relevante no contexto das organizações partidárias, mas também houve dentro delas grupos contrários à cooptação, com o que vieram rachas partidários marcados por posições opostas na eleição. O mais evidente foi no DEM, de Rodrigo Maia, onde alcançou o grupo dele em contraposição ao do ex-prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto. Os dois até trocaram impropérios em declarações à imprensa.

Outro racha muito citado foi no PSDB. Aí a liderança do governador João Doria alcançava deputados que votaram em Baleia Rossi, o candidato articulado por Rodrigo Maia. Mas houve também quem optasse por Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro. O deputado tucano Aécio Neves, uma liderança em evidente declínio nacional, ainda assim foi apontado por Doria como um dos mobilizadores desse apoio, novamente com troca de insultos entre as partes.

Esses dois partidos terão enorme trabalho para recuperar sua identidade programática, e arregimentar seus membros em torno dela, se quiserem ter uma influência de peso nas eleições de 2022. Tudo isso tem como pano de fundo um sistema partidário e eleitoral que cria incentivos para os parlamentares buscarem as cooptações. Não havendo o voto distrital, eles não são cobrados pelos eleitores ao longo de seus mandatos, nem tomam por si a iniciativa de relatar o que fazem, ficando assim soltíssimos para defender interesses pessoais e de grupos que os pressionam. Esse comportamento é também aético, pois se desvia do que, como representantes do povo, e não de si mesmos ou desses grupos, deveria marcar as atitudes parlamentares, a defesa do bem comum.

Temas como a retomada do crescimento econômico, o enorme tamanho e a disfuncionalidade do Estado brasileiro, as carências educacionais, sanitárias, ambientais e tecnológicas, a imagem do Brasil no plano internacional, onde está bem atrás dos países que mais avançam, nada disso parece despertar seu interesse e o empenho em ações corretivas. Salvo exceções cada vez mais excepcionais, o que os move mesmo é o interesse em renovar seus mandatos, para o que focam nas distribuições de benesses, sem ponderar seus custos, e no apoio político inquestionado a quem tem o poder de financiar seus projetos eleitorais.

No contexto desse poder, tem papel importante a enorme quantidade de cargos governamentais a oferecer e a liberação de verbas de interesse exclusivo dos parlamentares e de seus apoiadores, as quais constituem financiamento público indireto de campanhas eleitorais, em prejuízo de candidatos não incumbentes.

Mas a Constituição não diz que todos são iguais perante a lei? Ora, no Brasil é costume dizer que leis são como vacinas: umas pegam, outras não. Assim, o momento atual, o das vacinas previamente testadas, deveria servir para o País buscar vacinas legais eficazes contra nossos muitos males político-institucionais.

*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É consultor econômico e de ensino superior


Ricardo Noblat: Acordão para salvar o mandato de Silveira será testado hoje

Silêncio de Bolsonaro não significa indiferença

A princípio, Jair Bolsonaro pouco estaria se lixando para o destino do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), preso por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal depois de atentar contra o Estado de Direito. Faz parte do DNA do presidente largar no campo de batalha aliados que se tornam incômodos. Para os filhos, suspeitos de crimes, a regra não vale. Por eles, mata e é capaz de morrer.

Mas Silveira, a essa altura, por tudo que já disse e fez, espelha melhor do que ninguém a extrema direita que apoia Bolsonaro desde que ele se elegeu vereador pelo Rio e passou quase 30 anos como deputado federal. Bolsonaro teme perder parte desse apoio se nada fizer em favor de Silveira, e, pior: se sua turma mais radical, por medo, deixar de se opor com estridência ao Supremo.

Bolsonaro nada disse ainda sobre a prisão de Silveira, mas por interpostas pessoas, agiu em sua defesa. Aprovou a iniciativa de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, de acionar o desativado Conselho de Ética da Casa para aplicar algum tipo de punição a ele que não seja a cassação do seu mandato. Quem sabe assim o Supremo não se daria por satisfeito e relaxaria a prisão?

Aprovou também a iniciativa da Procuradoria-Geral da República de denunciar Silveira por quatro crimes: praticar agressões verbais e graves ameaças contra ministros do Supremo em direito próprio; incitar o emprego de violência e grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário; e incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo.

O diabo, porém, mora nos detalhes: a Procuradoria não pediu a prisão preventiva de Silveira apesar das pesadas acusações que lhe fez. Pediu que ele seja monitorado por meio de uma tornozeleira, que se recolha em seu domicílio à noite e que seja proibido de frequentar as dependências do Supremo. Que tal? É uma isca para que haja um acordo entre o tribunal e a Câmara.

Quando o ex-ministro Sérgio Moro acusou Bolsonaro de intervenção na Polícia Federal, a Procuradoria requereu ao Supremo a abertura de inquérito contra o presidente. O ministro Celso de Mello autorizou. As investigações se arrastam há meses. É pule de 10 que a Procuradoria concluirá pela inocência de Bolsonaro e arquivará o inquérito. Assunto encerrado.

Está marcada para esta tarde a audiência de custódia do deputado. Nela, o ministro-relator, Alexandre de Moraes, pode decidir se a detenção será mantida, se ele será libertado ou se a prisão será revertida em medida cautelar do tipo: uso de tornozeleira eletrônica, afastamento do mandato, proibição de se relacionar com outros investigados no mesmo inquérito.

Uma vez que os 11 ministros do Supremo concordaram com a prisão de Silveira, por que relaxá-la 24 horas depois? O que ontem pareceu tão grave a ponto de se mandar a Polícia Federal atrás de um parlamentar, hoje simplesmente deixaria de ser? Justiça é para aplicar a lei, não para participar de tenebrosas transações. O que está em questão é o Estado de Direito. Foi ou não violado?

Que fique com a Câmara, inoculada pelo germe do corporativismo, o ônus de livrar a cara de Silveira se assim preferir. A coleção de vídeos gravados por ele, e mensagens postadas nas redes sociais servirão como provas de que neste país se pode desrespeitar a Constituição e ferir o decoro e, no entanto, escapar sem sofrer maiores danos. Por falar em decoro…

Seja bem-vindo de volta ao Congresso o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) que entrou de licença por 121 dias depois que a Polícia Federal o flagrou com mais de 30 mil reais escondidos dentro da cueca. Seu caso não foi analisado até hoje pelo Conselho de Ética da Casa. O Senado passou os últimos quatro meses com 80 integrantes. Vida que segue, como se nada tivesse acontecido.


Merval Pereira: A que ponto chegamos

Nossa mais recente crise institucional, não a derradeira, é consequência da leniência com que as instituições vêm tratando os frequentes abusos autoritários do presidente Bolsonaro e de seus radicais seguidores. Chegamos a essa situação, e não é a primeira desse tipo, porque o Congresso aceitou que deputados bolsonaristas e milícias digitais promovessem, como continuam a fazer depois da prisão do deputado federal (ainda?) Daniel Silveira, ataques às instituições, e que as Forças Armadas aderissem acriticamente ao governo Bolsonaro e aceitassem, algumas vezes com o endosso tácito até mesmo do ministro da Defesa, diversas tentativas de transpor as linhas da legalidade, contra a democracia.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo encarregado das negociações com os parlamentares, quase nunca fundadas em bases republicanas, declarou que não se envergonha dessas negociações. Deveria, pois assumiu, na sua faceta civil, a parte apodrecida das relações políticas, a mesma tática que o leva, e a outros generais, a repudiar o lulopetismo e, anteriormente, o próprio Centrão. Lembram-se do general Heleno cantando na campanha eleitoral “se gritar pega ladrão, não sobra um no Centrão?”.

A revelação do general Villas Bôas de que a nota de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera do julgamento de um habeas corpus a favor do ex-presidente Lula foi feita não em caráter pessoal, mas pelo Alto-Comando do Exército, é muito mais grave do que já parecia há três anos. Não importa se você gosta do Lula ou não, se acha que ele merecia o habeas corpus ou não. É um absurdo que o Alto-Comando do Exército respalde uma declaração daquelas às vésperas de um julgamento do STF.

É por isso que gente como esse deputado bolsonarista se acha em condições de fazer o que fez, de afrontar o Supremo. É inexplicável, também, a ironia atual do general em relação à nota que o ministro Edson Fachin soltou, de repúdio à revelação. Fachin não falou há três anos porque falou pelo STF o decano Celso de Mello, rebatendo vigorosamente a tentativa de pressão ilegal.

Esta crise que estamos vivendo, política e institucional, vem da aceitação de um governo autoritário, antidemocrático, que usa as Forças Armadas para se respaldar nessas ações e usa milícias digitais, que podem se transformar em milícias reais com os decretos de liberação de armas. Bolsonaro está armando a população claramente com o intuito de ter uma militância armada para se impor, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Trump tinha milícias armadas que desfilavam pelas ruas. Nos EUA é mais comum o porte de arma, então os militantes andavam altamente armados nas ruas e invadiram o Capitólio por incitação do ex-presidente Trump, que agora será processado civilmente por essa atitude, já que, politicamente, o Partido Republicano não permitiu que fosse impedido de continuar atuando na política.

Estamos chegando ao ponto em que as autoridades terão que tomar uma decisão, porque a democracia está permanentemente sob ataque neste governo Bolsonaro. O mais importante hoje é saber como a Câmara se comportará. No caso de Delcídio do Amaral, o Senado aprovou imediatamente a decisão do STF. Neste caso, há muita resistência, inclusive na base bolsonarista radical que está atuando e continua atacando o Supremo e a democracia, continua atacando os representantes das instituições que consideram agir como agentes da esquerda internacional, numa das várias teorias conspiratórias que espalham.

O importante é saber se a nova base do governo Bolsonaro vai se impor, a ponto de não aceitar a prisão do deputado (ainda?), um sujeito desqualificado, já investigado em dois outros inquéritos no STF, por atitudes antidemocráticas e por espalhar fake news. Saber se o corporativismo que protege uma deputada acusada de homicídio e outro, um senador, apanhado em flagrante com dinheiro escondido nas suas partes íntimas, chega ao ponto de acobertar ataques antidemocráticos de um autoritário que, ironicamente, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional da ditadura militar que tanto venera.


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro ganha circo e Lira perde o pão

Daniel Silveira ajuda o presidente da República com pauta diversionista que tira o foco da pandemia

Se o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pretendia encabeçar uma manobra diversionista com o vídeo em que afrontou o Supremo Tribunal Federal, foi bem-sucedido. E não apenas por ter dividido as atenções da plateia em relação às responsabilidades do presidente da República numa quarta-feira de cinzas que amanheceu sem vacinas em várias cidades do país. Também tirou o foco de outro personagem-chave da conjuntura, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Ao contrário de Bolsonaro, porém, o diversionismo atuou em prejuízo das pautas que alimentam Lira.

O presidente da Câmara tem como prioridade zero de sua gestão a consolidação do desmonte lavajatista com a desidratação das instituições de controle. Basta ver o grupo de trabalho por ele instalado na semana passada que tem por objetivo promover mudanças na legislação eleitoral. Quinze entidades de combate à corrupção lideradas pela “Transparência Partidária” se insurgiram em carta contra o procedimento por entenderem que a discussão seria mais condizente com os ritos de uma comissão especial, como prevê o regimento, do que com um grupo de trabalho.

Nas entrelinhas da carta está o temor de que a gestão de um presidente da Casa que é réu no Supremo e exerce seu mandato com base numa liminar, tenha como resultado um afrouxamento da Lei da Ficha Limpa, da improbidade administrativa e nas prerrogativas da Justiça Eleitoral. Paradoxalmente, Daniel Silveira só não se encaixa na mesma condição de Lira porque, como mostrou Sérgio Ramalho, do “The Intercept”, o deputado acumulou licenças na Polícia Militar para não responder a processo cujo resultado o tornaria inelegível.

O plenário da Câmara que se debruçará sobre a decisão unânime do Supremo de confirmar a prisão de Daniel Silveira ainda é caudatário da folgada eleição de Lira por 302 votos. O presidente da Casa é o maior eleitor desta decisão sobre o deputado do PSL, mas a enfrenta emparedado. Se acatar a decisão do Supremo, afrontará suas convicções e de seus aliados que temem abrir a porteira para a prisão em flagrante de parlamentares. Se for na direção contrária, afrontará a Corte em que é réu e com a qual pretende construir pontes para o desmonte do que resta de lajavatismo.

Por isso, ganhará tempo. A Constituição submete a decisão do Supremo ao plenário da Câmara, mas o regimento da Casa prevê um longo trâmite por instâncias que nem instaladas estão, como a Comissão de Constituição e Justiça. Se estivesse em funcionamento sob a presidência da correligionária de Daniel Silveira, Bia Kicis (PSL-DF), Lira teria menos margem de manobra. Como não há CCJ, o processo é remetido à Mesa Diretora da Casa e, só então, ao plenário da Câmara. O regimento prevê deliberação secreta, mas o Supremo já firmou jurisprudência pelo voto aberto.

Aliados de Lira lembravam ontem a previsão regimental de apresentação de Silveira à Câmara para que o deputado permaneça sob sua custódia até a deliberação do plenário por um prazo de até dez sessões. Ao longo desse período, luminares do Centrão esperam que a pressão sobre a Casa possa vir a se diluir com o andamento do processo resultante da denúncia da Procuradoria-Geral da República que sugere até prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica a Silveira.

A denúncia, que pode ser acolhida pelo Supremo sem prévia autorização da Câmara, daria, na expectativa de alguns parlamentares, uma satisfação à opinião pública, aliviando as pressões sobre a Casa. O presidente da Câmara pode, ainda, ganhar tempo se comprometendo com a análise do processo pelo Conselho de Ética e depois, tendo em vista as emergências cotidianas, deixar o tema cair no esquecimento. O deputado Eduardo Bolsonaro, por exemplo, é alvo de dois processos de um conselho que mal funcionou nesta legislatura. A deputada Flordelis de Souza (PSD-RJ) também transita longe dos holofotes e do conselho.

Ao repassar a denúncia para o vice-procurador-geral, Humberto Jacques, Aras livrou-se do embate direto com o bolsonarismo a cinco meses da vacância da cadeira do ministro Marco Aurélio Mello. Ficou claro, porém, na denúncia, que a PGR já tinha motivos para denunciar o deputado desde os primeiros vídeos de 2020. Só o fez agora porque já não havia como contorná-la. Foi Rodrigo Janot quem pediu a prisão do então senador Delcídio do Amaral, em 2015. Ao Supremo não restou alternativa senão decretá-la. Já a letargia de Aras é tamanha que Moraes acabou acomodando a prisão num inquérito polêmico do qual o Supremo é vítima, investigador e julgador.

Com o inquérito, a Corte mantém a corda esticada com Bolsonaro. A sanfona de prazos facultada pela tramitação dos inquéritos no Supremo facilita o jogo de morde e assopra. Seu andamento pode obedecer ainda à conveniência das prioridades comuns a Lira na desidratação do controle da corrupção.

De todos os personagens deste enredo, aquele a quem o imbróglio Daniel Silveira deixou em posição mais confortável foi o piloto de jet-ski do feriado de carnaval. O presidente Jair Bolsonaro engatou um diversionismo com os decretos de liberação de armas e a promoção do spray nasal israelense contra o coronavírus, mas Silveira superou a todos. A novela sobre seu destino dividirá as atenções com o desastre governamental na pandemia.

O protagonismo de Silveira ainda ofereceu ao general Eduardo Villas Bôas o melhor parceiro para o enredo com o qual, desde sua posse no comando do Exército, reabriu o porão. Antes do carnaval, o ex-comandante colocou na pista o livro-entrevista no qual volta a defender o tuíte ameaçador ao Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A escola evoluiu na avenida vazia com a nota do ministro Edson Fachin, a ironia de Villas Bôas sobre a demora da reação e o tuíte duro do ministro Gilmar Mendes contra o deboche do general. Antes que as cinzas da quarta-feira chegassem, Silveira demonstrou que no porão destravado por Villas Bôas, não há apenas reformados fantasiados de generais, mas cidadãos cada vez mais armados de ódio à democracia. O mesmo que elegeu Bolsonaro e o mantém no poder.


Felipe Betim: Daniel Silveira, o ‘pit bull’ bolsonarista eleito para atacar a democracia

Deputado federal, preso pelo STF na noite de terça-feira, ficou conhecido por quebrar a placa que homenageava a vereadora Marielle Franco, uma violência simbólica que vem marcando seu mandato

policial militar licenciado Daniel Silveira (Petrópolis, 38 anos) ganhou visibilidade política nacional a poucos dias do primeiro turno das eleições de 2018. Na época candidato a deputado federal do Rio de Janeiro pelo Partido Social Liberal (PSL), quebrou durante ato de campanha a placa de rua que homenageava a vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada a tiros em 14 de março daquele ano, junto com os hoje deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) e governador do Rio afastado Wilson Witzel (PSC). A ação foi exitosa. Silveira acabou eleito na esteira do bolsonarismo com 31.789 votos, com o lema “não é uma festa democrática, é uma guerra contra a corrupção”. De certa forma, aquele ato anunciou o que estava por vir.

Até acabar preso na noite desta terça-feira, a atuação parlamentar de Silveira foi marcada pela mesma violência simbólica que representou a quebra da placa de Marielle. Com 1,90 metro de altura e porte atlético, investe no personagem de pit bull bolsonarista sem papas na língua que parece a todo momento pronto a recorrer à violência física se preciso. Fala grosso com a esquerda, enfrenta jornalistas, faz ameaças nas redes sociais contra quem se coloca em seu caminho, defende publicamente a truculência policial. O parlamentar sempre se valeu do argumento de que, como cidadão, possui direito a liberdade de expressão. E, como deputado federal, tem direito a imunidade parlamentar que lhe garante passe-livre para falar o que quiser sem ser incomodado, mesmo passando de todos os limites razoáveis.

Foi fiel a esse estilo mesmo após ter sido preso em flagrante por ordem do ministro Alexandre de Moraes. Já detido, se recusou a usar máscara de proteção durante sua passagem pelo Instituto Médico Legal (IML) e hostilizou uma policial civil. “A senhora não manda em mim não. Tá achando que sou vagabundo?”, questionou. “E se eu não quiser botar? Eu também sou policial e sou deputado, e aí?”, desafiou.

Em uma ocasião, Silveira já insultou o jornalista Guga Noblat e jogou seu celular no chão. Em outra, tentou entrar sem avisar no colégio federal Pedro II, no Rio de Janeiro, para fazer o que chamou de “vistoria”. A ação foi interpretada como intimidatória e gerou revolta nos estudantes, que enxotaram o parlamentar. Mais grave ainda, Silveira cotidianamente atenta contra a democracia ao defender com intervenção militar, um novo AI-5 ou o linchamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Os vídeos que resultaram em sua prisão são o principal exemplo dessa atuação violenta e de seu flerte com o golpismo. Em um deles, se dirigiu ao ministro Edson Fachin: “Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu  fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime”, desafiou. “Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência após a refeição, não é crime”.

Em outro trecho, faz um ataque generalizado ao STF: “Eu sei que vocês vão querer armar uma pra mim pra poder falar ‘o que é que esse cara falou no vídeo sobre mim, desrespeitou a Supremo Corte’. Suprema Corte é o cacete”, afirmou. “Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de onze novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereceram. Vocês são intragáveis”.

Parte da tropa de choque fiel ao presidente Jair Bolsonaro, o que fala e pensa reflete a essência ideológica da extrema direita bolsonarista. Essa doutrina se reflete nos 47 de projetos de lei que já apresentou. Alguns fazem guinadas a policiais, como o projeto que reconhece que profissionais da segurança fazem trabalhos insalubres e de risco, o que prevê isenção de IPI na compra de arma, munição e blindagem de veículo ou o que garante atendimento médico ao policial ou bombeiro ferido durante o exercício de sua função pública.

Em outros, pretende endurecer a pena de prisão para usuários de drogas, aumentar as condições para que presos possam sair temporariamente da cadeia, permitir que professores usem armas não-letais nas escolas para se defender ou instituir um dia em memória das vítimas contra o comunismo —a data seria 31 de março, a mesma golpe militar no Brasil em 1964. Somente um projeto foi aprovado: a criação do Dia Nacional de Políticas de Prevenção de Desastres Naturais e Calamidades Públicas.

Conduta pouco exemplar

Essa arrogância se expressa em sua recusa em se apresentar ao Ministério Público Federal, que há oito meses tenta escutar Silveira no âmbito de um inquérito que investiga o ex-policial por improbidade administrativa, segundo informou a revista Época. Silveira há meses paga 10.000 reais mensais a um advogado de Petrópolis e tem valor reembolsado pela Câmara, sob o argumento de que recebe consultoria para a produção de projetos de lei. Até o momento, 190.000 reais de dinheiro público foram gastos.

Sua atuação como policial militar durante os mais de cinco anos em que esteve ligado à corporação também está longe de ter sido exemplar. “Em virtude de numerosas transgressões disciplinares cometidas ao longo de 2013 e 2017, por atrasos e faltas aos serviços”, afirma um boletim interno publicado pelo portal The Intercept, “o soldado acumulou em seu histórico 60 sanções disciplinares, 14 repreensões e duas advertências”. O então policial chegou a acumular 26 dias de prisão e 54 dias de detenção no quartel, o que deixa “cristalina a sua inadequação ao serviço na Polícia Militar”, diz o documento. “Fui preso por bater de frente com a arbitrariedade, contra ordens absurdas de alguns oficiais. O regulamento da PM, que é militar, é extremamente rígido”, disse em vídeo publicado no Facebook.

Mesmo antes de ingressar na corporação, Silveira já dava amostras de ser incompatível com o serviço público. Durante o processo, foi descoberta uma prisão por suspeita de venda de anabolizantes em academias de Petrópolis. Com essa passagem pela polícia em seu histórico, Silveira teve de recorrer à Justiça para finalmente entrar na corporação. Um processo para impedir sua permanência foi aberto, mas acabou arquivado em 2014 após chegar ao Supremo e sofrer vários vaivéns jurídicos.

Uma vez dentro da corporação, foi transferido para o batalhão de Duque Caxias, na Baixada Fluminense —região dominada por grupos milicianos—, onde costumava filmar com o celular suas ações de patrulhamento. Em perfil publicado pela revista Piauí, afirmou rindo que não dava para contar quantas vezes apertara o gatilho. “Matei o quê? Uns doze, por aí, mas dentro da legalidade, sempre em confronto”, afirmou.


Vinicius Sassine: Os comandantes e o bolsonarismo

Próximos anos podem servir para novas reações à relação entre um comandante e o ex-capitão

No comando do Exército, o general Eduardo Villas Bôas agiu para pressionar o STF e para favorecer seu candidato à Presidência: Jair Bolsonaro. Um tuíte com verniz conspiratório, agora dissecado pelo próprio Villas Bôas, foi feito para interferir no julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula, em 2018. A prisão do petista mudou a eleição.

As reações ao que ocorreu naquele momento-chave chegam com um atraso já habitual na democracia brasileira. Além de tardias, não passam de ruídos. E o mesmo deve ocorrer em relação à postura de um outro comandante, sucessor de Villas Bôas e atual líder do Exército brasileiro: o general Edson Leal Pujol.

Pujol não é Villas Bôas. Seu estilo é quase o oposto. Não há verborragia, redes sociais, pontes sólidas no mundo político ou ausência de sutilezas. Mas o comandante serve ao ideário bolsonarista, e sua conduta (ou a ausência dela) ajuda a compor as ofensivas mais danosas de Bolsonaro nesta primeira metade de mandato.

A permanência do general Eduardo Pazuello no cargo de ministro da Saúde e na ativa do Exército contou com aval de Pujol. Pazuello, hoje, é investigado por crimes e improbidade, suspeito de omissão diante de iminentes mortes por asfixia.

O laboratório do Exército produziu 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina, droga sem efeito para Covid-19, porque não houve objeção do comandante. Pelo contrário: o Exército distribuiu o medicamento de Bolsonaro a estados e municípios.

E o armamento da população, com flexibilização de regras, passa diretamente pelo esvaziamento de atribuições do Exército. Mais uma vez, Pujol é condescendente.

O comandante justifica a postura com explicações genéricas. "O laboratório do Exército é executor, não decide sobre medicamentos." Ou: "A passagem do militar à inatividade não é decisão discricionária do comandante". Os próximos anos podem servir para novas reações à relação entre um comandante e o ex-capitão.


Hélio Schwartsman: O golpe dos militares

Esforço para convencer de que a ditadura era coisa do passado não passou de propaganda enganosa

Por algum tempo eu acreditei que as Forças Armadas brasileiras haviam se profissionalizado, abandonando de vez a ingerência política e buscando o aprimoramento técnico. Eu estava errado.

Especialmente nos anos 1990 e na primeira década deste século, os militares brasileiros empreenderam um grande esforço de relações públicas para nos convencer de que a ditadura era coisa do passado e que as Forças Armadas estavam comprometidas com a democracia e preocupadas com a eficiência.

É claro que os militares ainda torciam o nariz para iniciativas como a Comissão da Verdade e, de vez em quando, algum deles, em geral um general de pijama, vinha com um discurso com ares de recaída autoritária. Nada que preocupasse muito. Bastaram, porém, alguns anos com a perspectiva de exercer mais poder, para constatarmos que tudo não passava de propaganda enganosa.

É complicado julgar uma instituição por alguns de seus membros, mas, se a performance dos militares no governo é representativa das Forças Armadas, a competência passa longe dos quarteis. O caso mais gritante é o do general Eduardo Pazuello, perdido no Ministério da Saúde, mas não é o único. Nunca um governo teve tantos militares em seus quadros e nunca vimos uma administração tão ineficaz quanto esta.

O compromisso com a democracia também não era firme. O famoso tuíte de 2018 em que o general Eduardo Villas Bôas fez ameaça velada ao STF até poderia, com boa vontade, ser classificado como estupidez individual. Agora que ficamos sabemos que a mensagem resultou de uma trama envolvendo toda a cúpula do Exército, o caso ganha outra dimensão.

Num país mais decente, os generais que participaram da reunião e ainda estão na ativa seriam postos na reserva e se abriria uma investigação para apurar sedição. Mas estamos no Brasil. Não precisam se preocupar com isso. Tolo sou eu que acreditei no golpe de marketing castrense.


Bernardo Mello Franco: Gilmar e Fachin no baile de máscaras do Supremo

O carnaval foi cancelado, mas o Supremo manteve viva a tradição do baile de máscaras. Na terça-feira gorda, o ministro Gilmar Mendes voltou a se exibir em nova fantasia. Ex-integrante do Bloco da Lava-Jato, ele agora desfila na ala dos críticos da operação.

Em entrevista à BBC News Brasil, Gilmar disse que a força-tarefa de Curitiba virou “movimento político” e “tinha candidato” na última eleição presidencial. Faz sentido, mas parece que ele demorou a notar.

Por muito tempo, o ministro elogiou os métodos de Moro, Dallagnol & cia. Em setembro de 2015, ele disse que a operação salvou o Brasil de virar uma “cleptocracia”. “A Lava-Jato estragou tudo”, comemorou.

Seis meses depois, Gilmar barrou a nomeação de Lula para a Casa Civil com base num grampo divulgado ilegalmente por Moro. A liminar invadiu atribuição do Executivo e deu o empurrão final para o impeachment.

Consumada a queda de Dilma Rousseff, o ministro passou a enxergar abusos na Lava-Jato. Em entrevista recente, ele apontou um “jogo de promiscuidade” entre juiz e procuradores. Curiosamente, não viu problema em seus 43 telefonemas com Aécio Neves quando o tucano era investigado por corrupção.

Com a fantasia de garantista, Gilmar reciclou a imagem e virou herói de setores da esquerda. A amnésia faz parte da folia, mas a Lava-Jato é a mesma de outros carnavais. Quem mudou foi o supremo ministro.

Na segunda-feira, Edson Fachin brilhou como destaque no baile de máscaras. Em nota, ele afirmou que a pressão de militares sobre o Supremo é “intolerável e inaceitável”. O ministro tem razão, mas está atrasado.

Quando o general Villas Bôas emparedou o tribunal com uma ameaça de golpe, às vésperas da eleição de 2018, Fachin silenciou. Quase três anos depois, desperta para a interferência “gravíssima” dos quartéis.

A esta altura, o protesto não tem qualquer efeito prático. Só serve como tentativa de retocar a biografia do ministro. Ainda assim, ele virou alvo de novo deboche do general