arthur lira
Marcus Pestana: O novo ciclo político aberto em 2021
Fechadas as urnas no Congresso Nacional, temos novos presidentes no Senado Federal e na Câmara dos Deputados. Eleitos Rodrigo Pacheco (DEM/MG) e Arthur Lira (PP/AL), eles serão agora atores centrais na organização da agenda de debates e deliberações para o enfrentamento da pandemia, a retomada da economia e o combate aos seus graves efeitos colaterais no plano social.
Houve uma mudança significativa no quadro político. O atual governo foi produto de uma eleição disruptiva ocorrida sobre o signo de uma “nova política”. A partir daí, tivemos, em 2019, a ruptura com o modelo de presidencialismo de coalizão, predominante desde o nascimento da Nova República em 1985. Houve uma aposta num verdadeiro presidencialismo de confrontação, quando o ambiente institucional sofreu grande deterioração.
Em 2020, com a pandemia e os naturais problemas de governabilidade, foi operada uma correção de rota, com o governo se aproximando do chamado “Centrão”, antes tão criticado como expressão máxima da “velha política”.
No Senado Federal não haverá grande descontinuidade e as eleições internas não foram tão traumáticas, embora haja diferenças de estilo entre os senadores Davi Alcolumbre e Rodrigo Pacheco. Na Câmara, a mudança na correlação de forças foi radical. O “Centrão” se fortaleceu e passa a ser o grande fiador do governo. O centro democrático sofreu um abalo profundo com as divisões ocorridas no DEM e no PSDB. E a esquerda abriu uma porta de diálogo com o centro, não sofreu perdas significativas, embora a divisão tenha sido grande no PSB, e continuará sua atuação minoritária de oposição, tendendo a radicalizar sua postura.
Afastado momentaneamente o fantasma de um processo de impeachment contra o presidente da República, o importante é superar as feridas naturais em um processo eleitoral interno radicalizado, e retomar o diálogo sobre a agenda que interessa ao país. No plano sanitário, o centro de gravidade está mais no plano administrativo. Não há que se inventar a roda. O bordão tem que ser vacinar, vacinar, vacinar, rapidamente a população.
Mas, na economia e no combate ao agravamento da pobreza, precisamos avançar e muito a agenda legislativa. O movimento UNIDOS PELO BRASIL, coordenado pelo Centro de Liderança Pública (CLP) e congregando 20 instituições de caráter nacional lançou uma interessante proposta baseada em três pilares: retomada do crescimento, combate às desigualdades e crescimento sustentável.
A agenda reformista lista 25 Projetos de Lei e Propostas de Emenda Constitucional prioritários em tramitação no Congresso Nacional, a saber: reforma tributária, lei das contratações temporárias, lei da meritocracia, lei da improbidade administrativa, lei dos privilégios do magistrado, lei do desligamento do servidor, autonomia do Banco Central, extinção do FAT e reformulação do FGTS, lei das debêntures, marco do saneamento, lei do gás, lei da governança da ordenação pública econômica, marco do setor ferroviário, lei dos penduricalhos, PEC emergencial, lei da partilha no petróleo, lei da garantia física das usinas, lei do documento eletrônico, lei do desmatamento zero, lei do licenciamento ambiental, novo marco do setor elétrico, sistema nacional de educação, PEC da renda básica.
Portanto, existe uma bússola na mesa. Existem outras. Mãos à obra, o Brasil tem pressa.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
César Felício: O 2022 de cada um
No cenário da sucessão presidencial, Luciano Huck busca seu nicho e ACM Neto prioriza a Bahia
São significativas as condicionantes para que o apresentador Luciano Huck entre na disputa de 2022. Huck já acumulou forças no sentido de ter equipe, conhecimento de questões de Estado, estudou o mapa das armadilhas que uma campanha presidencial em si encerra. Sabe que vai apanhar, sabe que precisa aprender a bater.
A decisão de concorrer, contudo, está travada porque coube a Huck a bênção de enfrentar o raro dilema de ter possibilidades interessantes de crescimento abertas nas duas vertentes de sua vida: tanto no mundo do entretenimento quanto no da política. O que quer que aconteça, precisa ocorrer este ano.
Uma das condicionantes para entrar na guerra sucessória é o cenário político. Huck não quer entrar na disputa para dividir o que se convenciona chamar de centro. Se o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mantiver a disposição de se candidatar e consolidar seu nome na nominata dos candidatos, será calculado o risco de se fragmentar o campo que rechaça simultaneamente o bolsonarismo e o petismo. É bem verdade que o apresentador de TV chega a 11% em algumas pesquisas de intenção de voto e Doria não passa de 4% ou 5%, mas, como disse um velho político baiano em conversa com esta coluna, “pesquisa a dois anos de eleição é como apresentar teste de covid-19 do mês passado para viajar”.
No panorama atual, ainda que Doria seja visto como uma pessoa que acerta na ação, mas erra na forma de apresentá-la, como ficou evidente na questão da vacinação, o diagnóstico é que o governador paulista tem muitos trunfos na mão. Só não será candidato se não quiser. E se a razão para ele não querer ser candidato for a perspectiva de uma reeleição inexorável de Bolsonaro, a Huck também não interessa muito concorrer nessa perspectiva. O empresário é pragmático. Analisa uma candidatura competitiva, não um apostolado.
O que mantém acesa a possibilidade de uma candidatura Huck é o vácuo de representatividade que se abriu no país depois do vendaval da Lava-Jato. A queda das empreiteiras e das campeãs nacionais mudou a relação entre o empresariado e a política. Os políticos de hoje, em geral, clausuraram-se na exploração do Estado para sobreviver. Há os que sofisticam esquemas de rachadinhas, há os que drenam fundos eleitorais, há os que se cacifam com as emendas parlamentares, com o Orçamento loteado.
No meio empresarial, a implosão da interlocução privilegiada entre empresas e meio político gerou uma dispersão. Há um núcleo de dirigentes da velha estrutura empresarial, as confederações e federações, vocacionadas desde sempre para o lobby, que talvez não tenha no mundo real a importância que aparenta ter. O que se chamava no passado de “classes conservadoras”.
Há um meio mais novo, muito ligado ao comércio e à área de serviços, cavador de oportunidades, ativo nas redes sociais para defender o atual governo. Tanto o primeiro grupo como o segundo são pilares do bolsonarismo.
Há um terceiro grupo, que sempre antagonizou com o primeiro, nucleado em centros de estudos, uns vinculados à indústria, outros, que predominam, dos setores de serviço e financeiro, que não estão, nunca estiveram e não estarão com Bolsonaro. É grande a preocupação nesta vertente com a falta de compromisso governamental com educação e meio ambiente. Persiste o temor com as veleidades autoritárias do presidente.
E por fim existe um quarto grupo, ligado a novas tecnologias, inovação, startups, unicórnios, muito ocupado para pensar em política, Huck poderá, quem sabe, representar o terceiro e o quarto grupo.
ACM Neto
2022 não é apenas ano de eleição presidencial. Há o 2022 de cada um, e não é possível entender os movimentos recentes do ex-prefeito de Salvador Antonio Carlos Magalhães Neto sem pensar no quadro baiano e nas idiossincrasias de “Neto”, como é usualmente chamado no Estado.
Segundo um dos mais próximos operadores políticos do avô do ex-prefeito, o velho ACM, Neto sabe que a eleição baiana é muito dependente do quadro nacional. O alinhamento do PP ao bolsonarismo, cada vez mais nítido, afeta o cenário baiano. É um complicador não só para a manutenção da aliança local entre PT e PP, como para a desincompatibilização do governador petista Rui Costa.
O PT exerce na Bahia uma hegemonia de 16 anos com vitórias sempre no primeiro turno. Para 2002 o candidato está posto, é o senador Jaques Wagner. Mas os petistas se ancoram no Estado em estruturas alheias: a do PP do vice-governador João Leão e a do PSD do senador Otto Alencar. A dependência da Bahia do quadro nacional joga contra o PT.
O PSD está com ambições altas em 2022. O presidente da sigla, Gilberto Kassab, estimulou Otto Alencar, cacique baiano do partido, a se posicionar como uma opção para compor chapa presidencial. No que depender da influência de Alencar, distante do bolsonarismo. “Em 2022 provavelmente não estarei na aliança em que estiver o presidente Bolsonaro. Espero que o PSD não faça isso”, afirmou. O peso baiano no PSD não é pouco: um senador, seis deputados federais, nove estaduais e 110 prefeitos.
Se o PSD pode se afastar do PT, o PP certamente o fará, e é desse partido que Neto precisa se aproximar para sua própria viabilização.
Uma vitória de Baleia Rossi na Câmara, representando a antecipação de uma aliança PSDB/MDB/DEM para 2022 não traria dividendos para Neto, porque não abriria oportunidades de se obter vantagens com as contradições da aliança petista no Estado.
Bolsonaro é impopular em Salvador. O ex-prefeito da capital precisa manter próximo de si o bolsonarismo, já que sem o PP ele não tem capilaridade para a campanha, mas não tão próximo a ponto de se comprometer com um político com rejeição tão alta em seu reduto político.
A eventual ida do deputado federal João Roma (Republicanos-BA) para a pasta da Cidadania seria providencial. Embora de outra sigla, Roma é ligadíssimo a Neto. O ex-prefeito teria o bônus de ter um aliado no Planalto sem o ônus de amarrar-se. De quebra fortalece sua união com o partido da Universal.
Até aí é cálculo. A idiossincrasia entra no hábito de Neto surpreender aliados. Ele não gosta de ir para o sacrifício. Em 2018, chocou seus apoiadores quando desistiu na última hora de disputar o governo estadual. Seu abandono a Rodrigo Maia, na semana passada, despertou a lembrança do episódio de dois anos atrás em muitos de seus interlocutores na Bahia.
Bruno Boghossian: Bolsonaro adia medidas para os mais pobres, mas corteja classes C e D
Crítico de programas contra a pobreza, presidente tenta proteger caminhoneiros e comerciantes
Jair Bolsonaro quer dar "uma mexidinha" no Imposto de Renda. Na campanha, o presidente prometeu aumentar de R$ 2 mil para R$ 5 mil a faixa de renda que fica isenta do tributo. Agora, ele fala no valor de R$ 3 mil. O presidente nunca teve capacidade de implantar a ideia, mas a insistência reforça seu flerte com um nicho das classes C e D.
A sociedade de Bolsonaro tem uma linha de corte peculiar. Em sua carreira política, ele atacou programas que atendem a população miserável. Nos últimos meses, o presidente criticou a proposta de renovar o auxílio emergencial pago aos mais pobres. Seu instinto de proteção, porém, aflorou para outros grupos.
Na pandemia, Bolsonaro demonstra preocupação especial com caminhoneiros, taxistas e comerciantes. Todos enfrentam dificuldades, mas a atenção presidencial é notável –e tem cores políticas. Em janeiro, ele divulgou o protesto de uma lojista contra medidas de restrição tomadas pelo governo paulista. "Se coloque no lugar dessa senhora", escreveu.
No caso dos motoristas de caminhão, o governo incluiu o grupo na fila prioritária de vacinação, zerou a tarifa de importação de pneus e, agora, quer reduzir tributos sobre o diesel. O presidente avisou que deve anunciar uma medida para baratear os combustíveis e fez um aceno a sua base: "Tem a ver com os caminhoneiros, com os taxistas, Uber, vocês que têm carro particular".
A renda de motoristas de caminhão varia de R$ 3.720 a R$ 5.011 por mês, segundo a CNT. Bolsonaro escutou as reclamações desses profissionais sobre o custo crescente do trabalho. Poderia ouvir também os beneficiários do Bolsa Família, que têm renda per capita abaixo de R$ 178.
O presidente adia planos para quem está na base da pirâmide social, mas tenta fidelizar grupos que já fazem parte de seu eleitorado, como os caminhoneiros, e corteja grupos das classes média e média baixa que se sentiram desamparados em governos de esquerda. Só a mudança no IR, por exemplo, pode dar um alívio para 20% das famílias do país.
Ruy Castro: A teia armada de Bolsonaro
Aos poucos, ele agrupa gente embalada capaz de perpetuá-lo no poder
Jair Bolsonaro foi chamado de genocida e fascista em plena Câmara dos Deputados e reagiu com um alegre "Nos vemos em 22!". É o seu estilo. Não só nenhum conceito o abala —uma zebra se abala ao ser chamada de zebra?—, como está convicto de sua reeleição em 2022. Talvez com razão, porque vive em campanha desde a posse, a 1º de janeiro de 2019 —o que inclui apunhalar aliados, corromper as instituições e tapear os que, bovinamente, acreditam nele. Enquanto isso, e sem que se perceba, tece uma vasta urdidura armada para, de um jeito ou de outro, se perpetuar no poder.
Sua atração por oficiais de baixa patente, PMs, bombeiros, delegados e investigadores, por exemplo, não é um desvio suspeito como parece. Bolsonaro os vê como sua tropa de choque numa eventualidade. A cada formatura de cadetes ou baile de sargentos a que comparece, planta a sedição —os milicos sabem bem o que é isso. E não descansará enquanto não minar a autoridade estadual sobre as polícias Civil e Militar, drenando-as para si, com o que, no caso de um possível confronto, elas atirarão a seu favor.
A obsessão em promover a compra e o porte de armas pela população também não se refere à nossa segurança pessoal —você se vê reagindo a um arrastão em seu prédio?—, nem é um mimo aos "colecionadores" de fuzis e matadores de jacarés. É para armar os seus 30% de seguidores.
Seria um acaso que ele e seus filhos tivessem tantos milicianos, pistoleiros e armazenadores de munição como funcionários, vizinhos de condomínio ou parças de churrasco? Getulio Vargas, por razões higiênicas, deixava esse contato a cargo de Gregorio Fortunato. Os Bolsonaros dispensam intermediários.
E ele já tem gente infiltrada em todas as repartições federais, monitorando decisões, medidas, contratações. Se você trabalha numa delas, o home office tem pelo menos esta vantagem —poupa-o do mau cheiro.
Paulo Baía: Frente de perfil progressista definida
As peças do jogo eleitoral para presidência da república, renovação da Câmara dos Deputados e de um terço do Senado Federal já se movimentam.
Os governadores também se mexem, mas o foco está no atual Congresso Nacional e na lei orçamentária de 2022.
O jogo político eleitoral não é semelhante a um "jogo de xadrez", como de maneira vulgar alguns chamam ou até acreditam.
O carteado do poquer é o que mais se aproxima.
Temos delineados hoje, pelas narrativas mais midiáticas, os cenários de uma sólida frente de Jair Bolsonaro com "bolsonaristas" das seguranças públicas estaduais e municipais, conservadores, ultradireistas, o "Centrão" com os seus fisiológicos e negocistas, militares da ativa e da reserva, religiosos fundamentalistas e moderados de todas as religiões, o mundo do pessoal do direito e do judiciário, pela reeleição do presidente.
Uma "Frente de Esquerda independente", com epicentro no estado de São Paulo, com o PSOL, intelectuais, acadêmicos, artistas e movimentos identitários.
Uma "Frente de Esquerda institucional", liderada pelo PT, com sindicalistas, "movimentos sociais" clássicos, "esquerda acadêmica" e burocracias das instituições públicas.
Uma "Frente de Centro Esquerda" com Ciro Gomes, PDT, o PSB e talvez a Rede.
Uma "Frente Neoliberal", que se autodenominará de "Democrática" , com João Dória, Luciano Huck, Cidadania, PSDB, "Lavajatistas" e pedaços do DEM e do MDB.
O jogo já está sendo jogado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
Jair Bolsonaro, "bolsonaristas" e negocistas nesse início de jogo estão dando as cartas do poquer eleitoral.
Não creio que as demais "Frentes" tenham cacife para bancar as apostas.
A "Frente Neoliberal" apelidada de "Democrática" tende a apoiar os negocistas e Jair Bolsonaro, como "menos pior", até setembro de 2022, como fizeram no setembro de 2018.
As "Frentes de Esquerda independente", a do "PT e esquerda burocrática institucional sindicalista" e a de "Centro Esquerda" , do Ciro Gomes, PDT, PSB e adereços, ficarão disputando o espólio e as saudades de uma imaginação, acusando-se entre si.
Eu gostaria de ver se formar uma "Tendência eleitoral" e um nome que espelhe essa "Tendência", que não é Marina Silva, que nunca expressou ou expressará essas ideias, com um programa progressista bem definido, com eixos em redes de proteção social amplas , renda mínima universal, sustentabilidade, uma economia em plataformas digitais, Tecnologias da Informação e Inteligências Artificiais, com cidades inteligentes, includentes.
Gostaria de ter essa "Tendência eleitoral" já, agora, como ariete estruturador de um futuro a médio prazo, pós 2026.
O presente e o futuro próximo estão carimbados, com Jair Bolsonaro, liberais, neoliberais, negocistas e bolsonaristas.
Que as juventudes arrojadas e criativas de nossas periferias nos inventem essa "Tendência".
*Sociólogo e cientista político em 05/02/2021.
Bernardo de Mello Franco: O centrão na janelinha
O centrão mal entrou no ônibus e já quer sentar na janelinha, assumir o volante e se apossar do bagageiro. Recém-instalado no comando da Câmara, o bloco não está disposto a aceitar migalhas. Vai cobrar caro pelo apoio que prometeu ao governo.
Ontem a turma começou a mostrar a que veio. O deputado Ricardo Barros, um dos principais escudeiros de Arthur Lira, ameaçou “enquadrar” o almirante Antonio Barra Torres, presidente da Anvisa. Esbravejou contra as exigências para o registro da vacina Sputnik V, de origem russa. “Estão achando que eu sou trouxa?”, desafiou, em entrevista ao “Estadão”.
A pressa de Barros não parece ser motivada pelo avanço do vírus. A Sputnik V será produzida no Brasil pelo laboratório União Química, ligado a políticos do centrão. Um dos diretores da empresa é o ex-deputado Rogério Rosso, que disputou a presidência da Câmara em 2016. Ele era o candidato de Eduardo Cunha, que festejou a vitória de Lira na segunda-feira.
Em outra frente, o centrão jogou na fritura a deputada Bia Kicis, porta-voz da ala mais radical do bolsonarismo. O novo chefão da Câmara havia prometido a Bolsonaro que ela assumiria a Comissão de Constituição e Justiça. Ontem seus aliados começaram a sabotar o acordo.
Investigada no inquérito das fake news, Kicis poderia usar o cargo para ajudar o Planalto a conspirar contra a democracia. No entanto, Lira tem preocupações mais urgentes. Quer evitar conflito com os ministros do Supremo, onde é réu por corrupção e organização criminosa.
As cotoveladas em Torres e Kicis anunciam uma fase mais agressiva na disputa por poder em Brasília. Na semana passada, Bolsonaro declarou que poderia recriar três ministérios para acomodar os novos parceiros. Ontem Barros debochou da oferta. “Quem está correndo atrás de ministério da Cultura, do Esporte e da Pesca?”, questionou.
O centrão não vai se contentar com cargos decorativos. Exigirá pastas de alto orçamento e com potencial para turbinar candidatos em 2022, como Saúde, Cidadania e Desenvolvimento Regional.
Na primeira metade do governo, Bolsonaro suou para mediar crises entre militares e olavistas. Em pouco tempo, essas disputas deverão ser lembradas com saudade no Planalto. Agora o capitão terá que lidar com profissionais.
Rogério L. Furquim Werneck: Bolsonaro pediu 'blindagem' e agora está sob a proteção do Centrão
Porém, vulnerável como está, presidente terá pouca margem de manobra para endurecer o jogo com o Centrão, caso seja necessário
O que terá levado Jair Bolsonaro a dobrar a aposta que já fizera no Centrão? Levará algum tempo até que os múltiplos determinantes desse jogo tão pesado sejam entendidos em toda sua complexidade. Mas a razão primordial já salta aos olhos: o pânico do presidente com a possibilidade de ser levado a impeachment por seus desmandos no enfrentamento da pandemia.
É bem verdade que a disponibilidade de vacinas vem permitindo, afinal, vislumbrar o fim da pandemia. Mas, por aqui, o quadro se afigura bem mais complicado que em países mais afortunados. Na esteira da “segunda onda”, do surgimento de novas cepas do vírus e da gritante ineficácia das ações do governo na Saúde, o Brasil parece fadado a continuar enredado no combate à covid-19 por muitos meses mais.
Em artigo recente, intitulado O tsnunami que se aproxima, o renomado biólogo Fernando Reinach não poderia ter sido mais contundente: “Desculpem o pessimismo, mas é melhor apertar os cintos e nos prepararmos para o pior” (Estado, 30/1). A conta de quase 230 mil mortes parece estar longe do fim.
Tudo indica que as cenas macabras de Manaus fizeram soar o alarme definitivo no Planalto. Bolsonaro, afinal, se deu conta de como um novo e sério agravamento da pandemia poderá lhe ser desastroso. Percebeu, enfim, a real extensão de sua vulnerabilidade ao crescendo de indignação da opinião pública que tal cenário traria, tendo em vista a acintosa inconsequência com que se permitiu lidar com a pandemia desde seu início.
Por não dispor de mecanismos de correção de erros e pela própria personalidade peculiar do presidente, o governo se recusa a reconhecer seus equívocos no combate à covid-19. O que se teme, no Planalto, é que o reconhecimento de tais equívocos, com imediata demissão do ministro da Saúde, dê força redobrada às alegações de que os desacertos de Bolsonaro nessa área já seriam razão mais que suficiente para justificar seu impeachment.
Estalado nessa situação, o Planalto decidiu partir para nova fuga para a frente. Dobrou a aposta que já fizera, em maio do ano passado, quando negociou, às pressas, com o que havia de pior no Centrão, a montagem de uma coalizão governista na Câmara que ao menos lhe assegurasse os votos necessários para bloquear o avanço de um impeachment na Casa. A ideia, agora, foi comprar do Centrão um novo seguro contra impeachment, bem mais caro que o anterior, que efetivamente garanta a “blindagem” do presidente, mesmo nos cenários mais adversos de evolução da pandemia.
Não se trata propriamente de uma adesão tardia de Bolsonaro ao presidencialismo de coalizão, mas da contratação de uma guarda pretoriana supostamente mais confiável do que a que já fora contratada em maio. O Centrão pode dificultar o impeachment, mas não dará maioria ao governo para aprovar o que queira no Congresso.
A proteção, claro, não saiu barata. E deverá ficar mais cara a cada dia. Bolsonaro terá, agora, de arcar com os custos de cumprir o contratado e, de fato, trazer o Centrão para dentro do governo. Um caminho sem volta. E o que se espera é que ministérios inteiros sejam entregues de “porteira fechada”. Arranjos desse tipo envolvem riscos que poderão se mostrar proibitivos, tendo em conta as vulnerabilidades com que o presidente e seu entorno já vêm tendo de lidar.
São, sabidamente, políticos com arraigada propensão a extrair benesses do Estado, à custa do Tesouro, para atendimento dos interesses que representam. Em que medida a voraz “agenda extrativa” do Centrão conflitará com a agenda de Paulo Guedes? Vulnerável como está, o presidente se verá com pouca margem de manobra para endurecer o jogo com o Centrão, caso isso se faça necessário. Já não tem como se expor ao risco de retaliação. Tornou-se refém de seus supostos aliados.
O pior é que, se a epidemia de fato se agravar tanto como se teme, a recuperação da economia for comprometida e a proteção a Bolsonaro ficar pouco promissora, o Centrão não hesitará em abandoná-lo à própria sorte. Até as pedras sabem.
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio
Claudia Safatle: Vacinação é o que vai determinar a retomada
Quem tem 35 prioridades não tem nenhuma
O mercado financeiro já absorveu a ideia de que o governo terá que voltar com o auxílio emergencial. Os analistas do mercado acreditam que o auxílio será concedido de forma mais restrita, em menor valor e por alguns meses. Pouca importância se atribuiu à lista de 35 prioridades enviada pelo Palácio do Planalto aos presidentes da Câmara e do Senado - até porque quem tem 35 prioridades não tem nenhuma.
O foco está mais no processo de vacinação. É a vacina que vai definir quando as mortes cairão de patamar e, portanto, o país poderá voltar à normalidade e a atividade econômica será retomada. Nesse cenário, o governo poderá retirar o auxílio emergencial, porque as pessoas vão encontrar emprego ou retomar suas atividades no mercado informal.
Se toda a população com mais de 60 anos estiver vacinada nos próximos três meses, idade em que se concentram cerca de 80% dos óbitos ocorridos (ver acima gráfico produzido pela equipe de economistas do Banco Safra), o país estará com parte importante do problema equacionada. E é isso que vai dar conforto para as empresas voltarem a produzir, contratar mão de obra; e os consumidores vão dar alento à demanda por bens e serviços. Para que isso ocorra, porém, é preciso que o governo se mobilize e dê celeridade à vacinação.
Da lista de 35 medidas que a Presidência da República considera prioritárias e que estão travadas seja na Câmara, seja no Senado, 26 são relacionadas à economia. O restante refere-se à pauta de costumes. O trabalho do governo junto ao novo comando das duas casas será o de destravá-las.
Na agenda da economia se encontram a autonomia do Banco Central, lei do gás, reformas tributária e administrativa, mineração em terras indígenas assim como a proposta de dar cumprimento ao teto remuneratório no setor público. Do rol constam ainda a privatização da Eletrobras, a criação das debêntures de infraestrutura, mudança no regime de partilha do petróleo e aprovação do marco legal do mercado de câmbio, dentre outras.
É uma verdadeira lista de supermercado, que inclui, também, as três PEC enviadas pelo governo no fim de 2019: a Emergencial, do Pacto Federativo e dos Fundos. Segundo fontes da área econômica do governo, porém, nas negociações na Câmara e no Senado, os temas vão se afunilando e ficará para efetiva tramitação e votação o que for de interesse comum das duas casas e do Executivo.
As conversas em torno da pauta de votação devem começar na próxima semana, depois de escolhidos, referendados e empossados os demais componentes das mesas diretoras de ambas as casas.
É difícil alguém se opor ao retorno do auxílio emergencial, mas é forçoso reconhecer que a situação hoje é diferente da de abril do ano passado, quando ele foi criado. Naquela ocasião, não dava para estabelecer critérios rigorosos de acesso aos então R$ 600. Sabe-se que houve pessoas da classe média que conseguiram obter essa ajuda.
Agora, o governo tem informações suficientes para fazer um desenho mais adequado desse instrumento de emergência para atender aos que realmente precisam dele para não passar fome.
Não está claro se o governo vai propor uma ajuda estrutural que melhore a distribuição da renda ou se vai optar mesmo pelo auxílio emergencial e de curta duração (uns três a quatro meses).
É importante, porém, que o tema da desigualdade não seja esquecido quando a pandemia deixar de ocupar o primeiro lugar nas preocupações do país. Afinal, se havia alguns milhões de brasileiros desconhecidos das estatísticas oficiais, os invisíveis sociais, agora não há mais.
É uma pena que da extensa lista de medidas prioritárias do governo não conste nenhuma que faça uma boa faxina em algumas excrescências tributárias mediante, por exemplo, uma varredura nas deduções e isenções do Imposto de Renda das pessoas físicas.
A renda do capital é subtributada. E nesse aspecto também não há uma única iniciativa seja para inclusão dos dividendos na renda tributável ou para taxar os fundos fechados (onde os ricos aplicam seus recursos). Fontes oficiais garantem que esses são temas para a tão falada e sempre adiada reforma tributária.
Ricardo Noblat: Vidas importam pouco para o governo de Jair Bolsonaro
Mais armas, menos radares, remédios que não curam
Há mais mortes em países onde armas de fogo estão ao alcance da maioria dos cidadãos. Pois o presidente Jair Bolsonaro quer facilitar ainda mais o acesso dos brasileiros a armas. Por aqui, cerca de um milhão de pessoas dispõem de armas legalizadas.
Não há comprovação científica de que a cloroquina e outras drogas curem as vítimas do coronavírus. Pois Bolsonaro insiste em defender “o tratamento precoce” que em nenhuma parte do mundo foi adotado por ser claramente ineficaz.
Só vacinas funcionam contra o vírus. Mas em sua live semanal no Facebook, Bolsonaro voltou a duvidar da eficiência delas, riu quando o diretor-geral da Agência Nacional de Vigilância Sanitária disse que se vacinará, e negou que fará o mesmo.
Por temer que os vídeos onde ele recomenda o uso da cloroquina sejam apagados, e outras provas destruídas, o Ministério Público Federal providenciou o download deles. Bolsonaro e o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, estão sendo investigados por isso.
Levantamento feito em 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo mostrou que a média de mortes nas estradas brasileiras caiu aproximadamente 22% nos trechos em que há radares de velocidade após a instalação dos equipamentos.
Naquele ano, o primeiro de Bolsonaro na presidência da República, ele tentou acabar com os radares, mas esbarrou na Justiça. Ontem, prometeu:
“Era uma festa no Brasil. Tínhamos mais de 8 mil pontos [de radares], conseguimos passar para 2 mil. Eu quero zerar isso daí, porque não deu certo”.
É ou não é o governo da morte?
Eliane Cantanhêde: Líder do governo contra a Anvisa e Bia Kicis para a CCJ refletem a ‘nova Câmara’ bolsonarista
Só num ambiente contaminado pelo bolsonarismo seria possível o PSL indicar deputada extremista para a principal comissão da Casa
Alguma dúvida de que está tudo dominado pelo presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarismo na Câmara? O deputado Arthur Lira (PP-AL), líder do Centrão e da “velha política”, apadrinhado de Bolsonaro e do governo, já assumiu a presidência da Casa com festança de 300 pessoas sem máscara, implodindo o bloco oposicionista e atacando o antecessor Rodrigo Maia, enquanto lia discursos sobre “harmonia” e “pacificação”. Parece alguém, não é?
Se há alguma esperança de bom senso é com o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que não fez festança, não atacou ninguém e, lado a lado com Bolsonaro, condenou os “extremismos dos dois lados”, defendeu a “altivez” do Parlamento, se solidarizou com as famílias dos mortos da covid-19 e defendeu igualdade, justiça, democracia, República, federação, reformas e auxílio emergencial. O oposto do que prega Bolsonaro.
Só num ambiente tão contaminado pelo bolsonarismo seria possível o impossível: o PSL, partido que elegeu Bolsonaro em 2018, hoje rachado ao meio, indicou a deputada Bia Kicis para a mãe de todas as comissões da Câmara, a de Constituição e Justiça (CCJ). A rejeição a Kicis uniu o Supremo, toda a esquerda, parte do centro e até líderes do Centrão. Ou o PSL retira, ou vão lançar uma candidatura independente, como os deputados Lafaiette Andrada (Republicanos-MG) e Margarete Coelho (PP-PI). De direita, sim, mas não extremistas nem investigados pelo STF como Kicis.
Procuradora aposentada no DF, ativista das manifestações golpistas contra o Supremo e o próprio Congresso, divulgadora de fake news absurdas a favor de Trump e Bolsonaro e contra todos os demais, ela é também negacionista na pandemia e desfilou com uma placa replicando a reação de Bolsonaro à marca de 20 mil mortos pela covid-19: “E daí?”. Pacheco condenou extremistas. Alguém pode ser mais extremista do que isso?
E só nesse ambiente é possível uma guerra Barros versus Barra. Ricardo Barros (PP-PR) é o líder do governo na Câmara. Antonio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, contra-almirante e amigo de Bolsonaro. Em entrevista bombástica ao Estadão, o líder ameaçou “enquadrar a Anvisa”, que “está fora da casinha” e “não está nem aí para a pandemia”. Um escândalo. É o líder do governo quem agora lidera as suspeitas que a oposição fazia de ingerência política na Anvisa. Viva-se com um barulho desses.
À coluna, depois da primeira reunião de líderes, Barros disse que seu ataque foi aplaudido por todos: “Só me deram parabéns. Ninguém falou ‘coitadinha da Anvisa’”. Oficialmente, ele quer que a agência, que é técnica, científica, apresse o rito de autorização das vacinas Sputnik V, da Rússia, e Covaxin, da Índia. Mas, como mostra a reportagem do Estadão, o imbróglio vem do governo Temer, quando ele era ministro da Saúde e comprou grande quantidade de um remédio que não foi autorizado pela Anvisa. Vingança?
Também à coluna, Barra Torres disse que o ataque do líder do governo é “estranho, desconcertante, desagradável, numa hora péssima” e, assim, “abriu um rastilho de pólvora na agência, onde todos estão se matando para fazer o melhor e o mais correto para o Brasil”. Convidado para a live de ontem com Bolsonaro, ele disse que “todos têm amigos, mas relação pessoal não interfere no trabalho” e avisou que vai continuar esse trabalho “até a hora que for possível”.
Bolsonaro assume o comando da Câmara e se prepara para aprovar todas as suas “boiadas”, armas, excludente de ilicitude, escola em casa, mineração em área indígena... Mas não pense que vai ficar barato. O Centrão está muito dono de si e, além de falar grosso com a Anvisa e atacar amigos do presidente, vai cobrar a conta em moedas mais objetivas: cargos, verbas, poder.
Vera Magalhães: Síndrome do cunhado
Muito se falou no chavão “criminalização da política” como uma das justificativas para a sucessão de fatos que levou à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Trata-se de uma leitura bastante rasa e condescendente com a roubalheira que os políticos promoveram como se não houvesse amanhã, ao longo de sucessivos mandatos e que, quando foi descoberta, gerou, sim, uma onda de compreensível indignação com a classe política.
Acontece que os políticos não só não perceberam isso a tempo, como menosprezaram os efeitos que isso teria. Cansei de ouvir de próceres de vários partidos, da esquerda à direita, em 2018, as seguintes avaliações:
1) corrupção nunca foi fator decisivo para eleição, bastava ver que Lula tinha sido reeleito em 2006 mesmo com o mensalão;
2) redes sociais nunca elegeram ninguém;
3) Bolsonaro desidrataria quando começasse o horário eleitoral, pois as eleições ainda seriam definidas pela equação clássica: tempo de TV, coligação forte e grana.
Bolsonaro fez um rocambole de tudo isso, regou com leite condensado, e a política, além de criminalizada, ficou humilhada no cantinho do pensamento.
Eis que, mais de dois anos e quase 230 mil mortos pela pandemia depois, os políticos do autoproclamado centro democrático estão marchando docemente para o cadafalso, atrelando seu destino ao de Bolsonaro.
Para o presidente do DEM, ACM Neto, Bolsonaro não é um extremista. Como chamar alguém que desdenha uma pandemia, que frequenta e incentiva atos pelo fechamento do Supremo e do Congresso, que aparelha instituições como a Polícia Federal e o Coaf, que investe por meio de decretos contra a pauta de direitos humanos e de defesa do meio ambiente, que acusa fraude eleitoral sem provas e insinua dois anos antes que isso pode ocorrer se não houver voto impresso?
O que precisará acontecer para que o presidente brasileiro seja reconhecido como o que é: um expoente de uma cepa de políticos de corte neopopulista que usa de expedientes como a propagação de fake news, o enfraquecimento deliberado da imprensa e do sistema de freios e contrapesos da democracia e a difusão do ódio para se manter no poder?
Diante do cálculo de curtíssimo prazo de líderes como ACM Neto, que priorizam a aproximação a um presidente mal avaliado e mal-intencionado à construção de uma alternativa sólida e viável de poder que tire o país dessa encalacrada social, econômica e institucional em que está enfiado, Bolsonaro vai ganhando, justamente dos políticos a quem desprezou em 2018, um passaporte de vida fácil para 2022.
Acontece que, como escrevi aqui na quarta-feira, a vida real caminha de forma bem diferente do minueto desconjuntado da política. Na Bahia de ACM Neto, faltam vacinas, faltam leitos de UTI, falta comida, falta auxílio emergencial e falta base social para o bolsonarismo. Em nome de que, então, o presidente do DEM opta por implodir a própria legenda, depois de um sucesso nas urnas? O tempo vai responder em nome de quê.
Enquanto isso, graças a análises equivocadas como essa, Bolsonaro, o “não extremista”, vai se comportando depois das vitórias congressuais que lhe foram dadas de bandeja como o cunhado folgado que chega na casa do outro e tira o sapato com chulé, coloca o pé em cima do pufe, faz uma piada homofóbica com o sobrinho e assalta a geladeira para acabar com a cerveja.
Quando a classe política resolver reagir, pode ser tarde, como viram os atônitos integrantes do Partido Republicano, que não contiveram o também extremista Donald Trump e o deixaram questionar as eleições, incentivar a invasão do Capitólio e desgastar uma democracia sólida como a americana.
Por aqui, o centro com vocação para cunhado bonachão não aprendeu absolutamente nada nos últimos anos.
Fernando Gabeira: O estreito caminho pela frente
A democracia brasileira ficou mais vulnerável, o negacionismo tem agora uma base parlamentar
As eleições no Congresso nos remetem a uma situação relativamente familiar: o mecanismo do “toma lá da cá”, que muitos supunham estar esgotado na política, voltou ao centro da cena. E desta vez com poucos esforços para disfarçar. O governo destinou mais de R$ 3 bilhões de verbas aos parlamentares e Bolsonaro confessou que iria influenciar a escolha num Poder que deveria ser independente.
Para quem vive há muitos anos o processo político brasileiro, é como se um ciclo se encerrasse. As relações fisiológicas degradam a política nacional e criam condições para que surja alguém prometendo tudo mudar e trazer consigo uma “nova forma de fazer política”.
Ao cair de cabeça no velho fisiologismo, Bolsonaro não somente reconstrói uma cena política que estamos cansados de ver. Há diferenças agora. Como ele e outras figuras, como Wilson Witzel, eram os arautos de uma “nova política”, é possível esperar que a própria ideia de novidade radical entre em decadência, o que, aliás, de certa forma já foi revelado em algumas cidades nas eleições de 2020.
Um dos subprodutos da vitória de Bolsonaro no Congresso foi desmantelar o centro. Em política, talvez isso não signifique um mundo que desmorona, como no verso de Yeats – “the center will not hold”. Significa apenas que aumentam as possibilidades de polarização.
Afinal, o centro, que foi implodido por Bolsonaro, acabaria se rompendo de qualquer forma. Não há consistência nesses partidos e, estrategicamente, o melhor seria um racha, com o lado da oposição democrática tentando se viabilizar na própria sociedade.
Quando Bolsonaro se elegeu, as barreiras de contenção de suas tendências autoritárias seriam o Congresso e o STF. Agora seu candidato obteve 302 votos, seis a menos que o necessário para aprovar uma emenda constitucional. Por essa e muitas razões, a democracia brasileira ficou mais vulnerável. Dificilmente serão considerados os crimes de responsabilidade que se sucedem na condução da pandemia. O negacionismo de Bolsonaro tem agora uma base parlamentar.
Aliás, uma demonstração disso foi a festa para 300 pessoas na comemoração da vitória de Arthur Lira, em Brasília. Horas depois de dizer em discurso que era preciso vacinar, vacinar, vacinar, o novo presidente comemorava com grande número de pessoas sem máscara.
Isso não é um detalhe. A posição negacionista se estende também ao combate ao uso de máscaras, consideradas por alguns “mordaças ideológicas”. É algo tão característico de escolhas políticas que nos Estados Unidos Joe Biden decretou o uso obrigatório de máscara em propriedades federais.
É necessário concluir que a mudança no Congresso, apesar da retórica, pode fortalecer a política negacionista. Nesse caso, não se trata mais de ameaça à democracia, mas do avanço de uma política que mata.
É evidente, hoje, que dois tipos de contenção foram necessários. Um para evitar a ruptura democrática, que se tornou menos viável para Bolsonaro após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas continua sendo necessária a contenção da política que contribui para a morte de milhares de pessoas.
O STF avançou nisso, sobretudo no momento em que definiu a responsabilidade conjunta de União, Estados e municípios. Tentou avançar em alguns outros pontos, como a exigência de uma política de proteção às populações indígenas, e solicitou também um plano nacional de vacinação. Onde foi necessário investigar diretamente a responsabilidade pelas mortes de Manaus, determinou uma investigação policial.
Mas o Congresso, disperso, agiu pouco. Aqui e ali entrou com denúncias no Supremo, mas não considerou uma tarefa coletiva deter a política de Bolsonaro e oferecer uma alternativa que pudesse salvar vidas, e não exterminá-las.
O que será agora da ação do Congresso na pandemia, com o poder nas mãos de aliados de Bolsonaro? Uma das saídas é a oposição reconhecer suas dificuldades e tentar viver este novo momento com habilidade para unir e coragem para combater os erros do governo.
Neste momento em que o poder no Congresso se concentra nas mãos de aliados de Bolsonaro, um caminho é buscar o equilíbrio por meio do encontro com a sociedade. Há pelo menos três temas que podem fortalecer esse encontro: a luta contra a pandemia, um processo organizado de vacinação e uma renovada ajuda emergencial aos milhões que ainda precisam dela.
No caso da ajuda emergencial, pode até haver uma convergência com o governo, mas é possível deixar claro que a oposição pressionou. Da mesma forma, o governo pode se convencer a vacinar, sob intensa pressão. No tratamento da pandemia as diferenças são abissais, intransponíveis. O governo nega sua importância, investe em remédios ineficazes, subestima testes e deixa que se estraguem, não sequencia nem rastreia novas variantes. E quando são descobertas, como no caso de Manaus, não existe um esboço de plano nacional para conter seu impacto.
É preciso simultaneamente evitar o sacrifício produzido pelo negacionismo e coletar provas de sua ineficácia, para ser responsabilizado adiante. Se o Congresso o blindar, existe o Supremo, se o STF não o punir, há o Tribunal Internacional.
A perda de espaço num Congresso fisiológico é menos importante do que o encontro da política com o sofrimento humano. Basta olhar para fora.