arthur lira
Míriam Leitão: O diplomata que virou pária
No Itamaraty, a expectativa é a de que Ernesto Araújo deixe de ser ministro em março. Seria um alívio para várias gerações de diplomatas, porque ele feriu normas essenciais da boa diplomacia. Um dos problemas para tirá-lo é saber para onde ele pode ser removido. Ele gostaria de ir para Paris, mas o risco é o governo de Emmanuel Macron não dar o agrément, que é o consentimento do país que recebe. Outro risco é o de constrangimento em sessão do Senado, que recentemente rejeitou o nome do embaixador indicado para Genebra, num recado para Araújo. Por isso, uma das possibilidades aventadas é a OCDE, posto que não exige sabatina, já que é uma espécie de embaixador alterno.
Há uma maioria sólida de adversários de Araújo dentro da carreira, mas os últimos acontecimentos aumentaram a indignação. Os olhos dos diplomatas brasileiros acompanharam com estupefação a atitude de Ernesto Araújo na cena em que Jair Bolsonaro berrou palavras sórdidas contra jornalistas numa churrascaria. O ministro aplaudiu, deu gargalhadas, gritou “mito”. Isso provocou repulsa generalizada. Não é nem mais uma questão de gostar ou não do governo, disse uma fonte diplomática, aquilo aviltou a própria Casa, até porque houve matérias no exterior descrevendo a baixeza da cena.
Ernesto Araújo tem também adversários fora do Itamaraty. O vice-presidente Hamilton Mourão recentemente falou que ele sairia, mas com isso lhe deu uma sobrevida. Na entrevista ao “Valor”, publicada na edição de sexta-feira, o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP, define o centrão como “estabilizador do governo” e diz que “a condução do Itamaraty hoje prejudica o Brasil” e por isso “tem que mudar”.
Os críticos de Ernesto podem ter motivos diversos, mas existem fatos concretos contra ele. Na área científica do governo, a convicção é que o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), que acaba de chegar da China para a Fiocruz, demorou semanas a mais pelos atritos criados pelo ministro com os chineses. No caso da Índia, a trapalhada de anunciar a ida do avião antes de conversar com as autoridades indianas causou o maior ruído no país fornecedor. A diplomacia existe para aplainar terrenos, desatar nós, dissolver conflitos. O pior problema não são os delírios persecutórios de Ernesto Araújo, mas o prejuízo que ele dá aos cofres públicos, anulando o empenho de servidores qualificados para o trabalho diplomático.
— A grande maioria dos nossos colegas acha que ele não tem o direito de destruir o Itamaraty como tem feito. O problema não é ideológico. O caso dele é clínico. Já há claros sinais precursores de que o tempo dele está terminando. O problema é achar um posto que o aceite. Ele queria que o Brasil fosse um pária, ele se tornou um pária — resumiu uma fonte diplomática.
Naquela série de tuítes sobre o assalto ao Capitólio, Ernesto Araújo fez um raciocínio tortuoso, quase justificando a violência com a hipótese, nunca confirmada, de “infiltrados”. Definiu os invasores do Congresso como “cidadãos de bem” e ainda disse, num comentário descabido, que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política”. Queria, claro, transpor para o Brasil. Esse episódio, o reiterado embate com a China, as trapalhadas frequentes com vários parceiros obrigam muita gente a consertar seus estragos. Suas ações têm um amadorismo que envergonha uma diplomacia outrora orgulhosa do seu profissionalismo.
Quem poderia ir para o lugar de Ernesto Araújo? Há quem fale na ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se a escolha for de fora da carreira. Ela impressiona os diplomatas pela sua habilidade em negociação, apesar da incapacidade de entender o cerne do problema ambiental, que será mais importante durante o governo Biden. Se for da carreira, há pelo menos um que faz campanha com bajulações explícitas, e há os que têm chances de reequilibrar o Itamaraty. Existem muitos que preferem distância do atual governo.
Ernesto Araújo tem levado doutrinadores extremistas para falar para os diplomatas jovens e estudantes do Instituto Rio Branco. Não tem tido sucesso nessa tentativa de lavagem cerebral, como se viu pela última turma, que escolheu o poeta João Cabral de Melo Neto como patrono. Ernesto Araújo, ao violentar tanto as normas da boa diplomacia, tem produzido sua antítese. Está aumentando no Itamaraty a defesa da diplomacia como carreira de Estado.
Bruno Boghossian: Aliança entre Bolsonaro e centrão testa abraço entre direita e extrema direita
Partidos estendem tapete para reeleição e tratam com mansidão até figuras mais reprováveis do bolsonarismo
A maioria dos deputados americanos decidiu excluir a republicana Marjorie Taylor Greene das comissões que ela integrava no Congresso dos EUA. Eles entenderam que uma extremista que propaga teorias da conspiração e apoia a violência contra políticos não deve exercer funções relevantes por lá.Eleita no ano passado, Greene defendia a rede de militantes lunáticos do QAnon. Ela afirmava que os atentados de 11 de Setembro eram uma farsa, que democratas participavam de rituais satânicos e que empresários judeus A deputada só vai ficar fora das comissões de orçamento e educação do Congresso porque os democratas votaram em peso para removê-la.
Apesar do repertório delirante de Greene, 199 dos 211 parlamentares republicanos tentaram manter a O Partido Republicano aplaudiu por quatro anos um populista como Donald Trump e acreditou que conseguiria tirar proveito de sua presidência. Apesar de todos os prejuízos, esses políticos ainda são capazes de manter laços com radicais que compõem suas fileiras. Quando o establishment político começa a dar passos para as extremidades, os limites vão ficando para trás.
A maioria dos deputados americanos decidiu excluir a republicana Marjorie Taylor Greene das comissões que ela integrava no Congresso dos EUA. Eles entenderam que uma extremista que propaga teorias da conspiração e apoia a violência contra políticos não deve exercer funções relevantes por lá.
Eleita no ano passado, Greene defendia a rede de militantes lunáticos do QAnon. Ela afirmava que os atentados de 11 de Setembro eram uma farsa, que democratas participavam de rituais satânicos e que empresários judeus usaram um laser espacial para iniciar incêndios na Califórnia.
A deputada só vai ficar fora das comissões de orçamento e educação do Congresso porque os democratas votaram em peso para removê-la. Apesar do repertório delirante de Greene, 199 dos 211 parlamentares republicanos tentaram manter a conspiracionista naquelas funções.
O Partido Republicano aplaudiu por quatro anos um populista como Donald Trump e acreditou que conseguiria tirar proveito de sua presidência. Apesar de todos os prejuízos, esses políticos ainda são capazes de manter laços com radicais que compõem suas fileiras. Quando o establishment político começa a dar passos para as extremidades, os limites vão ficando para trás.
A direita americana abraçou a extrema direita. No Brasil, a nova aliança governista vai testar essa lógica. Majoritariamente conservador, o centrão estende o tapete para o bolsonarismo e trata com mansidão até suas figuras mais reprováveis.
O acordo entre esses partidos ameaça entregar o comando da principal comissão da Câmara à deputada Bia Kicis (PSL). A parlamentar divulgou teorias conspiratórias sobre a vacina, escreveu que “a cloroquina mata o coronavírus” e arquiteta um golpe do pijama para antecipar a aposentadoria de ministros do STF.
A grande fronteira é a campanha de 2022. Em vez de mandar Jair Bolsonaro de volta para as franjas, políticos de PP, PL e DEM querem apoiar a reeleição de um presidente que sabota a saúde e degrada a democracia.
Janio de Freitas: Eleição na Câmara e no Senado deixou Bolsonaro com centenas de dívidas
Não sendo vitória política, dívida é igual a cobrança, e cobrança em política é incerteza e instabilidade
Os que viram o fim da possibilidade de impeachment na entrega da Câmara a comando bolsonarista, ou antes estavam esperançosos demais, ou agora estão conclusivos demais. Apesar da aparência, o que Bolsonaro obteve não foi uma vitória política. Antes e mais, está para negócio bem-sucedido, como podem ser os negócios que operam à margem dos formalismos legais.
Mas não faltaram os formalismos próprios de certa clandestinidade. E deles resultou que Bolsonaro está com centenas de dívidas, é provável que até perto de umas três, a pagar aos deputados que venderam seus votos por cargos e verbas. Bolsonaro não pagará essa dívida, não tem como pagá-la a mais do que uma parte dos credores.
Não sendo vitória política, fruto de liderança e não de corrupção, dívida é igual a cobrança e cobrança em política é incerteza e instabilidade. Já no primeiro momento da nova presidência, isso se mostrou: Arthur Lira não conseguiu assegurar a presidência da Comissão de Constituição e Justiça, a principal, à extremista Bia Kicis, como exigido por Bolsonaro no acordo de ambos.
Ainda assim, o butim de Bolsonaro deu-lhe o que queria —a obstrução do novo presidente a pedidos de impeachment (os problemas criminais da família, citados por muitos, na verdade transitam fora do Congresso, em mãos investigatórias e judiciais).
Controlar a Câmara, porém, é insuficiente. O procurador-geral da República, Augusto Aras, por exemplo, decidiu por uma investigação preliminar sobre a influência de Bolsonaro e do general Pazuello na formação e no desenrolar da crise asfixiante no Amazonas e no Pará. Mais político do que outra coisa, Aras se disse movido por um requerimento do PC do B. Para não mencionar a numerosa manifestação de ex-procuradores, com presenças notáveis, cobrando-lhe uma denúncia contra a conduta de Bolsonaro na pandemia.
O objetivo por trás da medida de Aras é incerto. Tanto mais por seu recente e falso argumento, para escapulir da mesma medida, de que “ilícitos de agentes políticos são da competência do Legislativo”.
Se Aras pretende criar a conclusão de inexistência de práticas puníveis, para dar por infundados novos pedidos contra Bolsonaro, é esperável que passe ele a ter dificuldade de permanecer. Há ex e atuais procuradores decididos a agir, e sabem como fazê-lo. Em outra hipótese, a investigação desenvolve-se com honestidade —logo, impeachment à vista.
No Senado, estão reunidas mais do que as assinaturas suficientes para uma CPI sobre as condutas de Bolsonaro e Pazuello relativas à pandemia. O novo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, e Arthur Lira lançaram uma nota cínica com as alegadas prioridades do Congresso: “soluções e não problemas”.
Nada de CPI, pois. Pacheco parece não querer demora para desmoralizar-se. Mas não tem controle de nada no Senado, muito menos das disputas que exprimem maior animosidade ao governo.
Bolsonaro voltou à polêmica das armas, para dirigir as atenções gerais. É sinal, mais uma vez, de que está se sentindo em dificuldade. E que a corrupção, da qual participaram generais, não afastou a assombração do impeachment. Sua vitória na Câmara e no Senado foi real em números. Não, porém, na essência da situação política.
DISTORÇÕES
Um crime de 1958 volta à tona. Na sua versão pública, esteve sempre distante da realidade. O estupro e morte da jovem Aida Curi, agora objeto do pedido judicial de direito familiar ao esquecimento, foi brutal também na deformação dos fatos tanto pela investigação como no julgamento. A figura central do crime foi favorecida pela ação articulada de três pessoas, que usaram de suas influências respectivamente no Judiciário, na opinião pública e na polícia.
Um general, Adauto Esmeraldo, ex-diretor da Divisão de Ordem Política e Social do então Distrito Federal, com ligação estreita aos outros dois. David Nasser, que lançou pela revista O Cruzeiro “reportagens” escandalosas com uma versão sua do crime, dos autores e da jovem vítima. E, muito próximo de Nasser, o famoso Zica, dono de um grande bar na praça Mauá, zona portuária, que era centro de câmbio negro de moeda, contrabando, tóxicos e, ponto da marujada, prostituição.
Enteado do general, Cássio Murilo teve reduzido à irrelevância, e transferido a um companheiro, o seu papel no crime. Esse outro, de família sem influência, foi o condenado e cumpriu pena. Cássio Murilo, não muito depois, envolveu-se em mais um caso policial, e mais outro, sempre com o mesmo resultado, pelos mesmos meios.
O assassinato a tiros da socialite mineira Angela Diniz, por seu companheiro Doca Street, numa praia de Búzios em 1976, foi muito simplificado em sua versão pública e no processo mesmo. Do contrário, muitos nomes notórios da “sociedade” seriam expostos. Foi, de fato, um crime típico do machismo enciumado.
Angela Diniz, em tudo sedutora, sacudiu o meio intelectual e jornalístico mais destacado. Ibrahim Sued chegou a quebrar todo o apartamento que custara a ele mesmo. Mas jornalista só é notícia quando morre.
Os Bolsonaro, Queiroz, Aécio Neves, peessedebistas vários, Sergio Moro, Deltan Dalagnol, entre tantos, sabem como certas realidades são fracas no Brasil.
Vinicius Torres Freire: Como Bolsonaro pode virar e ganhar o jogo da vacina
Vítimas potenciais da Covid podem estar vacinadas até maio, economia despiora
A vacina do Brasil depende da boa vontade da China e da Índia. Ainda assim, não é descabido estimar que até meados de abril seja possível vacinar aqueles grupos de pessoas em que morrem 75% das vítimas de Covid-19 neste país.
Os adversários de Jair Bolsonaro deveriam prestar atenção nessa hipótese razoável, assim como deveriam moderar ilusões sobre uma catástrofe econômica que estaria para triturar o prestígio presidencial já em 2021.
Em primeiro lugar, as vacinas. Lá pela metade de abril, talvez tenha sido possível vacinar uns 38 milhões de pessoas, aquelas de 60 anos ou mais, pessoal da saúde e indígenas. É quase um quarto da população com mais de 18 anos.
A conta considera o limite inferior da produção do Butantan, o cronograma que a Fiocruz divulgou na sexta-feira (5), as doses já disponíveis e o 1,6 milhão de doses da Covax, chutando um desperdício de 5%, otimista. Podem vir mais doses: mais da Covax ou mais 28 milhões das vacinas russa e indiana que o governo diz negociar.
Se os insumos empacarem de novo na China, será mesmo um desastre. Pode ser também que abril esteja muito longe, revoltando os três quartos sem vacina até lá. No entanto, a perspectiva e o fato da redução do número de mortes devem causar alívio social e econômico. De resto, a vacinação continuará a partir de maio, quando 90% das vítimas potenciais da Covid podem estar imunizadas.
O que se vai pensar desse copo de vacina (meio cheio ou vazio) depende da política de governo e da oposição. Bolsonaro sabotou a vacina, mas pode virar esse jogo com vacinação e propaganda em massa.
Na economia, o primeiro trimestre será de estagnação ou de ligeira retração. Haveria recuperação a partir de abril, a depender, claro, de vacinação e das variantes do vírus —ainda não sabemos quão pestilentas são, se vão se espalhar, se vão driblar as vacinas.
Por ora, a expectativa é de crescimento de 3,5% em 2021, o que, na prática, significa quase estagnação em relação ao trimestre final de 2020, mas melhora em relação à média do ano passado. Construção civil, agronegócio muito bem e reposição de estoques devem dar um tapa no desempenho do PIB. Sim, é tudo meio uma porcaria sem futuro, mas isso não quer dizer desastre imediato.
Nos últimos dias, se disse por aí que “o mercado” ficou animadinho com a vitória do centrão e a expectativa renovada de “reformas”. É uma bobice. A Bolsa está animada, embora nem tanto, por causa de juros baixos urbi et orbi, commodities em alta e vacinas. A expectativa básica da praça é que não derrubem o teto de gastos. O resto é meio lucro.
Algum resto deve vir. O centrão não quer apenas rapar cargos e emendas. Quer ampliar bancadas e ficar no poder depois de 2022. Pode jogar Bolsonaro do trem se a popularidade dele for para o vinagre, mas não deve explodir a Maria Fumaça dos ovos de ouro. Mas esse é assunto para outro dia.
Haverá mais miseráveis, mas um país selvagem como o Brasil pode não ligar muito para os caídos. Com 230 mil mortos de Covid e outros horrores, cerca de 60% do eleitorado acha que o governo é “ótimo/bom” ou “regular”. Além do mais, haverá algum novo auxílio emergencial. Um fator possível de desgaste de Bolsonaro pode ser a inflação da comida, que foi de mais de 20% em 2020 e ainda será o dobro da inflação média neste 2021.
Quem quiser, pois, pode achar que esse nosso copo sujo pode estar meio cheio. Para que se visse o vazio do nosso abismo, seria preciso haver oposição organizada. Não havia e, agora, talvez seja difícil até colar os caquinhos que sobraram
Elio Gaspari: A Lava-Jato morreu na infância
Acabou-se a força-tarefa de Curitiba que durante sete anos mostrou ao país o maior esquema de corrupção de sua História. Morreu sem choro nem vela. Empreiteiros corruptos e onipotentes foram para a cadeia, suas empresas encolheram, milhares de empregos sumiram, e nenhum deles ficou pobre. O juiz Sergio Moro tornou-se uma celebridade nacional, mumificou-se indo para o Ministério de Bolsonaro e de lá para a humilhação pública. Alguns procuradores lambuzaram-se com a fama. Ninguém saiu da Lava-Jato como entrou, e ninguém saiu bem dela.
Só a poesia de Paulinho da Viola captura o tamanho dessa tragédia:
“A marca dos meus desenganos ficou, ficou. (...)
Foi um rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar.”
A Lava-Jato prendeu um ex-presidente da República e destruiu a máquina do comissariado petista que havia se associado a caciques do Centrão. Em 2004, antes que a Lava-Jato surgisse, o juiz Sergio Moro escreveu um artigo louvando a campanha de combate à corrupção que deslegitimou o sistema partidário da Itália. Com a fama que conquistou, aninhou-se num governo, que prometia uma “nova política”. Podia-se fazer tudo pelo juiz de Curitiba, menos o papel de bobo. Enquanto ele dava esse salto, seus colaboradores concebiam uma fundação bilionária. A “nova política” tornou-se o novo nome do Centrão, com suas obras e suas pompas.
Numa trapaça da História, a Lava-Jato de Curitiba morreu nos mesmos dias em que voltam a ser conhecidos, com mais detalhes, as conversas promíscuas e primitivas que tinham em suas redes. (Eles continuam dizendo que os diálogos são “supostos”. Supostas foram as falas messiânicas com que embrulhavam o devido processo legal).
Em seus quase 200 anos de História, o Brasil teve solavancos e ditaduras, mas nunca teve um governo internacionalmente comprometido com o atraso. (D. Pedro II nunca saiu pelo mundo defendendo a escravidão).
Em 1831, depois de ter assinado um tratado com a Inglaterra, o governo brasileiro proibiu a importação de escravizados. O Centrão daquele tempo mastigou a lei, e o tráfico só foi suspenso em 1850. Nesse período entraram no Brasil 800 mil escravizados. O contrabando alimentava uma economia que cevava a política de senhores vestidos como europeus. Como ensinou Mark Twain, a história não se repete, mas às vezes rima.
Registro
Sumiu do radar a privataria dos quatro milhões de vacinas que seriam comprados por um clube de empresários.
Fica o registro de que no escurinho da rede, nas conversas que envolviam o presidente da Fiesp, doutor Paulo Skaf, um magano disse que estava disposto a entrar na operação, pois havia recebido telefonemas de Fábio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência, e do senador Flávio Bolsonaro.
Harvard fez o certo, 38 anos depois
Lawrence Bacow, presidente da veneranda universidade Harvard, dirigiu-se à sua comunidade para reconhecer e condenar os assédios sexuais do professor Jorge Dominguez contra jovens colegas e alunas.
Terminou assim um caso que começou em 1983. Sempre que possível, ele foi varrido para baixo de um tapete. Dominguez, conhecido historiador da América Hispânica, assediou a jovem colega Terry Karl durante dois anos. Ela denunciou-o, ele foi afastado de decisões que a envolvessem e tirou uma licença. Karl foi para Stanford, o caso foi mantido em sigilo, e o professor seguiu sua carreira, com sucesso. Chegou a vice-diretor de assuntos internacionais da universidade.
A presidente de Harvard, a professora Drew Faust, visitou o Brasil em 2011 em grande estilo e trouxe Dominguez em sua comitiva. À época, o historiador Kenneth Maxwell expôs a bizarrice.
Em 2018, eram 18 as denúncias contra Dominguez, e ele aposentou-se. No ano seguinte, foi destituído de todos os títulos e convidado a não frequentar o campus. Resolvera-se uma questão, a dos assédios.
Faltava enfrentar a cultura do abafa de Harvard. Ela foi resolvida agora, 38 anos depois da denúncia de Terry Karl. Felizmente, as mulheres não desistiram.
Amil
Na segunda-feira, uma senhora de 90 anos, cliente da Amil há 20, pagando R$ 4 mil mensais, chegou com dores à emergência do Hospital Santa Teresa, em Petrópolis.
Ficou duas horas numa sala de espera cheia, e sua acompanhante ouviu que o sistema da operadora estava fora do ar, sem previsão de retorno.
Tentaram falar com a Amil por telefone e ouviram gravações. Conseguiram uma maca e um cubículo.
Quatro horas depois, transferiram-se para um outro hospital particular.
Estavam lá quando, às 23h55m, a Amil finalmente autorizou a internação.
Em 2014, a mão invisível das operadoras enfiou um jabuti numa Medida Provisória, graças ao qual o valor das multas cobradas às operadoras seria decrescente. Quanto mais delinquissem, menor o valor da multa. Dilma Rousseff vetou a gracinha.
À época, o pai do jabuti, dono da Amil, se explicava:
“O sistema caiu e foram negados centenas de procedimentos, não é justo que por causa disso se cobrem centenas de multas.”
“Você demitiu o diretor de TI?”
“Não.”
Esses sistemas são espertos, caem para negar atendimento, mas nunca erram concedendo-os por engano.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e ouviu o presidente da Anvisa, o médico-contra-almirante Barra Torres, dizer o seguinte:
“A Anvisa tem 22 anos. Nesses 22 anos, pouquíssimas vezes houve necessidade de tamanha movimentação política. E é necessário isso? Não é, porque no final quem define são os técnicos.”
O cretino desconfia que Barra Torres não lê jornal. No dia 21 de outubro, o capitão Jair Bolsonaro escreveu um texto no qual se referia ao que chamaria de “a vacina chinesa do João Doria”, assegurando: “NÃO SERÁ COMPRADA”. (Maiúsculas dele.)
Felizmente, o Brasil já comprou mais de dez milhões de vacinas chinesas.
Ulysses Guimarães dizia que as pressões políticas lhe faziam bem. Mal, fazem a ignorância ou as malfeitorias.
Arremate
Na terça-feira, a menina Ana Clara Machado, de cinco anos, brincava na porta de sua casa, em Niterói, levou um tiro e morreu.
A versão da Polícia Militar foi a de sempre: confronto. Ana Clara foi a quarta criança morta neste ano.
Em setembro de 2019, num episódio semelhante, a menina Ágatha Félix, de oito anos, estava com a mãe dentro de uma Kombi quando foi morta por um tiro disparado por outro PM. Era a quinta criança morta no Rio.
O poeta Armando Freitas Filho contou esse caso no seu recente livro, “Arremate”:
“Rio
Só podia ser de ágata
De ferro e de esmalte
Como todos os demais.
Colegas, amiga de tantas
Outras e outros — meninas.
Meninos — que são perfurados.
Nenhuma bala é perdida.
Através dos dias são certeiras.
Não erram nunca ninguém:
Os que matam e morrem”.
Eliane Cantanhêde: Amigos e ministros são paus, pedras e vitrines para pandemia, vacinas, Manaus, combustíveis...
Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras
Nada melhor, e às vezes bem fácil, do que sair do alvo terceirizando culpas e responsabilidades, dando voltas, avançando e recuando, desqualificando os que denunciam, atiçando os cães de guarda, rindo dos indignados e enganando os trouxas. O presidente Jair Bolsonaro é craque nisso, mas ele só acerta porque há quem faça o jogo dele.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que abriu nove “investigações preliminares” sobre a ação, ou inação, de Bolsonaro na pandemia. Motivos não faltam, culminando com o atraso das vacinas, mas as investigações nunca saem das preliminares e quem está objetivamente na mira é o general Eduardo Pazuello. Ele bate no peito para dizer que negocia vacinas em várias frentes, sem se penitenciar por fazer em fevereiro de 2021 o que 50 países sérios fazem desde meados de 2020. Além de submisso e atrasado, ele é atrapalhado.
Em ofícios de julho, agosto e outubro de 2020, revelados pela revista Piauí, o Butantan tentou acordar Pazuello para a corrida das vacinas. Ele não deu bola, como não deu para o oxigênio de Manaus, milhões de testes que perderam a validade, a falta de seringas e agulhas, mais a MP que destinava R$ 37 milhões para a pandemia. Um espanto! Mas ele foi posto na Saúde para isso, para deixar para lá. “E daí?”
Agora, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, pressionam o ministro Paulo Guedes para reavivar o auxílio emergencial, enquanto Bolsonaro fica de espectador, falando o que o mercado quer ouvir, agradando os dois lados e pronto para capitalizar no final, como na primeira vez. O Congresso impôs, ele ficou com os louros.
Bolsonaro também foi rápido no gatilho ao dar uma “solução” para os preços dos combustíveis: mexer no ICMS, que é... estadual. Assim, lava as mãos e empurra a culpa, e a conta, para os governadores, que ficam cara a cara com caminhoneiros em pé de guerra e com a classe média estupefata diante dos R$ 5,15 da gasolina comum nos postos. Alguém tem que dizer não.
Bolsonaro também acusou a “vacina chinesa do Doria” de “mortes e invalidez”, cancelou a compra de 46 milhões de doses, não negociou nada e anunciou que não vai se vacinar, ponto final. Mas, dessa vez, pegou mal. Até seus seguidores acharam um pouco demais. Qual a saída de Bolsonaro? Consertar o discurso, repetindo o tempo todo que sempre quis comprar vacinas, desde que a Anvisa autorizasse. Então, de quem é a culpa pelo descaso e atraso? O Centrão diz que é da... Anvisa.
Na manhã de quinta, o líder do governo, Ricardo Barros, disse ao Estadão que a Anvisa “não está nem aí para a pandemia” e iria “enquadrá-la”. À noite, o Senado aprovou MP dizendo que a agência “concederá” autorização de vacinas em cinco dias. Logo, ela deixa de analisar e passa a só carimbar os pedidos. É obrigada a autorizar, mas, se houver reações adversas graves depois, é ela que responde.
O líder do governo poria a faca no pescoço do contra-almirante Barra Torres, amigo de Bolsonaro, sem avisar ao presidente? E foi coincidência Bolsonaro incluir Barra Torres na sua live, horas depois da ameaça do líder e da aprovação da MP, para dizer que não interfere na Anvisa? Logo, Congresso e Anvisa se engalfinham, Bolsonaro finge que não é com ele e a falta de vacinas é culpa da... Anvisa.
Amigos são paus para toda obra, mas os de Bolsonaro são paus, pedras e vidraças. Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras. Perguntei a ele sobre a versões de que as investigações são só “preliminares” para não dar em nada. Ele reagiu: “Segundo meus adversários...” Soou como “eu não estou aqui para brincadeira”. A conferir.
Luciano Huck: Sistema imunológico da sociedade brasileira dá respostas à altura das agressões do bolsonarismo
Para cada negacionista que orbita o poder no Planalto, há milhares de cidadãos empenhados em combater os efeitos da maior crise sanitária da história
O Brasil será vacinado contra a Covid mesmo com as omissões, os erros e os arbítrios do governo federal. Entramos no terceiro ano da Presidência de Jair Bolsonaro, mas no 33º ano do Sistema Único de Saúde, o SUS.
Para cada negacionista que orbita o poder no Palácio do Planalto, há milhares de brasileiros empenhados em combater de peito aberto os efeitos da maior crise sanitária da história.
São os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde na trincheira para salvar vidas e que estoicamente ignoram os delírios obscurantistas de seus superiores. Gente que há quase um ano se desdobra no atendimento dos doentes e agora tocam a campanha de vacinação.
São os cientistas e técnicos nas frentes de pesquisa, garantindo que as vacinas sejam produzidas e aplicadas com toda segurança.
São nossos diplomatas mundo afora que não se deixaram capturar pelo tradicionalismo, como o diligente time da representação na Índia, que assegurou as importações de vacina apesar do disfuncional que os lidera em Brasília.[ x ]
Butantan e Fiocruz financiados pelos nossos impostos se tornaram merecidamente o símbolo dessa resistência humanitária.
Mas os heróis da resistência democrática são muitos. Incluem os jornalistas que nunca trataram a doença como uma “gripezinha”. Os líderes comunitários que organizam exércitos de mobilização. Os políticos verdadeiramente comprometidos com o povo sem cair no populismo. Os empresários que entenderam a gravidade do contexto e abraçaram a agenda da inclusão, sem filas paralelas ou qualquer outro privilégio.
Muita gente fez —e faz— a diferença ao enfrentar a miopia e a descoordenação apesar da insistência em atrapalhar de quem deveria liderar o país atualmente.
Temos de reverenciar a resposta diária dos professores nos estados e municípios e aplaudir os projetos públicos de ensino digital como, por exemplo, do Maranhão e do Rio Grande do Sul, que são ações bem sucedidas, apesar de a educação ter sido jogada às traças por ministros extremistas e alienados do marco democrático.
É necessário reconhecer o amadurecimento do debate nacional sobre renda básica e, da mesma maneira, é justo louvar o esforço do Congresso em 2020, que aprovou o auxílio emergencial, apesar da insensibilidade social de um governo que nunca priorizou os mais pobres.
Precisamos celebrar ainda os avanços dos movimentos feministas, LGBTQIA+ e antirracistas, que conquistaram inédita centralidade na discussão pública apesar da misoginia, da homofobia e do racismo da narrativa desvairada palaciana desde a posse.
A discussão nas redes sociais apodreceu de vez? Não se a gente se lembrar do inquérito das fake news no STF, da atuação das agências de checagem, da autocrítica das próprias plataformas e da posição esclarecida de muitos influenciadores digitais.
Os ataques contínuos esvaziaram a grande imprensa? Não se a gente verificar que o jornalismo festeja audiências sem precedentes.
Nossas contas públicas foram totalmente comprometidas por um governo avesso à transparência? Estão aí os portais especializados e os tribunais de contas para mostrar que é difícil esconder até suspeitas de leite condensado superfaturado.
O momento é crítico, mas temos de manter acesa a chama da esperança.
Apesar da situação calamitosa na Amazônia devido ao negacionismo presidencial, o Brasil tem tudo para reverter as curvas do desmatamento na região.
Aos poucos e aos trancos, produtores rurais percebem que a rastreabilidade e o plantio/pecuária sustentável são imperativos no mercado global. O sistema financeiro começa a estrangular o crédito de quem insiste em desmatar e ignora as diretrizes ESG, que cobram uma postura moderna em relação ao meio ambiente, ao desenvolvimento social e às práticas de governança.
Nossas exportações vão bater recorde, nossa agroindústria se fortalece, debates sobre produção e sustentabilidade seguem mais vivos do que nunca apesar da tenebrosa política externa atual e da orientação federal de fazer “passar a boiada”.
Apesar de esforços técnicos, o descompromisso com a pauta verde cria atrito com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Ao ponto de o comitê de política ambiental da OCDE cancelar a deliberação sobre elevar o status do Brasil —de convidado a participante— no órgão internacional.
Há quem cometa crimes nas florestas? Há. Em contrapartida, há muita gente disposta a se sacrificar em defesa do meio ambiente.
E se as autarquias hoje estão politicamente diminuídas, a maioria dos funcionários públicos continua cumprindo sua missão de fiscalizar, alertar, denunciar. A voz dos climatologistas nunca foi tão amplificada.
Falam que a PGR hoje oscila entre silêncios constrangedores e pareceres equivocados apesar de manifestações recentes do Conselho Superior do Ministério Público que mostram parte da corporação vigilante e pronta a responder.
Dizem que as Forças Armadas estão desmoralizadas. Quem conhece de perto os quartéis, os oficiais da ativa e a rotina das tropas, porém, sabe da contínua e inestimável contribuição dos militares para o país —sobretudo nos rincões mais pobres.
As Forças Armadas não têm um só sobrenome e nem são reféns do familismo. Prefiro enaltecer figuras honradas como o general Antônio Miotto, que perdeu a batalha para a Covid e não para a vaidade.
Não menciono aqui todos esses casos com propósito acomodatício. Moderação não é passividade. Não dá para tapar o sol com a peneira. A realidade brasileira não admite ingênuos. Não sugiro, portanto, guardar as panelas, engavetar o debate do impedimento, banalizar os crimes de responsabilidade, normalizar a dor e a violência, deixar de lado a indignação.
Pelo contrário, faço aqui o devido registro da potência do nosso sistema imunológico, celebrando nossa capacidade de reagir.
É importante fazer uma análise em perspectiva, especialmente nesta conjuntura tão polarizada, conturbada e por vezes contaminada por interesses mesquinhos.
O vírus expôs a fragilidade do nosso contrato social, que precisa ser repactuado. E as instituições estão sofrendo em mãos irresponsáveis. Mas os pilares da nossa democracia seguem de pé graças à intervenção de muitos.
Se é verdade que a sociedade agora está machucada e traumatizada, também é fato que temos tudo para sair dessa e emergir mais zelosos com nossos direitos, fortalecidos pelas conexões que realizamos e tonificados pelas novas reflexões que fazemos. A mudança depende de nós. Somos nós que construímos nosso destino coletivo.
Projetos políticos autoritários e truculentos têm problemas inerentes de sustentabilidade. Num país como o Brasil, imenso em seu território, imenso em suas desigualdades e imenso em suas potências criativa e empreendedora, autocratas acabam quebrando a cara e ficando impopulares.
Uma presidência desprovida de razão e de coração não tem como vingar por muito tempo entre nós. Por isso, este governo —sem querer— na sua trajetória errática vai ajudar a revitalizar a sociedade civil e a consolidar a percepção de que o messianismo nunca foi – nem nunca será – um atalho para a prosperidade do país.
O brasileiro voltará a sonhar quando a boa política sacudir a poeira da polarização e dos “ismos” e, assim, ajudar a nação a dar a volta por cima.
Então chegará a hora da generosidade, de reconectar as pessoas, de ouvir e acolher quem pensa diferente, de buscar pontos em comum e transformar as melhores ideias em realidade.
Chegará a hora de ouvir, unir e agir! Estou entre aqueles que se engajam nesta construção. Amanhã há de ser outro dia apesar da triste realidade de hoje. Jamais vamos desistir do Brasil. Sabemos que mesmo a pior das tempestades ajuda a florescer o jardim.
*Luciano Huck é apresentador de TV e empresário
Fernando Henrique Cardoso: As difíceis escolhas
Além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre de quem manda
Dias difíceis estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não me posso queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios. Isso é possível... para quem tem casa, como eu. E os que não a têm, ou a têm precária, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e, diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da política?
O bichinho persistente, o novo coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade, jovens ou velhos, ricos e poderosos tanto quanto pobres e sem alavancas de poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por mais confortável que seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.
Mas não desanimemos. Se algo o tempo ensina, é como diz o velho ditado: não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe.
Às vezes, raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra vez! É o Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim? Tratava-se da prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados que o apoiavam, para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual projeto.
Era o habitual. Mas vale a pena. Sem democracia é pior: a barganha, quando existe, não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.
Digo isso não para referendar o que está acontecendo (nem sei de fato), e sim para dizer que é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta de liberdade. Mas é preciso lutar. Por mais que se “entenda o jogo”, é necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.
Ainda assim, com o peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e baixos do poder, não deixa de ser triste ver isso a que estamos assistindo: o poder, nu e cru, com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se imagine que “a mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de mudança de comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a perder de vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não é feita só com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isso aparece dá vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.
Só que ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse público”. Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o interesse público desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço, os fatos falam mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em nossas plagas, comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer menos), é que nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que interesses. Será? Espero, mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor olhar para o que, apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em liberdade, em contraposição ao que é feito em regimes autoritários, por mais “fazedores” que sejam.
Espero, apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal, continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de quais e para quê) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma nova onda de crescimento da economia. E, por favor, sem esquecer que a tão falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me a má palavra) vontade política.
E isso – a tal vontade política – é necessário em qualquer forma de poder. A diferença entre elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica sabendo o que acontece, pois a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele pode reagir nas eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder mandam mais “à vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.
Não convém, portanto, apenas se recolher. Ao contrário, já que pelo menos temos liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro da lei, o poder de escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca, precisamos de lideranças. Na política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem simboliza um sentimento.
Não escrevo para me consolar, nem para consolar os leitores. Creio que é assim mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço, de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando, além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais forem, tenham sido ou vierem a ser “los que mandan”.
Livremo-nos ao menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja exercendo-o, seja sofrendo-o.
*Sociólogo, foi presidente da República
Alon Feuerwerker: Instabilidade ou estabilidade?
Vitoriosas as candidaturas apoiadas pelo Planalto na eleição das mesas do Congresso Nacional, abriu-se o debate sobre a solidez da aliança entre Jair Bolsonaro e o assim chamado centrão. O discurso corrente é o pacto tender à fragilidade, pela contradição entre o programa liberal e austero, capitaneado pelo ministro da Economia, e uma dita tendência gastadora e estatista da coalizão parlamentar vencedora em 1º de fevereiro.
Ou seja, o vetor dominante seria de instabilidade.
Antes de entrar nessa discussão, vale notar que a “frente ampla” antibolsonarista mostrou bem mais vigor nas páginas da cobertura política pré-eleitoral do que na urna eletrônica propriamente dita. Arthur Lira (PP-AL) teve cerca de quinze a vinte votos além do que lhe davam as medições mais calibradas, mas Baleia Rossi (MDB-SP) recolheu no mínimo uns cinquenta a menos. Que provavelmente vazaram na maior parte para candidatos sem chance.
Ao final, a esmagadora maioria dos votos de Rossi vieram dos partidos “de oposição mesmo”, da esquerda e da rotulada centro-esquerda. A direita e a assim chamada centro-direita ficaram com Lira. A ideia de uma coligação tática entre, vamos simplificar, a esquerda e setores antibolsonaristas da direita não passou nem da fase de grupos neste primeiro teste. E aí irrompeu, como habitual, a explicação mais fácil: as verbas e os cargos.
E disso nasceu a suposição de que a união entre o presidente da República e a maioria reunida em torno de Lira e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) [o Senado não tem tanta utilidade assim para a análise, pois ali até o PT apoiou o vencedor] é frágil, baseada apenas na troca de favores. O futuro dirá, mas essa visão corre o risco de estar mais influenciada pela insatisfação com o desfecho da refrega do que pelos fatos à disposição do analista.
Por falar neles, os fatos, um é que a Câmara tem hoje, como vem tendo tradicionalmente, pelo menos dois terços de deputados eleitos do ponto médio para a direita, sobrando um terço para o outro campo. Como alguns segmentos da direita apoiavam os governos petistas em troca de espaço na Esplanada e poder sobre recursos orçamentários, floresce a teoria de que seriam parlamentares, digamos, sem lado, sem cor ideológica.
Será? Um problema sério da candidatura Baleia Rossi foi deputados do MDB, DEM e PSDB precisarem administrar nas suas bases estar aliados ao PT e à esquerda. Isso ajudou a induzir à ruptura do Democratas e quase levou à ruptura do PSDB. Aliás, basta relembrar qual tinha sido o clima nos municípios em que emedebistas, tucanos e demistas tiveram de enfrentar adversários da esquerda no ainda recente novembro de 2020.
Notou-se também na segunda feira, abertos os resultados, que se a oposição de verdade tivesse lançado um candidato do seu bloco possivelmente teria ficado em segundo lugar. E se houvesse segundo turno teria perdido nele para Lira. Aliás, o apoio da esquerda a Rossi foi explicado também pela impossibilidade de o chamado centro votar na esquerda. No fim, ele votou mesmo foi de cara no candidato do governo. Um banho de realidade.
A força centrípeta exibida pelo bolsonarismo na eleição das mesas deveria produzir alguma cautela nas previsões de instabilidade na relação com o Congresso. Se a popularidade de Bolsonaro não descer pelo ralo, a tendência é o presidente ir ao segundo turno em 2022 (na hipótese de haver dois turnos). Isso dá a ele uma expectativa de poder que serve de ímã. E não haveria dificuldade maior de a massa parlamentar acoplar-se a Bolsonaro na eleição.
O que poderia instabilizar essa fórmula? O surgimento, do outro lado, de uma força eleitoral capaz de expressar possibilidade real de poder. A correlação de forças está à espera desse adversário. É como a política funciona.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Cristovam Buarque: Desorientação dos terracubistas
Os partidos progressistas não sabem para onde ir
Em recente entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique disse temer que o PSDB esteja em decadência. Na verdade, seu partido está desorientado, tanto quanto os demais partidos democratas progressistas, de centro ou de esquerda. Eles não entendem, ou não aceitam, que suas ideias e propostas perderam prazo de validade diante das mudanças que ocorrem na história; ou tentam se adaptar de maneira incompleta.
Percebem que o Estado tem limitações de recursos, mas não sabem como atender às necessidades sociais sem gastar além dos limites responsáveis. Não sabem como colocar a solidariedade necessária dentro da aritmética possível.
Descobriram os limites ecológicos ao crescimento, mas não conseguem oferecer um tipo de bem-estar que substitua a ânsia pelo consumo. Não conseguem colocar o PIB dentro da ecologia.
Entendem que uma das causas de nosso atraso está no desprezo à educação de base com qualidade para todos. Mas não assumem que a educação de qualidade para todos é mais do que o direito de cada pessoa, é o vetor do progresso econômico e da justiça social. Não acreditam, nem sabem como fazer para que o Brasil tenha uma educação tão boa quanto às melhores do mundo e que o filho do mais pobre estude em escola com a qualidade do filho do mais rico.
Perceberam que os partidos já não existem e as siglas pouco significam, mas não sabem que tipo de organização colocar no lugar. Nem como fazer política nos tempos das comunicações de massa.
Se surpreendem que perdemos velocidade no ritmo de crescimento, mas não entendem ainda, ou se assustam, com a ideia de que o problema não é a velocidade do progresso, é do caminho escolhido para ele. O problema não está na saída da Ford, mas na opção pela indústria automobilística como carro chefe da economia.
Continuam nacionalistas em um tempo de globalismo, mas não sabem como tirar proveito da globalização e evitar os problemas do livre comércio sem cair no protecionismo.
Os partidos progressistas estão desorientados do ponto de vista filosófico e em consequência decadentes do ponto de vista político e eleitoral, seu progressismo tem a cara, a cor e o cheiro do passado. Não veem a realidade em toda sua complexidade esférica, global e dinâmica. São partidos terracubistas. Os conservadores levam vantagem, porque o passado e o reacionarismo é a “praia” deles. A nostalgia é uma qualidade no discurso da direita, que defende “grande outra vez”; mas a nostalgia é um pecado entre os progressistas, que deveriam propor “melhor em frente”. Os conservadores não se desorientam porque desejam ficar parados; os progressistas se desorientam porque desejam avançar, mas olhando para trás, sem bússola, sem estradas e no meio do terremoto civilizatório.
Os progressistas não aceitam a Terra Plana, mas ainda não têm propostas pela a Terra Global no tempo da crise ecológica, da robótica e do esgotamento do Estado. Felizmente, a percepção de que a decadência é uma desorientação, possibilita o surgimento de mapas para futuros progressistas.
*Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador
Marco Aurélio Nogueira: O momento pede ação democrática firme e inteligente
A espetacular vitória de Arthur Lira na Câmara dos Deputados deixará marcas profundas na vida política brasileira, que terão de ser digeridas pela oposição democrática. Pode não ser uma novidade, dadas as características do nosso presidencialismo, que impulsiona o governo federal a se compor com o que se pode ter de “maiorias” no plenário da Câmara. Todo governo age para ganhar o Congresso, valendo-se de recursos mais decentes ou menos. Mas a vitória de Lira teve um diferencial: materializa uma ampla coalizão direitista e fisiológica e expressa com clareza a nova estética política que prevalece no País, na qual o que conta é jogar para a plateia (no caso, o plenário), abusar da demagogia, explorar mágoas e ressentimentos, deixar de lado qualquer protocolo ou manual de boas maneiras. Como no Executivo, a grosseria e a rusticidade predominam, sem qualquer prurido.
A festa com que Arthur Lira e seus apoiadores comemoraram a vitória, em Brasília, foi o suprassumo da estética dominante. Todos sem máscara, bebida solta, abraços e beijos, um festival de breguice e exibicionismo. Dançaram e cantaram como se estivessem a debochar da população enclausurada ou que rala nas ruas para trabalhar.
Há questões que passam pela lógica dos partidos brasileiros: a tendência inerente a eles de serem sugados pelo poder, com suas prebendas e vantagens. DEM, PSDB, MDB, PT, para falar de alguns “grandes”, se estraçalharam com isso. Mostraram pouca coerência e nenhuma lealdade. Deixaram Simone Tebet e Baleia Rossi na mão. Provavelmente não se beneficiaram com cotas orçamentárias, mas deixaram patente a disposição de ficar bem com a “maioria” que controla a Câmara, quem sabe aspirando fazê-la girar em dada direção, e não em outra. O que pesou mesmo foram interesses pessoais, grupais, regionais, muito mais do que princípios ou alinhamentos políticos. Deixaram no ar uma interrogação sobre quem é oposição, por quais razões e com quais intenções.
DEM e PSDB, em particular, que se consideravam líderes de uma espécie de “centro democrático”, saíram desmoralizados, cortados de cima a baixo por desavenças e desentendimentos. Mostraram ser compósitos de correntes que não se entendem: vão pela estrada carregando bagagens em que abundam pequenos interesses e faltam ideias, firmeza, compromissos.
No Senado, o estrago foi menor, o que converteu a instituição em um fator de equilíbrio e no novo locus da articulação democrática. Afinal, a candidatura do vitorioso Rodrigo Pacheco funcionou como um estuário de forças de centro e de esquerda, desenho que não se viabilizou na Câmara. O MDB “cristianizou” Tebet, mas não rompeu com a coalizão que terminou por prevalecer. No Senado, Bolsonaro não nadará à vontade. A Casa poderá fazer um contraponto ao que se antevê como recrudescimento direitista na Câmara, com um Arthur Lira se entregando a um plenário fragmentado e desorganizado, à agressividade típica de um “cabra da peste”, cego para o País, concentrado em seus interesses e modus operandi.
Lira fez questão de insistir na tese da Câmara independente, mas enfatizou também a ideia de que ela precisa agir em “harmonia”. Com quem? Ele mencionou a direita, a esquerda e o centro, mas seus olhos brilham mesmo para o Palácio do Planalto: as pautas que interessem a Bolsonaro e não o desafiem. Se conseguirá fazer isso, é algo a ser visto mais à frente. O fato, porém, é que tentará, o que já é suficiente para mudar o eixo de atuação da Casa. Irá se valer do estilo que tem feito sua fama, e que já foi associado à figura do “rato de plenário”, que circula sem parar, ouve conversas e confidências, abraça quem encontra pelo caminho.
Na sessão de abertura do ano legislativo, Lira comprometeu-me a “não medir esforços para que a harmonia se traduza numa pauta comum em prol de toda a sociedade”. Para ele, “a hora é de superarmos antagonismos, deixarmos para trás eventuais mágoas e mal-entendidos e unirmos forças para que saiamos maiores desta crise, para que o povo brasileiro sinta-se bem representado por cada um de nós, sinta-se protegido e atendido nas suas necessidades prementes”. A Câmara precisaria sair da “paralisia interna provocada por problemas políticos passageiros que a História sequer irá registrar”.
Lira nem sequer considerou o País que se espalha para além da Câmara. Sua briga era para ganhar o “baixo clero” e os trânsfugas, e foi para eles que discursou. Falou também para Bolsonaro, mostrando um espírito de colaboração que terá de ser posto à prova dia após dia.
Para celebrar tamanha disposição colaborativa, o governo acenou com diversos projetos na área econômica e de costumes, embrulhando tudo num pacote com o selo de “reformismo”, mas que não passa de um cozido mal temperado. Como escreveu Carlos Melo no Estadão, “ter mais de uma prioridade é não ter prioridade alguma”. Haverá, portanto, muita negociação, afora as surpresas, os erros, os humores sociais. A pauta reacionária dos costumes e dos direitos humanos, que o bolsonarismo quer privilegiar, não será digerida automaticamente e terá de ser negociada caso a caso.
Para Bolsonaro, descortina-se um cenário inédito. Ele ganhou, mas não necessariamente se beneficiará disso. Terá maior presença no Congresso, mas perderá um de seus ativos eleitorais, o de que não faria o “toma-lá-dá-cá” da “velha política”. Por extensão, estará impossibilitado de reclamar que suas pautas estão bloqueadas pelos parlamentares. Sua incompetência e sua falta de ideias ficarão ainda mais evidentes, assim como a falta de bons articuladores, que terão de ser terceirizados. Abrirá um flanco que, se bem explorado pelas oposições, poderá leva-lo a chegar enfraquecido a 2022. A incapacidade de governar, o descaso com que trata a crise sanitária, a miséria programática da política econômica e social são coisas que precisam ser denunciadas de forma clara, objetiva, sem maiores firulas analíticas.
Virar a página
No episódio da eleição dos presidentes da Câmara e do Congresso houve também algumas camadas de cálculo estratégico: afirmou-se a opção de esfriar o clima, desgastar eventuais lideranças que despontavam para 2022, caso de Rodrigo Maia. Ele mostrou habilidade nos quatro anos em que presidiu a Câmara, mas morreu na praia. Quando mais se necessitava de um coordenador, perdeu força. Foi queimado por seu próprio partido, que expôs as vísceras do que se tinha como alto poder de articulação. Maia tentou formar uma “frente ampla” que antecipasse 2022, mas não conseguiu. Sai chamuscado, e terá de correr atrás do prejuízo, que foi enorme.
O ambiente congressual esfriará o tema do impeachment, empolgações à parte. A batalha agora será no tempo regulamentar, onde a sabedoria terá de prevalecer, mais que a agitação.
É hora de virar a página. Ficou evidente que Bolsonaro ganhou fôlego e não será politicamente diminuído se continuar a ser tratado como a besta-fera genocida que só tem olhos para os seus. Atacá-lo por ser um ogro fascista que fala coisas estúpidas e reacionárias não machucará sua carcaça. O jogo ficou mais complexo e complicado: exigirá linguagem programática e capacidade de bater onde a dor seja mais forte, aqueles pontos em que a fragilidade fique escancarada. As oposições terão de se esforçar mais e aperfeiçoar seu modus operandi, em termos práticos e discursivos. Antes de tudo, precisarão definir se desejam caminhar juntas e articuladas. A ressaca talvez as ajude a apurar o foco e ganhar musculatura para uma disputa de mais longo prazo.
Trata-se, em suma, de por em movimento uma operação política que mostre à população a tragédia que vem sendo alimentada sistematicamente pelo governo Bolsonaro. A começar da deliberada ação para menosprezar o vírus, os cuidados e as vacinas, o que desagregou o País e conteve qualquer impulso de recuperação. Mas também a incompetência governamental generalizada. Não há um ministério que se salve, que tenha realizações a apresentar, que possa dizer que fez algo para o bem dos brasileiros. Há desemprego e inflação, a miséria cresce, sem que o auxílio emergencial (o de ontem e o futuro) sirva para outra coisa que não o aumento da popularidade do presidente.
As oposições democráticas, se decidirem agir de fato, precisam ir onde o povo está. Saber se comunicar, engavetar personalismos e querelas partidárias, falar o que a sociedade precisa ouvir, tendo em vista seus interesses, suas expectativas e sua indignação. Precisam mostrar que os problemas são enormes e que, para enfrentá-los, serão necessários governos ativos e competentes.
Para serem de fato uma alternativa, as oposições devem tratar o Palácio do Planalto como um adversário que requer inteligência e pertinácia para ser derrotado, num trabalho de construção cotidiana, sem arroubos retóricos infrutíferos. Que se deixe a bandeira do impeachment tremular, como ameaça e imã de agregação, mas que se compreenda que o impeachment não é um ato de vontade unilateral, a ser imposto sem uma adequada correlação de forças na sociedade e no Congresso. O importante, agora, é reagrupar o que está disperso e definir, o quanto antes, com quem é que se irá a 2022.
*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP. Doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado na Universidade de Roma (1984-1985)
Paulo Fábio Dantas Neto: Reposicionamento do DEM?
Frustrarei alguns dos ainda poucos leitores ou ouvintes regulares desta coluna, ao não comentar diretamente o desfecho de eleições recentes para as mesas da Câmara e Senado. É que estou escrevendo um artigo sobre esse assunto, que será publicado, em breve, pela revista eletrônica “Política Democrática”. Quem ainda não estiver saturado de informações, interpretações e conclusões sobre isso poderá acessar a revista, na próxima semana. De todo modo, o tema de hoje deriva daquele. É, por assim dizer, um efeito colateral do desfecho da disputa da Câmara, que vem sendo tratado - a meu ver, indevidamente e não inocentemente - como se fosse uma causa. Trata-se do posicionamento político do DEM.
Cultivo o hábito, hoje meio fora de moda, de avaliar, de saída, a posição de políticos e partidos pelo que eles declaram em público. A declaração tem valor em si, porque – salvo em casos limite, devidamente comprovados, de desprezo pela razão e uso contumaz da mentira - compromete o declarante, além de provocar ações de terceiros, que a tomam como baliza. De modo complementar, fazer reflexões para avaliar se estão sendo verazes, usando, como evidências, fatos e informações cruzadas de outras fontes, mas sempre pondo-as na condicional, sem fazer conjecturas passarem por veredictos. Pior do que a benevolência acrítica é o criticismo imprudente. Por isso, parto da entrevista concedida, pelo presidente nacional do partido em foco, ao jornal Folha de São Paulo, no último dia 3.
O título da matéria é “DEM não vai com extremos em 2022, mas não posso descartar agora estar com Bolsonaro, diz ACM Neto”. Quem foi além do título e leu a entrevista, viu que essa não foi uma declaração da iniciativa do entrevistado e sim uma resposta sua a uma pergunta direta do jornal. Leu também, no restante da mesma resposta, uma pergunta feita pelo político baiano: Qual Bolsonaro vai ser? O dos dois últimos anos que passaram? Não queremos. Agora, haverá um reposicionamento? Para a construção de algo mais amplo, que não fique limitado à direita? Não sei.” O título da matéria reproduz o núcleo da resposta e destaca o que nela suscita mais polêmica. O contexto da polêmica é a divisão do DEM na disputa da Câmara dos Deputados, fato que já vinha sendo interpretado, predominantemente, nos meios de comunicação, sob a chave da “traição”, da maioria da bancada e do presidente do partido, ao deputado Rodrigo Maia. Como estratégia jornalística, tudo certo, o entrevistado perderá tempo em reclamar.
O uso político da notícia-título, nos dias subsequentes, tem sido intenso e sem alusão ao complemento da resposta do entrevistado. Soltos os freios, as especulações abundam. Segundo elas, o presidente do DEM já indicou o mesmo virtual ministro para as pastas da Educação e da Cidadania, já está cotado para vice de Bolsonaro e esse último pode se aboletar no DEM. Alguma terminará acertando o alvo porque o que vale para qualquer partido não vale do mesmo modo para seus membros, individualmente. O padrão de independência política declarado pelo DEM com base nessa premissa não é contestado pelo palácio. Prova isso a permanência de quadros do partido em ministérios desde 2019, inclusive durante surtos milicianos do capitão, mesmo quando Mandetta, Maia e o próprio Neto se posicionavam, pontualmente, contra várias posições e iniciativas suas. Por que seria diferente agora quando Bolsonaro faz uma performance de político “normal”?
O padrão seletivo das especulações tem favorecido quem aposta em racha definitivo do DEM, animado pelo fato de destacados quadros do partido assumirem hoje uma nítida atitude de oposição, enquanto outros quadros se declaram independentes e outros ainda ocupam ministérios. Para se ter uma ideia da complexidade do quadro, é preciso ver que, além de tradicionais políticos regionais e daqueles da clientela do varejo, que não particularizam qualquer partido, dada a sua difusão em diferentes quadrantes ideológicos (os partidos do chamado centrão não se diferenciam por terem esse tipo de político mais que outros partidos e sim por quase não terem outros tipos além dele), convivem, no DEM, expressões carimbadas de várias espécies de centro, direita e centro-direita.
Sem pretender ser exaustivo, cito figuras hoje facilmente consideradas no chamado centro liberal democrático (como Rodrigo Maia e mais recentemente Luiz Mandetta), um exemplar de direita sem conexão fácil com qualquer centrismo (governador Caiado), um liberal ativista ao molde de Kin Kantaguri; um pragmático conectado com a extrema direita (Onix Lorenzoni), além de uma expressão política do agro negócio, a ministra Teresa Cristina e da mais recente aparição, na primeira cena da política, como presidente do Senado, de Rodrigo Pacheco, quadro de um conservadorismo moderado que lembra o estilo Marco Maciel, duas vezes vice-presidente da República, com a aparente vantagem de, no mineiro, a moderação sobressair mais do que o conservadorismo.
Quem quer analisar esse conjunto de crenças, interesses e configurações regionais, sem apenas fazer política com sua crise, precisa evitar etiquetas puras, colocar estratégias jornalísticas entre parênteses e prestar atenção às palavras de quem preside esse intricado mosaico, ele mesmo um caso complexo, herdeiro de uma tradição conservadora e pragmática que interagiu com autoritarismo e democracia e, com o tempo, foi adquirindo perfil liberal em trânsito na direção do centro, sem com isso perder seu pragmatismo.
Combinemos: se o presidente nacional do DEM dissesse em público que o nome de Bolsonaro está descartado como opção para 2022, essa não seria uma fala de oposição? Motivos não faltam para se fazer oposição no momento, mas acontece que o DEM não é oposição. É ambivalente. Uso essa palavra sem a conotação pejorativa que a ela se costuma dar, como se fosse um desvio de conduta política. Não é. Frequentemente, a ambivalência é uma atitude política positiva, que corresponde à ambiguidade de uma situação concreta. Nesses casos, político que quiser se livrar dela, vai parar na doutrina ou na demagogia.
Pode-se argumentar - e a meu ver com bastante razão - que o fator Bolsonaro desidrata o ambiente político da ambiguidade que poderia justificar uma ambivalência de posição. Tolerar ataques extremistas a granel sem um enfrentamento firme enfraquece moralmente a democracia porque vai rebaixando as crenças da sociedade em relação às instituições. Por outro lado, o fato de o extremismo ter chegado ao palácio e a isso juntar-se uma pandemia cria uma situação perigosa, levando a um argumento diferente, que também tem sua razão: é preciso defender a democracia dos ataques extremistas, mas também haverá risco institucional para ela se não se agir com moderação quando o presidente extremista ainda tem apoio popular e construiu uma base no Congresso. É fato que o DEM vem seguindo essa linha prudencial, desde o começo do governo Bolsonaro.
Nos limites da habilidade e clareza possíveis, o presidente do DEM disse que o Bolsonaro desses dois anos (o Bolsonaro real) não terá seu apoio, que o partido não quer nada com extremos nem seguirá algo que se limite à direita. Mas que em nome das prioridades do país, no contexto de pandemia, é preciso mediar e reduzir o conflito político e adiar o momento de opções eleitorais, para que se consiga clima de governabilidade e cooperação. Trata-se de um reposicionamento? Penso que não. É a mesma política de conciliação que o DEM vem pregando e praticando desde que o governo começou. Com essa estratégia conduziu-se na Câmara, sob o comando de Rodrigo Maia, no Ministério da Saúde dirigido por Luiz Mandetta e, em contexto mais limitado, com o próprio ACM Neto na prefeitura de Salvador, inclusive atuando em cooperação com o governo estadual adversário, durante a pandemia. Política nacional de conciliação que se combinou com alianças ao centro e até com a centro-esquerda nas eleições de 2020. E que se expressa agora na base de alianças que elegeu Rodrigo Pacheco presidente do Senado e na sua postura política.
Afinal, não era exatamente essa política que, semanas atrás, chamei, elogiando sua eficácia, de “estratégia maricas”, a mesma política que levava o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a ser acusado de conivente com Bolsonaro? Assim como não estava de acordo com essa crítica, penso que também não procedem as que hoje se dirigem ao presidente do DEM. Adesismo ao governo e estratégia maricas podem ter pontos de intersecção (eis a ambivalência) mas não são sinônimos. É possível discutir razões que passaram a levar quadros do DEM, como Maia e Mandetta, a preferirem o caminho aberto da oposição e até a flertarem com a ideia do impeachment. Diante da derrota da campanha de Baleia Rossi na Câmara, resolveram alterar a conduta, talvez até mudar de estratégia. Juntam-se à oposição, achando ser esse, nas circunstâncias seguintes à derrota na Câmara, caminho melhor para derrotar Bolsonaro e seu governo. Pode ser que estejam mais certos do que ACM Neto. Mas o reposicionamento é deles e não do partido ou do seu presidente.
Até onde posso imaginar a profundidade das feridas, o DEM retirou-se do bloco de apoio a Baleia Rossi porque não foi possível chegar a um acordo com Maia em torno do partido permanecer no bloco e aceitar-se a liberação da bancada, sabendo que a maioria ficaria com Lira. Foi essa a solução achada no PSDB, que também foi majoritariamente para Lira. Com todo desacordo interno, é no mínimo duvidoso que o DEM tenha virado centrão, ou tenha rompido com a perspectiva de frente ou de frentes democráticas. Esse risco existe, é claro, mas parece longe de ser favas contadas. O desfecho na Câmara foi de afastamento por razões diversas, que incluem o fisiologismo político, mas a ele não se restringem (tratarei disso no artigo da PD). Foi derrota importante da frente democrática para a qual as defecções no DEM decerto contribuíram. Mas a larga margem da derrota indica que a avaliação das causas não conduz a explicações simplórias. Muito menos a se considerar o DEM território inóspito para, por exemplo, uma eventual candidatura presidencial de Luiz Henrique Mandetta surgir e ter boa receptividade no centro e áreas da centro-esquerda.
Chego assim ao último ponto que quero abordar neste texto. O ex-ministro da Saúde tem dado sinais bem recentes de que interpreta o cenário político de modo diferente do ponto de vista que estou tentando aqui expressar. Fala-se que, assim como Rodrigo Maia, estaria considerando deixar o DEM e ingressar em algum partido menor que abrace a sua pre candidatura. Paciência! Se acontecer, não será a primeira nem será a última vez que discrepância parecida ocorre entre as perspectivas de um ator e de um espectador.
Tentarei ser sintético. Militares do palácio e o centrão estão oferecendo a Bolsonaro uma chance de se customizar para 2022. Conseguirão baixar sua rejeição e torná-lo competitivo numa eleição em dois turnos (algo que, hoje, não é)? Não sei, ninguém sabe. Mas esses agrupamentos governistas, não necessariamente bolsonaristas, parecem dispostos, mais uma vez, a maquiar o miliciano, agora com mais decisão. Dando certo, mergulharão o país numa aventura mais radical de extrema direita, após as eleições. É possível, como já disse nesta mesma coluna, que a customização tenha um sentido de ultimato. Batendo fofo, a opção é usar a posição institucional de Arthur Lira pra abrir caminho a uma espécie de Rússia, com Mourão, que passa por estraçalhar, casuisticamente, a Constituição. Aliás, se o estupro da Carta avançar até o sistema eleitoral talvez dê pra seguir com Bolsonaro mesmo, desafiando a sua rejeição. A solução russa não faz questão de patente.
Quais as evidências de que essa é, ou possa vir a ser, a aposta do DEM? Vamos pensar se é sensato, sem tais evidências, supor que tenha esse horizonte quando se nega a sair da posição de independência para a oposição. Vejo mais evidências de que aposte em ser a alternativa política e eleitoral da reconciliação do país, possível quando a maquiagem improvisada de Bolsonaro borrar. A incerteza maior que a novíssima conjuntura traz é que essa alternativa pode se tornar inviável, se as saídas do partido de Maia, Mandetta e do vice-governador de São Paulo se confirmarem e se derem em tom de rompimento.
Claro que a Bahia também está no meio disso. A negação dessa suposição intuitiva foi um momento em que ACM Neto não pareceu veraz. Como qualquer político, tem aspirações e ambições pessoais. Quer ser governador e para isso é bom estar nacionalmente junto do PP e do PSD, aliados do PT na Bahia e, também, perto de centros gerenciadores de decisões governamentais. Mas isso não quer dizer que pretenda correr o Estado com Bolsonaro a tira colo. Quem conhece minimamente o que se passa na Bahia pode avaliar o que ele teria a perder com isso. A esquerda baiana bem o sabe e por isso esfrega as mãos para que esse casamento de raposa aconteça, ou pareça que vai acontecer. O pragmatismo evidente do presidente nacional do DEM também não quer dizer que sacrificaria o papel mediador do partido que preside nacionalmente por uma aspiração provinciana. Vou concluir com isso.
Aparências não devem enganar. A tradição política que o DEM herdou na Bahia apela, em alguns momentos, a um discurso bairrista. Mas é uma tradição baiano-nacional. Escrevi um livro sobre origens e implantação do carlismo (“Tradição, autocracia e carisma: a política de Antônio Carlos Magalhães na modernização da Bahia, 1954-1974” – Ed. UFMG), dizendo isso. Foi publicado em 2004. A atualização sairá este ano e cobrirá o auge e o declínio do seu poder. O DEM, na maré vazante, aprendeu a manejar seletivamente sua tradição. Na Bahia, caminhou devagar em direção ao centro e hoje já se entende com parte da esquerda não governista. E não havia escolha, já que os partidos de direita e centro direita, satélites do PFL no tempo de ACM, tornaram-se (ainda são) aliados do PT, no Estado. O car1ismo acabou. Resta a memória, emulada por diversos, até opostos, partidos. Boa parte da Bahia sabe disso. Setores da imprensa nacional precisam se despedir do avô.
Se há uma percepção que vai da direita democrática à esquerda, é a de que Bolsonaro e democracia pluralista não combinam. O presidente nacional do DEM é um liberal pragmático, mas não um político de voo solo. Irá aonde o campo liberal brasileiro for. Não há sinais, até aqui, de que esse campo pode seguir na contramão da democracia.
*Cientista político e professor da UFBa