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Arquivo S: Fazendeiros tentaram impedir aprovação da Lei do Ventre Livre

Uma das precursoras da Lei Áurea, Lei do Ventre Livre completa 150 anos

Ricardo Westin / Agência Senado

Neste mês, a Lei do Ventre Livre completa 150 anos. Uma das precursoras da Lei Áurea, a norma determinou que, de 28 de setembro de 1871 em diante, as mulheres escravizadas dariam à luz apenas bebês livres. De acordo com a lei, não nasceria mais nenhum escravizado em solo brasileiro.

Os deputados aprovaram o projeto da Lei do Ventre Livre em três meses e meio. Os senadores, logo depois, em apenas três semanas. A lei foi imediatamente sancionada pela princesa Isabel, que dirigia o Império em razão de uma viagem de D. Pedro II ao exterior.

— Congratulo-me convosco pela lei que decretastes a bem da extinção gradual do elemento servil — discursou a princesa regente aos deputados e senadores. — Esta reforma marcará uma nova era no progresso moral e material do Brasil. Tenho fé que seremos bem-sucedidos, sem prejuízo da agricultura, nossa principal indústria, porque esse cometimento é a expressão da vontade nacional inspirada pelos mais elevados preceitos da religião e da política.

Apesar de rápida, a votação da Lei do Ventre Livre no Parlamento foi tumultuada e conflituosa. Documentos da época hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que houve parlamentares — alguns por questões políticas e partidárias, outros por convicções escravistas — que resistiram ao projeto de “extinção gradual do elemento servil” e se mobilizaram para derrubá-lo ou pelo menos atrasá-lo.

— O projeto fica apresentado, mas tenho a crença que é para ver e constar e que ele precisa morrer — sentenciou o senador Silveira da Mota (GO).

— Qual será o motivo desta urgência? Haverá, porventura, alguma razão oculta que não possa ser revelada ao corpo legislativo? Eu digo que estas medidas podem, sim, ser discutidas em outra sessão [em outro ano] sem nenhum inconveniente — pressionou o senador Joaquim Antão (MG).

Os bebês, na realidade, não seriam tão livres assim. Grosso modo, a Lei do Ventre Livre estabeleceu que os filhos permaneceriam junto da mãe, vivendo no cativeiro e trabalhando para o senhor dela, até completarem 21 anos. Na prática, eles só ganhariam a liberdade na idade adulta.

O trabalho que os filhos prestariam ao longo dos anos gratuitamente ao fazendeiro serviria de compensação pelos gastos com a criação (teto, comida, roupa etc.) e também de indenização pela perda compulsória da “propriedade”.

A versão original da Lei do Ventre Livre, assinada pela princesa Isabel (imagem: Arquivo do Senado)

Na visão dos adversários da proposta, um dos problemas seria a futura convivência de duas classes distintas de negros — os livres e os escravizados — dentro da mesma fazenda, o que fatalmente estimularia rebeliões negras pelo Brasil afora.

Um dos porta-vozes desse discurso do medo, o senador Visconde de Itaboraí (RJ) explicou:

— Estas disposições não podem deixar de produzir descontentamento nos escravos. Não estão eles tão embrutecidos que não conheçam que o mesmo direito que têm os filhos vindouros devem ter seus pais? Que o mesmo princípio que determina a liberdade de uns deve determinar a dos outros? Que se o legislador não a dá aos que ficam na escravidão é porque seus senhores a isto se opõem? Esta ideia há de inspirar nos escravos sentimentos de aversão, irritá-los contra os seus senhores. E daí hão de vir a agitação, a insubordinação, a destruição, a desorganização do trabalho e, nem ouso dizê-lo, as desgraças que todos nós podemos imaginar e prever.

Contra o projeto de lei, ele apelou até para argumentos de humanidade:

— Os nascituros deverão servir como os outros escravos e conviverão com eles, sujeitos aos mesmos castigos e sofrimentos. Na prática, serão escravos. Não entra na minha pobre inteligência a ideia de homens livres sujeitarem-se a trabalhar para outrem como escravos e sem remuneração alguma até a idade de 21 anos. Será isto motivo de contínuas tramas entre eles e os escravos para se libertarem da escravidão. Não haverá um só fazendeiro sensato que, pensando nas agitações e na perda de força moral que há de sofrer, queira sujeitar-se a conservá-los em suas fazendas.

O Visconde de Itaboraí garantiu que os fazendeiros do Brasil tinham bom coração e que não era por perversidade que eles se opunham à proposta de libertar o ventre:

— Se a liberdade dos nascituros não trouxesse consigo tais perigos, acredito que não haveria proprietário que não estivesse muito disposto a libertar todas as crias que lhe nascessem de agora em diante.

Anterior à Lei do Ventre Livre, outra norma precursora da Lei Áurea foi a Lei Eusébio de Queiroz, que em 1850, por pressão britânica, proibiu os portos brasileiros de receber navios negreiros procedentes da África. Por causa dela, uma das fontes de mão de obra escravizada secou. A fonte que se manteve foi a do nascimento de bebês escravizados em solo brasileiro.

Escravizada e seu bebê na época do Segundo Reinado (imagem: Biblioteca Nacional)

Na avaliação de Joaquim Antão, o Brasil erraria se também secasse a segunda fonte sem antes tomar as devidas “medidas preparatórias”:

— Todo mundo sabe que, desde a extinção do tráfico, estava julgada a questão da escravidão no Brasil. Mas, se nós quiséssemos que ela chegasse ao seu resultado sem grandes inconvenientes, teríamos que ter tomado a necessária previdência. Era preciso que existisse o ensino do filho dos escravos, como se praticou nas Antilhas. Me refiro ao ensino religioso e moral e ao ensino das primeiras letras. Alguma vez constou ao Senado que se aconselhasse aos presidentes de província que promovessem o estabelecimento de escolas próprias para os filhos dos escravos? Até há em algumas províncias legislação que proíbe que os filhos dos escravos vão aprender a ler nas escolas públicas.

Para reforçar que a Lei do Ventre Livre era inconveniente naquele momento, ele fez uma comparação catastrofista:

— O movimento emancipador é como o da locomotiva. Se o maquinista lhe dá toda a força sem as necessárias cautelas, não há freios que a contenham, e ela precipita-se fora dos trilhos e arroja ao abismo todos os passageiros.

Contra a proposta, Silveira da Mota trouxe outro argumento. Segundo ele, ninguém parecia ainda ter-se dado conta de que esses bebês negros se transformariam no futuro em cidadãos, o que seria inadmissível:

— Devemos não esquecer que a liberdade é um direito que tem consequências. A mais preciosa é o direito de sair dos domínios da escravidão para um outro em que o escravo fica com direitos quase iguais e a certos respeitos iguais aos do senhor. Note-se que temos diante dos olhos um futuro próximo de intervenção dos libertos no direito de votar. Teremos uma massa imensa de cidadãos brasileiros e africanos que hão de querer dar o seu voto nas assembleias paroquiais.

O senador Vieira da Silva (MA) ficou chocado:

— É verdade, podem até ser vereadores. Até sem nem saberem ler e escrever.

O senador Fernandes da Cunha (BA) foi taxativo:

— Eu não concedo direitos políticos aos libertos.

Silveira da Mota então concluiu seu raciocínio:

— Eu, que vejo essa massa negra com direitos políticos nas mãos do governo, não posso deixar de ter apreensões. É uma questão sobre a qual este projeto devia ter dado uma providência. É uma lacuna que deve ser preenchida.

Charge sobre o projeto da Lei do Ventre Livre publicada na Semana Ilustrada (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Outro adversário do projeto, o senador Barão das Três Barras (MG) advertiu aos colegas que a libertação do ventre, ao invés de acalmar, inflamaria perigosamente o movimento abolicionista:

— Consagre-se em lei a ilegitimidade do nascimento escravo, como se pretende fazer, declarando ingênuos [livres] os que nascerem da data da lei, e a propaganda [abolicionista] terá direito de exigir a aplicação aos já nascidos.

Ele repetiu a ideia corrente na época de que a escravidão era um mal, mas no Brasil um mal necessário, por ser a base da cafeicultura de exportação:

— Não se pense que defendo a legitimidade da escravidão. Considero-a um fato que não podemos fazer desaparecer repentinamente e que por isso mesmo se conserva. Enquanto se conserva, não se convém desmoralizar. Os lavradores são os únicos que trabalham para encher os cofres públicos.

De acordo com os documentos do Arquivo do Senado, organizações de fazendeiros, como o Clube da Lavoura, enviaram aos senadores 11 representações contra o projeto da Lei do Ventre Livre. Algumas apontavam o risco de caos social e econômico no Império. As petições somaram 2 mil assinaturas.

Do outro lado da trincheira parlamentar, os defensores do projeto contra-atacaram com diversos argumentos favoráveis à liberdade do ventre. Um deles seria que, àquela altura do século 19, a escravidão já se tornara indefensável e que era mais conveniente que a libertação viesse a conta-gotas e sob o controle do governo. O pior cenário, disseram, seria a abolição chegar de supetão e forçada pelas circunstâncias, libertando todos os escravizados do Império e pegando os fazendeiros de surpresa.

Seguindo essa linha de raciocínio, o ministro da Agricultura, Teodoro da Silva, disse aos senadores:

— Na Inglaterra, é sabido que, por não ter o governo em princípio tomado a si a direção da opinião pública sobre a questão da emancipação dos escravos, resultaram as insurreições graves que perturbaram algumas de suas colônias, como a Jamaica. Foram insurreições que só com grande custo e sacrifício de dinheiro e sangue a metrópole pôde extinguir. Depois disso, só em 1833, o governo inglês, amestrado por tão dura experiência, foi que se resolveu a cuidar séria e eficazmente da solução do problema da extinção do elemento servil nas colônias. No Brasil, o governo deve dirigi-la, esta é a verdade, para que não tenha de lamentar fatos como aqueles ocorridos nas colônias inglesas.

O ministro da Agricultura apresentou o possível cenário do Brasil se a abolição viesse abruptamente:

— Semelhante solução traria, no dia em que a emancipação se realizasse, uma completa deslocação no trabalho agrícola, perturbação esta cujos resultados não nos é possível calcular com precisão. Em um dia, 1 milhão de escravos, suponhamos, seriam libertos, mas seriam 1 milhão de homens que não são afeitos ao trabalho livre e fugiriam das fazendas com horror pelas reminiscências do cativeiro. E a ruína dos proprietários e o empobrecimento do Estado seriam completos.

O senador Nabuco de Araújo (BA) resumiu:

— Não quereis os meios graduais? Pois bem, haveis de ter os meios simultâneos. Não quereis as consequências de uma medida regulada pausadamente? Haveis de ter as incertezas da imprevidência. Não quereis os inconvenientes econômicos das Antilhas francesas? Podeis ter os horrores de São Domingos [no Haiti, os escravizados fizeram uma revolução, declararam o país independente e aboliram a escravidão]. A inação é incompatível com o atual estado das coisas. É preciso resolver, e não adiar a questão.

Imagem de Rugendas mostra crianças escravizadas na casa dos senhores (imagem: reprodução)

Na avaliação do senador Figueira de Melo (CE), o governo imperial fez bem em não propor ao Parlamento a abolição imediata, pois isso exigiria indenizar os senhores pela perda da “propriedade”:

— Se nós quiséssemos de uma só vez, por uma simples penada, acabar com a escravidão, teríamos ao mesmo tempo a rigorosa obrigação de previamente, na forma da Constituição do Império, indenizar a todos os proprietários com valor correspondente a cada escravo. Mas a nação estaria em circunstâncias de fazer tão grande sacrifício? Poderíamos ter rendas, meios ou impostos suficientes para pagar esses valores? E, se tivéssemos de contrair um empréstimo, que deveria ser avultadíssimo, não levar-nos-iam os respectivos juros quase toda a renda com que atualmente contamos? Decerto.

Uma parte dos escravocratas do Império, mais pragmática, apoiou o projeto. Esse grupo compreendeu que a proibição da entrada de africanos no Brasil, o fim do nascimento de escravizados em território nacional e a concessão e compra de cartas de alforria já seriam medidas suficientes para fazer a escravidão chegar naturalmente ao fim em algum momento do início do século 20. Isso, para eles, descartaria a necessidade de uma temida Lei Áurea.

— É medida [a libertação do ventre] que, por si só, trará o resultado desejado. Desde o dia seguinte da lei, a escravidão começará a diminuir — discursou o senador Visconde de São Vicente (SP). — A lei tratará uma nova ordem coisas sem abalo. Como não se trata de uma emancipação simultânea ou em massa, não se toca no que existe, não se aniquilam os braços, não se desorganiza o trabalho. Por que, pois, tanto temor?

Algum senador adversário da Lei do Ventre Livre chegou a propor que, no lugar dela, se marcasse a abolição definitiva da escravidão para 1900. Seria uma forma de os fazendeiros mais refratários às mudanças empurrarem a solução para uma época em que provavelmente já não estariam vivos. Nabuco de Araújo rechaçou a ideia:

— Eu não sou contrário à ideia do prazo, não como substitutiva da ideia do projeto, mas como complementar dela. Depois de algumas décadas [da aprovação da Lei do Ventre Livre], ainda poderá haver escravidão, mas a escravidão quase morta, a escravidão desfalecida pelos muitos nascimentos livres e pelos muitos óbitos. Consistindo a escravidão pela maior parte em velhos, não se dará [no futuro] o perigo que se daria hoje com a emancipação simultânea, imediata.

Charge do jornal O Mosquito mostra o Visconde do Rio Branco, o primeiro-ministro conservador responsável pela aprovação da Lei do Ventre Livre (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Outro argumento favorável à Lei do Ventre Livre era que o Brasil, se não começasse logo a encaminhar a questão escrava, fatalmente viveria a mesma situação dos Estados Unidos, que poucos anos antes mergulhara numa sangrenta guerra civil motivada pelas divergências entre os estados do norte e os do sul em relação à escravidão. A Guerra de Secessão chegou ao fim com a vitória dos estados do norte e a abolição do trabalho escravo em todo o território americano.

Um dos senadores que recorreram a essa argumento foi Sales Torres Homem (RN). Um dos mais ferrenhos críticos da escravidão, ele era filho de um padre branco e uma quitandeira negra alforriada. O senador, contudo, nunca se identificou como negro. Ele discursou:

— Pergunte-se o que aconteceu a esses arrogantes plantadores do sul dos Estados Unidos, que, repelindo todos os compromissos e emperrados em suas ilusões, blasonavam [vangloriavam-se] de dilatar os territórios da escravidão desde o túmulo de Washington até o palácio de Montezuma. Quando menos esperava-se, o edifício desabou sobre eles, sepultando-lhes as fortunas inteiras debaixo das ruínas ensanguentadas por uma guerra devastadora.

O senador Zacarias de Góis e Vasconcelos (BA) afirmou que o Império estava prestes a se tornar um pária internacional. Naquele momento, apenas o Brasil e Cuba insistiam em manter a escravidão na América — a Espanha, porém, já preparava a abolição em sua colônia caribenha. Ele disse:

— Enquanto a grande republicana americana tinha escravos, podia-se relevar à Monarquia o manter essa instituição, mas logo que os acontecimentos de que todos temos notícia impeliram o Norte a empunhar as armas contra o Sul e batê-lo até de todo extinguir a escravidão, nesse dia nós não tínhamos mais escusas. Então, ficando o Brasil país único escravocrata na América, não era possível manter-se entre nós semelhante situação. Nem era preciso que empunhassem armas para compelir-nos a dar um passo no sentido da emancipação; bastava o riso do mundo, bastava o escárnio de todas as nações apontando para o Brasil como país amigo da escravidão, disposto a mantê-la indefinidamente.

De acordo com o Visconde de São Vicente, a escravidão prejudicava inclusive as famílias dos fazendeiros:

— Pelo que toca à segurança externa, é uma nociva causa de enfraquecimento das forças do Estado. Se em vez de 1 milhão de homens escravos, tivéssemos mais esse número de trabalhadores livres, só daí poder-se-ia tirar um exército. O que acontece, porém, é que a população escrava fica nos estabelecimentos dos senhores, e o recrutamento vai pesar sobre o filhos da lavoura. Foi o que aconteceu na Guerra do Paraguai.

Senador Sales Torres Homem, que era filho de negra alforriada e defendeu a Lei do Ventre Livre (imagem: August Off)

Os documentos históricos do Arquivo do Senado mostram que, no dia da votação do projeto da Lei do Ventre Livre, o Senado estava lotado de espectadores, que vibraram no momento da aprovação. “Das galerias caem flores, de que fica juncado o recinto, e os espectadores prorrompem em prolongados e estrepitosos vivas ao Senado brasileiro”, descreveu o taquígrafo. O presidente da Casa, irritado, acionou a campainha diversas vezes exigindo silêncio, já que o regimento não permitia sinais de manifestação dos espectadores.

 A socióloga Angela Alonso, professora da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Flores, Votos e Balas — O movimento abolicionista brasileiro (Editora Companhia das Letras), explica que o Ventre Livre foi mais uma norma da série “leis para inglês ver”.

— A Lei do Ventre Livre não teve o resultado prático que seria o mais óbvio: a liberdade dos bebês. Quem nasceu em 1871 só se tornaria efetivamente livre em 1892, aos 21 anos de idade. A Lei dos Sexagenários, de 1885, foi outra lei para inglês ver. Os escravizados que completassem 60 anos ainda precisariam prestar três anos de serviços ao senhor antes de serem libertados. O movimento abolicionista foi decisivo para que o governo aprovasse essas leis. Diante da falta de resultados concretos, os abolicionistas aumentaram a pressão.

De acordo com Angela Alonso, é errônea a interpretação ensinada na escola de que D. Pedro II esteve continuamente determinado a eliminar a escravidão do Brasil:

— Essa interpretação, criada pelos próprios monarquistas e difundida até hoje, não se sustenta diante de uma pesquisa mais rigorosa. A escravidão e a Monarquia estavam profundamente interligadas. Uma dependia da outra. Em 1822, a elite optou por um Brasil unificado em torno de uma Coroa, e não dividido em várias Repúblicas, justamente porque a Monarquia era a garantia de que o regime escravocrata seria mantido. Em várias ocasiões, D. Pedro II teve a oportunidade de avançar com medidas abolicionistas, mas não o fez.

Ela lembra que, pouco antes de 1871, um primeiro-ministro do Partido Liberal propôs a libertação do ventre, mas a reação dos fazendeiros foi tão forte que D. Pedro II imediatamente o derrubou e nomeou um primeiro-ministro escravocrata do Partido Conservador. A questão só avançaria em 1871, com outro primeiro-ministro do Partido Conservador, mas agora da ala moderada.

Com a Lei dos Sexagenários, foi parecido. Antes de 1885, um primeiro-ministro do Partido Liberal pediu não só a libertação dos escravos mais velhos, mas também a concessão de direitos aos libertos, como salário mínimo e terras na beira de ferrovias. Diante da nova gritaria, D. Pedro II também o destituiu. No lugar, pôs mais um primeiro-ministro escravocrata do Partido Conservador, que aprovou uma Lei dos Sexagenários bastante desidratada.

— Não é verdade que a Monarquia levou a cabo uma abolição gradual que tinha como fim a Lei Áurea. Diante dos resultados pífios da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários, os abolicionistas perceberam que, se dependesse da boa vontade das instituições, a situação não se resolveria. Eles, então, adotaram ações cada vez mais ousadas e arriscadas, fomentando a fuga e a rebelião dos escravos. Os fazendeiros reagiram com armas e milícias. O Brasil ficou à beira de uma guerra civil. Em 1888, a Coroa se viu sem alternativa, a não ser aprovar a Lei Áurea. Mas, como uma sempre foi profundamente dependente outra, quando a escravidão acabou, a Monarquia ficou condenada a também acabar.

Adulto e criança escravizados no século 19 (imagem: Christiano Junior/Museu Histórico Nacional)

Angela Alonso avalia que certas questões da sociedade brasileira persistem desde a época da Lei do Ventre Livre:

— No passado, a briga era pelos direitos básicos dos escravizados. Hoje, a briga é pelos direitos básicos dos descendentes dos escravizados. Não me refiro apenas aos quilombolas, mas à população pobre como um todo, que é majoritariamente negra. Tanto antes como agora, a elite se movimenta para impedir a concessão de direitos sob o argumento de que não há verbas públicas suficientes, de que o Brasil quebrará se fizer reformas sociais, de que a prioridade do país é fortalecer o empresariado, os verdadeiros geradores de renda, de que é necessário primeiro crescer para só depois dividir o bolo. O comportamento da elite não mudou.

O medo expresso pelos senadores de que os beneficiários da Lei do Ventre Livre ganhassem direitos políticos plenos seria apaziguado uma década mais tarde. Em 1881, a Lei Saraiva proibiu os analfabetos de votar. A proibição só seria retirada da legislação brasileira em 1985.

Saiba mais:

A seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira sexta-feira do mês no Portal Senado Notícias. 

Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.


Reportagem e edição: Ricardo Westin Pesquisa histórica: Arquivo do Senado Edição de multimídia: Bernardo Ururahy Edição de fotografia: Pillar Pedreira.
Foto de capa: Pintura O Menino de Arthur Timótheo da Costa/MASP

Fonte: Agência Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/fazendeiros-tentaram-impedir-aprovacao-da-lei-do-ventre-livre


Arquivo S: Há 130 anos, primeira Constituinte da República teve queixas da Igreja e ausência do povo

Depois da Proclamação da República, o Brasil só voltaria à plena legalidade em 24 de fevereiro de 1891, quando os senadores e deputados reunidos longe da cidade entregaram ao país a sua Carta republicana

Ricardo Westin, Agência Senado

Em 18 de novembro de 1889, três dias após a derrubada de D. Pedro II pelos militares, o jornalista republicano Aristides Lobo escreveu, num célebre artigo publicado no jornal Diário Popular, que não houve povo nesse episódio histórico: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada [militar]”.

O Brasil passou a ser conduzido pelo governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca e só voltaria à plena legalidade em 24 de fevereiro de 1891, um ano e três meses depois da Proclamação da República, quando os senadores e deputados reunidos no Congresso Constituinte entregaram ao país a sua primeira Carta republicana. A promulgação da Constituição de 1891 completa 130 anos neste mês.

Documentos da virada de 1890 para 1891 guardados hoje nos Arquivos do Senado e da Câmara dos Deputados mostram que tampouco houve povo nesse segundo momento decisivo da história nacional, no qual o Congresso Constituinte desenhou os novos contornos institucionais do Brasil.

— Sinto a minha alma partida quando olho para estas galerias e não vejo o elemento que nos deveria cercar, o elemento popular — queixou-se, num discurso, o deputado Aristides Zama (BA).

A feitura da Carta de 1891 foi bem diferente da construção da Carta de 1988, vigente hoje e marcada pela intensa contribuição popular.

No fim do século 19, os constituintes se reuniram no Paço de São Cristóvão, praticamente na zona rural do Rio de Janeiro. Para percorrer os 6 quilômetros entre o Centro e São Cristóvão, as carruagens levavam duas horas e meia.

— O governo não deveria ter cogitado em pôr o Congresso no deserto, impedindo o povo de ver como os seus representante tratam de seus altos interesses — criticou Zama. — Nós devíamos estar trabalhando lá no coração da cidade, de modo que o homem do povo que tivesse uma hora vaga pudesse entrar no Congresso Constituinte Nacional. O povo está daqui afastado. Afastaram-no a distância, a dificuldade, o elevado preço do transporte. Quereis fazer a República e afastais o povo dos lugares em que pode e deve aprender o que é uma democracia?

Para o deputado e pintor Pedro Américo (PE), outro crítico da localização remota do Paço do São Cristóvão, houve segundas intenções nessa escolha:

— Há quem diga que o Congresso reúne-se longe da cidade para evitar as assuadas [vaias] populares.

Reforçava essa hipótese o fato de o Paço de São Cristóvão não dispor da estrutura adequada para abrigar ao mesmo tempo os 205 deputados e os 63 senadores do Congresso Constituinte. O local fora construído como residência. Até D. Pedro II ser expulso do país, em 1889, São Cristóvão havia sido a morada da dinastia de Bragança. Os constituintes reclamavam que o ambiente era um “forno” e que a acústica era péssima, o que lhes exigia “pulmões de ferro” na hora de discursar.

— Se nos mandassem para a Índia [discutir a Constituição], também iríamos muito caladinhos? — continuou Pedro Américo, indignado. — Seja a antiga Câmara [dos Deputados] ou qualquer outro edifício, o que é necessário é nos mudarmos para lugar menos impróprio do que este palácio, o qual seria muito mais apropriado para servir de museu histórico nacional ou simplesmente para as reuniões festivas e solenes do Congresso.

Paço de São Cristóvão: o antigo palácio imperial abrigou o primeiro Congresso Constituinte da República.
Paço de São Cristóvão: o antigo palácio imperial abrigou o primeiro Congresso Constituinte da República. 
AUGUSTO STAHL / AGÊNCIA SENADO

O natural, de fato, era que os constituintes se reunissem na Câmara da época imperial ou então no Senado, ambos desativados e localizados no Centro, mas tal possibilidade já estava descartada. O marechal Deodoro sabia que parte considerável dos habitantes do Rio — incluindo os antigos escravos beneficiados pela Lei Áurea — era partidária da Monarquia e, como tal, poderia atrapalhar os planos do governo republicano caso decidisse comparecer em massa e fazer algum tipo de pressão sobre o Congresso Constituinte.

O movimento republicano sempre foi minúsculo e jamais conseguiu angariar a mesma adesão popular que o movimento abolicionista. O próprio Deodoro era monarquista convicto e só se juntara na última hora aos conspiradores de 1889. A popularidade de D. Pedro II era tamanha que o embarque da família imperial no navio que a levou para o exílio ocorreu de madrugada, enquanto o Rio dormia. Assim, o Governo republicano evitou conflitos e manifestações a favor do imperador.

— Queria que a República não tivesse medo do povo, que não fizesse como certos domadores de feras, que só acariciam as jubas do leão quando ele está açaimado [amordaçado]. Somos muito engraçados: lisonjeamos o povo de longe, mas, quando temos de encontrar com ele, fugimos — discursou o deputado Francisco Badaró (MG). — Se o povo brasileiro estivesse nesta Casa palpitante como está no interior do país, a obra sairia diferente.

O medo do povo também pode ser depreendido de um dos primeiros artigos da Constituição de 1891, o que determinou a transferência da capital para o centro do país. Foi a primeira vez que a nova capital apareceu numa lei. Segundo historiadores, isso se explica principalmente pela preocupação que o primeiro Governo republicano tinha em relação à possibilidade de se formar no Rio algum movimento pela restauração monárquica.

No entanto, a consolidação da República ao longo dos anos seguintes faria o preceito constitucional da mudança da capital ser esquecido, para só sair do papel em 1960, com a inauguração da Brasília.

D. Pedro II, o imperador deposto, e Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente.
D. Pedro II, o imperador deposto, e Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente.
MATHEW BRADY E IRMÃOS BERNARDELLI / AGÊNCIA SENADO

A Constituição de 1891, promulgada pelos senadores e deputados constituintes 15 meses após a derrubada de D. Pedro II, estabeleceu as bases políticas sobre as quais o país se ergue até os dias de hoje: a República, o presidencialismo, os três poderes e o federalismo.

Até 1889, as bases eram bem diferentes. Como Monarquia parlamentarista, o Brasil tinha imperador e primeiro-ministro. Havia o poder oderador, que era exercido pelo monarca e prevalecia sobre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diferentemente dos atuais estados, as antigas províncias eram meros braços do governo central e quase não tinham autonomia política e financeira. Nem sequer escolhiam seus próprios presidentes (como se chamavam os governadores).

Entre as raras vozes da sociedade que conseguiram se manifestar na Constituinte de 1890-1891, estiveram o Apostado Positivista e a Igreja Católica, ambos por meio de carta. Os seguidores do positivismo (filosofia na época em voga que pregava que só a ciência garantiria o progresso da humanidade) recomendaram aos parlamentares que ficassem atentos para não cair em “utopias comunistas”. Os religiosos, por sua vez, não gostaram de ver o catolicismo perdendo o status de religião oficial do Brasil e os subsídios dos cofres públicos.

“A separação violenta, absoluta e radical não só entre a Igreja e o Estado, mas entre o Estado e toda religião, perturba gravemente a consciência da nação e produzirá os mais funestos efeitos, mesmo na ordem das coisas civis e políticas. Uma nação separada oficialmente de Deus torna-se ingovernável e rolará por um fatal declive de decadência até o abismo, em que a devorarão os abutres da anarquia e do despotismo”, escreveu o arcebispo primaz do Brasil, D. Antônio de Macedo Costa.

Os católicos não foram ouvidos. Além da separação entre Igreja e Estado, a Constituição de 1891 determinou que o casamento religioso não teria mais validade pública, apenas o casamento civil.

O Senado também passou por mudanças. Os senadores deixaram de ser vitalícios e passaram a ter mandato limitado. O Supremo Tribunal, que no Império era quase decorativo, ganhou poderes e pôde julgar processos políticos.

Charge mostra chegada de 1891 e da Constituição.
Charge mostra chegada de 1891 e da Constituição.
BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL / AGÊNCIA SENADO

De acordo com o cientista político Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o Governo republicano recorreu a vários artifícios para ter controle sobre o conteúdo da Constituição que seria aprovada:

— Primeiro, a eleição para o Congresso Constituinte foi regida por uma legislação fraudulenta, que impediu a entrada de todos que fossem adversários do novo regime, como os monarquistas, os parlamentaristas e os unitaristas [opositores do federalismo]. Depois, o Governo enviou um projeto de Constituição pronto e deu aos constituintes parcos três meses para aprová-lo, o que restringiu as discussões e dificultou as modificações. Por fim, os constituintes automaticamente se tornariam senadores e deputados ordinários, sem nova eleição, após a dissolução do Congresso Constituinte. Isso foi ruim porque eles perderam a liberdade de decidir. Estando com o mandato garantido pelos próximos anos, não faria sentido que mudassem as regras do jogo político em seu prejuízo. Jamais, por exemplo, aprovariam uma Constituição prevendo o Poder Legislativo unicameral. No fim das contas, o Congresso Constituinte fez pouco mais que carimbar o projeto do Governo provisório.

Apesar de a escravidão ter sido abolida apenas três anos antes, o Congresso Constituinte não tocou na complicada situação dos antigos escravizados, que foram libertados sem ganhar nenhum tipo de compensação ou apoio do poder público. A escravidão foi citada, por exemplo, quando um constituinte parabenizou o Governo por incinerar todos os registros públicos relativos à posse de escravizados e também quando um político de Campos (RJ) afirmou que a Lei Áurea havia levado sua cidade à ruína econômica.

Alguns parlamentares chegaram a questionar se o povo teria condições intelectuais para, pelo voto direto, escolher os presidentes da República.

— O voto direto traz o país constantemente sobressaltado por ocasião das eleições, às quais concorre grande massa de povo ignorante, e não raro são os distúrbios e desordens que provoca, o que se economiza perfeitamente com o voto indireto, dando-se a faculdade eletiva a um eleitorado escolhido — argumentou o deputado Almeida Nogueira (SP).

— No Brasil, como em toda parte, qualquer que seja o sistema preferido, quem governa não é a maioria da nação. É a classe superior da sociedade, uma porção mais adiantada e, conseguintemente, mais forte da comunhão nacional — acrescentou o deputado Justiniano de Serpa (CE).

Apesar desse tipo de raciocínio, a Constituição de 1891 entrou em vigor prevendo a eleição direta para presidente. Grande parte dos ex-escravizados, contudo, foi alijada desse direito, já que a Carta republicana negou o voto aos analfabetos, como já faziam as leis do Império desde 1881. O deputado Lauro Sodré (PA) tentou, sem sucesso, permitir que os iletrados votassem:

— Estamos em uma fase social que se acentua pela elevação do proletariado. Se lançarmos os olhos para os povos civilizados, havemos de ver que em todos eles se vai levantando a grande massa. Chamem-na socialismo, niilismo ou fenianismo, um só é o fenômeno social: o advento do Quarto Estado. Não posso dar o meu voto a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem tanto na obra do progresso da nação quanto aqueles que tiveram a fortuna de aprender a assinar o seu nome.

As províncias do Império, que se transformaram nos estados da República.
As províncias do Império, que se transformaram nos estados da República.
BIBLIOTECA DO SENADO / AGÊNCIA SENADO

As oligarquias estaduais aproveitaram o Congresso Constituinte para, na adoção do federalismo (transformação das províncias em estados), tentar obter o máximo possível de liberdades, prerrogativas e benesses. Sugeriu-se que o Governo federal assumisse as dívidas de todos os Estados, que os Governos locais tivessem o poder para abrir bancos emissores de papel-moeda e que cada governador indicasse um ministro para o Supremo Tribunal Federal. Outra ideia debatida foi a liberdade para que os estados criassem suas próprias leis civis, processuais, comerciais, eleitorais e até penais.

— Os crimes de homicídio, de roubo e de furto hão de ser crimes de homicídio, de roubo e de furto no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, no Amazonas e em toda parte, mas a penalidade pode diversificar. No Rio Grande do Sul, onde o povo é dado à indústria pastoril, infelizmente há em abundância o furto de gado e lá nós precisamos punir mais gravemente esse delito do que puniriam os pernambucanos, os mineiros e os alagoanos, para evitar sua reprodução — argumentou o deputado Cassiano do Nascimento (RS).

À exceção dos códigos processuais estaduais, nenhuma dessas ideias vingou. Em compensação, as oligarquias conseguiram incluir na Constituição a criação dos Judiciários estaduais (antes só havia o Judiciário nacional) e a concessão das terras devolutas aos Estados (antes pertenciam à União).

— As antigas províncias, feudos da Monarquia, aqueles territórios estéreis onde dominavam o imperialismo e o niilismo, aquelas províncias verdadeiramente esfarrapadas e nuas, como se fossem mendigas, aí surgem, como que mudando de sexo, transformadas em estados — festejou o senador Américo Lobo (MG).

Trecho inicial da Constituição de 1891.
Trecho inicial da Constituição de 1891.
ARQUIVO DO SENADO / AGÊNCIA SENADO

A partilha do dinheiro público também mobilizou as oligarquias estaduais. Dos poucos embates ocorridos nos três meses do Congresso Constituinte, esse foi o mais renhido. No Império, a autonomia financeira das províncias era quase nula. Elas não tinham poder sobre o dinheiro arrecadado em seus territórios pelo Governo central, que fazia a seu critério a distribuição dos recursos. No Congresso Constituinte, os Estados mais ricos buscaram acabar com essa dependência. São Paulo, por exemplo, que não gostava de ver as volumosas somas geradas pela exportação do seu café sendo aplicadas em outros cantos do Império, agiu para ter o controle de todo o dinheiro.

— Diante da decadência que se abateu sobre o Nordeste na década de 1870, em razão da crise do açúcar, a Monarquia passou a redistribuir para as províncias nordestinas o dinheiro dos tributos arrecadados em São Paulo. Por esse motivo, a Monarquia era popular no Nordeste e impopular em São Paulo. Os paulistas, que se viam como a locomotiva que puxava os 20 vagões das demais províncias vazios, abraçaram a ideia do federalismo republicano porque não queriam mais perder dinheiro — explica o cientista político Christian Lynch.

A bancada do Rio Grande do Sul apresentou uma proposta radical de federalismo: a arrecadação tributária passaria para as mãos dos Governos locais, e a União se tornaria dependente de uma mesada paga pelos Estados.

— Se dermos aos Estados toda a autonomia, mas não lhes dermos renda, isso equivalerá à liberdade da miséria — argumentou o deputado Júlio de Castilhos (RS). — A federação, para ter realização efetiva, completa, satisfatória, depende da devolução aos Estados não somente dos serviços que lhes competem, mas também da devolução das rendas que no regime decaído [Monarquia], o qual tanto combatemos, eram absorvidas quase que totalmente pelo governo central.

— Neste momento em que se tratamos de organizar os estados, se me afigura como que uma cena de família em que os filhos da casa, chegados à maioridade, deixam o teto paterno para constituírem em separado suas famílias. Os Estados, antigas províncias, vão neste momento, depois de sua independência, adotar um novo regime que deve produzir sua grandeza e felicidade — comparou o senador Ramiro Barcellos (RS).

Ruy Barbosa e Júlio de Castilhos: adversário na questão do federalismo.
Ruy Barbosa e Júlio de Castilhos: adversário na questão do federalismo.
FUNDAÇÃO CASA RUI BARBOSA E VIRGÍLIO CALEGARI / AGÊNCIA SENADO

Para os adversários da ideia, esse federalismo extremado fortaleceria tanto certos Estados que poderia levá-los a desejar o separatismo, comprometendo a União.

— O que se está propondo é uma confederação de republiquetas — criticou o senador José Hygino (PE).

— Os estados brasileiros têm tido nesta Casa tantos defensores quantos são os seus representantes. A União, porém, a pátria comum, parece que não tem advogado — lamentou o senador Ubaldino do Amaral (PR), acrescentando que, caso os estados em algum momento se recusassem a transferir os impostos, o governo federal não teria como custear o Exército, a Marinha, as embaixadas no exterior, o serviço de correios e a segurança interna.

Para o senador Ruy Barbosa (BA), a União estaria fadada à morte se passasse a depender das “migalhas” dos estados:

— Os estados são órgãos; a União é o agregado orgânico. Os órgãos não podem viver fora do organismo assim como o organismo não existe sem os órgãos. Separá-los é matá-los. Não vejamos na União uma potência isolada no centro, mas a resultante das forças associadas disseminando-se equilibradamente até as extremidades. Fora da União, não há conservação para os estados.

Por uma margem apertada, 123 votos contrários e 103 favoráveis, a proposta da bancada gaúcha foi derrotada. O federalismo previsto na Constituição de 1891 garantiu recursos equilibrados para a União e o conjunto do estados. A estes últimos coube, entre outros, o imposto de exportação — justamente o principal pleito de São Paulo.

Charge da Revista Ilustrada mostra desejo de federalismo no fim do Império.
Charge da Revista Ilustrada mostra desejo de federalismo no fim do Império.
BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL / AGÊNCIA SENADO

Aristides Lobo, o jornalista que descreveu o povo assistindo “bestializado” ao golpe de Estado de 1889, elegeu-se deputado pelo Distrito Federal (na época o Rio de Janeiro) e participou da elaboração da Constituição de 1891. O artigo ficou tão famoso já na época que, no Congresso Constituinte, ele ouviu colegas avaliando que o adjetivo “bestializado” era exagerado e jurando que o povo havia, sim, ajudado a derrubar a Monarquia. Lobo discordou:

— O acontecimento deu-se no meio de uma população surpresa pela oscilação revolucionária. Esse é o aspecto natural da questão.

Na tribuna do Paço de São Cristóvão, o deputado Serzedello Correia (PA) fez uma avaliação semelhante à de Aristides Lobo:

— A República devia vir como veio: calma, silenciosa, de modo que as tropas percorreram as ruas em triunfo e as crianças continuavam a brincar no colo de suas mães.

Terminado o Congresso Constituinte, os parlamentares deixaram o improviso do Paço de São Cristóvão e se mudaram para o Centro do Rio de Janeiro. Os senadores passaram a trabalhar no mesmo prédio do Senado imperial e os deputados, no mesmo prédio da Câmara imperial. São Cristóvão se transformou no Museu Nacional — o mesmo que seria devastado em 2018 por um incêndio.

A reportagem, publicada originalmente aqui, faz parte da seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Reportagem e edição: Ricardo Westin | Pesquisa histórica: Arquivo do Senado | Edição de fotografia: Pillar Pedreira | Edição de multimídia: Bernardo Ururahy